Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.12 no.2 Ribeirão Preto dez. 2011
ARTIGOS
Ao encontro do Outro, a vertigem do eu: o etnopsicólogo em equipes de saúde indígena
Meeting the Other in the vertigo of the "me": the ethnopsychologist in the indigenous health groups
Al encuentro del Otro el vértigo del yo: el etnopsicólogo en equipos de salud indígena
Alice Costa Macedo 1; José Francisco Miguel Henriques Bairrão 2; Soraya Fernandes Mestriner 3; Wilson Mestriner Junior 4
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP
RESUMO
A Universidade de São Paulo, em parceria com a Universidade Federal de São Paulo e o Ministério da Saúde, idealizou o Projeto Huka-Katu, que oferece um estágio e uma disciplina aos seus estudantes do curso de graduação em Odontologia, constituídos por duas etapas (uma preparatória e uma inserção no Parque Indígena do Xingu). Com a presença de uma pesquisadora do Laboratório de Etnopsicologia (FFCLRP-USP) no projeto, surgiu uma nova parceria, com o intuito de trazer contribuições da psicanálise e da etnopsicologia. O impacto subjetivo provocado pela imersão em uma realidade cultural muito distinta pode ser bastante perturbador. Neste relato de experiência profissional, com base no que foi registrado nas reuniões e aulas supracitadas, advoga-se a conveniência da inclusão de profissionais com formação em etnopsicologia nas equipes, no intuito de preparar o odontólogo e o profissional de saúde em geral para encontros interculturais que, ao mesmo tempo em que o põem em contato com o outro, devolvem-no a um confronto consigo mesmo.
Palavras-chave: Etnopsicologia; Psicanálise; Saúde coletiva; População indígena.
ABSTRACT
The Universidade de São Paulo, in partnership with the Universidade Federal de São Paulo and the Ministry of Health, created the project Huka-Katu, which offers a trainee program and a subject to their students of the undergraduation course in Dentistry that are systematized in two moments: one is preparatory, while the other is a inclusion in the indigenous park called Parque Indígena do Xingu. Alongside with an Ethnopsychology researcher from University of São Paulo (FFCLRP-USP) in the project, a new partnership has been established, aiming to bring contributions from the Psychoanalytical and Ethnopsychological studies. The subjective impact caused by the inclusion in a distinctly different cultural reality can be highly disturbing. In the experience record, based on the registers of the group meetings and the classes taken, it is discussed whether inclusion of Ethnopsychology professionals in groups is convenient, aiming to prepare the dentist and the health professional in general to intercultural meetings. Not only do the meetings put them in contact with the other one, but also confronted with themselves.
Keywords: Ethnopsychology; Psychoanalysis; Public health; Indigenous population.
RESUMEN
La Universidad de São Paulo, en convenio con la Universidad Federal de São Paulo y el Ministerio de Salud, ideó el proyecto Huka-Katu, que ofrece una pasantía y una disciplina a estudiantes de sus cursos de Odontologia. El proyecto consta de una etapa preparatoria y una inserción en el Parque Indígena del Xingú. Con la presencia de una pesquisadora del Laboratorio de Etnopsicologia (FFCLRP – USP) en el proyecto, surgió un nuevo convenio, que busca llevar al programa contribuciones del Psicoanálisis y la Etnopsicología. El impacto subjetivo provocado en los practicantes por la inmersión en una realidad cultural muy diferente puede ser bastante perturbador. En esta experiencia profesional, con base en lo que fue registrado en las reuniones y clases, se aboga por la conveniencia de incluir en los equipos profesionales con dicha formación etnopsicológica, para así preparar al odontólogo y al profesional de la salud en general para encuentros interculturales que, al mismo tiempo que lo ponen en contacto con el otro, lo devuelven a una confrontación consigo mismo.
Palabras clave: Etnopsicología; Psicoanálisis; La salud colectiva; Las poblaciones indígenas.
