Cógito
ISSN 1519-9479
Cogito v.8 Salvador 2007
CLÍNICA PSICANALÍTICA
A psicanálise de hoje o cansaço do sexo
Aurélio Souza *
Espaço Moebius
RESUMO
O autor aborda a questão das novas dificuldades para a Psicanálise face à modernidade. A condição natural do sujeito que perde seus instintos e que se torna diferente do seu indivíduo e pode leva-lo a uma autoridade radical em relação a instância imaginária do Eu. Em seguida aborda a questão da linguagem e a noção do discurso, segundo Lacan e a articulação possível do sujeito. Os objetos da modernidade invadem o campo do gozo que afeta o sujeito. São os objetos que, explorados pelo capitalismo e pela mídia, se transformam em promessa de um acesso ao "mais de gozar". Uma vez adquiridos os objetos são descartados produzindo uma insaciável "falta-de-gozar". O autor fala ainda da universalização do sujeito, propondo que a Psicanálise poderia funcionar como antídoto a favor dos valores do sujeito.
Palavras-chave: Psicanálise, Modernidade, Gozo, Sujeito
Para tratar de algumas das novas dificuldades do discurso analítico, na contemporaneidade, vou procurar tomar partido, interrogando o que se espera de uma análise em intenção hoje? Quais são as diferentes maneiras de praticá-la e quais são seus limites? Talvez devesse ainda acrescentar algo sobre a própria produção do analista, todavia, sobre esta última questão, vou deixar para uma outra oportunidade.
A psicanálise mesmo tendo sido descoberta pelos histéricos, é uma invenção de Freud.
Lacan, por sua vez, tendo feito uma convocação aos analistas de um retorno a Freud, procurou esclarecer a descoberta freudiana fazendo ressoar o "evento Freud" [XVI, 26/02/69] através de uma nova discursividade.
Naquela ocasião, para fazer sua parte, visitou outras áreas do conhecimento, indo da lingüística à poesia, da filosofia às matemáticas e à lógica. No final de seu ensino, levou a psicanálise até a topologia da cadeia borromeana, após ter passado pela topologia dos objetos de superfície.
O início de seu percurso foi se aproximando do estruturalismo e realizando uma intervenção em torno dos elementos do Curso de Lingüística Geral de Saussure. Passou a designar a estrutura da linguagem de grande Outro e denotá-la pela letra [A] maiúscula, da acrofonia de Autre.
Em seguida, considerou que a ordem simbólica vinha interditar uma suposta relação de harmonia do animal humano com a Natureza e tomou o animal humano como um vivente, como um sujeito mítico que deveria manter uma condição antecipada em relação a um outro sujeito que só viria se constituir pelo efeito da linguagem sobre o organismo. Portanto, o vivente só passa a ex-sistir como um ser-de-fala a partir da estrutura significante que lhe é anterior e, como tal, constituinte.1 O sujeito só aparece "uma vez instaurado, em algum lugar, esta ligação dos significantes [já] que é um sujeito como tal... determinado"2.
Nesta operação o sujeito paga seu preço. Para habitar na linguagem, ele perde uma parte do próprio corpo que o sustenta. Uma perda de seu complemento anatômico ou mesmo de seus anexos embrionários, que passou a ser denotada na álgebra lacaniana pela letra [a] minúscula. Essa perda se converte na própria noção de objeto para a psicanálise, o objeto pequeno [a]. Na aula inaugural do seminário A Lógica do Fantasma, Lacan vai atribuir ao objeto [a] um crédito de ter sido sua única invenção. Mais tarde, no entanto, ele abre mão deste enunciado, pois quando desenvolveu a noção dos discursos veio a considerar que o objeto [a] era uma produção do próprio discurso analítico e, como tal, era impossível que pudesse tê-lo inventado.
Essa operação linguageira responsável pela constituição do sujeito, de um ponto vista lógico, abre um buraco em algum lugar de sua ex-sistência, que vem tomar o estatuto de estrutura na psicanálise. Assim, em relação a esse buraco que é a própria estrutura, o sujeito não só guarda uma posição ex-cêntrica, uma posição de extimidade, como vem se constituir, em decorrência desta perda do objeto [a], num sujeito dividido [$].
A partir deste ato de linguagem responsável pela constituição do sujeito, o corpo que passa a sustentá-lo deve ser que concebido através de uma percepção que se realiza além da própria anatomia, desde quando o organismo, seus órgãos, suas funções e suas formas são constituídos a partir da própria estrutura da linguagem. Por isso mesmo, esse sujeito assim constituído só possa se realizar como uma metonímia de seu ser. Isto quer dizer, representado por um significante entre outros.
