Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line
ISSN 1677-0358
Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.4 n.2 São Paulo nov. 2007
ARTIGOS
Luto e angústia: questões em torno do objeto1
Mourning and melancholia: questions about the object
Vera Lopes Besset*
IP/UFRJ
UFRJ/CNPq
Associação Universitária de Pesquisas em Psicopatologia Fundamental
Universidade Federal do Ceará
RESUMO
Em seu texto sobre o luto e a melancolia, Freud, afirma que o luto é, geralmente, a reação frente à perda de um objeto caro ao sujeito. Algumas pessoas, registra, reagem a isso com o luto e outras com a melancolia. Interessa-lhe, nesse momento, saber como isso se dá. Para nós, trata-se de investigar por que, como em alguns casos que acompanhamos, alguns sujeitos apresentam angústia, e não luto ou melancolia, como reação à perda do objeto amado. Nesses casos, e focalizamos um em particular aqui, nossa hipótese é que a perda desvela o que o amor mantinha velado. Para tanto, partimos da premissa, lacaniana, de que a angústia é um afeto que não engana. Sendo assim, interrogamo-nos sobre o estatuto do objeto que estaria em questão nessa perda. É da perda de um objeto de amor que se trata aí ou, como é possível supor, da perda de uma posição de gozo, de satisfação pulsional?
Palavras-chave: Luto, Angústia, Amor, Objeto
ABSTRACT
In his text on mourning and melancholia, Freud states that in general, mourning is a reaction face to a loss of an important object. Some people react to that, with mourning and others with melancholia, as Freud emphatizes. On this moment, it becomes interesting for the author, the knowledge of how it happens. We are interested in research why, in some cases, some individuals present anguish instead of presenting mourning or melancholia, as a reaction to an object's loss. In these cases & we focalize one in particular in the present text & our hypothesis is that the loss unveils what love has maintained veiled. According to the lacanian premise, anguish is an affect that does not deceive. Thus, we interrogate ourselves about the object's statute in this loss. Is it about a loss of a love object or, as it is possible to suppose, is about losing a jouissance position, losing a pulsional satisfaction?
Keywords: Mourning, Anguish, Love, Object
RESUMÉ
Dans son texte sur le deuil et la mélancolie, Freud, affirme que le deuil est, généralement la réaction face à la perte d´un objet cher pour le sujet. Certaines personnes, remarque-t-il, réagissent par le deuil et d´autres par la mélancolie.Ceci retient son attention et s´intéresse à savoir comment cela se produit. Pour nous, il s´agit d´essayer de comprendre pouquoi, comme dans certains cas que nous accompagnons, certains sujets réagissent par l´angoisse et non par le deuil ou la mélancolie, comme réaction à la perte d´un objet aimé. Pour ce type de réaction, à partir d´un cas particulier sur lequel nous allons nous focaliser, notre hypothèse est que la perte dévoile ce que l´amour maintenait voilé. Donc, en partant de la prémisse lacanienne que l´angoisse est um affect qui ne trompe pas, nous nous sommes interrogées sur le statut de cet objet qui serait en question dans cette perte. Est-ce la perte d´un objet d´amour dont il s´agit ici, ou, comme il est possible de le supposer, de la perte d´une position de jouissance, de satisfaction pulsionnelle?
Most-clés: Deuil, Angoisse, Amour, Objet
RESUMEN
En su texto sobre duelo y melancolía, Freud, afirma que el duelo es, generalmente, la reacción frente a la pérdida de un objeto querido. Algunas personas, registran, reaccionan a dicha pérdida a través del duelo y otras a través de la melancolía. A Freud, le Interesa en ese momento, saber cómo eso se da. Nosotros, nos proponemos investigar, a partir de algunos casos que acompañamos, por qué algunos sujetos presentan angustia, y no duelo o melancolía, como reacción frente a la pérdida del objeto amado. En esos casos, y focalizamos uno en particular aquí, nuestra hipótesis es que la pérdida devela lo que el amor mantenía velado. Para ello, partimos de la premisa lacaniana, de que la angustia es un afecto que no engaña. Siendo así, nos interrogamos sobre el estatuto de objeto que estaría en cuestión en dicha pérdida. ¿Es de la pérdida de un objeto de amor de lo que se trata ahí, o de la pérdida de una posición de goce, de satisfacción pulsional?