INTRODUÇÃO 5
Dentre os princípios fundamentais estabelecidos pelas duas Conferências Nacionais de Proteção à Saúde do Índio (1986 e 1993), destaca-se uma questão relevante: a necessidade de um modelo de atenção diferenciada que respeite as especificidades culturais e práticas tradicionais de cada grupo (LANGDON, 2005).
No texto da "Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas" (BRASIL, 2002), as diretrizes sobre o contexto intercultural são explícitas, reafirmando a necessidade do respeito aos conhecimentos tradicionais e de estudos socioantropológicos (LANGDON, 2005).
É neste contexto que a Universidade de São Paulo, em parceria com a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e o Ministério da Saúde, no intuito de integrar a Política Nacional de Saúde Bucal e a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, disponibiliza, a partir de 2001, uma disciplina optativa aos seus estudantes do curso de graduação (Odontologia) e, desde 2004, um estágio optativo.
As atividades acadêmicas são desenvolvidas em dois momentos interdependentes: inicialmente, ocorre um processo preparatório, por meio de reuniões e aulas semanais, que permitem debates sobre políticas públicas, saúde bucal coletiva, cultura indígena e outros conceitos como alteridade e etnocentrismo. Ainda nessa fase de preparação, os alunos têm acesso à teleodontologia, que oferece dois cursos disponíveis pela Internet, com a disponibilidade de ferramenta digital (Ciber-tutor), na qual, segundo Mestriner Junior, Mestriner, Bulgarelli e Mishima (2011), trabalham-se aspectos da preparação e transformação de um profissional na dimensão cognitiva, sem negligenciar o contexto de sua aplicação, no sentido de desenvolver competências do cirurgião-dentista para a atuação na atenção primária à saúde. O segundo momento refere-se à própria atuação do estudante no Parque Indígena do Xingu (Alto Xingu – Mato Grosso – Brasil), sob supervisão docente da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da USP e da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e de um dentista, atuante no polo de saúde indígena, contratado pela UNIFESP. Essa é a etapa em que o futuro cirurgião-dentista convive com uma cultura "estranha" aos "seus olhos" e aos seus costumes ocidentais durante aproximadamente quinze dias, nos quais atende a população indígena, realizando procedimentos odontológicos.
Nesse contexto, é interessante sublinhar como o Projeto Huka-Katu entrou em contato com as contribuições da etnopsicologia e da psicanálise em seus debates e grupos de discussões em sala de aula. Em 2008, uma psicóloga do Laboratório de Etnopsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP) passou a frequentar as reuniões do estágio. Além disso, em julho do mesmo ano, ela teve a oportunidade de compor a equipe multiprofissional que esteve presente no território do Baixo Xingu. A partir de então, surgiu uma proposta de diálogo entre o Laboratório de Etnopsicologia e o Projeto Huka-Katu.
A fim de analisar o relato dessa experiência profissional, será considerada, especificamente, uma reunião na qual estiveram presentes os membros de uma equipe egressa do Xingu e seu supervisor, com o objetivo de discutir em que medida o olhar etnopsicológico e a escuta psicanalítica podem contribuir para a formação do profissional odontólogo quando ele se depara com a realidade de saúde em contextos diferentes do que está acostumado na clínica-escola e, igualmente, com o contexto cultural nas aldeias indígenas.
VERTIGEM: UM ENCONTRO PROFUNDO COM O OUTRO
A psicanálise revela-se como ferramenta útil para a análise e compreensão dessa experiência de profissionais "em campo" e dessa troca de saberes múltiplos, uma vez que possibilita escuta cuidadosa das produções simbólicas humanas e viabiliza trazer à tona possíveis relações entre o subjetivo e o social (MANTOVANI; BAIRRÃO, 2005).
Para essa discussão, será destacada aqui uma reunião em particular, ocorrida quatro dias após o retorno da equipe do Parque Indígena do Xingu em julho de 2008. Estiveram presentes todos os membros que compuseram a equipe naquela entrada, seis estudantes de odontologia da FORP-USP, a psicóloga (membro do Laboratório de Etnopsicologia) e o docente responsável pelo Projeto.
