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Psic: revista da Vetor Editora
versão impressa ISSN 1676-7314
Psic v.8 n.1 São Paulo jun. 2007
ARTIGOS
Violência: a compreensão do conceito por jovens submetidos a medidas socioeducativas
Violence: the understanding of the concept by teenagers submitted to juditial social-educative measures
Violencia: la comprensión del concepto por jóvenes sometidos a medidas socio-educativas
Cláudia Barsanelli Costa *; Elizabeth Oliveira Crepaldi de Almeida **
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
RESUMO
O fenômeno da violência preocupa a sociedade e acontecimentos envolvendo jovens mobilizam a necessidade de compreender o problema e desenvolver políticas públicas para prevenir ou minimizar sua incidência. Investigou-se como dois jovens sob medida socioeducativa, sendo um alfabetizado e um semi-alfabetizado, elaboraram o conceito de violência, participando em um grupo de discussão sobre esse tema. O grupo era constituído por 20 jovens, reunidos em 10 encontros de 1 hora de duração cada, foram coordenados e gravados por uma psicóloga colaboradora da pesquisa. As reuniões foram organizadas segundo um plano previamente delineado. Os registros gravados em áudio foram transcritos para análise segundo o referencial teórico de Peirce, que foi realizada a partir de recortes das discussões que evidenciavam a elaboração do conceito de violência. Os dois participantes alcançaram nível de abstração e generalização simbólica. Não se observou diferença significativa de elaboração do conceito de violência entre os participantes, a despeito da diferença no nível de escolaridade de cada um.
Palavras-chave: Adolescência, Violência, Semiótica.
ABSTRACT
The phenomenon of violence worries the society and events involving young people lead to necessity to understand the problem and to develop public politics to prevent or minimize its incidence. In this context, this study investigates how two young men under juditial social-educative measures, one literate and other illiterate, assimilated the violence concept participating on a discussion group about the theme. The group integrated ten-one-hour meetings of maximum 20 people. A cooperative psychologist researcher coordinated and recorded the meetings according to a plan previously delineated. The analysis according to Peirce's referential theory used clippings of the transcribed audio-recorded registers that evidenced the assimilation of the violence concept. The two participants reached a level of abstraction and symbolic generalization and there was no significant difference on symbolic elaboration of the concept of violence between the participants despite their level of schooling.
Keywords: Violence, Semiotics, Peirce.
RESUMEN
El fenómeno de la violencia preocupa a la sociedad y acontecimientos envolviendo jóvenes movilizan la necesidad de entender el problema y desarrollar políticas públicas para prevenir o minimizar su incidencia. Se investigó de qué forma dos jóvenes bajo medida socio-educativa, siendo uno alfabetizado y otro semi-alfabetizado, elaboraron el concepto de violencia participando en un grupo de discusión sobre ese tema. El grupo era formado por 20 jóvenes reunidos en 10 encuentros de 1 hora de duración cada uno, y fueron coordinados y grabados por una psicóloga colaboradora de la investigación. Las reuniones fueron organizadas según un plan previamente delimitado. Los registros grabados en audio fueron transformados para análisis según el referencial teórico de Pierce, que fue realizado a partir de fragmentos de las discusiones que mostraban la elaboración del concepto de violencia. Los dos participantes alcanzaron nivel de abstracción y generalización simbólica. No se observó diferencia significativa de elaboración del concepto de violencia entre los participantes, a pesar de la diferencia en el nivel de escolaridad de cada uno.
Palabras clave: Adolescencia, Violencia, Sintomatología.
Introdução
A violência é um fenômeno observado entre os humanos desde seus primórdios e tornou-se uma preocupação desde que o próprio ser humano passou a ter consciência de seus atos. Na atualidade, é um fenômeno que preocupa as sociedades em todo o mundo, e para o qual não se conseguiu encontrar solução satisfatória, a despeito dos esforços de pacifistas, muitos deles tornaram-se ícones em seus próprios países e internacionalmente. O Prêmio Nobel da Paz é uma das muitas iniciativas propostas ao longo do século XX para manter vivo o ideal de convívio pacífico entre as pessoas.
