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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.13 no.2 Ribeirão Preto 2012
ARTIGOS
Por uma antropologia dos "diversos" saindo da invisibilidade: imagética, performática para um diálogo amplo com a (etno)psicologia
The arisal of a 'diverse anthropology': imagetic and acitve to an open dialogue with (ethno)psychology
Por una antropología de los "diversos" saliendo de la invisibilidad: imagética, performática para un diálogo amplio con la (etno)psicologia
Francirosy Campos Barbosa Ferreira 1
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é discorrer sobre alguns temas "emergentes" na antropologia que podem criar um espaço de diálogo profícuo com a psicanálise winnicottiana. São "emergentes" por estimular outros modos de fazer etnografia, trazendo novas formas de articular determinadas metodologias e, nesse sentido, ampliar o campo a ser pesquisado, assim como criar pontos de contato com a etnopsicologia.
Palavras-chave: Antropologia; Psicologia; Etnopsicologia; Psicanálise.
ABSTRACT
This article addresses some arising themes in anthropology, which establish a meaningful dialogue with Winnicott’s Psychoanalysis. They are named ‘arising’ for stimulating new ways of making ethnography and articulating certain methodologies with it. Thus, research field is expanded and new points are linked to ethnopsychology.
Keywords: Anthropology; Psychology; Ethnopsychology; Psychoanalysis.
RESUMEN
El objetivo de este artículo es discurrir en algunos temas "emergentes" en la antropología que pueden crear un espacio para un diálogo provechoso con la psicología winnicottiana. Son "emergentes" por desencadenar otros modos de hacer etnografia, trayendo nuevas formas de articular determinadas metodologías y así ampliar el campo de investigación, como crear puntos de contacto con etnopsicología.
Palabras clave: Antropologia; Psicologia; Etnopsicologia; Psicanálise.
Começo este texto com uma pequena provocação, parafraseando Jean Rouch (2000)2 quando diz: a antropologia será visual ou não será! Eu diria, ainda mais, que na próxima década a antropologia será visual, performática e terá que ampliar o seu diálogo com a Psicologia ou não será. Não há nenhum exagero nesta afirmação, e a finalidade aqui é fazer uma breve reflexão sobre esses temas que podem ser compartilhados. Como bem já disseram Dawsey (2007) e Caiuby Novaes (2010) a partir da metáfora de Geertz (1978, p. 20): "campos emergentes surgem como manuscritos desbotados".
Pretendo abordar alguns desses campos "emergentes" na antropologia brasileira. São terrenos profícuos de articulação teórico-metodológica. Sobre a categoria dos "diversos", talvez fosse apropriado nos reportar a Marcel Mauss (1974, p. 211) quando afirma: "Há sempre um momento em que, não estando ainda na ciência de certos fatos reduzida a conceitos, não sendo tais fatos sequer agrupados organicamente, implanta-se sobre essas massas de fatos a baliza de ignorância: "diversos".
É justamente no plano dos "diversos", daquilo que não se explica imediatamente, que está a (Etno)Psicologia3. Vê-se que há questões que permeiam os dois campos de saber (Antropologia e Psicologia). Essas questões e problematizações podem ser desenhadas pelas temáticas que abrangem imagem e performance, não exatamente nesta ordem, se é que há uma ordem a dar. No entanto, considero que determinadas questões de fronteiras são universos que devem ser olhados mais de perto e sem "freios" conceituais que possam enrijecer o diálogo.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é pontuar esses temas da antropologia e como esses podem também inspirar pesquisadores psicólogos e, dessa forma, ampliar as temáticas em comum.
IMAGEM E ANTROPOLOGIA
A antropologia visual ou da imagem, se preferirem, trata-se de uma área consolidada no Brasil, basta ver o artigo publicado pela professora Sylvia Caiuby Novaes, "O Brasil em Imagem: Caminhos que antecedem e marcam a antropologia visual no Brasil" (2010), no qual a autora nos revela as diversas perspectivas que a área abarca desde a imagem produzida do país recentemente descoberto às novas etnografias e os modos de usar o visual para falar da cidade, das pessoas, da cultura.