Nessa ocasião, um dos egressos relatou sua experiência na aldeia como "uma vivência passional". Outro estudante completou: "uma sensação estranha, parece medo". Alguns alunos ratificaram um sentimento de insegurança: "não sei... é estranho... a gente não sabe o que vai encontrar lá". Ao mesmo tempo, e contraditoriamente, os estudantes descrevem o fascínio diante de suas próprias vivências. Assim, o supervisor da equipe comentou: "é que não é só estranheza, também não é só medo, é uma sensação de vertigem".
Os estudantes pareciam narrar uma vivência do desconhecido nesse encontro com o outro (o "indígena xinguano"), ao destacar, por meio de seu discurso, que "sua casa" e tudo aquilo que lhes soava familiar estariam completamente distantes. Um colega respondeu à inquietação do companheiro: "deve ser porque lá o estrangeiro é a gente". O supervisor, nesse momento, fez outra intervenção: "vocês leram a ‘Insustentável Leveza do Ser'? É um livro do Milan Kundera. Há um trecho em que o Kundera fala da vertigem que sentia diante de uma balaustrada". Eis logo abaixo o trecho da obra literária citada pelo professor:
Aquele que quer continuamente ‘se elevar' deve contar ter vertigem um dia. O que é vertigem? Medo de cair? Mas por que temos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada sólida? Vertigem não é medo de cair, é outra coisa, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual logo nos defendemos aterrorizados (KUNDERA, 1929/2009, p. 61).
Nesse sentido, a "vertigem" pode aqui ser interpretada como um "efeito de impacto", capaz de deslocar o sujeito de sua posição, ressituando-o em novos laços significantes, em diferentes campos nas relações humanas: "o efeito, em última análise, estaria implicado em qualquer modificação operada no sujeito constituído pelo simbólico" (GUERRA; CARVALHO, 2004, p. 108).
A psicóloga, presente na reunião (e também recém-chegada da aldeia), recorda que leu sobre outros pesquisadores que, em seus trabalhos de campo, mencionam sensações e vivências muito próximas da relatada ali pelos estudantes e pelo seu professor. Ela relembra uma aula na pós-graduação sobre a obra de Kramer (1993), um historiador alemão, dando destaque aos estudos de outros pesquisadores que tentaram traduzir a cosmologia africana Dinka em termos de uma linguagem moderna, ao buscar no latim uma palavra que pudesse dar pleno sentido ao modo específico de experienciar os "poderes" 6, os espíritos e as divindades dinka: passiones. É possível referir-se a passiones de uma realidade experienciada, ou "ser movido" por algo. No limite, segundo Kramer (1993), fala-se, nesse caso, de um sujeito "movido" pelo sublime. Somos movidos por coisas que, sendo sublimes, não têm relação específica com um indivíduo singular, mas, sim, há sempre uma afinidade "com outros" (KRAMER, 1993). No limite, é-se movido pelo outro.
As narrativas de egressos diante do "outro xinguano" foram associadas aqui a sensações de vertigem, estranheza. Mas, em uma linguagem referida por pesquisadores da cosmologia africana, seriam passiones, estar "movido por", uma espécie de vertigem diante da experiência do abismo:
(...) o abismo é um estímulo mais ou menos inespecífico, que evoca um irracional, uma ansiedade não encontrada no indivíduo, uma ansiedade que o domina e que tem um efeito de enfraquecimento que priva-o de continuar. Principalmente, o abismo revela um poder do manifesto. O abismo faz algo: ele desobstrui, ele domina a pessoa, domina-a com um medo específico, nomeadamente como o medo de cair, de mergulhar na profundidade. É o abismo, não o medo, que o força a se ajoelhar e recuar. O medo é, em si mesmo, o estado de ser compelido. Nem todo mundo experimentou o abismo. Nem todo mundo sofreu de vertigem. Nem todo mundo é forçado a estar aterrado por esse poder. Nem todo mundo é confrontado com o perigo de um sono profundo. Algo fica indiferente. Mas algo cai em um estado de intoxicação, o abismo domina-os também, mas de um modo diferente. Ele seduz para submeter ao abismo e escalar os picos (ZUTT 7, 1972 apud KRAMER, 1993, p. 63-64, tradução nossa).
