Cógito
ISSN 1519-9479
Cogito v.8 Salvador 2007
PSICANÁLISE E LITERATURA
A sangue quente: psicanálise e violência
Tarcísio Andrade*
Universidade Federal da Bahia
RESUMO
A partir do romance de Trumman Capote, "A Sangue Frio" o autor apresenta seu trabalho que denominou a "Sangue Quente". Há uma metáfora valendo-se do texto de Nelson Brissac Peixoto sobre "As Imagens e o Outro", em seguida trata da questão do olhar da vítima e do gozo próprio que excede o sentido de um novo significante. Da reflexão sobre a constituição do sujeito passa a prática clínica para abordar questões relacionadas com o consumo de drogas e as figuras parentais permissivas e ausentes. Fala em seguida uma aproximação do uso do tóxico com o desejo do sujeito e a violência.
Palavras-chave: Tóxico, Sujeito, Literatura
A idéia desse trabalho nasceu do filme "Capote", particularmente de uma de suas cenas a confissão de como se dera um quádruplo homicídio. O relato do assassino seguiu insistindo em minhas lembranças, a exigir uma compreensão do que havia motivado não apenas o seu ato, mas a maneira como ele foi consumado: "A Sangue Frio", título do livro do escritor Americano Trumman Capote, no qual se baseia o filme. O provável motivo dessa inquietação foi a relação entre o título do livro, que é também mencionado no filme, e o título que posteriormente dado ao presente trabalho: A Sangue Quente".
O título do livro remete a uma significação, seja na perspectiva social ou jurídica que o aproxima de maldade, dolo, premeditação não incomum o significante frio, nessas situações aparece acompanhado de calculista - ou seja, há um sujeito constituído, programado, e para nos aproximar da linguagem informática, formatado para o exercício daquele ato. Um sujeito frio; congelado em uma determinada posição, em uma estrutura que o determina. Já no título do trabalho o significante "quente" remete ao que é dinâmico, como o movimento das partículas de um líquido submetido a uma fonte de energia; ao que é passional como na expressão "fulano tem sangue quente" para se referir a uma pessoa explosiva. Ou seja, ele traz consigo o sentido de transição, de inacabado, de imprevisível.
De significativo auxílio ao tentar responder as perguntas que segui me fazendo sobre o filme, foi a obra da Psicanalista carioca Olandina de Assis Pacheco intitulada "Sujeito e Singularidade ensaio sobre a construção da diferença".
O filme Capote trata da investigação jornalística do assassinato de uma família de fazendeiros americanos, onde os pais, um filho e uma filha, completamente indefesos, são mortos de forma brutal durante um assalto realizado por dos dois homens. No decorrer da investigação do crime, o jornalista tenta obter dos presos e sentenciados à morte, a motivação para tamanha violência uma vez dominados, o pai teve a garganta cortada e os demais foram mortos com tiros à queima roupa, em suas respectivas camas. Quando, enfim, o jornalista obteve, de um deles, a confissão do crime, ele detalhou o acontecido: informou que uma vez invadida a residência à procura de dólares, não os tendo encontrado, o parceiro ficou enfurecido e tentou abusar sexualmente da filha do casal, sendo por ele impedido; no porão da casa, para onde aquele que confessava o crime levou o pai, amarrando-o com as mãos para cima a alguma estrutura local, ao verificar que ele estava desconfortável, tentou ajudá-lo e o tranqüilizou dizendo que a sua família estava bem e que o encontraria ao amanhecer. Diante desse relato o telespectador é levado a pensar que fora o parceiro, e não ele, o autor dos crimes. Entretanto, a continuidade da narrativa surpreende: "ele só estava me olhando". Olhando nos olhos como se esperasse que eu fosse matá-lo. Como se eu fosse o tipo de pessoa que o mataria. Eu estava pensando: este bom homem tem medo de mim. Fiquei tão envergonhado. Quero dizer, achei que ele era... um homem bom e gentil. E achei isso até a hora em que abri sua garganta. Eu não sabia o que fiz até ouvir o som..." (referindo-se aos estertores emitidos pela vítima enquanto, com a garganta cortada, agonizava). Ato contínuo, ele apanha a arma da mão do parceiro, sobe as escadas e com tiro no rosto executa as outras três vítimas.