Palabras clave: Duelo, Angustia, Amor, Objeto
Amor e angústia
Em seu texto sobre o luto e a melancolia, Freud (1917[1915]) afirma: "O luto é, em regra geral, a reação frente à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que faça suas vezes, como a pátria, a liberdade, um ideal etc" (p. 241). Na ocasião, como sabemos, interessa-lhe investigar por que algumas pessoas reagem a uma tal perda algumas vezes com o luto e outras com a melancolia. No âmbito desta conferência, instigados pela experiência clínica, nossa proposta é refletir sobre outra reação diante da perda de um objeto: a angústia.
Se a angústia é um afeto que não engana, como afirma Lacan (1962-1963, p.92), sobre o que pode nos ensinar em tais casos? Quando alguém se angustia frente à perda de um objeto de amor poderíamos dizer que se trata aí de um sujeito freudiano? Não exatamente, pois é da ameaça de perda do objeto amado e não a perda em si que se trata em sua teorização. Nesse ponto, tanto Freud quanto Lacan concordam: a angústia de manifesta "diante de algo".
Nossa experiência clínica indica que, em alguns casos, é possível pensar que o amor vela o afeto de angústia (Besset, 1998, p. 187-200). Vejamos alguns dados clínicos.
Uma jovem mulher busca atendimento logo depois que seu marido, a seu convite, sai de casa (Besset, 2002, p. 207-215). Chora muito e, logo, a angústia se manifesta. Seu sofrimento parece mais ligado a uma decepção do que propriamente à ausência de seu objeto de amor. Nesse caso, a questão que se impõe é: que objeto está em questão nessa perda? É da perda de um objeto de amor que se trata aí ou, como é possível supor, da perda de uma posição de gozo,2 de satisfação pulsional?
Na Conferência de abertura desta Jornada, Henrique F. Carneiro, ao falar sobre o luto, abordou justamente esse aspecto, a perda da posição de ser amado por alguém, isto é, a perda da posição de amado. Sobre isso, encontramos em Freud (1917[1915]), no texto de introdução ao narcisismo: "O amar em si, como ânsia e privação, rebaixa a auto-estima, enquanto ser amado, achar um objeto de amor, possuir o objeto amado tornam a elevá-la" (p. 96). Assinala, também, na ocasião, a importância capital do 'ser amada' para algumas mulheres, narcisistas: "Tais mulheres só se amam, a rigor, a si mesmas, e com intensidade igual a do homem que as ama. Sua necessidade não se sacia amando, mas sendo amadas..." (p. 86). Para elas, observa, o pleno amor de objeto é com o filho que geram.
No início de sua obra, o mesmo autor propõe como paradigmático de "todo vínculo de amor" o elo inicial entre o lactante e o seio materno. Esse modelo de felicidade perdida mantém-se como referência na escolha dos objetos amorosos. Desse modo, "a criança aprende a amar outras pessoas que remediam seu desamparo e satisfazem suas necessidades" (Freud, 1905, p. 203). Igualmente, ao discorrer sobre a sexualidade infantil, Freud indica a relação do amor com a satisfação da libido ou da pulsão, entendida como sexual.
É a falta da pessoa que garante para a criança a possibilidade de satisfazer sua libido que dá ensejo à angústia infantil. O exemplo de Freud é o do menino que "vê mais claro" na escuridão, ao escutar a voz da tia que se encontra no cômodo ao lado. A presença da tia substitui a presença da angústia que se liga, - é a hipótese freudiana - à libido insatisfeita (ibid, p. 205). Assim, a impossibilidade de acesso ao objeto que garante a satisfação deixa o sujeito no desamparo. Nessa perspectiva, o objeto amado é o objeto da pulsão: "uma pulsão ama o objeto ao qual aspira para sua satisfação" (Freud, 1915, p. 131). Sendo assim, o amor faz de um objeto qualquer aquele que satisfaz a pulsão, ou, como formula Lacan (1972-1973), torna necessário o que é contingente. Nessa ocasião, propõe-nos pensar o amor como suplência. Suplência à falta estrutural, ao que não tem nome, ao que não se pode nomear com um significante: a Mulher, um Pai que dê conta do gozo feminino. Veremos como essa concepção pode nos ajudar na resposta às questões que nos ocupam aqui: o que o surgimento da angústia frente à perda do objeto amado pode nos indicar? O quê de cada sujeito estaria implicado na angústia? De que objeto se trata na angústia?