A psicóloga, neste caso de um debate com os egressos das aldeias indígenas, não estaria imbuída na tarefa de desvendar – tomando de empréstimo as palavras de Mantovani e Bairrão (2005) – significados de uma produção inconsciente e decodificar sua linguagem cifrada por meio de conteúdos que emergem no aqui-agora de uma sessão analítica. Pelo contrário, a escuta do etnopsicólogo deve estar atenta ao desejo do outro e à implicação de cada membro da equipe em sua vivência singular: "a entrada da psicanálise não pode ser esta (atribuir sentido), mas a de revelar a voz dos sujeitos" (BAIRRÃO, 2005, p. 445).
O fechamento da reunião gravitou em torno das seguintes questões propostas em grupo: Mas, afinal, que sensação é essa de estranhamento? De vertigem ou abismo? O que atravessa e aproxima "povos" tão distantes, no tempo e no espaço? Por que motivo incluir, por exemplo, o africano nessa equação?
No fim, considerou-se, ainda nessa discussão em grupo, que isso tudo dizia respeito a estilhaços de uma complexa bricolagem: o contexto cultural brasileiro é povoado por diferentes personagens, entre eles o branco europeu, o índio nativo, o escravo do engenho, o negro quilombola e o mestiço brasileiro, que compuseram um cenário fluido constituído, historicamente e na memória, por fissuras, crostas e inúmeras camadas de tintas, em mistura, sem que se defina um tom único (MACEDO; BAIRRÃO, 2011).
E por que, tal como afirmaram os próprios membros da equipe, estariam eles falando, no limite, de si mesmos? Bairrão (1999) sugere que a história social e pessoal são duas facetas da mesma realidade, de modo que conflitos (psíquicos) – no caso aqui associados ao choque cultural na relação estabelecida com o "outro estranho" e ao mesmo tempo o ancestral (o índio) – se elaboram a partir de materiais simbólicos que são patrimônio comum da nacionalidade. Segundo Bairrão (1999), a constituição da identidade coletiva brasileira, embora, no seu conjunto, possa ser denominada de "adoção madrasta" (por nutrir relativamente à paternidade ibérica o ressentimento de um filho não muito bem aceito ou desejado pelo pai), e ainda que se caracterize por um "processo sofrido", destaca seus traços "reproduzidos, repetidos, mais ou menos vividamente, no contexto biográfico da maioria dos brasileiros" (p. 28).
Não se pode permitir, entretanto, incorrer em psicologismos gratuitos, ao se supor, por exemplo, que se tratam aqui de aparelhos e mecanismos psíquicos de indivíduos (estudantes de odontologia, por exemplo) meramente projetados em dinâmicas culturais, como já destacou Bairrão (1999), ao distanciar seu método de reducionismos dessa natureza.
Nesse sentido, opta-se por outra alternativa interpretativa: "o psíquico se entrelaça com dimensões transpsíquicas" (BAIRRÃO, 1999, p. 29). Foi possível constatar esse aspecto na reunião de preparação narrada anteriormente, pois se fez perceptível nas falas e relatos dos estudantes, uma dificuldade também percebida por Bairrão (1999) na atuação de seus estagiários de Psicologia (serviço-escola de Psicologia) junto a populações provenientes "do que o jargão político-jornalístico nos habituou a chamar de ‘grotões' do Brasil" (p. 29). E a que se refere tal dificuldade, afinal? Encarar "uma" humanidade de que social e culturalmente esses estudantes se distinguem, mas que íntima e simbolicamente os espelha (BAIRRÃO, 1999).