No entanto, a despeito da evolução científica e tecnológica alcançada pela humanidade até os dias atuais, a cultura da paz permanece utópica, uma vez que o equipamento bélico avança proporcionalmente ao desenvolvimento de equipamentos para saúde e qualidade de vida das populações. A violência constitui um fenômeno complexo que envolve aspectos antropológicos, culturais, sociais, psicológicos, econômicos e políticos, entre outros (Adorno, Bordini & Lima, 1999). Do ponto de vista semiótico, o conceito evoluiu da simples agressão física à compreensão de que palavras também são armas poderosas, assim como gestos, costumes sociais, omissões e até mesmo o silêncio podem ser entendidos ou utilizados como formas de agressão e incluídos sob a classe mais ampla denominada violência.
Para Silva (2002), para compreender o problema da violência, é preciso observar as características pessoais e circunstanciais dos envolvidos, as condições ambientais nas quais ocorre o fenômeno, as questões psicológicas de interação e as condições socioeconômicas, as quais estão entrelaçadas e dificilmente explicam isoladamente a ocorrência do fenômeno.
Adorno e cols. (1999) constataram o aumento efetivo da participação de adolescentes em crimes violentos no município de São Paulo quando compararam os dados a respeito do período de 1988-1991 com os do período de 1993-1996. No primeiro estudo, não havia diferença significativa entre a violência praticada por jovens e a praticada pela população geral. No segundo período, entretanto, o percentual de infrações violentas por jovens supera o da população geral. Igualmente, a distribuição dos tipos de infração cometidas por jovens apresenta diferenças entre os dois períodos estudados. No segundo período, evidencia-se aumento na porcentagem de homicídios, tentativa de homicídio, lesão corporal, roubo, uso de drogas, porte de drogas, tráfico de drogas, atentados ao pudor, em relação ao período anterior. Quando considerado o número de participantes nas infrações registradas, houve aumento na ação em conjunto com outros adolescentes e com adultos, o que aponta para a formação de gangues e contribui para a articulação crescente do crime organizado.
Para Weber (2005), as experiências que a criança vive na família como parte do seu cotidiano podem ser marcadas por fatores positivos ou negativos. Ao chegar à escola, existe a possibilidade de a criança manifestar, de diferentes formas, aquilo que foi vivido, seja pela manifestação explícita da violência doméstica, ou por meio de atitudes e comportamentos. A violência doméstica e a social estão interligadas, de modo que crianças submetidas a maus tratos têm maior possibilidade de estender a violência da casa para a rua (Melo, 2002).
Há estudos que colocam em evidência a relação entre agressividade na família e dificuldades de aprendizagem. As crianças agressivas são mais desorganizadas, nervosas, impulsivas, irrequietas e irresponsáveis (Huesman, Eron, Ledfkowitz & Walder, 1984). Os adolescentes que desenvolvem um estilo de vida de alto risco estão menos aptos a alcançar um nível de desenvolvimento psicossocial satisfatório e mais sujeitos a sofrer problemas na escola, como repetência, evasão e violência (Burak, 2001). Para L'Apiccirella (2005), o discurso dos alunos é reflexo das relações sociais dos seus ambientes familiares, de tal forma que quanto maior a proximidade entre o discurso simbólico do ambiente familiar com o ambiente escolar, mais garantia de sucesso na inserção escolar.
Alves (2004), estudando a violência relacionada à prática de jogos de videogames por jovens, considera que o comportamento violento indica a necessidade da mediação por parte dos adultos no processo de aceitação sócioafetiva dos jovens. Para ela, a falta de intermediação nesse processo de aceitação pode levar a comportamentos indesejáveis e transgressores, como a utilização de drogas, o vandalismo, a busca de inserção em um grupo a qualquer custo, atos que acabam distanciando os jovens dos adultos, embora possam facilitar a aproximação de seus pares.
Tfouni (2002) chama atenção para o fato de que, ao contrário do que se pensa, os não-alfabetizados têm capacidade para descentrar seu raciocínio e resolver conflitos e contradições que se estabelecem no plano da dialogia. Em sua concepção, o que influencia o indivíduo é o meio em que ele vive, sendo a escolarização apenas uma das possibilidades de mediação entre a pessoa e o mundo que a cerca. Presume-se que quanto mais rica e variada for a interação dos indivíduos com o meio, ou com diferentes meios, maior será a possibilidade de desenvolvimento intelectual (Piaget, 1977).
