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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.12 no.2 Ribeirão Preto dez. 2011
ARTIGOS
DSM e psicanálise: uma discussão diagnóstica
DSM and psychoanalysis: a diagnostic discussion
DSM y el psicoanálisis: una discusión de diagnóstico
Fuad Kyrillos Neto 1; Carlos Felipe Lemes e Silva 2; Aquinoã Abigail Pederzoli 3; Maria Luísa Azôr Hernandes 4
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG
RESUMO
Este artigo visa discutir duas vertentes diagnósticas a partir da discussão de um caso clínico atendido em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) municipal. O caso foi analisado em concordância com os pressupostos do DSM-IV-TR e posteriormente sob uma perspectiva psicanalítica. Foi realizada uma discussão sobre a atual lógica diagnóstica adotada pela psiquiatria que apresenta a tendência de substituir as grandes categorias diagnósticas por descrições especificadas operacionalizadas de fenômenos objetivos. Por outro lado, foi apresentada a lógica psicanalítica que pretende ir além dos fenômenos objetivos cujo cerne é fazer emergir o sujeito a partir de sua fala. Neste artigo, pretende-se evidenciar as consequências trazidas na condução do tratamento pelas diferentes lógicas diagnósticas.
Palavras-chave: DSM-IV-TR; Psicanálise; Psiquiatria; Diagnóstico; Psicopatologia.
ABSTRACT
This paper discusses two aspects from the diagnostic discussion of a clinical case treated in a Centre for Psychosocial Care (CAPS). The case was analysed in accordance with the assumptions of the DSM-IV-TR and later under a psychoanalytic perspective. We present a discussion on the rationale adopted by psychiatric diagnosis that has a tendency to replace the major diagnostic categories specified by description of phenomena operationalised goals. On the other hand, we present the psychoanalytic logic which attempts to go beyond objective phenomena in order to bring the subject from his speech. In this article, we intend to highlight the consequences ensued in treatment conducted with both different diagnostic logics.
Keywords: DSM-IV-TR; Psychoanalyses; Psychiatry; Diagnosis; Psychopathology.
RESUMEN
Este trabajo analiza dos aspectos de la discusión de diagnóstico de un caso clínico tratado en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS, en Portugués) de la ciudad. El caso fue analizado de acuerdo con las condiciones del DSM-IV-TR y después sobre una perspectiva psicoanalítica. Se presenta una discusión de los principios adoptados por el diagnóstico psiquiátrico que tiene una tendencia a reemplazar las principales categorías de diagnóstico especificadas en las descripciones de los objetivos de los fenómenos en práctica. Por otro lado, se presenta la lógica psicoanalítica de la codicia más allá de su fenómeno objetivo central que es hacer surgir el sujeto a partir de su habla. En este artículo pretendemos poner en evidencia las consecuencias obtenidas en la conducción del tratamiento por las diferentes lógicas diagnosticas.
Palabras clave: DSM-IV-TR; El psicoanálisis; La psiquiatría; El diagnóstico; La psicopatología.
INTRODUÇÃO 5
Em abril de 2011, foi iniciada essa pesquisa que tem como objetivos discutir os critérios diagnósticos em psiquiatria e psicanálise por meio de estudos de casos assistidos pela equipe de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e suas implicações na condução clínica do caso, mapeando os estudos acerca das relações entre a classificação DSM, a psiquiatria e a psicanálise produzidas no Brasil. Além disso, pretende-se observar as divergências e convergências entre a teoria do DSM e a psicopatologia psicanalítica por meio de estudos de casos assistidos pela equipe de um CAPS municipal e modular uma linha de debate entre a psicanálise e o sistema de classificação DSM em bases que superem as proposições de caráter político, ideológico e até mercadológico. Este artigo constitui-se em uma comunicação preliminar das reflexões que estão sendo elaboradas na investigação.
O DSM III, publicado em 1980, foi de fundamental importância para a psiquiatria moderna. Ele foi o resultado da pretensão de alguns psiquiatras em fazer um novo marco na história das classificações psiquiátricas: referir-se somente a sinais e sintomas e deixar de lado as questões sobre causalidade psíquica. Através dele, categorias diagnósticas foram introduzidas, palavras entraram em desuso, dentre outras mudanças. Ocorreu principalmente uma hierarquização dos diagnósticos, objetivando-se a identificação de apenas uma patologia para englobar todos os sintomas que constituem o estado de um paciente.