Para Cohn (2001), em um primeiro momento, o índio é pensado como parte da formação da sociedade brasileira. A autora discute ainda a geração de pesquisadores pós-década de 1960, que partiram da ideia de que as culturas indígenas não se perdiam e que as sociedades indígenas atuariam sempre na reconstituição de uma identidade diferenciada.
Nesse sentido, o "personagem índio" está inscrito em nossa cultura como significante. Trata-se de mitos que inexistem empiricamente na realidade cotidiana de um grande número de cidadãos brasileiros (pelo menos em "carne e osso"), não assumindo, portanto, e muitas vezes, um lugar nas relações de alteridade dessa população.
Por outro lado, é com uma população indígena xinguana (encarnada, concreta, "viva") que a equipe de cirurgiões-dentistas da USP convive durante sua experiência em campo. Aos "índios vivos" do Xingu "reserva-se" uma "reserva" ambiental, um espaço "alugado", pertencente legalmente ao Governo Federal, um espaço concreto fisicamente, porém reduzido, ao passo que, no imaginário, seu território é vastíssimo, cabendo-lhe o papel de "intacto e inacessível símbolo nacional".
Por meio da psicanálise lacaniana, Bairrão (1999) argumenta: "pode-se conceber a cultura como composição de elementos significantes, eles mesmos constituintes de cada realidade psíquica singular" (p. 30). Nesse sentido e em última instância, essa estranheza (a que se referem os participantes da mencionada reunião de preparação para o estágio) pode apontar no sentido de "um choque" não apenas cultural (ou com o outro), mas um "choque intrapsíquico". É por esse motivo que uma das metas dessa etapa de preparação da equipe é "escutar-se".
O estranhamento diante do contato com o Xingu parece causar fascínio e medo. Segundo Freud (1919/2006), o estranho pode se referir àquilo que é assustador, relacionando-se, portanto, ao que provoca horror e medo. Por outro lado, logo em seguida ele afirma: "o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (p. 238).
O estudante de Odontologia se assusta diante do espelho: reconhece-se no outro tão estranho a si, encontra-se em uma imagem sempre invertida. O incômodo, a angústia, a inquietação desperta a sensação de perceber-se cada vez mais parecido com o outro. Diante do estranho, defronta-se com a própria imagem, espontânea e inesperadamente.
Freud (1919/2006) propõe uma discussão frutífera a respeito da concepção de "duplo": projeta-se para fora aquele material como estranho a si mesmo. A sensação de estranhamento, portanto, e consequentemente o sentimento de medo (ou do sinistro), segundo a perspectiva freudiana, provém da identificação com o outro, o que leva a não saber mais quem é o seu eu, ao substituir o seu próprio eu por um estranho. Assim, faz sentido aqui o sentimento de ser tomado ("possuído") pelo outro, a sensação de vertigem diante do abismo, tão sublinhados pelos membros da equipe do Projeto Huka-Katu.
Trata-se de algo que se repete, duplica-se, permuta-se, divide o eu: segundo Freud (1919/2006), é algo familiar, mas se alienou da mente pela repressão; algo que deveria permanecer oculto, mas teimosamente veio à luz. O estranho (unheimlich 8) é o que um dia foi familiar (heimlich), de modo que o prefixo "un" torna-se o sinal da repressão.
O estranho é algo secretamente familiar, que foi submetido à repressão e depois "voltou". Nesse sentido, sugere-se que a "ida" ao Xingu resgata relatos (de "egressos") sobre uma viagem dentro de si mesmo, afinal representa um resgate de uma ancestralidade, de uma brasilidade que, propriamente, lhes pertence. Por hipótese, tratar-se-ia de uma viagem de "retorno", tema fartamente discutido nas rodas de cultura do Projeto: em síntese, um movimento (de ir e vir; estranhar-se e reconhecer-se).
A IMPORTÂNCIA DA ESCUTA: CONTRIBUIÇÃO DA ETNOPSICOLOGIA
Diante do exposto, é importante destacar que a Etnopsicologia pode, sim, contribuir com as mencionadas reuniões para preparação de futuros cirurgiões-dentistas e ir além, ao lançar luz sobre uma nova abordagem terapêutica a ser desenvolvida por estes profissionais a exemplo do que segue abaixo.
