Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP v.5 n.5 Ribeirão Preto dez. 2004
ARTIGOS
Oficinas de expressão e criação com professores: catarse e representação
Expression and creation’s workshops for teachers: Catharsis and representation
Talleres de expresión y creación para profesores: catarsis y representación
Sergio Kodato 1
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP
RESUMO
O dispositivo grupal acionado como oficina de expressão e criação caracteriza-se pela multiplicidade de códigos de comunicação e instrumentos estéticos, tendo como tarefa a objetivação, a concretização de representações e sentidos atribuídos pelos sujeitos às suas práticas pedagógicas e existenciais. Nessa pesquisa, pretende-se compreender as representações plásticas e dramáticas de professores de escolas públicas, em dispositivos grupais concebidos e planejados como oficinas de criação e expressão, dentro de programas que visam treinamento, aperfeiçoamento e reciclagem de educadores. (FAPESP)
Palavras-chave: Grupo; Oficina; Criatividade; Catarse; Representação.
ABSTRACT
The group device started up workshop of expression and creation characterizes by the multiplicity of communication codes and aesthetic instruments, having as task the objectification the concretion of representations and meanings attributed by the individual to its pedagogical and existence practices. In this work, our goal is to understand the plasticity and drama of teacher representation in public schools, as well as in group devices conceived and planned as creative and expression workshops, within programs based in training, improvement and educators recycling. (FAPESP)
Keywords: Group; Workshop; Creativity; Catharsis; Representation.
RESUMEN
El dispositivo grupal accionado como taller se caracteriza por la multiplicidad de códigos de comunicación e instrumentos estéticos, colocando como tarea la objetivación, la concretización de representaciones y sentidos atribuidos por los sujetos a sus prácticas pedagógicas y existenciales. En esa investigación, se pretende comprender las representaciones plásticas y dramáticas de profesores de escuelas públicas, en dispositivos grupales concebidos y planificados como talleres de creación y expresión, dentro de programas con miras a entrenamiento, perfeccionamiento y reciclaje de educadores. (FAPESP)
Palabras clave: Grupo; Taller; Creatividad; Catarsis; Representación.
Em 1974, fui apresentado ao texto de Bleger (1968), “Grupos Operativos no Ensino”, por Patto (1981); essa autora, no seu intuito de semear perseverança e perspectiva de mudança, apontava um caminho para a intervenção do psicólogo na instituição: o grupo. A proposta operativa apresentava-se como possibilidade de articulação dialética entre pensamento e sentimento, buscando uma prática inovadora e colocando-se como alternativa para o psicólogo escolar, diante da maciça profusão de programas comportamentalistas de instrução programada para professores de escolas públicas. Depois de graduado em psicologia, freqüentei experiências cumulativas de grupos operativos com Ana Quiroga, Alfredo Moffat, Gregório Baremblitt, Leonor Gayoto, herdeiros do esquema conceitual, referencial e operativo de Pichon-Rivière (1983), que estabelecia o conceito de tarefa enquanto organizador grupal na articulação entre razão e emoção, visando produção de conhecimento instrumental, não alienado. Tarefa implícita e explícita: “nunca interpretar a conduta de um indivíduo dentro do grupo, mas sim o movimento grupal com relação aos objetivos propostos, com suas resistências, defesas, e simulacros”.