Em 1987, todavia, essa hierarquização de eixos diagnósticos entrou em desuso através da divulgação do DSM-III-R, sendo substituída pelo conceito de comorbidade. Assim, um mesmo paciente poderia ter vários diagnósticos em eixos distintos. Esse conceito continuou presente no DSM- IV-TR.
O DSM-IV-TR é um manual diagnóstico e estatístico que possui relação com a classificação de transtornos mentais e de comportamento da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Segundo E. G. Matos, T. M. Matos e G. M. Matos (2005), o DSM-IV e o CID-10 são nosográficos e visam à classificação dos transtornos mentais, não substituindo a prática clínica. Ambos os sistemas são categoriais. Segundo Pessoti (1999), assim como a CID, o DSM tem por finalidade padronizar os critérios diagnósticos, o registro estatístico e o entendimento entre os clínicos. À semelhança da CID, o DSM classifica originalmente os tipos de alienação mental (loucura). Todas as reformulações da CID foram acompanhadas por novas edições do DSM. Dessa forma, a CID-10 apresenta correspondência com o DSM-IV.
O DSM-IV possui 16 categorias classificatórias que são distribuídas em cinco eixos: o I, que reúne os transtornos clínicos; o II, que trata do retardo mental; o III, que aborda os problemas médicos de forma geral; o IV, que descreve os problemas psicossociais e ambientais que se relacionam ao transtorno mental que o indivíduo apresenta; e o V, que é uma escala de Avaliação Global de Funcionamento (AGF).
Os integrantes da força tarefa que organizaram os últimos DSM se intitulam neokraepelianos. Assim como o DSM, Pessoti (1999) nos lembra que a classificação de Kraepelin prioriza a descrição de sintomas, e não a etiologia das doenças. Kraepelin desconsidera os processos psicodinâmicos, descrevendo apenas as causas endógenas e exógenas da loucura. Essas também estão descritas no DSM com outra nomenclatura. Para esse autor, sexo, idade, etiologias físicas ou emocionais relacionadas à "predisposição geral" são fatores que se unem na formação dos sintomas. O DSM considera também que os fatores genéticos são responsáveis pelo desencadeamento de doenças em associação a outras causas.
Segundo Pessoti (1999), para Kraepelin, a classificação da doença mental deve ocorrer baseada nas causas, nos aspectos biológicos e orgânicos e nos fenômenos mentais relacionados. Sua classificação empreende somente dois grupos: a psicose maníaco-depressiva e a demência precoce.
Antecessor de Kraepelin, Krafft-Ebing considera que as subdivisões das doenças devem advir de critério clínico funcional, e não etiológico, principalmente para classificar as psiconeuroses. Sua classificação organicista e funcional prioriza acompanhar cada quadro com sua correspondente caracterização clínica (PESSOTI, 1999). Em contraposição à teoria de Kraft- Ebing, Maudsley considera que as espécies têm sempre um conteúdo afetivo que as distingue e que, em alguns quadros, pode vir acompanhado de delírio e de lesões ao processo de formação de ideias. Pessoti (1999) lembra que a diferença de atitude diante da possibilidade de classificação entre esses autores corresponde a duas tendências teóricas diversas no campo da psiquiatria: a escola francesa e a alemã. Acredita-se que, atualmente, a discussão diagnóstica apresentada seja um reflexo das divergências entre essas escolas.
Pesquisas envolvendo as tensões existentes entre a razão diagnóstica do DSM e a psicanálise foram desenvolvidas em nosso país. Pereira (s/d) faz referências às implicações do uso do DSM na psiquiatria, enfatizando a perda do objeto da psicopatologia nessa classificação. Figueiredo e Tenório (2002) apontam a diferença de diagnósticos produzidos pelo DSM e pela psicanálise em relação a um caso atendido no Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro e que foi discutido em uma apresentação de enfermos conduzida por um psicanalista. Neste debate, evidenciou-se uma tendência atual da psiquiatria de substituir as grandes categorias classificatórias (neurose, psicose, esquizofrenia) por descrições especificadas de fenômenos objetivos, trazendo um empobrecimento à lógica diagnóstica psiquiátrica, pois se privilegia a descrição dos sintomas ao invés da patologia.