O objeto da angústia
A angústia é uma presença que escapa a qualquer saber. Suas manifestações afetam o corpo do sujeito que fala, corpo libidinal (Miller, 2005, p. 101). Para Lacan, a angústia "não é sem objeto": "pas sans"/"não desprovido de", o que indica que há algo , embora não se saiba exatamente o quê. Entendendo a angústia a partir de uma falta postulada como estrutural para o sujeito, esse autor distancia-se de Freud, que afirma que é ameaça da perda de um objeto & amado- que está na base da angústia. Sendo assim, o objeto que traz a ameaça não tem o mesmo o estatuto em cada uma das teorias. Na teorização lacaniana este objeto não coincide com os objetos libidinizados do desejo, ou melhor, àqueles aos quais o desejo se dirige, objetos de atração, substituíveis em sua equivalência simbólica. Nela, trata-se do objeto que, justamente, provoca ou causa o desejo do sujeito, sobre o qual ele nada sabe. Nesse sentido, seria algo não recalcado, que nunca passou pela percepção, que também é material constitutivo do inconsciente, como Freud afirma no texto "O eu e o isso".
Seria um objeto não recoberto pela libido, não semelhante a i (a). Sendo assim, a angústia surgiria quando no lugar do objeto do desejo, surge o objeto a, causa deste. Esse objeto a não é coerente com o eu ideal [i (a)], é resto, "não ich", não eu, se nos lembramos da formação originária do eu-prazer, Lust, a partir da expulsão do não-prazer, Unlust, dentro da formulação freudiana. Objeto, então, reduzido à sua condição de real, distinto dos objetos de desejo que podem ser apresentados ao sujeito no sonho, recobertos pelo imaginário, ligados ao recalcado. Nesse sentido, a marca da interdição, alçando os objetos ao estatuto de objetos de desejo, pode ser ilustrada a partir do sonho dos morangos, da menina Anna Freud, comentado por Freud em A Interpretação dos Sonhos, e discutido por Lacan no Seminário XI.
Considerando o afeto da angústia aquele que "não engana", é possível supor uma relação entre a angústia, o desejo e o gozo. Nossa clínica indica que, se a angústia pode ser sinal, este pode ser o da irrupção de um gozo inesperado e ignorado pelo sujeito. Entendemos aqui o gozo como algo que implica o corpo, um prazer que se apresenta ao sujeito, muitas vezes como desprazer. Se o gozo não é a angústia, a relação desta com o corpo, como lugar de sua manifestação, nos aponta uma ligação a explorar. Nesse contexto, a angústia, pode ser entendida como ligada à surpresa de um encontro com um gozo inesperado. Tratar-se-ia de algo semelhante aos casos em que a perda do objeto de amor deixa lugar para a angústia, no lugar do luto?
A atualidade da clínica
É preciso lembrar que nossa clínica situa-se em uma época dada, que marca o sujeito de características próprias. Trata-se de uma época que valoriza a imagem em detrimento, pode-se dizer, do significante. Nela, a promoção do gozo imediato, sem limites, e quase a qualquer preço, está em primeiro plano. Nesse sentido, marca-se mais pela oferta de objetos de consumo como resposta ao mal-estar do sujeito do que pelo convite à renúncia e à elaboração requeridas pelo trabalho de luto. Sendo assim, a questão formulada na conferência de abertura deste evento "Qual o espaço para o luto hoje?"3 mostra-se bastante pertinente.
