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Revista da SPAGESP

 ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.10 no.1 Ribeirão Preto jun. 2009

 

ARTIGOS

 

Subjetividade e alteridade: considerações sobre os fundamentos de uma clínica grupal na perspectiva Winnicottiana 1

 

Subjectivity and otherness: considerations on the theoretical basis of group psychotherapy from a Winnicottian perspective

 

Subjetividad y alteridad: consideraciones sobre los fundamentos de una clínica grupal en la perspectiva Winnicottiana

 

 

Tânia Maria José Aiello Vaisberg 2

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As condições de possibilidade de proposição de uma clínica grupal, que permita a abordagem de problemáticas psicopatológicas que emergem no campo da pré-subjetividade, são consideradas a partir das mudanças paradigmáticas que, no interior do discurso psicanalítico, possibilitaram a percepção de um nexo essencial entre a constituição da subjetividade, no plano individual, e uma natureza humana que assume, no registro ontológico, um caráter fundamentalmente co-existencial e intersubjetivo. Sofrimentos existenciais ligados aos processos iniciais de constituição do self requerem a adoção de uma concepção de cura como superação de dissociações e incremento da integração pessoal, que aproximam o indivíduo da possibilidade de se sentir vivo, real e capaz de gestualidade espontânea, transformadora de si mesmo e do mundo, como pessoa entre pessoas.

Palavras-chave: Self; Psicose, Psicoterapia de grupo, Psicanálise, Winnicott.


ABSTRACT

This article aims to discuss how treatment group of psychotic patients can be possible when an intersubjective theoretical point of view is adopted, in the place of Freudian speculative thought. So, we can realize that there is an intimate link between the constitution of the self, in an individual level, and human nature, which assumes, in an ontological plan, a co-existential essence. Existential suffering related to initial processes of emotional maturation demand a new point of view, assuming that the cure corresponds to an overcome of dissociations and to an increasing of personal integration. When this condition is achieved, the individual can feel alive, real, spontaneous and capable to change himself and the world, being a person among others.

Keywords: Self; Psychosis, Group psychotherapy; Psychoanalysis, Winnicott.


RESUMEN

Las condiciones de posibilidad de proposición de una clínica grupal, que permita el abordaje de problemáticas psicopatológicas que emergen en el campo de la presubjetividad, son consideradas a partir de los cambios paradigmáticos que, en el interior del discurso psicoanalítico, posibilitaron la percepción de un nexo esencial entre la constitución de la subjetividad, en el plano individual, y una naturaleza humana que asume un carácter fundamentalmente coexitencial e intersubjetivo, en el registro ontológico. Los sufrimientos existenciales relacionados a los procesos iniciales de constitución del “self” requieren la adopción de una concepción de cura como superación de disociaciones e incremento de la integración personal, que aproximan al individuo a la posibilidad de sentirse vivo, real y capaz de una gestualidad espontánea, transformadora de sí mismo y del mundo, como persona entre personas.

Palabras clave: Self; Psicosis, Psicoterapia de grupo; Psicoanálisis, Winnicott.


 

 

As décadas que separam o momento em que vivemos daquele no qual Freud inaugurou o campo psicanalítico tem sido marcadas por um movimento intelectual a que muitos se referem como “mudança paradigmática” (GREENBERG; MITCHELL, 1994). Tal movimento estaria profundamente enraizado na duplicidade do discurso freudiano, bastante apropriadamente apontada por Politzer (2004), em cuja interioridade vigorariam dois tipos bastante diversos de teorização: uma, de caráter abstrato e fisicalista, baseada na visão do psiquismo como aparelho percorrido por energias impessoais, e outra, de caráter concreto, eminentemente dramático e interpessoal. Na América Latina, a tese politzeriana foi bastante difundida pela psicanalista argentino, José Bleger (1988, 2001, 2004), cujo pensamento metodológico e epistemológico tem servido de base para nosso percurso de pesquisa, que tem como objetivo principal a busca de enquadres clínicos diferenciados, mediante os quais benefícios oriundos da produção de conhecimento psicanalítico possam ser estendidos a camadas cada vez mais amplas de pacientes.