Dois conceitos psicanalíticos tomados de empréstimo pela Psicanálise podem assumir importante papel nessa discussão: o Outro, segundo Bairrão (1999), refere-se ao patrimônio simbólico, genérico da humanidade e peculiar em cada sujeito.
É graças a este que se pode tratar da cultura e do sujeito sem rupturas, pois os seus elementos mínimos, os significantes, podem ao mesmo tempo ter implicações de maior universalidade e as mais sutilmente singulares, dependendo da maneira particular como concernam a cada um (p. 30).
Nesse sentido, em uma equipe multidisciplinar, a presença do etnopsicólogo deve estar orientada no sentido de desenvolver modelos de intervenção que não se restrinjam ao psíquico individual, porém também não estejam reduzidos a generalidades sociológicas (BAIRRÃO, 2005). Segundo este mesmo autor, em psicanálise, o profissional deve estar sempre atento ao desejo do outro e à sua implicação nessa relação de alteridade.
Em campo, o estudante de Odontologia deve apurar sua escuta, no sentido de "(...) resgatar nas coisas da realidade cultural a sua dimensão enunciativa" (BAIRRÃO, 2005, p. 443), resgatar vozes coletivas, restituir riquezas ocultas à comunidade na qual está inserido (em atividade profissional odontológica), não se sobrepor à voz do outro, mas, pelo contrário, amplificá-la, dar-lhe alcance e, por fim, cultivar respeito e cuidado em prestar ouvidos a todos os modos dele (o outro) se contar (e especialmente aos menos óbvios) (BAIRRÃO, 2005).
No limite, a psicanálise pode ser útil na medida em que restitui ao sujeito o lugar de autoria: "(...) restituir a escuta da voz de sujeitos sociais para eles próprios. Pouco valor tem o tratamento se o sujeito continuar sem fala própria. O que é tratar, se não devolver ao outro a dignidade de (se) dizer?" (BAIRRÃO, 2005, p. 443).
A partir desse refinamento e atento aos dizeres do outro, o cirurgião-dentista, atuante no Parque Indígena do Xingu, é capaz de "escutar" pouco a pouco aspectos que até então passavam incógnitos ao seu olhar. Há um exemplo que ilustra bem essa questão: em julho de 2008, na entrada da equipe da FORP-USP ao Parque Indígena, muitas estudantes relataram certo incômodo diante da falta de privacidade em suas atividades íntimas – como refeições, banho, troca de roupas e necessidades fisiológicas – quase sempre acompanhadas (de longe ou de perto) na maioria das vezes pelas crianças da aldeia.
Essa "perturbação" vivenciada pelas alunas da equipe, foi levantada várias vezes nas reuniões em sala de aula a fim de se discutir em que medida essa reflexão pode trazer contribuições para uma prática em saúde. No Xingu, quando a jornada de atendimento é concluída, o profissional não sai de seu consultório e vai para sua residência. Pelo contrário, ele se mantém "na casa" da própria comunidade, ou seja, permanece em sua aldeia, local onde nunca se está sozinho, pois as crianças se incubem de "fazer sala", ciceronear os visitantes, acompanhando-os em quaisquer de suas atividades: uma forma de mostrar cortesia e gentileza, de trocar saberes, informações e curiosidades sobre uma cultura diversa da sua.
Desse modo, em campo, esse profissional de saúde passa a rever sua relação com o próprio corpo, ressituando esse pudor diante de sua vivência com uma cultura estranha a seus costumes, com uma população que lida de forma tão diferente com a nudez. Refinando a escuta nessa direção – ao mapear, nas relações de alteridade, os dizeres, costumes e hábitos da população atendida – é possível experimentar, no limite, essa vertigem, um misto de medo, estranhamento, vergonha, fascínio, sedução; despir-se de suas vestes ocidentais, permitindo-se ir ao "encontro" desse outro "familiarmente desconhecido".