Neste estudo, não se pretende discutir a questão da alfabetização. O objetivo é investigar como dois jovens com níveis diferentes de alfabetização, submetidos a medidas socioeducativas, elaboram o conceito de violência.
O fato de se optar pelo estudo de jovens submetidos a medidas judiciais socioeducativas justifica-se pelo seu envolvimento em situações de risco que culminaram em uma sanção visando à possibilidade de mudança em suas formas de inserção social. Em outras palavras, eles estiveram, e talvez ainda estejam, atuando como agressores, do ponto de vista do ato praticado.
A questão que se apresenta é: haveria diferença no nível de compreensão simbólica do conceito de violência por parte de jovens envolvidos em atos de violência, sendo um deles alfabetizado e outro não alfabetizado ou semi-alfabetizado?
Para analisar do ponto de vista semiótico a elaboração do conceito de violência pelos jovens estudados, foi utilizada a concepção de signo proposta por Peirce (1977). Este autor estabelece 5 categorias hierárquicas de signos, sendo que a elaboração simbólica mais complexa ocorre ao nível do Argumento. Essas categorias são denominadas e conceituadas sucintamente como: 1. Legissigno Indicial Remático (fala do objeto); 2. Legissigno Indicial Dicente (informação definida); 3. Legissigno Simbólico Remático (conceitos gerais que veiculam informação sobre o objeto); 4. Legissigno Simbólico Dicente (uso de simbolização); 5. Argumento (forma de raciocínio em que, de duas premissas iniciais, se infere uma conclusão).
Método
Participantes
2 jovens do sexo masculino, com idade de 19 e 16 anos respectivamente, sendo que, à época em que os dados foram coletados, o mais velho cursava o Ensino Médio, e o outro parou de estudar nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Ambos estavam cumprindo medida judicial socioeducativa em uma instituição não governamental em um município do interior do Estado de São Paulo. O primeiro, mais velho, cumpria pena de Liberdade Assistida por tentativa de homicídio com uso de arma branca. O segundo, mais novo, era reincidente em furtos e roubo qualificado e cumpria medida dupla de Prestação de Serviço a Comunidade e Liberdade Assistida. Utilizamos os nomes fictícios Marcos, para o participante 1 e Fábio, para o participante 2.
Material
Gravador digital, computador, papel.
Procedimento
Após aprovação do Projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Protocolo 490/04) e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos jovens juntamente com seus responsáveis legais, deu-se início ao estudo. Os participantes freqüentaram reuniões em grupo de discussão sobre o tema violência com outros jovens atendidos na mesma instituição não governamental situada no interior do Estado de São Paulo. Aconteceram 10 encontros de 1 hora de duração cada. As reuniões foram coordenadas e gravadas por uma psicóloga colaboradora da pesquisa.
Os turnos das discussões foram selecionados de maneira que fosse possível a permanência de trechos de interesse para análise, em que não houvesse qualquer exposição dos participantes da pesquisa. Os turnos foram selecionados em seqüências de diálogos ininterruptos, e, quando interrompidos, foi utilizado (...) para indicar. Os diálogos foram numerados por turnos, de 1 a 804. Foram divididos de acordo com os temas e subitens discutidos pelo grupo de discussão.
Resultados
A) Tema identificado: Violência de um modo geral
Contexto: Para dar início a discussão da primeira reunião a coordenadora questionou o grupo com a seguinte pergunta: "O que vocês entendem por violência?"
Turno 68 - Marcos: "Bom violência no meu pensamento é uma coisa muito ruim, é a briga entre uma pessoa e outra e acaba levando à morte. E também tem que deixar um pouco das drogas, droga também gera muita violência, bebida também."
Turno 71 - (...) Coordenadora: "Bebida também? Como você vê um ato de violência?"
Turno 90 - (...) Marcos: "Uma violência é uma pessoa violentando a outra, por exemplo, em briga de trânsito, em festa, no jogo de futebol."
Turno 146 - (...) Coordenadora: "E para não ter violência o que tem que ter então?"
Turno 151 - (...) Marcos: "Tem que ser papel de toda família e do pai."