Advindo de uma família disfuncional, abandonado pela mãe alcoólatra aos cuidados de parentes, na cadeia, antes de decidir revelar o que se passara naquela noite, ele pede ao jornalista que não vá ao encontro de sua irmã, com quem este pretendia obter informações sobre ele. Durante o encontro, diz a irmã: "Eu o amava, ele era a minha boneca... Agora ele me assusta". "Pode me emprestar uma dessas fotos?" Indaga o jornalista. "Pode levar tudo. Não as quero mais". E ao se despedirem, ela acrescenta: Não se deixe enganar pelo meu irmão. Ele tem um lado sensível que lhe mostrará. Vai acreditar que ele é gentil e que se magoa tão facilmente..., mas ele pode tanto matá-lo como apertar a sua mão. Acredite nisto."
A expressão: "Pode levar tudo. Não as quero mais.", evidencia a desistência dela em relação ao irmão. Desistência essa, à primeira vista, relacionada ao crime atual, expressa nas palavras: "agora ele me assusta". Entretanto, a advertência que faz ao jornalista revela que a representação do irmão como uma pessoa perigosa é anterior. Da mesma forma que a expressão "ele era a minha boneca" sugere que, enquanto sob os seus cuidados, o irmão era o objeto de sua gratificação em detrimento do lugar de sujeito desejante, ou de um sujeito em perspectiva. Sabemos que na base da constituição psíquica do sujeito estar a crença do outro de que ali há um eu possível, e com isto a chance de que um sujeito possa advir.
Voltando às cenas do filme. Sem palavras, frente a frente com a vítima, no desencontro entre, por um lado, gestos de cuidado e gentileza com que vinha agindo até então o assaltante, e por outro, o olhar do fazendeiro que o congela no lugar de objeto mal, persecutório, capaz de lhe tirar a vida - atos não mediados simbolicamente olhares apenas. Em súbita passagem ao ato, na contra mão do que vinha sendo o seu comportamento perante àquela família e ao seu parceiro, emerge o criminoso de "sangue frio".
Essa situação nos remete ao texto "As imagens e o Outro" do filósofo e curador de artes Nelson Brissac Peixoto, publicado na coletânea "O Desejo", onde ele chama à atenção sobre a agressividade no ato de retratar:"fotografar uma pessoa é vê-la como ela não se verá jamais". Implica transformá-la num objeto que se pode simbolicamente possuir. Para se assegurar de alguma coisa, ou mesmo para preservá-la, se acab esvaziando-a de toda vida. É por isso que a câmera tem sido tomada como uma representação sublimada de uma arma de fogo. Em inglês, to shoot significa tanto "clicar", "filmar", quanto "atirar". Diante do real do olhar da vítima - fora da mediação simbólica o sujeito que vinha se sustentando em atos de cuidado e gentileza desvanece e, fundindo-se ao objeto, fica à mercê do gozo do Outro em situação de completo desamparo.
Do que se trata? De representação? Não há palavras. Algo emerge naquele instante: uma imagem. Imagem essa que não se superpõe à do espelho (o olhar da vítima) nem tão pouco à daquele que a vê (o assaltante), mas a uma terceira, não representada e por isso acompanhada de intensa angústia. Angústia sob a forma bruta, cuja intensidade fora de controle busca uma saída, encontrando-a no ato brusco de cortar a garganta da vítima. É no depois, ao ouvir o som que emerge da garganta cortada do moribundo, que o seu ato parece significado nesse momento, um close, do assassino o mostra com expressão abatida, recostado à parede, para em seguida apanhar a arma da mão do parceiro, subir as escadas e executar as outras três pessoas. Ainda puro efeito da descarga da angústia? Ou não é mais disso que se trata, e agora um "novo" sujeito vem à tona constituído a partir do seu ato de puro alívio diante da falta insuportável, da estrema desvalia da submissão ao Outro? Trata-se agora de algo novo, mediado por um gozo próprio, que excede o sentido de um novo significante, ainda num excesso de real que o move ocupando esse novo lugar/papel?
Esse momento da constituição do sujeito é entendido por Olandina de Assis Pacheco como de pura angústia pelo desconhecido que encerra, uma vez que é instalado na ausência de repetição da linguagem. Em suas palavras: "Puro pulsional, percepção não significantizada, que ao ser dita será como um significante novo". Enquanto novo, portanto um significante signo, porque não significantizado, mas que a partir do qual novos significantes haverão de emergir e com eles a constatação de que houve ali um sujeito.