Neste artigo, serão abordadas as peculiaridades de um caso que foi diagnosticado com a lógica das classificações em voga na psiquiatria e que teve uma condução diferente, pois o técnico responsável pela condução do tratamento do usuário utilizava a perspectiva psicanalítica.
É importante ressaltar que não se trata de uma disputa ideológica com a psiquiatria. Ao contrário: a psicanálise conservou a função diagnóstica da psiquiatria sem deixar de se referir à psiquiatria clássica, mantendo a relevância e a singularidade da fala de cada sujeito tanto no nível do enunciado quanto no da enunciação. O saber da psiquiatria clássica construída a partir do momento em que se começou a descrever, isolar e seriar os fenômenos que afetam o doente é a referência básica da prática do hospital psiquiátrico. O que colocamos em questão é que atualmente a psiquiatria encontra-se tomada pelo furor sanandi da farmacopeia, abandonando o seu saber clássico e clínico.
APRESENTAÇÃO DO CASO
A partir da discussão de fragmentos de um caso atendido em um CAPS e levado para supervisão clínico-institucional, propiciada pela coordenação de saúde mental do município, pretendemos comparar a lógica diagnóstica da psiquiatria e da psicanálise.
Nossa discussão evitará o confronto direto dos pressupostos teóricos das formulações embasadoras da lógica do diagnóstico estrutural (psicanálise) versus a classificação dos sintomas (psiquiatria). Para tanto, optamos por uma discussão que privilegie a prática clínica. Utilizaremos, dessa forma, o que chamaremos de "caso Clodoaldo".
Uma equipe do CAPS é chamada para atender um sujeito em crise, caracterizado por um episódio de agressividade. O sujeito em questão é Clodoaldo, um rapaz jovem, de uma família com condição econômica estável e que vive com sua mãe, padrasto e irmã.
O episódio que levou Clodoaldo a ser atendido pela equipe do CAPS foi marcado por um quadro de agressão ao pai enquanto este tentava sair da casa da mãe do usuário. O paciente tentou barrar o pai, depredando seu carro e agredindo familiares que tentavam contê-lo. A mãe foi chamada e acionou o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU), que o encaminhou para a emergência psiquiátrica.
A primeira aproximação do técnico aconteceu na própria residência, pois Clodoaldo afirmava não precisar de tratamento. Logo no primeiro encontro, ele apresentou para o técnico o que ele denominava "cenários", que são montagens feitas pelo sujeito com objetos de sua casa e que contavam histórias sobre sua vida e suas relações familiares.
Após alguns atendimentos, Clodoaldo começa a contar para o técnico histórias sobre seus relacionamentos amorosos, afetivos e relação familiar. Dentre essas histórias, dois significantes apresentados por Clodoaldo chamaram atenção. Tais significantes fazem menção à posição do sujeito frente ao Outro, pois são diretamente dirigidos ao pai. O primeiro foi "crédito irônico" - quando o paciente se referiu ao pai, e o segundo, foi "viado" - quando em um dos cenários apresentados por Clodoaldo surge um alce. Após a apresentação desse segundo significante, o paciente liga para seus familiares e diz "sou viado". Neste momento, por se tratar de um estado dissociativo e de busca de algum referencial estabilizador, o técnico optou por não fazer intervenções diretas e fornecer mais espaços para que o paciente associasse livremente.
O paciente refere que se fingiu de louco para incomodar o pai. Seus atendimentos com seu técnico de referência continuam até que Clodoaldo afirma que pretende namorar mulheres para satisfazer sua família, mas manter encontros fortuitos e secretos com rapazes. Neste momento, o sujeito solicita a interrupção do atendimento.
A ORIENTAÇÃO DO DSM
Com base no estudo de caso clínico – o "caso Clodoaldo" –, realizamos uma análise do diagnóstico desse paciente utilizando o DSM-IV-TR para sua fundamentação.
De acordo com os eixos classificatórios do DSM-IV-TR, Clodoaldo possui o seguinte diagnóstico: esquizofrênico paranoide, transtorno explosivo intermitente, transtorno de personalidade Borderline, heteroagressividade, autoagressão, transtorno sexual sem outra especificação, apresentando também ruptura da família com discórdia em relação a um prestador de serviços. Clodoaldo apresenta, de acordo com o eixo I (Transtornos Clínicos), transtorno sexual sem outra especificação devido a seus acentuados sentimentos de inadequação envolvendo o desempenho sexual ou outros traços relacionados a padrões autoimpostos de masculinidade. Isso porque agia de forma a não chamar a atenção de seus amigos pelas suas preferências sexuais ao elogiar, perante os mesmos, mulheres que eles consideravam atraentes.
