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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.4  Salvador  2002

 

GOZO E SEXUALIDADE

 

Gozo do tempo*

 

 

Carlos Pinto Corrêa **

Circulo Psicanalítico da Bahia

 

 


RESUMO

O presente trabalho faz uma aproximação do tempo e do gozo. Partindo da crônica sobre o tempo, estabelece uma revisão do pensamento de Freud e de Lacan sobre o tema. Passa em seguida à escravidão do homem moderno frente ao que lhe é cobrado, e que transforma sua vinculação com a temporalidade em uma forma de gozo.

Palavras-chave: Tempo, Gozo, Modernidade.


 

 

TEMPO DE CRÔNICA


Tanto que fazer!
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.
..........
Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos,
nem para que.


Cecília Meireles1

Cientistas, filósofos e psicanalistas abordam a questão do tempo como se o essencial estivesse sempre escapando das palavras. Somente os poetas conseguem a penetração necessária para transmitir o que está em todos nós sobre a vivência do tempo tal qual ela é. O tempo, como marca da vida nos invade de todos os modos. Os séculos de uma estrutura geológica evidente nos contemplam. Os ciclos anuais, com as estações sempre renovando o mundo, o alvorecer e anoitecer de cada dia, o pulsar de nossa respiração e circulação, lembra o movimento ritmado de um relógio. O universo nos fala de um passar, de um tempo sempre sentido. Pitágoras se refere a ele como uma esfera que abrange tudo. Viver o tempo é uma experiência ao mesmo tempo subjetiva e comum a todos os homens que possibilita transladar-se de uma memorização que o situa em um tempo ido que se chama passado, a um imaginário antecipado que se chama futuro, ou ao corte quase impossível da consciência do estar sendo agora que se chama presente, tempo absoluto, em que se dá o ato da fala. Vivemos irremediavelmente presos a esta roda que não cessa seu movimento, que define a vida em princípio, etapas e fim, que opera independente da nossa atenção ou consciência. A dinâmica que nos cerca mostra uma sucessão cíclica de reinícios aparentes numa espiral infindável. É algo tão intrínseco ao ser que faz nossas reflexões tão fugidias.

E com a modernidade veio a expressão impossível falando-se de um tempo real, mas que se refere apenas a uma quase concomitância; um tempo mínimo entre a entrada de um dado e um resultado obtido, portanto, melhor dizendo-se quase real. Cada vez mais o tempo perde sua condição de oportunidade ou de veículo por onde a vida pode escorrer e se torna um fator de opressão. Badiou2 diz que vivemos um totalitarismo do tempo. As tarefas e propósitos não cabem no tempo disponível, e sua inelasticidade produz um estado de inconformidade frente a condições criadas pelo homem e denunciadoras de sua impotência.

Historicamente sabemos que não foi sempre assim. De início bastava a divisão entre o dia e a noite, o primeiro para o trabalho e a segunda para o repouso. Sem códigos, o sol definia os períodos diários. A marcação cronológica foi inventada para pontuar os períodos de um dia monótono e sempre igual e que devia ser regulado. Assim os contempladores, ou os monges começaram a subdividir o longo período que vai entre a madrugada inaugurada com os primeiros raios solares e termina com o anoitecer. Ampulhetas, relógios de vela, de água, de sol, e depois os primeiros mecanismos desenvolvidos pelos armeiros, utilizando-se da propriedade dos pêndulos, criaram uma nova noção sobre as possíveis divisões do tempo. Um indicador que gira a partir de um eixo formando um círculo que foi distribuído em duas partes, depois em quatro, em seis, uma volta para a noite e outra para o dia. Assim, arbitrariamente, a divisão em 24 horas do dia, foi inventada lembrando uma repetição obsessiva a ser cumprida diuturnamente.

 

O TEMPO EM FREUD E LACAN

Freud não abordou sistematicamente a questão do tempo, embora sejam inúmeras suas referências ao tema. Podemos tomar algumas posições importantes em sua obra. Em 19153 nos afirma que o inconsciente ignora o tempo. Já no término da Interpretação dos Sonhos4 , ele nos falou que o desejo inconsciente é indestrutível, sendo, portanto fora do tempo. No conceito de regressão sugere uma espécie de duplicidade temporal. A expressão revivência sentida é usada por alguns pós-freudianos que a consideram uma espécie de revivência de experiência passada (como uma volta) à consciência da situação presente. Miller5 lembra que Lacan não desmentiu a regressão, mas apenas o seu realismo. Seria um vetor que retroage, ou seja, se produz na própria articulação dos vetores da cadeia significante, e não como um fato de comportamento. Os bebês não frequentam os divãs, mas os adultos podem passar experiências das antigas demandas fixadas. São como marcas de um tempo que precisam ser resgatadas.

