Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP v.5 n.5 Ribeirão Preto dez. 2004
ARTIGOS
Histórias de vida, marcas de uma vida & Re-apropriação da história pessoal de idosos & Relato de uma experiência
Life tales, marks of live - Re-appropriation of elderly memories and experiences
Historias de vida, marcas de una vida - Re-apropiación de la história personal de los ancianos (relato de una experiencia)
Jozélia Regina Díaz Olmos 1
Universidade de Mogi das Cruzes - UMC
RESUMO
Apresenta o trabalho com um grupo de idosos em oficinas de narrativas durante o estágio de Psicologia Clínica de uma Universidade particular visando contribuir para a promoção da saúde através da rememoração e do intercâmbio de experiências, num espaço de escuta e acolhimento. O novo registro possibilitado pela memória e pelos valores da ancestralidade transformou em ganho a perda da força física e dos atributos juvenis, facilitando o rompimento com estados de isolamento, fortalecendo os vínculos e o enlaçamento social e contribuindo para o desencadear de sentimentos de enraizamento e de pertença social.
Palavras-chave: Memória de velhos; Oficinas de narrativa; Formação de psicólogos.
ABSTRACT
The present study is a work with a group of elderly people during the Clinical Psychology stage in a private University. It aims to contribute to the promotion of health through the remembrance and the exchange of experiences, in a environment of “listening” and “well received”. The new situation, made possible by memory and ancestrality values, transformed the loss of physical strength and the youth, in a gain for the elderly, facilitating the rupture with isolation, strengthening the social bonds and contributing to the generation of feelings of social inclusion.
Keywords: Elderly memories; Psychologist formation; Narrative workshop.
RESUMEN
Presenta el trabajo con un grupo de ancianos en charlas de narración durante las prácticas de Psicología Clínica de una universidad particular, con vistas a contribuir para el incremento de la salud a través de rememoración y del intercambio de experiencias, en un espacio de "escuchar" y "acoger". El nuevo registro posibilitado por la memoria y por los valores ancestrales, transformó en ganancia la pérdida de fuerza física y de los atributos juveniles, facilitando romper con estados de aislamiento, fortaleciendo los vínculos y el enlace social y contribuyendo para el desencadenar de sentimientos de raíz y de pertenencia social.
Palabras clave: Memoria de viejos; Prácticas de narrativa; Graduación de psicólogos.
A escolha pelo trabalho com idosos deveu-se não somente ao aumento dessa faixa etária em nosso meio, mas também à observação cotidiana da desvalorização e obsolescência impostas à maior parte deles, levando-os a diminuir sua participação social, ao sentido de inutilidade e desgosto que, num círculo vicioso, remetem ao enfraquecimento dos vínculos sociais.
Como os idosos já viveram quadros de referência familiar e cultural sentem prazer em rememorar o passado, reviver as tradições e as histórias que participaram. Se não lhes permitir mostrar a competência específica da memória, a lembrança do passado pode se converter num suceder saudosista que apenas dará alento à época atual, fazendo os velhos se retraírem de seus lugares e função social e isto empobrece a todos.
No mundo atual, tecnificado e individualista, a experiência e a comunicação oral são substituídas pela informação rápida que não permite a quem a recebe tirar dela alguma lição como era possível na arte de contar histórias, na troca de experiências (BENJAMIN, 1985). Esse processo de fragmentação e fluidez desencadeado pela industria cultural (Adorno, 1978), acarretou a desvalorização da vida coletiva e o isolamento dos homens levando-os ao desenraizamento (ARENDT, 1993) do solo de suas coletividades, distanciando-os dos vínculos sociais, adormecendo o valor de suas experiências e desvalorizando o sentar em rodas para contarem o que haviam vivido. Ao encontrarem-se frente a frente com os outros, aprendendo a falar, a ouvir e a respeitar os diferentes percursos de vida, os homens celebram a convivência.
Como supervisora de estágio trabalhando no enfoque da análise existencial e como doutoranda do IP-USP trabalhando com memória e narrativa na constituição da história e da identidade pessoal e institucional, considerei viável iniciar um trabalho que pudesse retomar o “esquecido sentar em roda” para narrar experiências aos ouvintes, tecendo laços sociais e de comunicação através de produções que se situam no eixo da aprendizagem afetivo-intelectual (aprendizagem significativa para Rogers, 1977) e ao mesmo tempo que facilitasse o desabrochar do “ser terapeuta” dos estagiários: aquele capaz de ligar-se com a história dos outros, com suas dores, sofrimentos e possibilidades de superação de limites (CARVALHO, 1999, p.379).