O filme não é representação, algo exterior e essencializado, afirma Caiuby Novaes (2010). O desafio é pensá-lo ao mesmo tempo, sensível e corpóreo, que envolve o diálogo e o encontro entre o pesquisador e os sujeitos filmados. É dessa forma que o Gravi (Grupo de Antropologia Visual) vem trabalhando desde sua constituição na década de 1990. Desde a guerra do Golfo, somos "bombardeados" incessantemente pelas imagens que nos chegam com uma velocidade que impressiona, contagia e nos contamina. Muitos foram os que viram em tempo real a derrubada das Torres Gêmeas, em 2001. Se a imagem chega rápido, o que fazer com ela? Como assimilá-la? Ou descartá-la? Temos, ainda, o exemplo do resgate dos mineiros no Chile, em outubro de 2010, um misto de espetacularização da desgraça alheia e um belo exemplo de técnica de salvamento. Há, portanto, de se pensar e cada vez mais por meio do visual, e aqui incluo as mídias sociais, pois essas também revelam o social opaco e "real". Faz-se necessário compreender as novas mídias, assim como compreender o humano por meio dessas novas tecnologias imagéticas e tecnológicas (Twitter, Facebook, Orkut, entre outras redes sociais).
Cinema, fotografia, mídias sociais comunicam, isto é certo, mas como reinterpretá-los? A antropologia visual ainda parece ter que reivindicar a sua visibilidade; os produtos audiovisuais produzidos por antropólogos ainda não têm o mesmo peso de um artigo publicado. Se já se reconhecem os meios audiovisuais como contribuições à disciplina em termos de ensino, pesquisa acadêmica e antropologia aplicada, a Plataforma Lattes ainda é uma barreira, como aponta Caiuby Novaes (2010). Onde devemos postar nossas produções audiovisuais? A autora nos aponta que na rubrica "produção bibliográfica" não é possível, se colocamos em "produções artística/cultural" esta não é importada pela CAPES para avaliação. O que resta, portanto, são os "demais tipos de produção bibliográfica".
Se há 15 anos a antropologia visual ainda não tinha encontrado a sua autonomia, como afirma Peixoto (1995, conforme citado por Caiuby Novaes, 2010), hoje a situação é diferente e a primeira sinalização para esta mudança foram os concursos para professor da área de Antropologia Visual que ocorreram na Universidade de São Paulo em 2005, em 2009 na UFPB e, mais recentemente, na Universidade Federal Fluminense. Outro ponto assinalado por Caiuby Novaes é a proximidade que hoje há entre antropólogos e cineastas documentaristas, sejam em bancas examinadoras ou em eventos. Como a própria autora nos diz:
O interesse pelo outro, pelo mundo do outro, não é campo exclusivo da antropologia e é possível que nós, antropólogos, possamos aprender algo com os olhares ao mundo do outro que partam de outros olhares que não aqueles da nossa disciplina (2010, p. 458).
Nesse sentido, deixo em relevo e pinto em cores fortes a ideia de que o visual - e por meio deste a antropologia visual - é, sobretudo, um campo ainda a ser muito explorado na próxima década e será uma ferramenta fundamental para compreensão não só das novas tecnologias, mídias digitais, entre outros. Se hoje falamos de fotos digitais, de cartões de memórias, diferentemente de outros modelos manuais que usávamos para captar e reproduzir nossas imagens, é porque o mundo em movimento requer também outros modelos mais eficientes de interpretação da vida cotidiana.
A produção de imagens também começa a ser interesse de psicólogos e de etnopsicólogos, como é possível constatar por meio do estudo de Leal de Barros (2010), haja vista que a fotografia e a produção do vídeo fizeram parte de sua pesquisa de campo e da produção atrelada à tese de doutorado. Embora isto não esteja em discussão no seu trabalho, talvez o espaço para interlocução entre antropologia e psicologia seja este diálogo amplo da produção de imagens em campo com finalidade de ampliação do material pesquisado. Outros pesquisadores do Laboratório de Etnopsicologia da Universidade de São Paulo, de Ribeirão Preto, coordenado pelo professor José Francisco Miguel Henriques Bairrão, também vêm trabalhando com uso de imagens, seja como instrumento ou produto da pesquisa. A Psicologia não tem ainda uma tradição no uso de imagens em sua produção, mas, sem dúvida, este diálogo mais amplo que se pretende entre antropologia e Psicologia (visual) podem resultar em bons produtos audiovisuais, assim como ampliar o universo de análise de filmes, documentários, entre outros.
PERFORMANCE E ANTROPOLOGIA
Outro tema deste artigo é a antropologia da performance, pois, assim como a antropologia visual, ela é fruto da virada pós-moderna e desta nova forma de fazer antropologia. Como diria John Dawsey (2007), há algo de não resolvido neste conceito que resiste às tentativas de definições conclusivas ou delimitações disciplinares. É, como diria o próprio autor, uma antidisciplina.