Dito de outra forma, o sujeito perde sua condição natural, perde seus instintos e se torna diferente do indivíduo, da pessoa, do homem. Além disso, ainda se mantém numa condição de alteridade radical em relação a essa instância imaginária que é eu.
Um outro fato a ser considerado, é a presença de um elemento invariante e gerador da própria noção de estrutura, que se desloca de uma condição simbólica que se expressa através dessa noção de uma falta, para a presença desta noção de um buraco, que toma uma consistência do real, na constituição do sujeito. Portanto, a presença deste buraco na ex-sistência do sujeito transmuda o grande Outro em pequeno [a]. O grande Outro toma forma de pequeno [a] e passa a corresponder não só à noção de estrutura, como adquire o estatuto de Lei, na psicanálise.
Tendo colocado alguns destes elementos que dizem respeito à psicanálise, para retomar o tema da Jornada NOVAS DIFICULDADES DA CLÍNICA PSICANALÍTICA vou fazê-lo a partir da noção de discurso.
Em geral, a noção de discurso aponta para um tipo de laço que se desenvolve na cena social. Todavia, para a psicanálise, ela deve ser concebida a partir de algo que se realiza numa psicanálise em intenção.
Assim, a psicanálise deixa de se constituir numa relação entre pessoas, ou entre dois sujeitos, como a intuição pode sugerir, para se constituir num tipo de laço social que liga um lugar ocupado pelo analista que faz semblante de objeto, do objeto [a], em oposição a um outro lugar, ocupado pelo analisante, em sua função de sujeito.
Estes dois lugares, por sua vez, serão divididos em quatro casas designadas de lugar do agente, lugar do outro, lugar da produção e lugar da Verdade. Elas guardarão uma relação rigorosa entre si e serão ocupadas por quatro letras [$, S1, S2 e a] que irão se movimentar sempre num quarto de volta, de um discurso para o outro. De início, Lacan identificou quatro discursos, designados de radicais, e que passaram a ser nomeados a partir da letra que ocupasse o lugar de agente: o discurso do mestre [S1], o discurso do universitário [S2], o discurso do histérico [$] e o discurso do analista [a].
Mais tarde, Lacan veio colocar essa noção de discurso nos termos de uma pequena etiqueta que vinha determinar o que dizer e o que fazer na análise. Assim, o discurso analítico não buscava estabelecer um acordo com as normas e com as realidades sociais, nem mesmo procurava um ideal de conduta para o sujeito ou um bem que, satisfazendo a um, pudesse servir para todos. O discurso obedece a uma injunção dos significantes-nomes-do-pai que procura normatizar a prática da análise e, por extensão, a cena social, desde quando a relação entre o público e o privado, sob essa noção, tende a desaparecer.
Outra condição desenvolvida por Lacan foi revelar, ainda, nesta noção de discurso um mercado de gozo que afetasse o sujeito. Desta maneira, seus valores, suas escolhas, suas preferências (inclusive as sexuais), as questões de sua ex-sistência ou mesmo suas diferentes manifestações clínicas não deveriam mais ser concebidas a partir de histórias "patológicas" individuais que iriam se opor a estados normais, como ocorre nas ciências ou na medicina.
A psicanálise deixa de ser considerada uma prática terapêutica, para vir se constituir numa práxis que se sustenta numa ética com conseqüências clínicas, isto é, como um meio de gozo que vinha se realizar na produção do saber inconsciente.
Estes quatro discursos radicais embora tenham sido deduzidos do discurso-do-analista, o primeiro a ser considerado por Lacan foi o DISCURSO-DO-MESTRE: um dispositivo de letras que se inaugura, à medida que o vivente incorpora o "real do Outro real" da linguagem.
Um linguageiro que vem instituir limites entre o simbólico e o real, e que vem determinar a própria noção de estrutura para o sujeito, na psicanálise. O discurso-do-mestre, na cena social se refere ao mestre antigo aquele que não trabalhava, mas procurava se apropriar do saber-fazer do escravo. No ofício da análise, no entanto, institui a definição do significante UM que entre outros, vem representar o sujeito. Aqui, o significante-mestre [S1] vai ocupar o lugar de agente, o lugar de dominância. Deste lugar ele intervém sobre o "houtro lugar" que toma também um estatuto de significante [S2].