Análise: Violência, para Marcos, é um signo por representar alguma outra coisa, este signo visual violência representa um conjunto mental de objetos que lhe são familiares e que foram vivenciados, como: briga, droga, bebida, briga de trânsito, em festa ou no jogo de futebol. Neste episódio, observa-se a conceituação em nível de Legissigno Indicativo Remático, que denota a matéria da informação, representando os objetos possíveis para violência, como: briga, droga e bebida.
B) Tema identificado: Violência e família
Turno 309 - Coordenadora: "Violência tem relação com a educação que a gente recebe?"
Turno 314 - (...) Marcos: "Vai da família, eu fui educado de um jeito, você do outro, depende do jeito de você falar. Peço por favor, você não."
Turno 319 - (...) Fábio: "Tem muitas que criam sem pai, vai da pessoa. Eu vejo lá no meu bairro, minha mãe nunca relou um dedo em mim. Nunca catou um cinto. Tem muitos que apanharam e estão traficando, estão preso. A mãe não conversava, pensava que bater era educar, não ensina não."
Turno 320 - Coordenadora: "O que ensina a criança?"
Turno 321 - Fábio: "Conversar, saber tratar."
Turno 326 - (...) Marcos: "Mostrar a realidade do mundo."
Turno 336 - (...) Coordenadora: "Vocês acham que quando os pais se omitem da educação também gera violência?"
Turno 337 - Marcos: "Gera, vai criando coisa na cabeça."
Turno 338 - Fábio: "A mãe perto de casa falava para seu filho eu te dou dinheiro, não precisa ficar andando em más companhias, tudo o que você pedir e tiver no meu alcance eu dou."
Análise: No turno 314, a atividade mental de Marcos ao falar de violência, está centrada sobre a vida cotidiana, aquilo que foi vivido até o momento, os termos de bons costumes como dizer "por favor". Já no turno 326, quando responde à coordenadora ao turno 320, que o que ensina a criança é mostrar a realidade do mundo, elaborou esta resposta provavelmente tendo em vista as diferentes condições externas e internas em cada uma destas situações de violência vivenciadas por ele. Os conceitos de Marcos sobre violência estão ligados a uma lógica socialmente construída, evidenciando uma coerência interna de violência, com generalizações e deduções que parecem ter fluidos a partir da discussão com a coordenadora. Como no turno 337, quando acredita que a omissão dos pais na educação gera situações em que a própria criança, às vezes, precisa tomar decisões em momentos em que não está preparada para tal e daí a fala de Marcos: "... vai criando coisa na cabeça"(Legissigno Simbólico Dicente).
Para Fábio, bater não ensina e sim conversar, saber tratar (turnos 319 e 321). O participante, nestes episódios, expõe os sentidos possíveis, emergentes dos dizeres circulados no grupo, e propõe sentidos possíveis à violência como os referidos nos turnos 319 e 321 (Legissigno Simbólico Dicente).
C) Tema identificado: Violência de um modo geral
Turno 226 - (...) Coordenadora: "O que é violência para você?"
Turno 227 - Fábio: "Pancadaria."
Turno 230 - Coordenadora: "Não pensar como o outro pensa é violência?"
Turno 231 - Fábio - "Pensar, não, não tocar em ninguém, tocar na pessoa é violência."
Turno 241 - (...) Coordenadora: "Quem mais? Quem consegue ver hoje atos de violência no Brasil?"
Turno 247 - (...) Fábio: "No hospital eles tratam com ignorância. Você vai falar com o médico lá e falam que não faz parte do meu serviço. Você discute também."
Análise: Violência, para Fábio, a princípio, é quando uma pessoa toca na outra, violência física. Para ele, violência pode ser também quando não tratam as pessoas com respeito. Essas considerações permitem considerar a presença do Símbolo Dicente como Legissigno Indicativo Dicente e Legissigno Indicativo Remático. Remático por ser um signo que para seu intérprete representa as espécies de Objeto possíveis a ele e fornecendo algumas informações - como no exemplo - violência representando os objetos possíveis e passíveis de serem interpretados como "pancadaria", "tocar em alguém", "discussão".
D) Tema identificado: Violência na escola
Turno 208 - (...) Coordenadora: "Fábio, você estuda?"