Nesse sentido, em "Performance, Arte e Antropologia" (Ferreira, 2010, p. 11), escrevo: "... Antropologize-se, antropofágico dos sistemas, das enganações simétricas, revele-se no desvio, na assimetria das pontas. Sistemas, estruturas e anti-estruturas... relativize-se, anti anti relativize-se e viva não não-eu...".
A antropologia da performance encontra-se com o outro por meio dos dramas sociais, estéticos e rituais. Victor Turner (1982), inspirado nos trabalhos de Van Gennep, trata dos dramas sociais e traz a antiestrutura para ser pensada no campo antropológico. Aquilo que escapa à ordem, que está à margem, interessa-nos. Os dramas sociais, segundo Turner, caracterizam-se por quatro fases: 1- separação, ruptura; 2- crise e intensificação da crise; 3- ação remediadora; 4- reintegração (pode levar à cisão social ou a fortalecer a estrutura). Turner (1982) dirá: "Fazer os movimentos do Nô, mesmo que por um breve período, me ensinou mais no meu corpo que páginas de leitura" (conforme citado por Schechner 1985, p. 31).
Pensar o liminar e o liminoide é fundamental em sociedades quentes e frias. Tanto o ritual de passagem de sociedades indígenas quanto um show de Paul McCartney revelam muito de uma determinada sociedade e revelam o humano em sua diversidade ampliada e significadora.
O que está em revelo nesta perspectiva é a aproximação dos campos: antropologia e arte. As formas expressivas são constitutivas dessas intersecções que revelam o universo sensível e inteligível. A arte, sobretudo, revela o universo performático dos sujeitos imbricados. Portanto, há de se pensar sobre este universo dentro de referências constituídas neste campo. Veja, por exemplo, os trabalhos de Dawsey (2007), Silva (2005), Ferreira (2009), entre outros.
Mas e a aproximação entre performance e Psicologia, como se dá? Donald Winnicott, psicanalista inglês, vai inspirar trabalhos de teóricos da antropologia da performance, a começar pelo conceito de "objetos transicionais", de "fenômenos transicionais" para designar a área intermediária da experiência, que para o autor pode ser tanto a realidade interna quanto a vida externa (1971/1975). Um exemplo dado por Winnicott e utilizado no campo religioso é a hóstia consagrada, símbolo do corpo de Cristo para os católicos-romanos e, para a comunidade protestante, um substituto de algo evocativo. Ambos, porém, tratam de um símbolo. Da mesma forma que considerei o carneiro do sacrifício islâmico como símbolo, elemento transicional entre o fiel (muçulmano) e Deus (Ferreira, 2007).
Outra ideia emprestada da psicanálise winnicottiana (1971/1975) pelos antropólogos da performance é o conceito de não-eu. Este foi desenvolvido por Richard Schechner (1985) na elaboração do não não-eu (not himself / not not-himself), que indica, para este autor, a possibilidade de ser outro(s), o que podemos ver, por exemplo, no teatro e nos rituais. Este se colocar no lugar do outro, "ser outro", é o que possibilita a transformação por meio da performance realizada. Para Schechner (1985), a transformation é temporária, mas em algumas situações pode se tornar permanente. Em situações de entretenimento, tem caráter diferente do que em situações de ritual. O que ele vai considerar é que o ator, o agente do ritual ao participar da performance, torna-se outro, portanto assume outros papéis, desloca-se ao assumir o não-eu.
Winnicott's ideas mesh nicely with Van Gennep's, Turner's, and Bateson's in whose "play frame" [...]"transitional phenomena" take place [...]. When such performance actualities are played out before audiences, the spectators have a role to play. Winnicott puts into his own terms an audience's "willing suspension of disbelief" (Schechner, 1985, p. 110)4.
Cabe ressaltar que no Brasil há um universo cultural riquíssimo de manifestações populares: bumba meu boi, cavalo-marinho, festa do divino, para citar algumas, trazem o universo popular e tornam-se campos emblemáticos deste campo performático. No artigo intitulado: A teatralização do sagrado islâmico: a palavra, a voz e o gesto (Ferreira, 2009), apresento um dos elementos performáticos da religião islâmica: a salat (oração islâmica). O modo como a salat é elaborada corporalmente, moldando o corpo do muçulmano, permite ver o corpo como um veículo de comunicação entre o fiel e Deus. Neste sentido, estabeleço uma proximidade entre o ator que repete, ensaia o seu papel várias vezes, com um muçulmano que reza e se aprimora a cada oração. O argumento central do texto é que o aprimoramento do muçulmano (com auxílio do comportamento restaurado) deve levar em consideração o conhecimento da palavra, o uso da voz (vocalidade) e o gesto.