Assim, dois diferentes paradigmas foram identificados no campo psicanalítico:

A tensão mais significativa na historia das idéias psicanalíticas tem sido a dialética entre o modelo freudiano original, que toma como ponto de partida as pulsões instintivas, e um amplo modelo alternativo iniciado no trabalho de Fairbain e Sullivan, que desenvolve estrutura somente a partir das relações do individuo com outras pessoas. De acordo com isto, designamos o modelo original de modelo estrutural-pulsional e a perspectiva alternativa de modelo estrutural-relacional. Escolhemos estes termos como um meio de iluminar as diferenças entre os modelos nos seus compromissos metafísicos quanto ao subjacente conteúdo da mente. Todas as teorias psicanalíticas pressupõem padrões e funções duradouras, além de características, que tipificam a personalidade individual. Tais padrões e funções organizam a experiência e a resposta comportamental subseqüente. A maioria dos teóricos denomina-os de “estrutura psíquica” para enfatizar sua consistência e continuidade temporal. Sullivan (1953), com receio do perigo de reificação inerente ao uso de conceitos como “estrutura”, substitui por “dinamismo”. Mantemos o termo estrutura, cientes de que tal emprego implica numa metáfora de “espacialização” que não deve ser tomada literalmente. Estamos empregando-o no sentido sugerido por Rapapport, que designa “estruturas” dentro da psicanálise como configurações “que tem um baixo índice de mudança” e Lawrence Friedman, que caracteriza estruturas em termos de uma “estabilidade relativa (GREENBERG; MITCHELL, 1994, p. 13).

No que diz respeito ao tema desta comunicação, que tem na articulação entre subjetividade e alteridade seu ponto de partida, a compreensão da diferença fundamental existente estes dois paradigmas merece um exame cuidadoso. Vale a pena, para levá-lo a cabo, retomar algumas colocações, que consideramos bastante didática, de Greenberg e Mitchell (1994, p. 9):

A psicanálise é, por sua própria natureza, uma disciplina interpretativa. A teorização psicanalítica opera dentro de uma dialética de continua fertilização cruzada com dados clínicos. Freud desenvolveu sua teoria a partir do material clínico fornecido por seus pacientes; a teoria, por sua vez, continuamente forma e ilumina os recém-emergentes dados clínicos. Embora o psicanalista praticante tente suspender seus preconceitos teóricos enquanto escuta seus pacientes a fim de permanecer tão fiel quanto possível à fenomenologia da experiência do paciente, a teoria deve entrar em algum ponto. A própria natureza da prática psicanalítica como uma investigação cooperativa da vida do pacientes pressupõe que algo está faltando na experiência do paciente sobre ele mesmo. Se isto é conceitualizado como sendo o resultado de uma repressão (Freud), da falta de cuidados (Sullivan), ação negada ou repudiada (Shcafer), auto-engano (Formm) ou má-fé (Sartre), a suposição é de que alguns aspectos salientes da realidade do pacientes, alguma dimensão crucial de significado, estão ausentes do seu relato da própria experiência, esteja ou não o paciente consciente disto.

A partir daí, cabe entender porque, para estes autores, a função da teoria seja fornecer “possibilidades interpretativas” que viabilizem o suprimento daquilo que falta no relato do paciente sobre si mesmo. Assim, todas as teorias psicanalíticas trabalhariam com áreas selecionadas da experiência humana, de modo a organizar conjuntos de significados que permitiriam esta ou aquela apreensão compreensiva do material clínico. O modo complexo e sofisticado como se dá o ir e vir entre o momento fenomenológico do encontro clínico inicial e a compreensão interpretativa é descrito do seguinte modo:

Os conceitos básicos em cada teoria psicanalítica tornam-se a urdidura e a trama das quais é tecida a complexa tapeçaria da experiência humana. No próprio processo psicanalítico, se o trabalho está se seguindo de uma maneira rica e viva, os amplos princípios teóricos subjacentes são quase invisíveis. O analista, uma vez passado o seu primeiro aprendizado, não conserva a sua teoria na mente para empregar ativamente como um dicionário de significados. Ele não vai continuamente da frente para trás entre os comunicados do seu paciente e sua teoria, decifrando detalhes. Ele escuta o relato do paciente sobre sua experiência e sua atenção é chamada ora para um lado ora par outro. Certos temas sobressaem, certos pedaços não combinam. Gradualmente seus pensamentos sobre o paciente se cristalizam. Alguns processos subjacentes na vida do paciente e a comunicação de sua experiência emergem. O analista começa a ter uma idéia do que foi omitido e esta consciência forma os seus pensamentos com relação a possíveis intervenções interpretativas. (...) Durante todo este processo, os conceitos teóricos como tais podem estar ausentes dos pensamentos do analista. No entanto, fornecem o cenário invisível, a estrutura não-vista, dentro da qual o analista ouve a história do paciente. Assim, os conceitos básicos dentro da teoria psicanalítica fornecem possibilidades interpretativas para orientar o clinico em direção a dimensões cruciais e ocultas de significados, informando as sensibilidades do analista (GREENBERG; MITCHELL, 1994, p.10).