Ainda no eixo I, podemos enquadrá-lo no diagnóstico de esquizofrenia do tipo paranoide, pois seus delírios são múltiplos, mas geralmente organizados em torno de um tema coerente. Os cenários construídos pelo paciente são delirantes, assim como o delírio visual que ele apresenta ao não acreditar no técnico devido à cor de sua camisa no dia em que este lhe realizou uma visita. As alucinações também podem constituir uma experiência religiosa, como ocorre quando ele afirma que, ao ser tocado pela brisa, acreditou ter sido um toque de Deus e se sentiu com força para mudar as pessoas. Ou poderia ser um delírio religioso no qual interpreta sua percepção de forma equivocada (o toque da brisa seria, para ele, o toque de Deus).
Também no eixo I, Clodoaldo possui transtorno explosivo intermitente, pois o grau de agressividade se expressa de forma desproporcional com quaisquer estressores psicossociais desencadeantes – quando agride seus pais fisicamente e quando depreda o carro de seu pai (destruição de patrimônio). Já no eixo II, há características do transtorno de personalidade Borderline, pois ele demonstra possuir um comportamento sexual promíscuo. Relata fazer sexo sem uso de preservativos e posteriormente sente-se culpado e com medo de haver adquirido alguma doença, inclusive ser portador de HIV. Esse comportamento é indicativo de autoagressão. Na classificação DSM-IV-TR, "a perda ou separação parental precoce são mais comuns na história da infância dos indivíduos com Transtorno de Personalidade Borderline" (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2000, p. 662). Lembramos que o episódio de agressividade de Clodoaldo ocorre em um momento em que seu pai, que vive separado de sua mãe, vai visitá-lo em sua residência.
Ainda no eixo I, percebemos a heteroagressividade observável quando na ânsia de manter seu pai em casa, depredou o carro dele e agrediu fisicamente seus familiares. Nesse caso, o paciente apresentava temor em ser abandonado por seu pai e raiva inadequada, intensa e com dificuldade em controlá-la, surgindo essa agressividade contra seus pais. No eixo III, não há diagnóstico devido a não constatação de problemas orgânicos; e no eixo IV, Clodoaldo apresenta ruptura familiar por separação e, ao se mostrar resistente ao tratamento, discórdia com o prestador de serviços, no caso, o técnico de referência.
A PERSPECTIVA DA PSICANÁLISE
Se utilizando o DSM-IV-TR temos uma pletora de diagnósticos, ao utilizarmos a lógica psicanalítica, temos uma restrição dessa profusão de transtornos. Podemos dizer que a psicanálise se vale do princípio epistemológico da parcimônia ao adotar uma perspectiva estrutural em contraponto com a classificação de eventos do DSM-IV-TR. Sua proposta reúne os diversos sintomas por sua estrutura, pela posição do sujeito frente a eles e pela relação privilegiada escolhida pelo sujeito ao estabelecer sua relação com o Outro e sua falha constitutiva - recalque (neurose e seus subtipos: histeria e neurose obsessiva), desmentido (perversão) e foraclusão (psicose em seus subtipos; esquizofrenia, paranoia e melancolia).
Diante do diagnóstico proposto pelo DSM-IV-TR, discutiremos a hipótese diagnóstica de que o caso de Clodoaldo seja uma neurose histérica. Lembramos que Ramos (2008), ao fazer uma rigorosa revisão das ideias em torno da histeria, demonstra que, apesar do mito do fim da histeria, os destinos desta e da psicanálise ainda se atravessam. Nosso autor refere-se à histeria como um objeto caracterizado por tudo aquilo que este comunica inconscientemente da sexualidade dentro de uma assimetria traumática. Trata-se de mensagens enigmáticas do adulto dirigidas à criança, mas que ela não consegue traduzir, fazendo dessa tentativa uma tarefa impossível ao longo de sua vida. E, no caso de perda do objeto, o enigmático estará naquilo que comunica do negativo, da rejeição e da frustração e sua tentativa fracassada de decifração que se dá sempre do lado infantil do receptor.