Nesse sentido, olhar para este universo social, seja religioso ou não, também é campo da psicologia. Compreender o indivíduo enquanto pertencente a uma rede de significados que dão sentido ao seu modo de ser e estar no mundo faz parte deste campo analítico performático. A própria noção de ser outro pode ser interessante para se pensar o modo como cada indivíduo "apresenta" os seus múltiplos "eus". Como bem diz Gilberto Safra (2004):
[...] trata-se de uma concepção do campo simbólico que vai considerar importante não tanto o significado de um determinado símbolo, mas fundamentalmente sua possibilidade de veicular uma experiência, uma vivência. É a função simbolizante que permitirá ao indivíduo seu atravessamento nas diferentes modalidades de estar no mundo: do estado subjetivo à realidade compartilhada (p. 23-24).
A antropologia da performance nos ajuda a pensar ao que escapa à ordem, o que revela os atores sociais, suas ações e seus verbetes expressos no cotidiano ou no extracotidiano, deste modo pode construir diálogos interessantes e reveladores com a psicologia.
BREVES CONSIDERAÇÕES
Incentivar interesses de pesquisa deveria ser um estímulo a todo docente que forma alunos; aqui estão alguns dos temas que mobilizam minha carreira acadêmica: imagem e performance. Traçar paralelos, aproximar pessoas de áreas diferentes é sem dúvida o desafio para Ciência, não há como produzir isoladamente sem considerar pesquisas desenvolvidas em área irmãs. Concordo com Leal de Barros (2010) quando sinaliza a possibilidade de diálogo entre antropologia e psicanálise como um modo de afinar o ouvido e apurar o tato. Seria profícuo estimular alunos a cotejar saberes que, muitas vezes, parecem dialogar mais com a antropologia ou com a psicologia, mas que, no fundo, apresentam pontos de contatos que podem auxiliar na investigação de temas similares.
A discussão da análise e da produção de imagens e de audiovisual podem tanto trazer elementos da Psicologia em diálogo com a antropologia do sensível, antropologia da experiência, quanto o contrário, a contribuição da antropologia visual e da performance na formação de psicólogos. Por exemplo, a antropologia da performance atrelada às discussões sobre corpo, comportamento restaurado (Schechner, 1985) podem sim contribuir com um outro modo de olhar a Psicologia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Caiuby Novaes, S. (2010). O Brasil em imagem: Caminhos que antecedem e marcam a antropologia visual no Brasil. In L. F. Duarte (Org.), Horizontes das ciências sociais no Brasil: Antropologia (pp. 457-487). São Paulo: Discurso Editorial/Anpocs. [ Links ]
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Winnicott, D. W. (1975). O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago. Original publicado em 1971. [ Links ]
Endereço para correspondência
Francirosy Campos Barbosa Ferreira
E-mail: franci@ffclrp.usp.br
Recebido em 15/05/2012.
1ª Revisão em 20/06/2012.
Aceite Final em 22/07/2012.
1 Francirosy Campos Barbosa Ferreira é antropóloga e docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Coordenadora do GRACIAS (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes). Pesquisadora do Gravi (Grupo de Antropologia Visual), do Napedra (Núcleo de Antropologia, Performance e Drama) e do Neci (Núcleo de Estudos em Contextos Islâmicos).
2 Conforme o filme Jean Rouch: Subvertendo Fronteiras, direção de E. T. Cunha, A. L. Ferraz, P. M. Lopes e R. Stuzman, 2000, LISA/USP.
3 Aqui me refiro não só à Psicologia, mas também à Etnopsicologia como estando na categoria dos "diversos" para a Antropologia. Cabe registrar que o termo "Etnopsicologia" foi empregado primeiramente por George Devereux, uma forma de conjugar psicanálise com etnologia (Leal de Barros, 2010, p. 63).
4 As ideias de Winnicott casam bem com as ideias de Van Gennep, Turner e Bateson, cujos "fenômenos transicionais" de "matriz de atuação" ocorrem [...]. Quando tais realidades de performance são atuados diante de audiências, os expectadores tem um papel a desempenhar. Nos próprios termos de Winnicott, a "suspensão voluntária da descrença" de uma audiência (Schechner, 1985, p. 11). Tradução nossa.