Nesta estrutura discursiva, a fala que vem se sustentar numa determinada escritura, transforma-se num instrumento de poder e age sobre os "pequenos outros", os escravos, determinando-lhes a tarefa de fazer surgir através de seu ofício, um tipo de Saber denotado por [S2]. Aqui existe algo de paradoxal, pois se esta escritura [S1S2] funda a própria estrutura do discurso inconsciente, nesta posição do discurso-do-mestre não se trata do saber inconsciente, mas de um tipo de saber-fazer que o escravo adquire com seu trabalho. Um Saber que passa a existir na própria linguagem e que toma o estatuto de gozo. Por isso mesmo, o discurso se transforma em meio de gozo.
Essa intervenção de [S1] sobre o houtro lugar [S2], que define a conexão [S1S2], causa uma perda, ou melhor, causa a produção de um resto, de um objeto que decorre deste trabalho que o escravo é forçado a fazer. Um objeto que toma o estatuto de pequeno [a].
Algo inassimilável, impensável e sem representação. Um objeto do qual não se pode falar, mas que tem agregado um valor de mais-gozar, equivalente à mais-valia de Marx, onde se realiza uma renúncia necessária ao gozo por parte do escravo e do proletário, naquilo que produz.
Na análise em intensão, o que se realiza sob essa condição de produção e mais-gozar, vai estar relacionado à própria noção de repetição. Algo que se manifesta no sujeito com um valor agregado de sofrimento, mas que ele resiste a perder.
Não vou dar seguimento aos outros discursos radicais. Daqui em diante, vou considerar que a partir dos quatro discursos, Lacan inferiu mais um, um quinto discurso que nomeou de discurso-do-capitalista.
De um ponto de vista histórico, talvez se possa dizer que o discurso-do-capitalista nasceu no momento em que o mestre tratou de se apropriar do saber produzido pelo escravo. Todavia, vai nos interessar aqui, essa condição que veio se desenvolvendo durante três ou quatro séculos, a partir do séc. XV, quando ocorria uma falta de transparência nos negócios. No final do século XIX, para fazer frente a esta condição, consolidaram-se as próprias leis de mercado.
Na topologia dos discursos, o discurso-do-capitalista é deduzido do discurso-do-mestre. Ele rompe com a rígida permutação cíclica que organiza os discursos radicais e opera uma inversão nos termos que ocupam o lado do sujeito. Enquanto o sujeito passa a ocupar o lugar de agente, o significante-mestre vai se localizar no lugar da Verdade.
Quanto à segunda parte da escritura [à direita], ela permanece inalterada. Essa condição autoriza a se afirmar que a ordenação do discurso-do-capitalista se escreve também numa relação ao Saber que vem garantir um determinado tipo de gozo.
Uma outra operação essencial que Lacan sugere para esse novo discurso é a existência de uma Verwerfung da castração "uma rejeição da castração em todos os campos do simbólico". Uma condição lógica e estrutural que traz suas conseqüências.
Uma primeira delas, é que esta Verwerfung da castração causa um apagamento da divisão estrutural do sujeito, determinando que ele se desligue do "não-saber sexual" do inconsciente, fazendo-o desreconhecer "as coisas do amor"3.
Um segundo efeito desta rejeição da castração é determinar o desaparecimento da disjunção que existe entre o lugar da produção e o lugar da Verdade, na topologia dos discursos. Desta maneira o discurso-do-capitalista passa a se organizar numa circularidade completa onde todas as casas da tétrada podem ser alcançadas, diferente do que ocorria com os discursos radicais.
Por fim, essa operação de Verwerfung da castração também determina uma subversão do sujeito que vem modificar sua relação com o objeto. Como um corolário, modifica-se também a relação do sujeito com o desejo, isto é, com o desejo inconsciente.
No discurso-do-capitalista, portanto, o sujeito passa a ocupar a cena como agente. Não mais com seu sintoma, com sua divisão e seu desejo, mas como um consumidor que terá disponibilizado os meios para adquirir o objeto.
O que até então se constituía numa impossibilidade estrutural, discursiva e lógica do sujeito ter acesso ao objeto causa do desejo, agora, o objeto se transmuda num bem de consumo e passa a ser continuamente oferecido como uma promessa de satisfação possível para o sujeito.
Nestas condições, as ciências entram em campo para animar o discurso-do-capitalista. Desde quando ela ignora o sujeito do inconsciente, o sujeito é desligado do seu desejo e o Saber é transmudado em objeto, adquirindo também o estatuto de um bem de consumo.
No discurso-do-capitalista, portanto, o Saber entra em circulação como uma "mercadoria" que pode aparecer tanto com uma consistência simbólica, como imaginária. Ele passa a ser regido por uma moral utilitária que se converte num valor de moda que pode ser compartido com outros semelhantes. Ao ser concebido, também, como um bem do próximo toma parte em disputas de rivalidade que vão do ciúme, às questões amorosas ou agressivas.