Assim, justamente porque a relação entre teoria e clínica, no campo psicanalítico, é bastante mais sofisticada do que seria uma aplicação direta que decifraria significados, torna-se crucial o exame do paradigma sob o qual se desenvolve o trabalho. As visões sobre subjetividade e alteridade correspondem a diferenças fundamentais entre o modelo pulsional e os modelos relacionais, justificando sua consideração atenta. Veremos a seguir que uma vez superado o uso do paradigma pulsional, do que pode resultar a constituição de uma psicanálise concreta, segundo moldes preconizados por Politzer (2004), será preciso lidar com questões relativas ao uso de enquadres clínicos grupais, nos quais indivíduos, em diferentes estágios no processo maturacional de constituição da subjetividade, podem ser psicoterapeuticamente beneficiados.

 

A PULSÃO E O DRAMA

Não persiste nenhuma dúvida, entre psicanalistas, quanto ao fato de seu método, ponto de partida de toda teorização (HERRMANN, 1979), operar sobre um campo essencialmente relacional, que pode ser bem designada como “acontecer clínico” (BLEGER, 2001). Diferentes posições surgem, contudo, quando tem início o trabalho de construção da teoria o que, como vimos, explica a duplicidade do discurso freudiano e justifica a existência de dois diferentes tipos de paradigmas. Assim, alguns vão considerar como fundamental a adoção de um tipo de teorização que toma a física moderna como referência, no entendimento de que tal opção favoreceria a conquista de respeitabilidade científica, enquanto outros advogarão, como Politzer (2004) e Bleger (2001) que o afastamento da dramática do viver terá efeito nocivo sobre a produção do conhecimento da psicanálise, concebida como ciência humana.

Ora, a adoção do modelo fisicalista da metapsicologia clássica, no âmbito da qual a intersubjetividade é considerada como dimensão que tem caráter derivado, vale dizer, não originário, na constituição da pessoalidade humana, tem implicações decisivas nos pressupostos antropológicos subjacentes às práticas clínicas. Complementarmente, visões segundo as quais toda subjetividade é, em última instância e essencialmente, produção intersubjetiva, demandarão posturas clínicas afins.

No trecho de sua Metapsicologia dedicado às pulsões e seus destinos, Freud (1948b) adota, com muita clareza e rigor, uma perspectiva teorizante que não se quer psicológica e dramática:

Si consideramos la vida anímica desde el punto de vista biológico, se nos muestra ‘el instinto’ como um concepto limite entre o anímico y lo somático, como um representante psíquico de los estímulos procedentes del interior del cuerpo, que arriban al alma, y como una magnitude de la exigencia de trabajo impuesta a lo anímico a consecuencia de su conexion con lo somático (FREUD, 1948b, p. 1049).

Como sabemos, este trecho é conhecido por todo e qualquer psicanalista. Entretanto, o que muitos não levam em conta é o fato de estar aí claramente assinalado que o conceito de pulsão faz sentido teórico, adquirindo poder explicativo no contexto da perspectiva de uma certa biologia, que opera por meio de abstrações que permitem a concepção do corpo vivo como máquina sofisticada –o que, diga-se de passagem, tem rendido avanços tecnológicos não desprezíveis. Dito em outros termos, talvez seja importante considerar que não é porque surgiu na escrita de Freud que o conceito de pulsão teria caráter estritamente psicanalítico e não biológico.

Não ignoramos que os teóricos que ainda hoje defendem o uso do conceito de pulsão, fazem-no buscando um aggiornameto. Deste modo, ao examinar as teorias da pulsão de autores como Jean Laplanche, André Green ou, em nosso meio, de Joel Birman, pôde Souza (2001a) perceber uma tendência a definir a pulsionalidade como “... pólo de intensidade expressiva que se contrapõe, em uma dialética produtiva, ao aparelho psíquico, concebido fundamentalmente como organização representacional” (SOUZA, 2001a, p. 285).

