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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.13 no.2 Ribeirão Preto 2012
ARTIGOS
Representação dos profissionais da saúde pública sobre o aborto e as formas de cuidado e acolhimento
Testimonies of public health professionals on abortion and forms of care and embracement
Representación de los profesionales de la salud pública sobre el aborto y la forma de atención y recepción
Ana Silvia Sandoval de Freitas Barbosa 1,I; Jacqueline Aparecida Cosmo Bobato 2,I; Mariana Gondim Mariutti 3,II
I Universidade Paulista, Ribeirão Preto, Brasil
II Faculdade Libertas, Minas Gerais, Brasil
RESUMO
O aborto é um problema de saúde pública, com consequências de morbi-mortalidade entre as mulheres, envolto de polêmicas e discussões nas diversas áreas com implicações no processo histórico do Sistema Único de Saúde e entre os profissionais de saúde e o cuidado a ser oferecido a estas mulheres. O presente estudo objetivou investigar e conhecer as representações dos profissionais da saúde pública sobre o cuidado e acolhimento prestados às mulheres em situações de abortamento. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório. Os participantes desta pesquisa foram dez profissionais da saúde pública, de ambos os sexos, do setor de ginecologia e obstetrícia de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e de uma maternidade do interior do estado de São Paulo. Para a coleta de dados foram feitas entrevistas semiestruturadas individuais com perguntas disparadoras, com o intuito de colher a representação dos participantes sobre o cuidado e o acolhimento em situação de abortamento. O procedimento adotado para a análise de dados foi a técnica de análise qualitativa por meio da apreciação do conteúdo. Este trabalho mostrou a dificuldade dos profissionais em lidar com um tema polêmico, cheio de questões paradoxais, que mexe com convicções internas e influencia na atuação profissional, além da importância da inclusão do psicólogo na formação de uma equipe multiprofissional na área de ginecologia e obstetrícia na rede pública para auxiliar no aprimoramento do cuidado, acolhimento integral e adequado a estas mulheres.
Palavras-chave: Saúde da mulher; Saúde mental; Multidisciplinaridade; Aborto; Cuidado.
ABSTRACT
Abortion is a public health issue, with morbid consequences and death risk for women. It involves controversy and discussions on numerous knowledge fields, as well as implications on SUS (Brazilian public health system), and among professional care for these women. The study has aimed to investigate the public-health professionals' testimonies about women's care under abortion circumstances. An exploratory and qualitative research is presented. Its participants include 10 public health professionals of both genders from the gynecology and obstetrics sections from UBS (Unidades Básicas de Saúde, in Portuguese) and from a maternity of São Paulo state's countryside. In order to collect data, semi-structured interviews were carried to collect the testimonies about the reception and care under the abortion circumstance. The method used to analyze data was the qualitative analysis technique with content analysis. This work has demonstrated the professionals' difficulties with the controversial theme, which reappraises inner convictions and strongly influences professional work. Moreover, it was highlighted the importance of the psychologist as a member a multi-professional group in gynecology and obstetrics fields to improve care to these women.
Keywords: Woman health; Mental health; Multi disciplinary; Abortion; Care.
RESUMEN
El aborto es un problema de salud pública, con consecuencias para la morbilidad y mortalidad entre las mujeres, envueltas en controversia y discusiones en diversos ámbitos, que inciden en el proceso histórico del Sistema Único de Salud y entre los profesionales de la salud y la atención que se ofrece a estas mujeres. Este estudio tiene como objetivo investigar y descubrir las representaciones de los profesionales de salud pública sobre el cuidado y recepción proporcionado a las mujeres en situación de aborto. Este es un estudio cualitativo y exploratorio. Los participantes en este estudio fueron 10 profesionales de salud pública de ambos sexos, del sector de obstetricia y ginecología, de una Unidades Básicas de Salud (UBS) y una maternidad del estado de Sao Paulo. Para recolección de los datos fueron realizadas entrevistas semi-estructuradas individuales con preguntas puntuales con el fin de obtener la representación de los participantes sobre el cuidado y refugio en un aborto. El procedimiento adoptado para el análisis de datos fue la técnica de análisis cualitativo a través de análisis de contenido. Este estudio mostró la dificultad de los profesionales para hacer frente a un tema controversial lleno de preguntas paradójicas que mueve convicciones internas y la influencia en las actividades profesionales y la importancia de la inclusión de los psicólogos en la formación de un equipo multidisciplinar en el campo de la obstetricia y ginecología en la red pública para contribuir a la mejora de la atención, y cuidado integral y adecuado a estas mujeres.