Percebi que havia muitas sessões que eram como jogos de faz-de-conta. Os grupos eminentemente verbais eram caracterizados por um intenso debate, muitas vezes de cunho ideológico, e muita coisa era interpretada como resistência à mudança. “Esse grupo é um grupo objeto, sujeitado, dependente, que não assume para si os destinos de sua própria história”, sentenciava o analista grupal do alto de seu poder terapêutico e didático. Durante duas décadas de insistência profissional, formado nessa tradição grupalista da escola Argentina, de Pichon-Rivière, Bleger, Moffat (1987), Saidon (1997), Pavlovsky (1991), Baremblitt (1997), confesso envergonhado que a maior parte dos grupos que desenvolvi em instituições educacionais nunca passaram da pré-tarefa, ou seja, da enrolação, do blá-blá-blá, sem chegarem efetivamente a superar a ansiedade persecutória e terem um vislumbre de momento produtivo, de transformação da reflexão em ação. Comecei a perceber que os grupos tinham uma evolução similar ao relacionamento conjugal: no começo, aquela empolgação, um querendo conhecer o outro, o grupo como projeção da tão almejada mudança, “basta de neurose, transformação já”. Pouco a pouco, os papos começavam a se tornar repetitivos, o inter-jogo de papéis acabava estereotipado. Há, então, o surgimento de várias figuras, como o líder, que quer organizar a todo o custo o caos (também chamado de momento confusional); o chato exibicionista que fala, fala, como se alguém estivesse interessado em sua verborréia eloqüente; o calado assustado que não consegue organizar sua fala e, na sua timidez, tem muito medo de ser interpretado ou falar alguma bobagem; tem também o calado entediado, seria um pré-dilemático, que não sabe o que está fazendo no grupo, nem qual o seu papel e, se bobear, seu “pescar lambaris” acaba se transformando num sono rotundo. Sempre interrogava minha orientadora e supervisora do porquê de minha irritação com o cochilar no grupo, a sinfonia do ronco; ela sugeria que ele poderia ser a representação concreta e sonora da alienação grupal e de minha impotência. Insatisfeito com minha incapacidade de romper com a monótona e entediante circularidade grupal, busquei ajuda nas técnicas de dinamização grupal do psicodrama moreniano. Realizei minha formação no GETEP - Grupo de Estudos de Técnicas Psicodramáticas, com o qual aprendi que, com pessoas mais simples e humildes, o verbal abstrato poderia ser articulado com o corporal espontâneo e concreto, dando vivacidade e dinamicidade ao movimento grupal.
Foi importante conhecer o trabalho do psicodrama pedagógico de treinamento com mães de periferia através de jogos dramáticos. Inspirados na proposta dos “médicos de pés descalços”, da China, onde catalisadores comunitários eram treinados como agentes de saúde, as participantes dos grupos se transformavam em multiplicadoras e elas próprias conduziam outros grupos. Na evolução dessa articulação das técnicas de grupo operativo e do psicodrama, Saidon propõe o termo dispositivo grupal, como “algo que é montado para fazer acontecer alguma coisa”. O dispositivo grupal caracteriza-se pela multiplicidade de códigos e meios de comunicação, assumindo, enquanto oficina de expressão e criação, sua função simbólica, catártica e sublimatória. Por outro lado, para se denominar oficina, é necessário que, em sua produção imaginária, o dispositivo comprometa-se em fazer algo; como um processo de trabalho, é preciso que, ao final da sessão grupal, haja um produto concreto, uma representação coletiva. Buscar a criação estética e o conhecimento através de um convívio ético e solidário traz à tona a representação tanto do conflito neurótico relacional, de natureza material e inconsciente, quanto da tentativa obstinada de sua superação. Nunca me esqueço o dia em que, num grupo, um professor ironizou contundentemente minha pretensão de “instrumentalizá-los para a prática de sala de aula”; hoje percebo que essa ingenuidade de “querer instrumentalizar” era absolutamente grosseira. O grupo no formato de oficina permitiu-me entender o quão são inúteis nossas tentativas de querer impor um modelo, uma teoria, um método; Freire (1984) já havia alertado para a assepsia e a enganação do ensino “bancário”. Com as oficinas de expressão e criação, entendi melhor o conceito de catarse, de buscar essa possibilidade de “pôr para fora”, de soltar o contido, de regurgitar o que está preso na garganta, de que é preciso primeiro esvaziar um pouco, para depois assimilar e acomodar. Nas oficinas, começamos a trabalhar o conceito de projeto de futuro, apostamos que talvez seja ele que empreste sentido ao profissional e, concomitantemente, seja mesmo vital.