A seu ver, estes autores estariam tentando manter uma certa fidelidade à concepção freudiana original, mas dela se afastariam na medida em que consideram que a tensão pulsional não pede descarga e sim expressão. Deste modo, seria correto dizer que a pulsão, sendo quantidade, excesso, buscaria inscrever-se como representação, num movimento de deslocamento de sentidos dados que se transformaria em novos sentidos.

Considero bastante discutível o quanto esta modificação introduzida pelos adeptos do modelo estrutural-pulsional se constitui num avanço realmente valioso, que represente incremento real de conhecimento que permita um melhor manejo das práticas clínicas. Aliás, não sei mesmo se vale a pena considerar a ênfase dada à busca de representação como uma mudança, pois este caminho já foi claramente considerado por Freud, no arcabouço de suas concepções pulsionais. De fato, tendo a ver, em movimentos deste tipo, sinais de uma resistência generalizada a admitir que o conceito de pulsão possa ser pré-psicanalítico ou até anti-psicológico (AIELLO-VAISBERG, 1999), o que incentiva a persistência em seu uso. Esta questão merece muita reflexão, na medida em que uma visão pulsional do ser humano implica posicionamentos em relação à subjetividade e alteridade marcadamente diversos daqueles adotados por uma psicanálise dramática e concreta.

Como o paradigma estrutural-pulsional, em seu caráter objetivante e fisicalista, formula-se sobre bases claramente energéticas e econômicas, o outro tende a ficar, em seu bojo, absolutamente diluído e destituído de importância do outro no processo de constituição da subjetividade. Na verdade, o ponto de vista que Freud (1948b) enuncia como biológico, prevê um organismo que funciona como mônada isolada nos primórdios da vida psíquica, o que não só permite, mas, ao contrário, demanda verdadeiramente que se coloque entre parênteses aquilo que, no plano concreto das vivências, é absolutamente evidente: que o bebê humano não sobrevive sem cuidados maternais (FREUD, 1948a).

Concordamos com Souza (2001a), quando lembra que Freud demonstrou “grande sensibilidade” com relação ao valor da alteridade na constituição subjetiva em obras dedicadas ao complexo de Édipo e ao superego, entre outras. Entretanto, é importante lembrar que este seria o autor celebrado por Politzer (2004), o Freud dramático, criador de uma nova disciplina do campo das ciências humanas, a psicologia concreta. A pesada e trabalhosa tarefa que se impôs, ao elaborar a metapsicologia, não pode, por outro lado, ser ignorada, pois é aí que são lançadas bases que fortalecem concepções da subjetividade como dimensão originariamente dada à qual o outro se acrescenta apenas secundariamente 3.

 

A CONSTITUIÇÃO DO SELF COMO PRODUÇÃO INTER-HUMANA

A questão da alteridade ganhou espaço significativo, na obra freudiana, no contexto das teorias sobre o complexo de Édipo e da constituição do superego. Antes disso, o outro seria tão-somente o objeto da pulsão, ocupando uma posição de importância bastante secundária, como podemos perceber claramente quando estudamos a sistematização do desenvolvimento pulsional elaborada por Abraham (1970). Este quadro evidentemente não contribuía para um aprofundamento de novas idéias e visões sobre a alteridade, como bem resume Souza (2001a, p. 289):

De todo o modo, quaisquer que fossem as concepções de Freud sobre a importância do outro na constituição do sujeito, a verdade é que o desenvolvimento de uma teorização mais conseqüente da função da alteridade no psiquismo esbarrava na aridez das formulações econômicas da pulsão e nas dificuldades dos conceitos de representação e de processo associativo ordenador do conjunto das representações. Em relação a este ultimo, supunha-se que se constituía a partir da conjugação de traços mnemônicos dos processos perceptivos rudimentares do pequeno sujeito e das sensações de prazer e desprazer originadas nos contatos fundamentalmente fisiológicos com o interior do próprio corpo e com o mundo externo, independentemente de qualquer mediação efetiva da subjetividade do outro como tal.