Palabras clave: Salud de la mujer; Salud mental; La multidisciplinariedad; El aborto.
INTRODUÇÃO
O aborto é definido como a interrupção da gravidez ou expulsão do feto da concepção antes que seja viável (22º semana) ou com o produto da concepção pesando menos de 500 gramas ou com menos de 16 centímetros (Brasil, 2010), sendo espontâneo ou provocado.
No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, calcula-se que ocorra mais de um milhão de abortos clandestinos/ano, sendo procedimentos malfeitos a principal causa de mortalidade materna no país, deixando um saldo de 6.000 vítimas fatais por ano. Segundo estimativas, são realizados 42 milhões de abortos anuais mundialmente (Mariutti, 2010).
Discutir sobre o tema do aborto é se referir a um assunto polêmico perante a sociedade, pois é um tema que envolve preconceitos, discriminação e sentimentos controversos desde a antiguidade. Há o papel da religião que socializa e dirige os ritos de morte e vida. Os ritos, práticas e crenças referentes a ela continuam a ser o setor mais primitivo de nossa civilização. Falar de aborto mobiliza essa representação de morte com uma ideia de regresso e impotência do profissional de saúde por mexer em convicções internas (Kovács, 1992).
A questão se torna paradoxal quando numa decisão ética estão implicados motivos antagônicos (Feijoo, 2002). Agir eticamente implica lidar com angústia. A conduta adotada pelos profissionais deve ser pautada na razão, no sentido do que deve ser feito ou não diante de um processo de abortamento.
Na problemática do abortamento, os profissionais de saúde devem disponibilizar um atendimento às mulheres com responsabilidade e ética. Numa situação complexa com vários dilemas, a ética que rege as profissões da saúde deve estar presente no processo de cuidar e acolher, incluindo respeito aos direitos do ser humano, à dignidade, sem discriminação (Bazotti, Stumm, & Kirchner, 2009).
Segundo Vasconcelos e Pasche (2006), o Sistema Único de Saúde (SUS) é o arranjo organizacional existente nos âmbitos municipal, estadual e nacional. Com o decorrer dos anos, o Sistema de Saúde tem mudado com o intuito de se tornar mais eficaz em relação à sua demanda. Em 1997, foi criado o programa HumanizaSUS, com o objetivo de propor um atendimento mais humanizado, com uma postura na qual o acolhimento se torna muito importante. Em uma situação de aborto, que não ocorre sem deixar marcas e repercussões no equilíbrio emocional, o atendimento humanizado, o "estar perto de" é fundamental. A PNH se diferencia de outras políticas por ter uma oferta metodológica (Pasche, Passos, & Hennington, 2011).
A baixa responsabilidade e descontinuidade nos tratamentos expressam a precariedade da rede, do funcionamento do sistema e a qualidade das relações clínicas refletidas nos descasos, no descuido com o próprio cuidado. De acordo com Pasche, Passos e Hennington (2011), trata-se da desumanidade de certos homens que cumprem mal suas tarefas profissionais? "Se assim se formula o problema, coloca-se a embaraçosa tarefa de 'humanizar humanos' como se alguns destes homens fossem menos humanos" (Pasche, Passos, & Hennington, 2011, p. 4545). Esses mesmos autores compreendem que a humanização da saúde não é como o contrário de desumano ou inumano, mas humanizar como a construção das condições de atuações e de emergência de trabalhadores e usuários protagonistas, autônomos e corresponsáveis, assim como propõe a Política de Humanização.
A PNH é, portanto, uma política do SUS. Também chamada de HumanizaSUS, a PNH emerge da convergência de três objetivos centrais: (1) enfrentar desafios enunciados pela sociedade brasileira quanto à qualidade e à dignidade no cuidado em saúde; (2) redesenhar e articular iniciativas de humanização do SUS e (3) enfrentar problemas no campo da organização e da gestão do trabalho em saúde que têm produzido reflexos desfavoráveis tanto na produção de saúde como na vida dos trabalhadores (Pasche, Passos, & Hennington, 2011, p. 4542).
Segundo Pasche, Passos e Hennington (2011), a Política de Humanização tem o sentido reformar, reviver as formas instituídas no campo das práticas de saúde, o que impõe um questionamento do modelo tecnoassistencial e da qualidade de atenção à saúde. Segundo o Ministério da Saúde (2005), o acolhimento é um elemento fundamental para uma atenção de qualidade e humanizada aos pacientes. Trata-se de tratamento digno e respeitoso, escuta direcionada, aceitação das diferenças e respeito à decisão do paciente.