Turno 209 - Fábio: "Não, Deus me livre!"
Turno 267 - (...) Coordenadora: "E na escola tem muita violência?"
Turno 268 - Fábio: "Claro que existe, o professor chama o aluno para ir na lousa, se ele não sabe todo mundo dá risada. Você não vai querer dar um tapa na cara dele?"
Turno 272 - (...) Coordenadora: "Os que tão dando risada tão fazendo violência?"
Turno 273 - Fábio: "Tão né! Eles que estão causando, se não derem risada não vai ter nada. Não sou a fim de escola não, toma muito tempo. Tem gangues, tem professor que grita, tem diretor que expulsa, tem briga dentro e depois fora no portão, é uma porcaria."
Análise: Fábio mostra nestes diálogos que tem aversão à escola e que nela acontecem situações de violência. A significação alcançada em relação à violência física como um signo de objeto imediato, tendo em sua "mente" a relação do Signo com seu Objeto de maneira praticamente direta (Legissigno Indicial Dicente). Isso fica evidenciado no turno 273, em que se refere à violência quando alguém ri fora de hora, quando professor grita, diretor expulsa aluno e há existência de brigas e gangues.
Ele também fornece indício de como uma resposta à violência subjacente à humilhação (rir do colega que não consegue realizar uma tarefa) pode também se tornar um ato ou desejo de violência ("Você não vai querer dar um tapa na cara dele?").
Parece que as proposições assertivas tomadas isoladamente por Fábio somente serão garantidas pela experiência sobre violência na escola: o riso de colegas de classe quando alguém não sabe o conteúdo da disciplina, grito de professor, diretor que expulsa alunos da escola, brigas constantes, tanto dentro como fora da escola. Todos são signos Dicentes e de existência real. Fica evidenciado um nível de simbolização.
E) Tema identificado: Violência e desigualdade social
Turno 298 - (...) Coordenadora: "Violência existe por causa da ambição dos outros?"
Turno 299 - Fábio: "Todo mundo quer dinheiro, quer crescer, mas não consegue, um vai roubar, eu vejo que aquele tem um baita carrão, eu quero ter também. Rico está indo para frente. O rico, não sei se lutou, vai para frente. O pobre vai tentar roubar, vem a polícia leva para cadeia."
Turno 300 - Coordenadora: "É uma desordem social? O rico mesmo se fizer alguma coisa não paga?"
Turno 301 - Fábio: "O rico tem dinheiro para pagar advogado."
Análise: Fábio considera que a violência ocorre por causa da desigualdade social. Nestes turnos parece que Fábio simboliza mais e acredita que a desigualdade social gera violência, e que a lei não se aplica da mesma forma às pessoas de diferentes condições sociais devido ao poder do dinheiro, alcançando o nível de argumentação.
Discussão
Na escola, são vividos muitos conflitos relacionados à violência. Isso veio à tona por meio dos comentários de Fábio, que revelou sua aversão à escola e apontou que nela acontecem situações de violência, tanto físicas como simbólicas. A formação de gangues e brigas são exemplos da violência física dentro e ao redor da escola. Outro tipo de violência identificada por ele é o abuso do poder (professor grita, diretor expulsa aluno). Mas, há o riso. Não o riso de alegria, mas sim o riso da humilhação, da ridicularização do colega, dos próprios pares. A violência que se produz pela diminuição do outro, que fere sua auto-estima, sua auto-imagem, seu sentimento de pertencimento. Ele não sente que pertence a esse meio. Não é de estranhar que tenha abandonado a escola logo nos primeiros anos. Aqui, ele se posiciona como vítima de uma forma peculiar de violência: a exclusão social (Sawaia, 2002). Ao sofrer esse tipo de violência surge o desejo, que mais tarde se manifestará em ação, de retribuir agredindo também. Subjacentes a esse desejo estão a raiva e a humilhação.
Assim, ele se transforma em autor de violência, reincidindo em eventos de furto e roubo qualificado. Não cabe aqui discutir esse processo de mudança (ou alternância?) de papéis. Para Burak (2001), os adolescentes que desenvolvem um estilo de vida de alto risco tendem a apresentar problemas relacionados à escola. Fábio abandonou a escola nas séries iniciais e isso pode ter ocorrido devido às situações que ele presenciou de violência, tanto física como simbólica, dentro desse ambiente.