Podemos iniciar nossa linha de raciocínio examinando as ações de Clodoaldo. Elas estão sempre direcionadas ao campo do Outro, o que corrobora a neurose. Podemos assim dizer que sua questão neurótica é um chamado a esse Outro, ao pai, que ele considera inoperante e explorador. Desse modo, o sintoma neurótico tem sua base no desdobramento fantasmático como um desafio ao falo. Isso pode ser percebido quando Clodoaldo diz que "se fingiu de louco para que o pai colocasse uma ordem nele".
Como desencadeamento dessa neurose, citamos Freud (1912/2010), quando descreve um dos determinantes para o estabelecimento das condições necessárias para uma neurose - a quantidade de libido aumentada, de forma que este aumento seja capaz de perturbar o equilíbrio da saúde, além da sua não satisfação, ocorrendo uma frustração proveniente do mundo externo. Antes que os tipos de adoecimentos neuróticos fossem estabelecidos, Freud (1912/2010) fala que todos são provenientes da história do desenvolvimento da libido, das variantes aplicadas a esse fator, da constituição sexual e das influências externas vividas na infância.
Nasio (1991), ao falar do paradoxo da vida sexual do histérico, lembra-nos de que ele se caracteriza por uma contradição na qual, de um lado, há homens e mulheres excessivamente preocupados com a sexualidade e que erotizam toda e qualquer relação social, e de outro, o sofrimento desses sujeitos por ter que passar pela experiência do encontro sexual com o sexo oposto. Esse autor faz referência aos homens histéricos, que se interrogam sobre o tamanho e os atributos de seu pênis ou acerca de sua beleza muscular. Porém, esses sujeitos apresentam um baixo interesse pelas mulheres ou mais exatamente uma baixa pulsão de penetrar o corpo de uma mulher. São homens narcisistas, exibicionistas, sedutores e na maioria das vezes homossexuais e masturbadores.
Clodoaldo aponta que gosta de seduzir mulheres apenas para desvirginá-las e posteriormente refere culpa com esse ato. Lembramos que a sedução é uma manifestação comum na histeria tanto masculina quanto feminina. O sujeito em estudo constrói uma solução para seus desejos libidinais indo para a capital, onde pode se relacionar com homens sem se preocupar com sua família. A sexualidade apresentada pelo paciente é usada também como ferramenta para atingir o pai, característica da neurose histérica. O aspecto da frustração é exposto na história do individuo, que adoece quando o objeto real no mundo externo, que até então satisfazia sua necessidade de amor, afasta-se. Essa relação estabelecida pela psicanálise é elucidada no caso de Clodoaldo em uma passagem específica – quando seu pai vai embora da casa de sua mãe ou, na visão do paciente, "foge", tem seu carro atacado por Clodoaldo como uma forma de instigar a tomada de atitude por parte do pai, um chamado para o que o mesmo "lhe desse uma ordem".
A apresentação da histeria, segundo Dor (1993), é evidenciada como uma "dimensão do desafio", ou seja, o histérico sustenta a transgressão a partir de um questionamento sobre a dimensão da identificação. Na posição histérica, a satisfação do sujeito é de se "fazer advir à verdade" (DOR, 1993, p. 45), fazer de alguma forma que se desvele a posição do outro, um jogo de desejo. Clodoaldo mostra essa posição o tempo todo nos seus confrontos com o pai, principalmente quando se refere a ele como "crédito irônico". Isso ilustra seu desejo de revelar ao outro o que para ele é a verdadeira identidade do pai - um fraco.
Ainda de acordo com Dor (1993), o palco para a manifestação da transgressão do histérico é armado a partir de uma contestação da lógica fálica ao significante da castração. Clodoaldo desafia seu pai com a apresentação da homossexualidade. É um modo de ferir a imagem paterna de virilidade, desmascarando-o por meio do confronto direto. Podemos pensar o episódio de agressão e de destruição do carro do pai como uma manifestação da dissociação histérica de Clodoaldo em que há grande descarga libidinal.
A dissociação é compreendida como um quadro clínico no qual existe uma perda parcial ou completa das funções da consciência. Episódio característico da histeria, esse quadro é marcado por um exagero patológico de certas formas de expressão. Lembramos que os histéricos falam a linguagem não-verbal (linguagem dos órgãos) como uma metáfora. Esse incidente em que Clodoaldo se envolveu demonstra a perda da unidade psíquica, na qual a consciência se altera temporariamente, deixando de funcionar de forma integrada no psiquismo. Durante os atendimentos, o sujeito relatava não se lembrar desse episódio.