Nada mais coerente com a proposta do que as Oficinas de Histórias de Vida.
O termo oficina remete às corporações medievais nas quais os pais ensinavam a seus filhos um ofício que era a “alma” do oficineiro. Nelas também se encontravam os viajantes que iam e vinham e, por isso, elas se tornavam o lugar do encontro e das narrativas dos que nela se encontravam (JORDÃO, 1999, p.331).
Segundo Schmidt e Ostronoff (1999, p. 335) “as oficinas suscitam o rompimento com os estados de isolamento, ativam laços sociais e de comunicação, contribuindo para o desencadear de sentimentos de enraizamento e de pertença social”.
Apesar de não se tratar de psicoterapia de grupo (FERNANDES, 2003, p.187) têm um caráter terapêutico. Também para Emílio (2003, p. 269) os objetivos de grupos em clínicas-escola nem sempre são psicoterápicos, podendo haver diferentes modalidades: de discussão, de reflexão, temáticos, etc., sendo que nestes grupos não-terapêuticos também podemos perceber mudanças nas interações entre seus membros.
Foram escolhidos três oficineiros entre os estagiários 2 do último período para definir a população alvo, estabelecer as temáticas, o local e os horários, organizar o sistema de inscrição e de seleção para ouvir as pessoas em suas expectativas e motivações e conduzir as oficinas com as tarefas de criar as condições facilitadoras para o trabalho, planejando os recursos e materiais a serem utilizados. Durante o trabalho tiveram uma atitude centrada na relação oferecendo-se de maneira atenta, autêntica e respeitosa à con-vivência com o outro para que este pudesse, em liberdade, experienciar-se e compartilhar essa experiência com os outros. Ser facilitador é estar com, é estar junto a, acompanhar, é não ter um olhar interpretativo para os produtos, movimentos e possibilidades grupais, mas sim compreensivo, ajudando na percepção das dimensões do fazer e do criar e das formas de se dar a partir do significado que cada pessoa atribui ao seu produto.
Foram convocadas para uma entrevista individual 12 pessoas, oito mulheres e quatro homens, com idade acima de 55 anos, que aguardavam na fila de espera para atendimento. Nessas entrevistas foram expostos os objetivos das Oficinas.
Formou-se um grupo de sete idosos (6 mulheres e um homem), três oficineiros (estagiários de Psicologia) e de dois observadores (do terceiro ano) encarregados da observação do movimento grupal e das intervenções.
Foram realizadas na Clínica Escola 11 oficinas semanais com duração de cerca de 2h15m. A cada encontro havia um subtema: representações de cada um sobre a identidade, aspecto físico, psicológico, social, velhice, solidão, doença e morte; rememorações das experiências infantis e da adolescência, das experiências afetivas, de trabalho, políticas; do impacto do mundo novo, da aposentadoria e dos projetos abandonados, revisão de vida e perspectivas de futuro. Para cada encontro havia atividades e recursos expressivos específicos (poesia, música, recursos plásticos com o objetivo de concretizar o material da experiência grupal).
Nas três supervisões procurei acolher as angústias dos estagiários de forma amorosa e libertadora, sem contudo deixar de chamar-lhes a atenção a aspectos e pontos cegos que não haviam sido observados no calor das oficinas.
Neste contexto utilizamos os aspectos da força curativa dos grupos que segundo Yalom (s/d) são: altruísmo, coesão (denominados de cumplicidade), universalidade, descoberta interpessoal, orientação, catarse, identificação, reestruturação familiar, autocompreensão, re-estabelecimento da esperança e fatores existenciais.
Ao ter a experiência individual de ser importante na vida dos outros, de poder pertencer a um grupo e ser aceito por ele, podendo falar de si próprio e ser aceito por pessoas que não têm obrigação de fazê-lo, cria-se grupo o clima de entendimento e aceitação, gerando a cumplicidade entre todos os membros. Os relacionamentos interpessoais se desenvolvem de maneira positiva e maneiras diferentes de compreender uma experiência vivida possibilitam uma ampliação de horizontes para que as pessoas possam efetivar mudanças em seus comportamentos.