Como se vê, há necessidade de pressupor a existência de um “pequeno sujeito” como mônada já constituída por si mesma, para que todo o processo faça algum sentido. Tal postulação, perfeitamente cabível desde um ponto de vista especulativo, não faz sentido quando levamos em conta aquilo que vivenciamos no plano da dramática concreta. Esta discrepância, aliás, pode ser considerada como ponto de partida de teorizações como a winnicottiana que, enunciadas como tentativa de compreensão psicanalítica da psicopatologia das psicoses (WINNICOTT, 1945), articulam-se precisamente na pesquisa sobre a função do outro na constituição da subjetividade. Inauguram, deste modo, novos campos de conhecimento e de prática, que exigem, por seu turno, que aquilo que os antecedeu seja reposicionado – para seguir sendo útil. Em outros termos, a teorização winnicottiana não anula teorias que podem supor um sujeito psicanalítico já constituído, por si mesmo, existente “desde sempre” – se os fenômenos clínicos em pauta forem absolutamente bem especificados como neuróticos 4. Por outro lado, joga, de fato, por terra construções que, lidando com questões existenciais fundantes, que se encontram em jogo tanto na psicose como no viver inautêntico, ignoram o percurso desenvolvimental que antecede a constituição da subjetividade.

Vale, portanto, lembrar, que o pensamento winnicottiano pertence ao tipo de teorização que prospera, de acordo com Greenberg e Mitchell (1994), sob o paradigma estrutural relacional, aquele que se ampliou na vertente inglesa da teoria das relações objetais, introduzindo de modo franco a noção segundo a qual o processo de constituição da subjetividade só poderia ser compreendido à luz da consideração da alteridade. Autores como Fairbain (1970), que enfatizaram que a libido não buscaria a descarga e sim o objeto, ou como Klein (HINSHELWOOD, 1991) que, para quem o objeto não é jamais “coisa” e sim um “outro” vivenciado sob tonalidades dramático-afetivas de bondade ou maldade, foram histórica e conceitualmente fundamentais na superação de um pensamento pulsional econômico-energético, que não tinha condições de problematizar os processos iniciais da pessoalização individual.

Parece importante frisar que certas propostas teóricas, que podem ser hoje consideradas como termos de passagem entre os dois paradigmas psicanalíticos, tentam conciliar a admissão da importância das primeiras experiências interpessoais do lactente, com a manutenção de uma visão fundamentalmente fiel ao modelo estrutural-pulsional. Caso exemplar é a teorização kleiniana, no contexto da qual as primeiras relações se dariam como experiências de voracidade que se fazem tingir por afetos de amor e ódio. Na verdade, trata-se de posicionamento que não implicou uma crítica radical e abandono decisivo da especulação metapsicológica, como pregara Fairbain (1970). Tal fato explica porque ao mesmo tempo em que concede importância à alteridade, a teoria kleiniana mantém uma visão da subjetividade humana como algo que se dá de modo pronto e acabado e não como produto final de um processo de desenvolvimento que se faz no interjogo de experiências inter-humanas. Modalidades de relação podem ser, assim, interpretadas, mas o sujeito é considerado como existente e atuante desde sempre, o psiquismo não emerge a partir do viver, mas é dado.

Por outro lado, devem ser lembrados, pela sua radicalidade, posicionamentos teóricos que, provavelmente em função da capacidade de “olhar” de modo próximo e concreto a experiência do bebê, cotejando-a com a experiência analítica com pacientes que enfrentam angústias psicóticas, chegam à conclusão de que a exclusão da consideração do cuidado maternal, como aspecto fundamental do viver do lactente, conduz a concepções sobre a constituição da subjetividade humana que se revelam clinicamente insustentáveis. Neste âmbito opera-se não apenas restringindo o alcance da metapsicologia, colorindo afetivamente as descargas pulsionais, mas concebendo a vigência de uma dimensão não pulsional na experiência do bebê, que antecederia o complexo processo de constituição da pessoalidade individual. Neste contexto, adquirem especial importância clínica e teórica contribuições que atribuem importância fundamental às experiências de quietude e bem estar de caráter originário, que não se relacionam ao apaziguamento pulsional (BALINT, 1968; WINNICOTT, 2000a).