Na afirmação do paciente de que se "fingiu de louco para que o pai colocasse uma ordem nele", destacamos, então, a sua manifestação neurótica. Concordando com Lacan quando diz que: "o pai é reconhecido pela mãe como aquele que faz a lei" (LACAN, 1992, p. 111), percebemos na realidade do paciente essa contestação da imagem do pai como o possuidor do objeto de desejo da mãe. Porém, como o paciente questiona e clama pela autoridade paterna, ele busca a verdade por trás dos fatos apresentados a ele pelo pai. Assim, o pai, que é possuidor do falo, necessita de dar a prova dessa atribuição (LACAN, 1992). Fato muito observável neste caso, principalmente na expressão "crédito irônico" usada por Clodoaldo para definir o pai. Inferimos a hipótese de que essa expressão faça referência ao questionamento da atribuição fálica do pai nas relações familiares.
Notamos aspectos marcantes da histeria como a encenação e a teatralidade em Clodoaldo principalmente na criação de seus cenários com representações de cenas familiares, bem como quando diz ser "tocado por Deus". Aqui o paciente oferece outro sinal da provocação à imagem do pai quando em uma de suas montagens chama a atenção a um ícone em especial - um veado. Logo após destacar esse desenho, Clodoaldo liga para seus familiares e se intitula "viado" (posto agora no jargão popular para se designar um homossexual de forma pejorativa). O quadro de humor depressivo apresentado pelo paciente também é comum nessa estrutura, retratado pela teoria psicanalítica como um período resolutório - "estereotipia dos desmoronamentos emotivos" (DOR, 1993, p. 61). Clodoaldo queixa-se de desânimo, improdutividade e sonolência.
Lembramos que esse quadro de humor depressivo se mantém durante vários atendimentos até que o paciente elabora uma saída para o enigma de seu desejo e pede a interrupção do tratamento: deseja ir para a capital, lugar onde se sente livre e pode ter encontros fortuitos com pessoas do mesmo sexo. Na cidade onde vive, faria o papel solicitado pelos pais de um homem que estuda e mantém relações com mulheres.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Acompanhamos duas lógicas diagnósticas distintas. Por um lado, acompanhamos a lógica psiquiátrica que na atualidade apresenta a tendência de substituir as grandes categorias (neurose, psicose maníaco-depressiva, esquizofrenia, toxicomania...) por descrições específicas de fenômenos objetivos. Tal tendência se torna hegemônica na psiquiatria com o advento do DSM III. Por outro lado, apresentamos a lógica psicanalítica estrutural, que ambiciona ir além dos fenômenos.
Conforme lembramos, o DSM-III tem sido considerado uma profunda transformação da psiquiatria. Propondo-se como um sistema classificatório ateórico e operacional das grandes síndromes psiquiátricas, esse manual modificou a concepção de pesquisa e da prática psiquiátrica, pois a psiquiatria teria disponível um sistema de diagnóstico preciso do ponto de vista descritivo-terminológico e passível de servir de apoio para a pesquisa empírico-experimental. A partir desse fato, os diagnósticos seriam considerados como instrumentos convencionais, dispensando qualquer referência ontológica. A única exigência seria a concordância no plano descritivo. Rompeu-se a tradição, em vigor desde Pinel, em que a caracterização das formas de sofrimento, alienação ou patologia mental fazia-se acompanhar da fundamentação ou da crítica filosófica. Rompeu-se não só o casamento entre psicanálise e psiquiatria, celebrado sob os auspícios de figuras de compromisso como a psiquiatria psicodinâmica, mas também certa maneira de fundamentar e fazer psicopatologia.
Figueiredo e Tenório (2002) lembram que o atual estado de classificação em psiquiatria nos leva, sem nem mesmo chegarmos a evocar as categorias de sujeito e estrutura, a um empobrecimento interno da própria lógica psiquiátrica. Empobrecimento que consiste em privilegiar a descrição dos sintomas e a síndrome em detrimento da categoria de doença. No que diz respeito à interessante distinção entre diagnóstico sindrômico e diagnóstico, isso resulta em eliminá-la na prática, uma vez que o diagnóstico nosológico é cada vez mais um diagnóstico sindrômico.