Como os grupos, ao invés de diminuírem a freqüência, mantiveram participação constante, abriu-se campo para a investigação da significância das técnicas de oficina para a evolução do grupo e, conseqüentemente, da catarse para a produção do saber e resgate do sentimento de poder, de ser capaz. Nesta pesquisa, pretendeu-se compreender as representações plásticas e dramáticas de professores de escolas públicas em dispositivos grupais concebidos e planejados como oficinas de criação e expressão. Através das técnicas de pintura inconsciente, com interferências, a escultura ou estátua do grupo, a imagem plástica ou fotografia de seu personagem, a dramatização de conflitos familiares, a cena efetiva da infância gravada na memória, o jogo de completar frases e a leitura epigramática coletiva, coletaram-se representações plásticas e dramáticas, através de filmagem e fotografia digital, na dinâmica grupal e seu universo de significações. As produções plásticas selecionadas, num total de 36 (trinta e seis), foram observadas, fotografadas e analisadas através do método semiótico de Païn e Jarreau (1996), que propõe a análise em três códigos: morfológico, relacionado à estrutura da representação; simbólico, quanto ao significado das imagens; e subjetivo, relacionado ao contexto institucional específico e singular. Observaram-se associações e conexões entre os dados referentes aos sujeitos, suas queixas, críticas, demandas e os dados obtidos através das produções pictóricas. Do ponto de vista estrutural, o espaço oferecido foi ocupado quase que integralmente, denotando-se grande capacidade expressiva e potenciais criativos estagnados. Nos trabalhos de pintura coletiva, nos quais os indivíduos inicialmente rabiscavam numa cartolina de olhos vendados ao som de uma música, percebia-se claramente que os movimentos mais rígidos, geométricos, repetitivos e restritos tendiam à flexibilidade, circularidade, como couraças balançando, e o ritmo da música permitia movimento ao gesto, o soltar dos braços e do corpo, e o incorporar o espírito da atividade, sentida como prazerosa. Estabelecido um vínculo e um clima favorável, as propostas de dramatização, de criações de estátuas corporais, de relembrar de cenas de infância eram acolhidas favoravelmente e as apresentações dos sub-grupos eram aplaudidas com sinceridade.
A atividade não alienada colabora favoravelmente para a motivação, para as relações grupais e para a auto-estima. Comecei a perceber que o recurso da oficina rompia com a monotonia tanto das fatídicas reuniões falantes, um pouco infrutíferas, quanto dos treinamentos baseados em aulas expositivas. O aquecimento grupal através das técnicas de oficina permitia a ritualização do grupo, revestindo-o de um caráter de importância necessário tanto à execução da tarefa, quanto ao resgate da dignidade do professor. Além disso, pôde-se notar, com o decorrer das sessões, uma melhora na capacidade expressiva dos mesmos. Quanto ao aspecto simbólico das produções, os temas mais trabalhados foram: violência, stress, natureza, família e amor. A violência na escola parece se constituir em aspecto paradoxal: humilhação e impotência diante das incivilidades, desculpa que legitima a desresponsabilização dos professores com relação à resolução de situações conflitivas. O stress, enquanto uma desistência incongruente, o incômodo, o indigesto da sala de aula, o sofrimento com o cotidiano, manifestando-se através de uma doença do corpo. Natureza, enquanto demanda por sossego, tranqüilidade e também como criação, seja remetendo à mãe venerada ou ao próprio Criador. Os desenhos, os rabiscos representavam elementos da natureza, sol, mar, árvore, indicando necessidade de se suplantar a tragédia educacional através de um eterno retorno ao natural, ao puro e genuíno. A família do aluno é sempre apontada como a culpada por sua violência ou pela não aprendizagem, “não formaram, deformaram...” e a família do professor ”é tudo”: centro de suas preocupações e sentido de seu existir, especialmente os filhos; se sua família está bem, o professor está bem; se sua família enfrenta problemas, ele se desequilibra e isso é visível no seu desempenho em sala de aula. A crise vivida nos dias de hoje, o intenso sofrimento ao qual estão submetidos os agentes educacionais e as demandas por paz traduzem-se na palavra mágica amor, como esperança, fé, gozo, sentido.
Quanto ao aspecto subjetivo, singular, pode-se perceber que nos dois grupos a maior parte dos sujeitos expressou uma história de dramas e tragédias pessoais que continuam a consumir energia e preocupação. Os sujeitos, em sua maior parte, foram indivíduos pobres em suas infâncias, muitos oriundos do meio rural, viveram, com rigor de chamar a atenção, a dura associação entre pobreza material e carência afetiva crônica. O dispositivo grupal permitiu a representação dessas tragédias e catástrofes pessoais e percebi que é por meio dela, seja através do discurso ou da expressão plástica, que se constitui a possibilidade de elaboração psíquica da experiência traumática. O trabalho dos grupos mostrou que é possível se iniciar um processo de individuação e crescimento através do paradigma ético e estético. Assim, o processo de expressão plástica, desenvolvido com os sujeitos, permitiu não apenas a catarse de alguns aspectos contidos como também apontou para outros fatores significativos na dinâmica psíquica, demandando elaboração: a agressividade recalcada, a dificuldade em lidar com situações conflitivas, a baixa auto-estima, a depressão. Problemas psico-sociais superáveis pelo fortalecimento do capital grupal, social e comunitário.
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Endereço para correspondência
Sergio Kodato
E-mail: skodato@ffclrp.usp.br
1 Docente dos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia, da FFCLRP & USP.