Fundamentada nas concepções de sujeito em Freud e Lacan, e também no lugar que esse tema ocupa junto à filosofia, suscita o meu particular interesse o pensamento dessa autora, ao colocar o sujeito como em constante emergência em lugar de aprisionado a uma estrutura, preso à cadeia significante, como concebido em sua própria definição habitual: "O sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante".
Essa reflexão sobre a constituição do sujeito me remete à prática clínica. Uma pessoa fala sobre a forte gripe que teve, acompanhada de muita secreção, o que lhe manteve fora das atividades habituais por alguns dias. Atribui esse episódio ao excesso de trabalho ao qual vinha submetida. Em paralelo, menciona a incompreensão de um dos seus sócios, cujas ações não são favoráveis ao adequado desempenho da empresa, mas com a polidez e educação que a caracteriza, minimiza sua contrariedade com ele. Referindo-se mais uma vez à doença diz "tive um episódio vulcânico". Possível alusão à maneira súbita como tudo aconteceu e à quantidade de secreção produzida.
Ao ouvi-la fui tomado pelo significante "vulcânico" e o associei a raiva me recordei da expressão "cuspindo fogo pelas narinas" e literalmente, a um vulcão em erupção. Tive vontade de prover uma interpretação, mas me abstive e continuei a ouvir. Ela agora me fala do constrangimento de um amigo que num encontro casual lhe diz que com certeza os filhos dela estariam participando dos seus negócios, ao que ela corrigiu dizendo que não. A preocupação com o futuro de um dos filhos, sobretudo por não visualizar nele um direcionamento a mobiliza muito, e já há algum tempo. Naquele momento percebi que ela, que no início da sessão me pareceu pálida o que atribui à condição de convalescente do quadro gripal , agora tinha a face rubra, como costuma acontecer durante a sua análise em momento de emoções mais intensas ela era o próprio vulcão. Nas sessões seguintes retoma o assunto em torno da sua relação com esse filho e menciona que outro sócio estava acompanhado de um filho com quem trabalha, enquanto inspecionavam os negócios que têm em comum, especificamente uma construção a cuja poeira ela atribuiu a causa de sua gripe.
Tentar alcançar esse sujeito através da interpretação dos significantes com os quais se fazia representar, não teria tido a eficácia do silêncio. Pouco afeita à simbolização e reservada em seus sentimentos, aos quais interpõe o que, em suas palavras, nomeia como uma barragem, provavelmente não teria colocado em movimento o que naquele instante, na insuficiência de significantes que os representasse, se traduz no enrubecimento, no desconforto e na continuidade da situação relatada que se estende às sessões subseqüentes.
Certa feita há vários anos atrás, numa conversa com um colega psicanalista, em que ele relatava o sonho de um cliente, me chamou a atenção que ao invés de tomar em consideração a narrativa ele se limitou a perguntar como o paciente se sentiu naquele sonho. Alguns sonhos, pela forma como são relatados, sobretudo quando lidos, sob o pretexto de ser fiel ao seu conteúdo ou evitar esquecê-los, parecem desprovidos de catexia. Esses sonhos, ainda que relatados dessa maneira, se referem muitas vezes a situações, contextos, épocas, ambientes de intensa mobilização para esses pacientes, embora de difícil acesso a partir da sua narrativa. Eles me fazem recordar a conversa acima referida, e me dizem carecer de outra leitura. A leitura do que não se inscreve em palavras, mas no real dos gestos, do olhar, da voz, da escrita.
Essa reflexão me reporta a citação que trouxe uma cliente: "Optar por fazer medicina é aprender a interpretar os sons do ser humano em seu estado-limite. O coração que bate, os pulmões que murmuram, as entranhas que ressoam... Sons da vida a serem decifrados pelos ouvidos do médico." Digo eu aqui: Pelo ouvido do psicanalista.
Ocupando-se da redução dos riscos e dos danos relacionados ao uso de drogas, tomamos como um dos objetos das nossas preocupações os efeitos da estigmatização. Estigmatizar, como definido no Dicionário Aurélio "marcar com ferrete1 por pena infamante", dá a dimensão da força desse significante enquanto marca de conotação negativa e que leva o seu portador a ser marginalizado ou socialmente excluído. E isso influencia direta ou indiretamente na atenção e cuidados dirigidos, por outrem ou por si próprio, à pessoa estigmatizada, levando, inclusive, ao agravamento da situação.