Freud trata do inconsciente em alguns textos de um modo heterogêneo. Assim ele não coloca a pulsão fora do tempo e até diz que ela implica em tempo de tensão e em decorrência disso, uma escanção de distensão, ou como a satisfação pulsional.

Outra questão se refere ao tempo de tratamento. De início ele aborda a dificuldade de manter os pacientes em análise. Alguns anos mais tarde, foi a dificuldade de mandar os pacientes embora e a duração excessiva do tratamento já formulada em “Análise Terminável e Interminável”6 . Nos avanços da psicanálise certas questões operacionais, supostamente capazes de garantir a eficácia do tratamento, passaram a ser sintetizadas em uma espécie de contrato celebrado entre o cliente e o analista, e que as instituições tomaram como essencial à preservação do método. Da duração do tratamento passa-se à preocupação com a duração das sessões e sua frequência semanal, em uma espécie de legislação das instituições psicanalíticas. É sempre útil lembrar que mais pela acusação de insurreição às normas do que pela reformulação da doutrina teórica que foi deflagrada a contenda IPA e Lacan.

Teoricamente a questão do tempo toma outro sentido bem mais amplo para Lacan. Na “Posição do Inconsciente”7 ensina que “a transferência é uma relação essencialmente ligada ao tempo e ao seu manejo”. O sujeito significante, enquanto se constrói na análise é um sujeito que se encontra suspenso entre a antecipação e o posteriori, diz Soller8 . Este tempo reversivo, vivido por quem inicia uma análise, corresponde a um tempo de antecipação, de expectativa para obter alguma coisa, como se fosse um prazo de esperança. Ao mesmo tempo que vive esta antecipação, começa a olhar seu passado, interrogando sobre sua história. A busca de uma série causal tem o passado como determinante do presente, e este como causa e direcionamento do tempo antecipado. Antes de tomar o sujeito do significante, Lacan tomou o sujeito da fala9, não o sujeito pessoa, mas o sujeito como algo que fala. Uma fala que já existe antes do sujeito, um discurso que vai colocá-lo como um receptor de atributos. Antes de a criança nascer fala-se dela e Lacan esclarece que este novo sujeito não é nada, antes que se fale dele e que ao se falar dele é anulado pelo significante. Não é o sujeito que chama o segundo significante, é o primeiro que chama o segundo. O S1 representa algo que será o sujeito desse significante:

S1 → S2
$

A existência de um suposto na cadeia sugere por si uma estrutura de antecipação, e em um primeiro tempo o sujeito fala do futuro que está sempre projetado na metonímia significante.

Outra importante questão do tempo na psicanálise é sua junção ao ato. O ato analítico correlativo ao final da análise, implica uma estrutura lógico-temporal que Lacan apresenta em 194510. Trata da interpretação, o tempo lógico a partir da dimensão do ato. A partir de Freud a análise tenta anular o caráter inquietante do ato, reforçando a técnica como forma de tornar o trabalho analítico mais previsível, enquanto que o verdadeiro cerne da questão estaria na estrutura temporal-pulsátil onde o inconsciente é o evasivo em ato, entre a abertura e seu fechamento. Freud aborda a questão do tempo a partir da lógica e não da cronologia, por isso ele vence o obstáculo da intuição e da consciência (cogito). Ele considerou o lapso de tempo entre o antes e o depois, um adiamento ou nachträglich que Lacan tomou como solidário da cadeia significante, indicando a hiância existente entre o antes e o depois. Vidal11 lembra que o tempo de análise é real: está em jogo ali a sustentação da causa do desejo, que põe a divisão do sujeito a trabalhar. O tempo lógico não corresponde a uma estrutura homogênea.