Quanto a Marcos, suas idéias sobre violência estão ligadas a uma lógica socialmente construída, a partir da internalização de idéias e valores (Vygotsky, 1991), evidenciando uma coerência interna do conceito de violência, com generalizações e deduções, as quais tiveram oportunidade de fluir na discussão com a coordenadora do grupo, no contexto de trocas de ponto de vista com outros jovens. Um exemplo disso é sua concordância com a proposição de que a omissão dos pais na educação gera violência, pois "cria confusão na cabeça" (sic) da criança.
Os trechos selecionados do discurso de Marcos evidenciam relatos de experiências próprias que lhe permitiram mencionar sensações e sentimentos como conseqüências psicológicas, além de conseqüências físicas e sociais. Suas palavras revelam internalização de valores sociais, morais e éticos a partir do convívio escolar e familiar, que são processos mediadores de linguagem e pensamento (Vygotsky, 1991).
Quanto à construção do conceito de violência, a análise semiótica com base nas proposições de Peirce (1975) revelou que os dois participantes alcançaram um nível de abstração e generalização simbólica genuíno. Conforme as discussões com os outros participantes e com a coordenadora foram evoluindo, eles avançaram na elaboração do conceito de violência, passando a considerar também casos de violência simbólica, como omissão dos pais (participante 1), descompromisso do atendimento médico e percepção de que a justiça é diferente para pobres e ricos (participante 2).
Neste estudo, foi possível observar que os dois jovens estudados avançaram na elaboração do conceito de violência, independentemente do grau de escolaridade, o que se mostra coerente com a proposição de Tfouni (2002).
Conclusão
Os participantes da pesquisa, no confronto com a coordenadora do grupo e seus membros, foram adquirindo consciência dos diversos componentes da violência que podem ser internalizados e reproduzidos por imposição social ou por reação individual a vitimização, mas que também podem ser questionados e recusados, no curso da interlocução. A participação no grupo de discussão constituiu uma oportunidade de agir construtivamente, contribuindo efetivamente para o avanço na elaboração simbólica, independentemente do nível de escolaridade dos participantes do grupo.
A despeito do número reduzido de participantes, os resultados obtidos evidenciaram que o avanço na elaboração simbólica do conceito de violência pode ocorrer independentemente do nível de escolaridade, desde que os indivíduos tenham oportunidade de manifestar seus pontos de vista, de serem confrontados por argumentos ou questionamentos que os levem a pensar sobre a realidade em que vivem, sobre suas próprias idéias e sobre seus próprios atos.
Os participantes evidenciaram que é possível aprender e construir conceitos cognitivos, afetivos e sociais na interação com pares, mediada por um adulto capaz de auxiliá-los no processo de reflexão e re-significação da realidade vivida e da realidade percebida. Assim, o estudo aponta para a importância da mediação no processo de construção de conceitos e da própria construção do sujeito, o que pode ser um caminho a ser trilhado na busca de solução para o problema da violência entre os adolescentes.
Referências
Adorno, S., Bordini, E. B. T. & Lima, R. S. (1999). O adolescente e as mudanças na criminalidade urbana. São Paulo em Perspectiva, 13(4), 62-74. [ Links ]
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Endereço para correspondência
E-mail: nelson_almeida@uol.com.br
Recebido em: março/2007
Revisado em: maio/2007
Aprovado em: junho/2007
Sobre as autoras:
* Cláudia Barsanelli Costa é fonoaudióloga formada pela Faculdade de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-CAMPINAS. Bolsista de Iniciação Científica (FAPIC). Graduada em Letras pela Universidade São Francisco (USF), Especialista em Inglês pela Universidade Estadual de São Paulo (USP) e Especialista em Lingüística pelo IEL - Universidade de Campinas (UNICAMP).
** Profª. Dra. Elizabeth Oliveira Crepaldi de Almeida é Fonoaudióloga, Professora Titular da Faculdade de Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Doutora em Educação pela UNICAMP, Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia. Pesquisadora do Grupo de Estudo dos Aspectos Moleculares da Perda Auditiva - Linha de Pesquisa Audição: aspectos clínicos, educacionais e do desenvolvimento humano.