Lembramos que o ponto de vista relacional é adotado pela psicanálise. O psicanalista é comprometido com o trabalho da escuta. Sua concepção de histeria construiu-se não somente por intermédio das obras de psicanálise, mas, sobretudo, com a experiência de transferência do chamado analisando histérico. Lacan (1999) demonstra a importância da palavra para a intervenção clínica e condução do tratamento do paciente. Em referência às produções delirantes, presentes no caso em tela, ele alude que "seja o próprio sistema delirante que nos dá elementos para sua compreensão" (LACAN, 1999, p. 43). Temos aí um ponto de balizamento no qual a psicanálise tende a criar seu passadio. Com relação aos aspectos subjetivos, concordamos com Tomm (1990) quando afirma que o DSM ignora os fatores interpessoais e culturais que contribuem para problemas de saúde mental.
Nessa fala, o analista não abre mão de ocupar um lugar e de fazer um trabalho que venha produzir uma fala que possa idealmente mostrar algo da posição do sujeito na fantasia. Conforme Figueiredo e Tenório (2002), portanto, não se trata apenas de dizer que a fala do paciente está presente na apresentação psicanalítica e ausente na psiquiátrica (na psiquiatria mais fiel à tradição clínica, a fala do paciente também está presente). Trata-se de que na apresentação (entrevista) psicanalítica, essa fala é produzida num certo registro da transferência, no registro de certo endereçamento. Aí reside a tentativa do "mais-além" dos fenômenos que é a relação, a posição que o sujeito falante ocupa diante do outro.
Nasio (1991) aponta que, na histeria, essa fala transferencialmente nos conduz a três posições permanentes e duradouras do eu histérico: um eu insatisfeito, um eu que histericiza, aquele que transforma o espaço analítico numa realidade fantasística de conteúdo sexual e a terceira posição subjetiva do histérico caracterizada pela tristeza de seu eu quando ele finalmente tem que enfrentar a única verdade de seu ser - o não saber se é homem ou mulher.
Demonstramos, assim, que a diferença da lógica diagnóstica do DSM-IV e da psicanálise traz importantes consequências para a condução do tratamento, pois o diagnóstico decorre de uma definição prévia implícita ou explícita sobre a função de uma terapêutica, influenciando os alcances do tratamento.
No caso aqui apresentado, o diagnóstico de "esquizofrênico paranoide com transtorno explosivo intermitente" só alcançará uma intervenção a cada recorrência delirante e/ou agressiva. A psiquiatria resolve esse problema intervindo sobre as situações mais agudas e encaminhando esses pacientes para a "psicoterapia". Estamos falando da Medicina Baseada em Evidências (MBE). A perspectiva de basear a prática clínica pela eficácia leva a hipervalorização da chamada MBE. A noção de eficácia na MBE está associada ao tratamento em condições de mundo ideal, ou seja, a supressão dos sintomas. Porém, consideramos que aí começa o trabalho. Ao propor que o diagnóstico incida não exclusivamente sobre o sintoma, mas sim sobre a implicação do sujeito no sintoma, a psicanálise cria as condições para que a própria intervenção clínica vá mais-além da sua supressão.
Para a psicanálise interessa o sujeito que sofre e suporta os efeitos desse sofrimento. Sofre devido a sua estrutura subjetiva. Nessa perspectiva, trata-se de detectar o pathos que o sujeito se encontra para extrair a partir de sua peculiaridade a patologia que o afeta. Na psicanálise, todo o privilégio é dado ao sujeito enquanto determinado pela linguagem. Ou seja, é fazê-lo dizer ele mesmo acerca de sua história, seus sofrimentos a um interlocutor, numa situação singular, pois o sujeito é responsável pelo que conta. Estamos falando de uma clínica do dito. É o próprio paciente que vem apresentar seu caso em viva voz. Por isso toda a relevância é dada à singularidade de cada fala na entrevista que deixa de ter a ênfase no assinalamento dos sintomas para ser um encontro.
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Endereço para correspondência
Fuad Kyrillos Neto
E-mail: fuad@psicologia.uftm.edu.br
Recebido em 22/08/2011.
1ª Revisão em 12/09/2011.
2ª Revisão em 18/10/2011.
Aceite Final em 19/10/2011.
1 Docente do Departamento de Psicologia Clínica e Sociedade da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Social. Email: fuad@psicologia.uftm.edu.br.
2 Graduando em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
3 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
4 Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
5 Este texto foi revisado seguindo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2009.