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, é possível sublinhar que em projetos tais como o Huka-Katu, que buscam integrar as propostas inovadoras das Políticas e Conferências Nacionais da Saúde Indígena, o papel do etnopsicólogo pode ser relevante, na medida em que se trata de um profissional atento às questões sociais e histórico-culturais, mas também apto a uma escuta analítica.
O "respeito aos conhecimentos tradicionais e os estudos sócio-antropológicos", previstos pelo documento da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas não parecem ser o bastante, diante do que se pode observar a partir da análise das falas de profissionais dentistas egressos de seus trabalhos em comunidades indígenas. O impacto subjetivo descrito nas reuniões e casos comentados anteriormente mostra a necessidade de mediação e de uma escuta etnopsicológica, capazes de transformar e preparar os profissionais de saúde para esse encontro intercultural.
Faria sentido incluir, nessas diretrizes, a pertinência de um olhar etnopsicológico, para facilitar esse encontro com o outro que devolve o profissional a um confronto consigo mesmo (o que tanto pode ser enriquecedor, como, eventualmente, perturbador), aumentando o alcance e benefícios mútuos daquele.
É claro que isso tem como resultado, também, o desenvolvimento de um novo modelo de preparação e suporte para o profissional odontólogo (e por extensão, presume-se, para qualquer profissional de saúde) que participe desses encontros, que estão longe de ocorrer simplesmente entre indivíduos empíricos, pois também reverberam memórias sociais, estereótipos, remorsos, preconceitos, atrações, temores, fascínios e vertigens que vão além da sua limitada individualidade e curto ciclo de vida.
Por meio desse relato de experiência profissional, é possível vislumbrar desdobramentos para futuras pesquisas sobre o papel do psicólogo em equipes de saúde multiprofissional atento a aspectos culturais, sociais e históricos da comunidade atendida, de modo a ratificar que esse "olhar etnopsicológico" não é passível de contribuir somente na atuação em saúde bucal em populações indígenas, tornando essa reflexão extensível a outros contextos, a exemplo da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Porém, é importante destacar que, para ampliar os resultados e as discussões a esse respeito, seriam necessárias pesquisas de maior amplitude, que envolvessem a participação de profissionais psicólogos em equipes multidisciplinares nas áreas de Saúde Coletiva e promoção de saúde.
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Endereço para correspondência
Alice Costa Macedo
E-mail: alicecostamacedo@gmail.com
Recebido em 10/10/2011.
1ª Revisão em 22/10/2011.
2ª Revisão em 27/10/2011.
Aceite Final em 10/11/2011.
1 Alice Costa Macedo é graduada em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestre em Psicologia pela FFCLRP-USP. Pesquisadora do Laboratório de Etnopsicologia (FFCLRP-USP). E-mail: alicecostamacedo@gmail.com.
2 José Francisco Miguel Henriques Bairrão é Docente do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Doutor em Filosofia pela Unicamp. Coordenador do Laboratório de Etnopsicologia (FFCLRP-USP). E-mail: jfbairrao@ffclrp.usp.br.
3 Soraya Fernandes Mestriner é Doutora em Odontologia pela Universidade de São Paulo e Docente da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FORP-USP).
4 Wilson Mestriner Junior é Doutor em Odontologia pela Universidade de São Paulo e Docente da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FORP-USP).
5 Este texto foi revisado seguindo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor no Brasil a partir de 1º de janeiro de 2009.
6 Os poderes não são entidades, como corpos ou substâncias com extensão e localização no espaço, nem como um self humano total e independente. Os poderes agem e funcionam como "self-determining" no mundo e na pessoa.
7 ZUTT, J. Ergriffenheit, Erfülltheit und Besessenheit im psychiatrischen Erfahrungsbereich, in Ergriffenheit und Besessenheit. Berne/Munich: Ed. J. Zutt, 1972.
8 Palavras alemãs originalmente utilizadas por Freud.