Entende-se, assim, que um percurso bastante interessante é realizado desde a teoria da libido até a emergência de concepções que colocam a alteridade no âmago dos processos de subjetivação, passando por formulações que se mantém pulsionais ao trabalhar com a idéia de uma subjetividade pronta, acabada e desde sempre existente, que opera descargas energéticas afetivamente matizadas como experiências de amor e ódio. Considerando a teoria kleiniana como pulsional, Souza (2001a) pronuncia-se do seguinte modo:

A respeito da reação à frustração pulsional no início da vida, é bastante notável a diferença entre as teorias da pulsão e as da relação de objeto: enquanto para as primeiras a frustração da pulsão, independentemente de sua grandeza, gera necessariamente um objeto privador, voraz e perseguidor, para as segundas, dependendo de sua grandeza, ela pode gerar uma falha na estruturação do sujeito, uma experiência de desagregação subjetiva, mas não de perseguição, uma vez que o início da experiência subjetiva é marcado não pela separação e sim pela identificação identificatória entre sujeito e outro. A reação passional que expressa uma angústia persecutória e a que expressa o horror da desintegração subjetiva exigem do analista respostas distintas. Ao passo que a primeira pede uma triangulação interpretativa que opere a mediação entre o sujeito e seu perseguidor, a segunda impõe a permanência de uma presença asseguradora (SOUZA, 2001a, p. 295).

Assim, se entendemos que a subjetividade é produto que emerge a partir de experiências entre um cuidador que, nos melhores casos, alcançou maturidade emocional que lhe permite “ser” como self constituído, e um bebê, que “não existe desde seu próprio ponto de vista”, (WINNICOTT, 2000a), concluiremos que será sempre fundamental diagnosticar se estamos diante de um individuo que já existe ou ainda não existe como unidade pessoalizada, o que o colocará em uma de duas diferentes dramáticas do viver, a da necessidade ou a do desejo (WINNICOTT, 2000b). Por dizerem respeito ao processo de constituição da subjetividade, devem as necessidades serem atendidas, na medida em que só deste modo não se interrompe a continuidade de ser que antecede e subjaz à possibilidade de existência pessoalizada. O mesmo não se aplica ao desejo, que corresponde à experiência daquele que atingiu um grau de amadurecimento que lhe permite “ser” de modo integrado e autêntico.

Haveria, no início do existir do lactente, não propriamente um sujeito, e sim algo da ordem de um “campo experiencial”, que sendo constituído pela díade bebê-cuidador maternal, bem pode ser designado como “campo pré-subjetivo”, quando o observamos a partir do lugar ocupado pelo lactente. Este campo deve ser considerado como requisito básico da instalação de um ser cuja separatividade e unicidade são conquistadas ao longo do tempo (SOUZA, 2001b). Trata-se de um campo ativamente sustentado por um cuidador devotado que “é” o mundo do qual o bebê ainda não se diferencia.

 

EXISTIR PRÉ-SUBJETIVO E PSICOTERAPIA DE GRUPO

Os desenvolvimentos que permitiram descobertas e teorizações psicanalíticas relativas ao que podemos designar como existir pré-subjetivo têm permitido que condições clínicas não neuróticas, que envolvem problemáticas da constituição da subjetividade, sejam iluminadas. Surge então um quadro, diante do qual cabe indagar até que ponto as abordagens grupais, que em grande parte foram concebidas para lidar com indivíduos pensados como subjetividades já constituídas, que viveriam conflitos interpessoais ou intergrupais, seriam apropriadas quando nos encontramos diante de formas radicais de sofrimento existencial. Inaugura-se assim um campo promissor de pesquisa, que poderá, eventualmente, ampliar de modo significativo o alcance da clínica psicanalítica de grupo (AIELLO-VAISBERG, 2004).

 

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Endereço para correspondência
Tânia Maria José Aiello Vaisberg
E-mail: tanielo@uol.com.br

Recebido em 20/11/08.
1ª Revisão em 12/02/09.
Aceite Final em 05/03/09.

 

 

1 Trabalho apresentado no XVIII Congresso Latino Americano FLAPAG e X Simpósio CEFAS – “Práticas Institucionais na América Latina: Casal, Família, Grupo e Comunidade”, 2009.
2 Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da USP. Orientadora dos Programas de Pós-graduação em Psicologia do IPUSP e da PUCCAMP. Coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação e do NEW – Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
3 De todo o modo, talvez seja prudente deixar claro que não se trata, aqui, de julgar os méritos de Freud, cujo reconhecimento está absolutamente fora de questão. Ocupamo-nos, de fato, com um exame das teorizações freudianas tendo em vista prosseguir naquela que consideramos a principal via que seu trabalho inovador descortinou: a constituição e fortalecimento de uma psicologia concreta e dramática, que reconhece no homem uma essência intersubjetiva.
4 Se bem seja oportuno lembrar que, segundo Winnicott (1982), os pacientes neuróticos pareciam destinados a se tornar cada vez mais raros na Inglaterra.