É de uso comum, felizmente cada vez menos freqüente nas formas explícitas de comunicação, embora ainda fortemente marcadas no imaginário social, expressões que estigmatizam as drogas ilícitas e com elas as pessoas que as consomem. Exemplos disso são os tantos dizeres que circulam sobre a adição ao uso de drogas ilícitas como um caminho inexorável uma vez iniciado o seu consumo. Dizeres esses, não incomum, proferidos de parte dos pais, educadores, representantes da lei e de religiosos.
O ditado popular "quando o povo diz: ou foi, ou é, ou será" reflete o que conhecemos como "a marca do significante", e que tem equivalência em outro dito popular: "uma mentira de tantas vezes repetida, ganha cunho de verdade". Entretanto, mais que a repetição do dizer, a marca do significante guarda relação com a posição subjetiva que ocupa o outro para a pessoa a quem ele se endereça, mas também com o momento e o contexto em que é dito e com a entonação da voz, com os gestos e o olhar daquele que diz. Todos esses elementos conferem ao real, portanto, para além das significações, a força dos significantes.
No amplo espectro em que se situa o consumo de drogas, no extremo da toxicomania, não incomum, encontram-se figuras parentais excessivamente permissíveis, ausentes, frágeis, e por isso mesmo autoritárias. Não só da desvalia simbólica a partir dessas figuras parentais enquanto lugar da lei, padece o toxicômano, mas, também, da angústia advinda da impossibilidade de serem vistos por elas na perspectiva de sujeitos desejantes. Nessa impossibilidade estão implícitas relações em que os filhos ocupam para seus pais o lugar de objeto de satisfação, não sendo vistos, portanto, em suas especificidades e demandas e tão pouco tolerados em qualquer movimento que apontem para sua autonomia. Relações essas que serão, no futuro, repetidas por esses filhos com o objeto droga. Objeto subjetivado cada toxicômano consome sua droga particular, ainda que se trate do mesmo produto mas não desejante, um objeto sob controle, passível de ser apreendido, quantificado, possuído, numa relação mediada, portanto, por um gozo outro que não o gozo fálico, onde a droga repete o lugar que eles originalmente ocuparam para seus pais.
Para o toxicômano, trata-se, portanto, da relação possível, tendo como origem a fragilidade dos pais, mas, sobretudo o seu contraponto: a violência. Está em jogo um excesso de real amplificado imaginariamente nesse sujeito e motivo da angústia que o invade e para a qual ele tenta uma saída.
Voltando ao filme: "Olhando nos olhos como se esperasse que eu fosse matá-lo". Como se eu fosse o tipo de pessoa que o mataria ... este bom homem tem medo de mim. Quero dizer, achei que ele era... um homem bom e gentil. Para o assassino, o mesmo homem que tem medo dele, que é bom e gentil é o que, olhando-o nos olhos, o vê como capaz de matá-lo. É pela força com que o olhar da vítima o atinge que ele consuma seu ato. O que no senso comum e na ótica da lei se diria tratar-se da banalização da vida, inscrita na categoria de crime por motivo fútil, o que é inclusive um agravante da pena; na perspectiva da psicanálise, pode-se dizer que se trata de um excesso de valor do Outro que o põe em desvalia, o esvazia do que lhe resta, que o fuzila com o olhar. Em resposta, o assassinato cometido "a sangue quente".
Citando Olandina de Assis Pacheco: "O fato de novo sujeito estar sempre em processo, não ser uma estrutura definitiva, abre perspectivas para uma clínica que, durante muito tempo, foi evitada pela psicanálise: de clínica dirigida especialmente para neuróticos, passa forçosamente a clínica psicanalítica a estar aberta à escuta de todos os possíveis sujeitos por advir". Em uma clínica cada vez mais marcada pelo real das intervenções sobre o corpo, pela medicalização do humor, pelo efeito das substâncias psicoativas, pela gratificação do consumo, do fazer em detrimento do ser, recorro ao poeta Mário Quintana ao dizer: "Quem não compreende um olhar, tampouco compreenderá uma longa explicação". Esse é o desafio de nossa prática nos dias atuais.
BIBLIOGRAFIA
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* Médico, Psicanalista, Professor. Adjunto-doutor, membro do corpo de professores do Curso de Pós-graduação em Medicina e Saúde e coordenador do Serviço de Extensão Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti Faculdade de Medicina da Bahia/Universidade Federal da Bahia
1 Instrumento com que se marcavam escravos e criminosos e com que se marca gado