As formas de desabafo são recebidas por um continente maior o que possibilita expressar melhor os sentimentos e cada um sente-se encorajado pela catarse dos outros.
Ao desejar ser como alguém que se mostra mais ajustado desenvolve-se um processo de identificação, assim como ser compreendido por outros promove uma autocompreensão: os membros do grupo se sentem aceitos por pessoas iguais, que não são profissionais.
Esta força curativa pode ser percebida pela fala dos velhos:
"Eu me sentia quieta, calada, não conversava, queria só assistir TV. Agora eu saio para vir às oficinas fazer coisas que acreditava que não conseguiria mais fazer."
"Foi uma lição, pra começar até no riso, meu coração se abriu, foi muito bom. Vou me inscrever para as oficinas no próximo ano."
"Antes eu não chorava, não me emocionava, mas agora eu choro."
"Tô gostando muito de vir aqui, eu notei foi a alegria, o achar graça nas coisas que antes tinham se apagado".
"Nós podemos nos encontrar e nos visitar, podemos nos divertir, jogar cartas, ir ao cinema e fazer projetos para encontrar formas de viver e superar as limitações."
"Essas oficinas deviam durar o dia todo e no próximo ano deve haver mais encontros para que todos participem."
Os fatores existenciais são outra força curativa dos grupos. Saber que não é possível escapar das vicissitudes da vida, do estar sozinho na construção de sua existência e da necessidade de enfrentar corajosamente os desafios e limitações que a vida impõe, possibilita a re-significação da vida, sobrepujar o sofrimento e forjar uma organização mais madura e mais próxima da realidade da vida que é a morte.
Considerou-se que as oficinas para idosos são um trabalho de retorno e melhora, com mudanças visíveis em suas vidas, em seus sentimentos quanto à velhice, com a superação de problemas e do sentimento de incapacidade. Ao longo dos encontros, foram relatando como melhoraram em todos os aspectos de suas vidas: pessoal, familiar e social. O acompanhamento e o acolhimento dos sofrimentos trazidos por cada um, permitiu que se notasse, sem esforços, a diferença de semblante a cada encontro.
A re-apropriação da história pessoal permitiu-lhes renovar energias e melhorar a auto-estima, resgatar o prazer por outras atividades sociais e abrir um espaço para novo enlaçamento social.
Assim, acreditamos que um trabalho com grupos de idosos pode resgatar a arte de “intercambiar experiências” e propiciar reflexões e práticas que incentivem a "re-construção" e o desenvolvimento de sujeitos autônomos, assegurando a qualidade de vida, bem como, levando os participantes a vivenciarem experiências e a construírem representações diferenciadas, fortalecendo os vínculos sociais e favorecendo o processo de elaboração e transmissão da experiência pessoal e coletiva.
O novo registro social permitido pela memória e pelos valores da ancestralidade, transformam em ganhos a perda da força física e dos atributos juvenis, possibilitando o resgate da condição de sujeitos perdida com a velhice.
O valorizar o testemunho da memória dos velhos possibilitou romper com a auto-imposição ao indivíduo de sua inutilidade ao tornar-se velho.
Quanto aos futuros psicoterapeutas: “a experiência de cada idoso passada a cada um de nós foi muito gratificante; podemos dizer até mais do que isso, foi uma lição de vida, um empurrão para que a cada momento da nossa vida, possamos viver” (ZIMERMAN, G., 2000, p.214-217).
Assim, esses futuros psicoterapeutas continuam aprimorando-se para o trabalho com velhos para adquirirem as condições necessárias citadas por Zimerman, pois já têm o potencial para tanto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ZIMERMAN, G. I. (2000). Velhice: aspectos biopsicosociais. Porto Alegre: Artmed, 2000. [ Links ]
Endereço para correspondência
Jozélia Regina Díaz Olmos
E-mail: dolm@netmogi.com.br e segabi@uol.com.br
1 Psicóloga, Psicoterapeuta, Professora Supervisora de Estágio em Psicologia Clínica para o Curso de Formação de Psicólogos na UMC. Mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e doutoranda do IP-USP, Área Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano.
2 Andréa Chrisóstomo, Márcio H. Oliveira Gomes, Rose Helena de Paiva.