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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.8  Salvador  2007

 

CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

As novas dificuldades na clínica e a formação do psicanalista

 

 

Maria Tereza Ávila Dantas Coelho *

Colégio de Psicanálise da Bahia

 

 


RESUMO

O texto trata das dificuldades da clínica frente às questões da formação psicanalítica. Faz uma revisão histórica a partir do dispositivo de transmissão de Lacan, apresentado em 1962. Refere ao desejo do analista, ao passe interinstitucional e à transferência. Discorre ainda sobre a interlocução como arte: o silêncio, a escuta e a escrita. Propõe a saída da repetição teórica em troca de se pensar sobre as inquietações da clínica atual.

Palavras-chave: Transmissão, Ensino, Clínica Psicanalítica, Passe


 

 

O tema das novas dificuldades na clínica psicanalítica nos remete à questão da formação do psicanalista e da transmissão da Psicanálise. De um lado, em que aspectos a formação do psicanalista contribui para essas novas dificuldades, ou seja, essas dificuldades dizem respeito ao psicanalista e à sua formação? Essa questão se torna premente, em parte devido à proliferação de cursos de formação em Psicanálise. Como tem se dado, então, a transmissão das dificuldades na clínica psicanalítica? Vejamos alguns aspectos históricos recentes e atuais, ligados à formação e à transmissão, que podem nos ajudar a pensar tais questões.

Sabemos que, em 1967, Lacan propôs o passe como um novo dispositivo de transmissão da psicanálise, capaz de revelar a singularidade da passagem da condição de analisando a analista. Ele pretendia, com esse dispositivo, engendrar uma produção teórica inovadora, marcada pela singularidade da experiência de tornar-se analista. Buscava, com o passe, solucionar uma crise institucional referente à articulação entre a análise pessoal, ou psicanálise em intensão, e a elaboração do saber analítico, ou psicanálise em extensão (Chatel, 1993). Privilegiava os depoimentos dos jovens analistas, que haviam terminado sua análise pessoal, mas não tinham ainda se lançado no ofício de psicanalisar. Com isso, intencionava driblar a amnésia dos analistas experientes com relação ao surgimento do seu desejo de analista.

O surgimento do desejo de analista pressupõe uma relação transferencial com a Psicanálise. Trata, aí, de estar fortemente ligado a Freud, a Lacan, a outros psicanalistas e à instituição psicanalítica. Esse desejo faz com que o jovem analista se envolva com a prática da Psicanálise, colocando-se na posição de analista para um outro. Lacan (1962–63) ressaltou que a instauração desse ato analítico tem a natureza de uma passagem ao ato. Nessa passagem, o sujeito identifica-se ao objeto a e cai fora da cena que até então o sustentava. Ir além da subjetividade e das amarras da representação são aspectos envolvidos nesse processo.

No mesmo ano em que Lacan (1967–68) lançou a sua proposição sobre o passe, ele afirmou que, enquanto o final de análise é uma passagem ao ato, o ato de passagem do analisando à condição de analista é um re-ato, ou seja, uma reação ao ato cometido por seu analista de suportar a transferência. Trata-se, portanto, de uma passagem ao ato esclarecida, que comporta um saber. Lacan denominou esse ato de ‘loucura advertida’, que, obviamente, tem seus efeitos sobre o analista. Um desses efeitos é a interrogação sobre a Psicanálise, o desejo de analista e os acontecimentos da clínica, dentre eles as dificuldades. A condução de um processo de análise é também um re-ato no sentido em que tais dificuldades remetem à própria análise do analista. A partir do trabalho com seus analisandos o analista re-ata, religa-se à sua experiência de análise pessoal e de final de análise. A supervisão é um espaço privilegiado para o tratamento dessas questões.

Em nossa clínica, a dificuldade de estabelecimento e manutenção de vínculos, as toxicomanias, as bulimias, o consumo e o jogo patológico, o culto excessivo à imagem, as perversões e as depressões são expressões de um novo mal-estar, que parece estar ligado ao imperativo de gozo característico do sistema capitalista. À culpa por desejar, revelada por Freud (1930) na primeira metade do século XX, se acrescenta agora a culpa maior de ceder do desejo, discutida por Lacan (1959–60) na segunda metade desse século, e/ou a culpa por não realizar o ideal coletivo de gozo que compõe o ideal do eu. À angústia freudiana de castração, ligada à falta, se soma agora a angústia ligada ao excesso, à falta da falta, como bem captou Lacan (1962–63), também na segunda metade daquele século. O aprisionamento a um supereu não apenas interditor, mas sobretudo cruel, exigente de gozo é algo com o qual nos defrontamos no dia a dia da clínica e que resiste à transformação, seja por expressar os anseios da Pulsão de Morte, seja por refletir os votos de nosso tempo. O desemprego, o aumento das desigualdades sociais, o incremento da violência e de atos destrutivos, a cultura do narcisismo e do espetáculo, a falta de perspectiva e a perda de referenciais, o individualismo exacerbado e a falta de solidariedade são questões macrossociais que atravessam não apenas o discurso de nossos pacientes, mas também as suas ações na análise. Tudo isso, aliado às novas estruturas familiares e técnicas de reprodução humana, faz com que a formação do psicanalista precise se debruçar sobre assuntos que são contemporâneos, exigindo que a produção teórica reflita tais questões.