Ainda com a interferência da Ciência, desenvolve-se cada vez mais um conhecimento sobre estes "objetos" que passam a fazer parte das realidades do sujeito, transformando o não-saber do inconsciente, em "falta de informação". Há uma forçagem para se possa produzi-los cada vez mais, uma produção contínua e com um mais-gozar que é agregado ao trabalho.
O sujeito fica cada vez mais fascinado pelo trabalho, à medida que estes "objetos" são produzidos na quantidade necessária para serem consumidos pelos "pequenos outros", os proletários. Uma condição que veio embaraçar o desejo, desde quando vale mais o consumo.
Desenvolve-se, assim, uma dependência do sujeito em relação à face imaginária e simbólica do objeto [a], numa condição que ataca a possibilidade de uma normatização da função paterna. Ainda que ele participe de uma montagem fantasmática, o desejo não conta. O que adquire importância é uma vontade de gozo no sujeito, que vai perdendo cada vez mais seu controle.
Lacan chegou a fazer um jogo de palavras com estes objetos. Ao mesmo tempo em que são produzidos para se consumir ["consommer"] e que podem ser usados até quando eles durarem, eles também podem ser produzidos, para logo em seguida serem destruídos ["consumer"]. São objetos para serem jogados fora como uma "produção de destruição", como dejetos.
Essa produção do discurso-do-capitalista transformada em objeto de gozo converte-se numa condição incontrolável da própria falta-de-gozar do sujeito, desde quando o trabalhador não pode gozar integralmente do que produz.4
Além disso, Lacan insistiu através do discurso-do-capitalista, que está ligado à modernidade, que a própria produção capitalista e sua alienação não devem corresponder, simplesmente, a uma condição que vem determinar o homem pelo trabalho. Se a produção capitalista e a alienação são efeitos de discurso, a mais-valia não deve ser entendida como uma alienação do trabalho humano, que ficaria condicionado a uma situação econômica. Ela deve ser considerada como uma conseqüência do que existe de real na própria estrutura do desejo.
É o real que vem ordenar não só o funcionamento mental, como vem causar a própria diversidade dos laços sociais que estão implicados à textura dos discursos. Assim, o que vem determinar a alienação do sujeito é esse real que motiva o pensamento, pois o sujeito só faz isso de válido, ele pensa e isso "acarreta a submissão do valor de uso ao valor de troca"5.
Estes "objetos da modernidade" invadem um campo de gozo que afeta o sujeito, passam a aspirá-lo, determinando cada um "sem se saber até onde... como objeto a".
Estes pequenos objetos a, as "latusas", como Lacan os chamou, passam a fazer parte das realidades plurais do sujeito são encontrados por todas suas realidades, "nas esquinas... atrás das vitrines" sempre controladas e governadas pelas ciências. Quando explorados pelo capitalismo e pela mídia transformam-se em promessas de um acesso ao mais-gozar.
Todavia, logo que adquiridos, perdem seu valor de uso e são descartados. O sujeito ao perder o interesse por cada um deles, trata de substituí-los por um outro mais potente, mais moderno, mais... alguma coisa. Só vai utilizá-los por pouco tempo. Transformados em objetos de gozo servem a um determinado tipo de economia que tem como princípio uma "produção extensiva e insaciável da falta-de-gozar".
Lacan propôs uma saída para o discurso do capitalista através da psicanálise. Opôs-se a este sonho do melhor dos mundos possíveis, em que o sujeito é convidado a ceder de sua diferença dos sexos, de ultrapassar essa injunção de "não ceder ao desejo", para se manter na prescrição de que não haveria nada mais a desejar; a que pudesse satisfazer sua urgência de gozo, como em Matrix, produzindo-se sempre mais e o melhor.
Ele sugeriu a psicanálise como uma prática que desenvolvesse uma outra política. Não só de fazer circular a fala, com uma associação automática, mas de tomá-la como um dever ético para ir de encontro ao real.
O analista não deve recuar diante do real. Deve ficar desperto e esperto diante das ilusões imaginárias que as realidades plurais instituem, já que elas podem trazer promessas de gozo. Diferente das promessas de felicidade pela posse e uso do objeto, o que se realiza como singular na função do analista, em sua prática de intenção, é que não deve prometer a felicidade, nem o gozo, nem a esperança, nem mesmo de fazer caridade.