 

MODERNIDADE: Tempo para que te quero

O homem moderno vive uma espécie de antinomia com o tempo; uma disputa em que as horas são inimigas e ao mesmo tempo preciosas. Possivelmente um estatístico atento nos diria que no cotidiano existem duas questões que atormentam as pessoas: a falta de tempo e o cansaço. O tempo livre está morto como espaço disponível. Dias meses e anos são como quadros vazios que precisam ser inteiramente preenchidos. Há sempre a possibilidade de se comprometer, ampliar tarefas, trabalho, futucar no computador, incluindo Internet e as intermináveis listas de e-mails, além da suposta onipotência e onipresença proposta pelos telefones celulares. Até o lazer maciço e marcado se transforma em obrigação. A invenção do ter que fazer esbarra no impossível de um tempo que não se amplia, daí tornar-se um atributo. A palavra atributo é aqui tomada no sentido aristotélico de que encara uma qualidade que não pertence à sua essência. O tempo deixa, portanto, de ser uma disponibilidade e passa ao imperativo, tornando o homem seu escravo, transformando-se assim em uma nova modalidade de mal-estar na cultura. Desse modo, a psicanálise é acionada na defesa do sujeito contra o novo fator patógeno que lhe é imposto pela cultura. A pressa é a reação frente ao tempo que urge. É necessário concluir, e há uma competição subjacente que nos obriga a não nos atrasarmos. Tratando da questão da luta pelo tempo na análise, Vidal11 sugere que “a expressão gramatical que melhor poderia expressar essa forma ontológica da angústia seria, por medo de perder a minha vez. O tempo se torna uma guerra sem fim e sem ganhador, ou uma angústia. Surge pelo efeito da intrusão do real no imaginário, o buraco que se recobre e se reveste das formas de i(a). Assim como a luta do tempo em nossos dias, é uma inquietação cujo verdadeiro afeto não engana.

A sujeição do homem frente aos ditames da cultura não fala de uma posição passiva, mas em uma busca daquilo que metaforicamente reedita sua condição de carente, dividido ou faltoso. Freud12 já lembrava que “não são as vivências em si que produzem efeito traumático, mas sim sua reanimação como recordação, depois que o indivíduo ingressou na maturidade sexual.” Isto nos leva a pensar que a opressão temporal em nossos dias traz uma questão ligada a uma certa configuração do gozo.

Para Santo Agostinho13o tempo é identificado com a própria alma que se estende para o passado e o futuro. De que modo diminui o futuro que ainda não existe e de que modo cresce o passado que não existe mais? E lembra que o presente carece de duração, pois logo incide no passado, o passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Para ele é como se, a rigor, não existissem três tempos, mas três presentes: o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. O tempo, algo tão íntimo nosso, mas que nos escapa a todo instante. Este escape, que dá ao tempo a vivência de algo fugidio ou evanescente está marcado pelo que se perde, portanto pela morte e pela angústia. É preciso matar o tempo para não ser morto por ele. E sua locupletação com os afazeres desloca a angústia do que se perde para a tentativa de se conseguir o que é feito. Com Freud podemos dizer que há uma recusa a viver o tempo por que ele produz desprazer, e sabemos que este desprazer é a angústia. E pode-se matar o tempo fazendo-se algo para esquecer dele, o que é possível através de retranscrições ou inscrições como se o desejo pudesse substituir o gozo. A cilada está em que na substituição da angústia pelo tempo subjetivo, o sujeito se torna refém das exigências externas, descobrindo que dessa forma se submete ao desejo do outro. No quadro da divisão do sujeito proposto por Lacan aparece a seqüência gozo – angústia – desejo, sendo o gozo a-temporal, contrariando Freud que estabeleceu as estruturas (da histeria, neurose obsessiva, paranóia e perversão) numa referência temporal. Sabemos que no lugar da energética de Freud, Lacan14 propôs uma economia política na qual estabelece uma relação entre a mais-valia tal como propunha Marx, passando do objeto a ao mais-gozar.

Lacan considera três estados no gozar: o gozar fálico, o mais-gozar e o gozo do outro. O gozo fálico é assim chamado porque o limite que abre e fecha a descarga é o falo, ou o recalcamento no dizer de Freud. Nasio15 , exemplifica que o “falo funciona como uma comporta que regula a parcela de gozo que sai (descarga) e a que permanece dentro do sistema inconsciente (excesso residual)”. O mais-gozar corresponde ao que permanece retido no interior do sistema psíquico e cuja saída está impedida pelo falo. É um gozo residual, excedente que aumenta constantemente a tensão interna. Quanto ao gozo do outro, é o estado hipotético que corresponde à situação ideal em que a tensão pudesse ser totalmente descarregada. É o gozo que o sujeito supõe no Outro, como ser suposto.