No final de sua vida e ensino, Lacan (1978) aproximou a experiência da análise da experiência da loucura. Ele afirmou que a transferência é "uma história absolutamente louca" e que aquele que procura um analista e realiza com ele um processo de análise, aquele que tem a loucura de acreditar no analista é, então, um sujeito psicótico com sintoma neurótico. Eu o cito: "Por que alguém viria pedir a um analista o abrandamento de seus sintomas? Todo mundo tem sintomas, uma vez que todo mundo é neurótico, é por isso que chamamos o sintoma de neurótico se for o caso, e quando ele não é neurótico as pessoas têm a sabedoria de não vir pedir a um analista que se ocupe dele, o que de qualquer maneira prova que só não transpõe isso, a saber, vir pedir ao analista que dê um jeito nisso, aquele que certamente deve ser chamado de psicótico". Vejam que, nessa perspectiva, o analista e seu analisando estão envolvidos numa experiência que é da ordem da loucura.

Essa colocação de Lacan nos faz uma grande exigência de trabalho, pois, se concordássemos com ela, teríamos não que rever a classificação das três grandes estruturas (neurose, psicose, perversão), mas sim a função das entrevistas preliminares, a questão do diagnóstico na clínica e a direção da cura. Ou seja, é o próprio fazer analítico que está colocado em cheque por essa afirmativa de Lacan. Nessa direção, as entrevistas preliminares não mais teriam como uma de suas funções o diagnóstico diferencial entre neurose e psicose, visto que a estrutura psíquica do demandante da análise seria psicótica, e a direção da cura teria que levar em consideração esta estrutura. Tal perspectiva se coaduna com uma outra afirmativa de Lacan segundo a qual toda análise que chegue a seu termo esbarra numa psicose. Ainda que se possa não concordar com tais considerações de Lacan, elas nos fazem questionar se as novas dificuldades na clínica psicanalítica estariam ligadas à problemática do diagnóstico e da direção da cura.

Nessa perspectiva, retomamos a declaração de Lacan (1977) sobre o passe, uma vez que, para ele, "se a língua é comum, a psicanálise não é um autismo a dois e pode ser transmitida". No entendimento de Lacan (1978), o passe fracassou porque não foi capaz de produzir inovações teóricas, mas apenas repetições aprisionadas ao seu ensino. Essa declaração, ao mesmo tempo em que aponta para o fracasso, também pode ser tomada como um convite à reedição de um passe inventivo e um apelo à criação de outros dispositivos de transmissão. A proposta de um passe interinstitucional segue nessa direção (Peres, inédito). Tal modalidade de passe está desvinculada da nominação do analista da instituição e diz respeito tanto aos depoimentos dos analistas relacionados ao surgimento do seu desejo de analista, quanto aos testemunhos sobre a sua prática clínica. Trata-se, então, de produzir avanços teóricos a partir da escuta dos relatos de análise, quer eles se refiram à análise pessoal, quer digam respeito às análises de terceiros, em seus efeitos sobre o analista. Sendo cada análise única, não há transmissibilidade de uma psicanálise à outra. Há, entretanto, algo a se transmitir a partir de cada processo de análise. Nesse bojo se encontram as novas dificuldades na clínica psicanalítica. Os analistas envolvidos nessa transmissão interinstitucional não ocupam, neste momento, a posição de sujeito suposto saber e semblante de objeto a, mas sim a posição de sujeito suposto transmitir, engendrando um novo laço transferencial. O passe implica, nessa perspectiva, um trabalho de invenção teórica. Enquanto tal, ele remete tanto à palavra que falta, quanto ao que falta à palavra. Lembro uma afirmativa de Lacan (1964), para quem "transmitir a Psicanálise é tratar o desejo como objeto, interrogá-lo". Esculpir o bloco homogêneo do silêncio, apontar o ex-sistente, produzir o inconsciente e sublinhar a alteridade, nesta direção pode se dar o trabalho do passe interinstitucional, em sua originalidade.