Frente ao al-estar na civilização, "amar e ser amado" é um dos métodos ao alcance do ser humano em sua busca de felicidade (Freud, 1930[1924]). Um método cuja eficácia é limitada, pois a ausência do objeto amado ou de seu amor deixa o sujeito na infelicidade ou no desamparo. Mas, se frente à perda é a angústia que surge, podemos entender que em sua base estaria a impossibilidade de um trabalho de luto? Trabalho necessário, como parece indicar Freud (1914), pois quando o amor não é correspondido, a libido é reprimida: "o amor é sentido como grave redução do eu, a satisfação do amor é impossível e o reenriquecimento do eu só volta a ser possível pela retirada da libido dos objetos" (p. 97). A dificuldade é que "...o homem se mostrou incapaz de renunciar à satisfação da qual gozou uma vez..." (ibid, p. 91). Assim, no luto pelo objeto perdido, é a renúncia a uma certa posição de gozo que aparece como o obstáculo maior.
Num tempo marcado pela "desvalorização dos laços", como indica Ilka Ferrari (2005) em sua conferência, é interessante aceitar o convite de G. Brodsky (2005) e buscar o declínio da função paterna no âmbito das relações entre homens e mulheres. A esse propósito, é bom lembrar que um Pai para Lacan, ao final de seu ensino, é aquele que aponta uma mulher como causa de seu desejo. Ou seja, aquele que é digno de ser amado e respeitado como pai seria aquele que se apresenta como um Outro barrado, que consente com o gozo Outro, feminino, não inteiramente recoberto pelo significante.
Se o amor é uma solução de suplência diante do Outro, sua presença vela a condição de objeto de um sujeito. Em contrapartida, sua perda pode reabrir a questão sobre o ser. Se não sou "a mulher que ele ama", quem sou eu? Então, se o amor vem tamponar a angústia, a certeza de minha condição de objeto para o Outro, quando perco minha condição de amado perco minha referência simbólica e mergulho no desamparo. Partindo dessa hipótese, em cada caso é possível utilizando a angústia como sinal, avançar na via de uma questão daquilo que cada perda implica para um sujeito.
Viver na linguagem, como sabemos, implica uma perda e é preciso consentir a ela para poder efetuar o trabalho de elaboração implicado no luto. A experiência analítica, igualmente, exige um trabalho dessa ordem em seu início, quando promove uma destituição imaginária, o distanciamento do sujeito em relação à imagem com a qual se representa.
Sendo assim, na entrada de análise há um consentimento, pois não basta a retificação subjetiva, é necessário que um sujeito consista em ir além do Pai, consinta em se defrontar com que aparece num sonho que Freud traz sob a forma de uma pergunta: "Pai, não vês?" Mas, para isso, é necessário o amor, amor de transferência, para que o sujeito possa suportar, em seu percurso, o encontro com a inconsistência do Outro.
Referências
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22240-010 Rio de Janeiro, RJ
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Recebido em 14 de setembro de 2007
Aceito em 20 de setembro de 2007
Revisado em 15 de outubro de 2007
* Doutora em Psicologia Aplicada (Paris V); Professora do Doutorado em Psicologia do IP/ UFRJ; Psicanalista, Membro da EBP/AMP; Editora da Revista "Arquivos Brasileiros de Psicologia", do IP/UFRJ; Coordenadora do Grupo de Pesquisas CLINP (Clinica Psicanalítica) - UFRJ/CNPq; Membro da Associação Universitária de Pesquisas em Psicopatologia Fundamenta; Pesquisadora do NIPIAC (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas) do I.P./UFRJ; Coordenadora do Grupo de Trabalho "Psicopatologia e Psicanálise" da ANPEPP.
1 Conferência de encerramento da I JORNADA DO LÁBIO: Luto, Melancolia e Nostalgia do Objeto, coordenada por Carneiro, Henrique F., realizada na UNIFOR, Fortaleza, no período de 16 a 18 de novembro de 2005.
2No caso do luto, estaria em questão, segundo Freud, a perda de uma posição libidinal. Cf. Duelo y melancolia, p. 242.
3 Pronunciada por Carneiro, Henrique Figueiredo.