Em seu antigo texto “Os Complexos Familiares”, Lacan16 fala da emergência da psicanálise relacionada a uma certa crise subjetiva, histórica e socialmente submetida pelos efeitos do progresso social que teriam promovido um declínio da imago paterna. Hoje sabemos que tal declínio não leva o homem a uma libertação, mas à procura de outras formas de submissão como a religiosa, a política, a econômica e mais recentemente o tempo. A modernidade trouxe uma queda do poder fálico, pela crise da atenuação das diferenças e a própria decadência da função paterna. O homem moderno, não sustenta o gozo fálico, perdendo sua condição reguladora de um gozo que controla o residual. Assim, submete-se às formas mais mortíferas do mais-gozar e uma delas seria dar esta temporalidade infinita do gozo ao que imagina ser o tempo. A alegação de sua falta ou da impossibilidade de atender ao que está comprometido sugere uma questão que poderia ser resolvida pelo aumento de horas do dia (já temos até um banco 25 horas), mas a questão não está no tempo e sim no gozo estabelecido em nome do tempo. A difícil condição do sujeito submetido à massificação das informações, à estereotipia, à pressão do comunitário e à inexistência de oportunidade para o diferente (original), colocam-no na posição exterior de acontecimentos inesperados, das palavras, das fantasias, do conjunto de produções que se tornam desfavoráveis a ele. Há uma possibilidade da fantasia sobre o outro que não se deixou apanhar pelas mesmas malhas e que pode estar na posição desse gozo do outro. Este sujeito suposto que pode ser objeto da inveja, ou quem sabe até da cobiça, isto é mais uma malha que leva o vivente a uma difícil forma de gozo.

Desde Platão e Aristóteles a questão da vulnerabilidade do que é desagradável ou agradável, bem como dos limites entre a dor e o prazer são mencionados como questões que atormentam a humanidade. Freud marcou a impossibilidade da satisfação plena e da relação entre o prazer e dor, chegando então ao gozo17. Mas a modernidade foi elaborada em termos de promessas de satisfação e felicidade, que hoje sabemos impossíveis. Tantas ofertas sedutoras foram feitas e o homem moderno, vulnerável à conquista e ao acúmulo, cedeu. Na tentativa de se tornar senhor por uma produtividade jamais sonhada, se tornou escravo e o tempo que fluía como um bem possuído o escravizou. Assim, os bons tempos se transformaram em gozo mortífero.

 

BIBLIOGRAFIA

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* Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, novembro de 2001
** Psicanalista. Membro fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia.
1 MEIRELES, Cecília - Humildade – in: Poesias Completas, Vol. 7, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1973.
2 BADIOU, A. - O Ser e o Evento - Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1996
3 FREUD, S. - (1915) O Inconsciente – In: Trabalhos sobre metapsicologia. SE Vol. 14 Rio de Janeiro, Imago, 1974
4 FREUD, S. - (1900) A interpretação dos sonhos. SE Vols. 4 e 5, Rio de Janeiro, Imago, 1972
5 MILLER, Jacques-Alain - A Erótica do Tempo – Rio de Janeiro, Escola Brasileira de Psicanálise, 2000
6 FREUD, S. - (1937) Análise terminável e interminável. Vol. vol.23, Rio de Janeiro, 1975
7 LACAN, J. - Posição do Inconsciente, Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1998
8 SOLER, Colette - O Tempo em Psicanálise – Salvador Falo n.1, Julho, 1987
9 LACAN, J. - (1953) Função do campo e da linguagem em psicanálise In Escritos pág. 238
10 LACAN, J. - 1945) O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada In Escritos, pág. 197
11 VIDAL Eduardo A. - Ato e Tempo – Salvador Falo n. 1, Julho, 1987
12 FREUD, S. - (1896) Novos comentários sobre as psiconeuroses de defesa. SE vol 3,Rio de Janeiro, Imago, 1976
13 AGOSTINHO, S. - As Confissões. Petrópolis, Vozes, 1988
14 LACAN, J. - Problèmes cruciaux pour psychanalyse – Seminário do dia 13/01/63. Cif CARVALHO, Renato R. P. Estrutura e Tempo, Rio de Janeiro Letra Freudiana, ano XVII, - 25, 1999
15 NASIO, J. D. - (1992) Teoria de Jacques Lacan – Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1993
16 LACAN, J. - (1984) Os Complexos Familiares. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987
17 FREUD, S. - (1920) Além do princípio do prazer. SE Vol. 18, Rio de Janeiro, Imago,1969

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