Um outro modo de transmissão de aspectos contemporâneos à psicanálise se dá através da interlocução com a arte. Enquanto frutos da invenção e criação, a psicanálise e a obra de arte têm muito em comum. Já dizia Freud (1907) que o artista e o psicanalista bebem na mesma fonte e que o artista, com sua sensibilidade, antecipa muitos aspectos da alma humana ainda não explorados pela ciência. A interlocução com o campo da arte, nesse sentido, muito pode contribuir para a discussão das novas dificuldades na clínica psicanalítica. A título de exemplo, o Édipo Rei de Sófocles, o Hamlet de Shakespeare e os Irmãos Karamassovi de Dostoievski forneceram elementos preciosos a Freud para sua teorização sobre o complexo de édipo e o desejo de morte do pai. Deixar-se interrogar pela arte é uma outra via, portanto, de acesso ao Real, utilizada na teorização da Psicanálise. Ambos os processos artísticos e analíticos pressupõem o encontro com o silêncio estrutural das pulsões. Esse silêncio, que está além de toda palavra, é fonte de toda invenção e criação (Kovadloff, 2003). Encarnado pelo psicanalista enquanto semblante de objeto a, ele remete ao indizível e expressa uma ausência originária. Para bordejá-la, o analisando percorre o caminho da palavra e encontra os seus limites. A palavra e o silêncio não estão dissociados, portanto. A própria dimensão da palavra, em sua incompletude, já porta a marca do silêncio que, em si mesmo, não representa o fracasso, mas a expressão máxima da palavra, no seu encontro com o Real.

A escuta da palavra e do silêncio, na análise, se dá, como sabemos, através do estranhamento. O estranhamento diz respeito não apenas ao que parece estranho, mas também ao que soa habitual. Estranhar o habitual é desfocar e descentrar o que, a princípio, reclama valor. De um lado, desdobra-se na escuta do diferente, da outra coisa, do outro sentido, numa cadeia sem fim pré-estabelecido. De outro, tropeça-se no limite da palavra e esbarra-se no inaudível, criando assim as condições para o mergulho no silêncio. Esse mergulho, que já é desprovido de qualquer referência, propicia o encontro com o que só existe fora da representação. É o encontro de quem acha o que não procura, e depois mostra o efeito do inesperado através da obra criada. É assim que a pintura é a expressão do que não se vê e a música e a poesia o são daquilo que não se ouve (Kovadloff, 2003).

A escritura da escuta é, portanto, um trabalho de apreensão, e não de compreensão. Submetido a uma força alheia ao poder e à vontade própria, trata-se de transmitir o efeito de uma presença, o seu impacto. Projetar na palavra uma presença intangível é aproximar-se do que, nela, nos afeta em sua opacidade. Nisso reside a fonte da inspiração enquanto transgressão transitória de vínculos rotineiros. É a extrema alteridade, vivência de mistério o que nos impele à invenção e à criação. Não há nenhum padrão capaz de traduzir o informe, o que conduz a um processo de formalização original. A versão pessoal do imponderável é o que está em jogo nesse processo. A não compreensão e a impossibilidade última de sentido incitam à transmissão, que se dá pela criação de um semblante irredutível à palavra. Toda a força de uma obra reside, então, no que ela sugere de inominável. Assim, uma coisa é o silêncio que sustenta a criação, e que é prolongado por ela (Kovadloff, 2003). Outra coisa é o silêncio que bloqueia a produção, a serviço da resistência.

A obra criada, nessa perspectiva, remete ao desconhecido, ao que se presta a ser escutado, mas não decifrado. Esse desconhecido não diz respeito ao circunstancialmente ou temporariamente ignorado, mas refere-se ao inacessível, ao inapreensível. O que resiste a ser possuído nem por isto é inabordável. A escuta é um processo capaz de suscitar a emergência do não-pensado, não-visto, não-escutado. Se a escuta pressupõe o silêncio, não é apenas porque se cala neste momento. É sobretudo porque, escutando, entra-se em contato com a dimensão do silêncio no outro.

Na escuta não se trata de ouvir o que já se sabe, portanto, mas de apreender o que pela primeira vez se apresenta ou o que não chega sequer a ser dito. É captar que alguma coisa quer se transmitir, sem que o seu conteúdo se mostre. É não reter outra coisa além dos restos das palavras ouvidas e, com elas, avançar. A escuta livre de qualquer referência prévia nos transforma, nos expõe. Escutando, somos afetados por uma presença sonora, que nos convoca à invenção e criação. A escritura da escuta implica, assim, perder-se, romper com a própria previsibilidade. A paixão e a urgência de transmissão são fundamentais nesse processo.

Para finalizar, retomando as questões lançadas no início deste texto, diria que o tema das novas dificuldades na clínica psicanalítica nos convoca a uma transmissão da Psicanálise capaz de sair dos grilhões da repetição da teoria, para uma produção teórica própria, marcada pela emergência e reflexão de questões atuais e singulares de cada processo de análise. Ele nos convoca a uma forma própria de transmissão da Psicanálise, que supere a alienação ao saber instituído e seja capaz de expressar o modo particular pelo cada qual um de nós tem sido tomado pela experiência analítica. Com isso, esperamos não apenas conservar ou dar continuidade ao projeto freudiano e lacaniano, mas responder, ao menos com novas perguntas, às inquietações vivas que nos têm acossado ou ferido ao longo destes anos de prática analítica.

 

BIBLIOGRAFIA

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PERES, U.T. Não cessar de passar o passe. Inédito.        [ Links ]

 

 

* Colégio de psicanálise da Bahia. Trabalho apresentado na XVIII Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, Salvador, 2006.

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