De seu lugar, como semblante de objeto, como agente no discurso do analista, ele precisa exercitar uma prudência com seu silêncio e tolerância. Não se trata de ficar calado ou mudo, mas de suportar suspender a voz para que o analisante possa interrogar o enigma de seu desejo e de suas variantes de gozo. De manter uma prudência no que faz e no que diz.
Deste lugar, deve ter também uma tolerância daquilo que escuta, mesmo que se oferecendo como objeto causa de desejo, de amor ou imaginariamente como objeto de gozo. Por uma condição discursiva, ele se faz rebotalho desse gozo que fascina o sujeito em suas repetições. Mas, não goza disso.
O discurso do analista deve levar o sujeito cada vez mais a se implicar em lalíngua. De uma maneira tal, que passe a amar o inconsciente que o determina. Uma proposta que talvez se possa considerar inquietante para os discursos dominantes. Com a psicanálise, esse saber que trabalha num outro lugar e precisa ser escutado, procura retirar o sujeito da apatia, de um gozo preguiçoso que o deixa ficar "ronronando no prazer". Ou melhor, na busca de um gozo que se realiza em suas diferentes repetições.
Lacan procurou colocar a psicanálise como uma prática que deveria assegurar uma nova ordem para o sujeito, em oposição a esta marca incisiva das Ciências, das Religiões e das magias, em que o grande Outro existe sobre várias roupagens, podendo dar conta de um real "possível" e que ainda se torne responsável por sua ex-sistência.
A psicanálise deveria instituir uma lei no real, onde o analista utilizando-se da transferência e de certo princípio "retificador" da análise, poderia possibilitar ao analisante se defrontar com o real que o determina. De seu lugar, ele pode "retorificar" o analisante, cada vez que este viesse interrogar seu desejo.
Quando as Ciências, as Religiões, as magias buscam um tipo de universalização do sujeito, elas procuram ignorar a diferença dos sexos e reduzir a errância do sujeito a um caminho que vai do impossível ao possível. Elas buscam reduzir esse sujeito de linguagem e de sexo, esse sujeito do inconsciente, a uma condição que, mesmo sustentado numa posição genérica masculina e feminina, possa ser transformado num trabalhador universal e num crente para todos os gostos.
Em oposição a isso, a psicanálise procura colocar o sujeito numa errância que deverá seguir uma outra lógica: da impossibilidade do real, à impotência do simbólico.
A psicanálise poderia funcionar como um antídoto a favor dos direitos do sujeito. A ajudá-lo a encontrar um ponto de ancoragem, refiro-me ao objeto [a] que lhe convém, a suportar este objeto que lhe possibilitasse gozar a-vida, num tipo de gozo que continue passando pela diferença dos sexos.
Que essa dimansão do real que a política da psicanálise busca, mantivesse essa condição impossível da proporção sexual. Um enunciado que se sustenta no axioma "não há proporção sexual".
Como toda frase emblemática é preciso um cuidado para considerá-la. Esse enunciado não corresponde à ausência de uma prática sexual, como pode parecer à intuição, mas de se atribuir a esse enunciado um estatuto lógico que obedeça à existência da função fálica e de sua exceção. Isso quer dizer que as condições do macho e da fêmea, que se utilizam de seus atributos físicos para realizarem práticas sexuais que preservam espécie, não correspondem às posições do masculino e do feminino que se inscrevem na linguagem através das fórmulas da sexuação. Não se deve cansar do sexo.
É o que tenho a dizer. Obrigado.
BIBLIOGRAFIA [ Links ]
_________ Sem. XVIII, D’un Discours que ne serait pas du semblant, aula de 13/01/71. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale. [ Links ]
_________ Le savoir du psychanalyste, aula de 06/01/72. Publicação interna da Association Freudienne internationale. [ Links ]
_________ Sem. XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, aula de 14/12/1976. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale. [ Links ]
_________ Radiophonie, em Scilicet n. 2/3, 1970 [ Links ]
* Psicanalista membro do Espaço Moebius. Trabalho apresentado na XVIII Jornada do CPB.
1 Lacan, J., Sem. X, A Angústia, aula de 06/03/1963. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale (a tradução fica por minha conta).
2 Lacan, J., Sem. XVIII, D’un Discours que ne serait pas du semblant, aula de 13/01/71. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.
3 Lacan, J., Le savoir du psychanalyste, aula de 06/01/72. Publicação interna da Association Freudienne internationale.
4 Lacan, J., Radiophonie, em Scilicet n. 2/3, 1970, p. 87.
5 Lacan, J., Sem. XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre, aula de 14/12/1976. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.