O conceito de cuidado no qual nos baseamos diz respeito ao modo de interação nas práticas de saúde, no campo institucional dos profissionais de saúde da mulher. Assim, entre as práticas assistenciais e o atendimento às pacientes existe a possibilidade de um diálogo aberto e produtivo entre o profissional da saúde e a usuária (Ayres, 2004).
Os efeitos psicológicos mais comuns do aborto são impulsos suicidas, abandono, perda da fé, baixa autoestima, preocupação com a morte, hostilidade e raiva, desespero/desamparo, frustração do instinto maternal, mágoa e sentimentos ruins em relação às pessoas ligadas à situação, desejo de terminar o relacionamento com o parceiro, perda de interesse sexual, frigidez, pesadelos, tonturas e tremores (Jones, Darroch, & Henshaw, 2002).
Segundo Broen et al. (2005), o aborto, quando provocado, pode trazer consequências como ansiedade, depressão, culpa e vergonha por até cinco anos. De acordo com esta pesquisa, os abortos naturais causam depressão e ansiedade apenas durante os seis primeiros meses depois da perda do bebê, enquanto os abortos provocados têm um efeito mais negativo psicologicamente e mais duradouro.
Ao entender a relação cuidador-paciente diante de uma situação na qual há dilemas éticos como o aborto, percebe-se a associação de sentimentos como medo, culpa e preconceito. É possível criar instrumentos teórico-práticos capazes de ajudar no vínculo dos profissionais com as pacientes para que seus atendimentos sejam prestados de uma maneira singular, propiciando a ressignificação do sentido de acolhimento pelos profissionais da saúde. Segundo Marco (2003), a inserção do psicólogo dentro da equipe de ginecologia e obstetrícia no setor de UBS, ambulatórios e no hospital especializado tem por função a configuração de aspectos de complementaridade, articulação de procedimentos de cuidado e acolhimento, reintegração da dimensão psicológica e social, contribuindo para compreensão da saúde mental da equipe/usuária, adotando como lei máxima a Saúde e o respeito à mulher como ser humano integral (Ávila, 1998).
A partir do panorama exposto, este estudo teve por objetivo investigar e conhecer as representações dos profissionais da Saúde Pública sobre o cuidado e o acolhimento prestados às mulheres em situação de abortamento.
MÉTODO
O presente estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório. Foram realizadas dez entrevistas semidirigidas com profissionais da área de ginecologia e obstetrícia do setor da Unidade Básica de Saúde (UBS) e de uma maternidade especializada do interior do Estado de São Paulo, na qual havia o maior número de ocorrências de atendimento de aborto registradas pela secretária da saúde.
Após o Projeto ser aprovado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação (CEPPE) da Universidade Paulista (UNIP) e pela Secretaria Municipal da Saúde, deu-se início à busca de informações para a elucidação do fenômeno investigado. Foram utilizadas como instrumento de coleta de dados as entrevistas semiestruturadas com caráter exploratório, com a utilização de um roteiro que possibilitou questões espontâneas durante a entrevista. Este tipo de entrevista foi escolhido por deixar o entrevistado falar livremente sobre o assunto que surgiu como desdobramento do tema (Gil, 1999). As entrevistas foram realizadas individualmente com profissionais do setor de ginecologia e obstetrícia da área médica e da enfermagem. Estes profissionais foram selecionados pelo gerente da Unidade Básica de Saúde e pela coordenadora da maternidade, mas suas participações foram espontâneas. As entrevistas aconteceram em um local confortável e silencioso. Foi explicado de forma clara qual era o objetivo deste estudo e, após seu entendimento e autorização, dava-se início à entrevista.
O procedimento adotado para a análise de dados foi a técnica de análise qualitativa por meio da análise de conteúdo. De acordo com Gil (1999), a Análise de Conteúdo é uma técnica que determina objetividade, sistematização e inferência. Foi realizada a leitura das falas por meio das transcrições das entrevistas, objetivando relacionar estruturas semânticas com estruturas sociológicas. Desta forma, foram criadas categorias capazes de caracterizar as respostas obtidas nas entrevistas, procurando os significados que se mostram ocultos, visando à compreensão do fenômeno investigado (Moreira, 2002).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Contextualização do campo da pesquisa
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2007), o ideal é que a porta de entrada do sistema de saúde seja preferencialmente a atenção básica, na qual é feita a triagem e encaminhamento se necessário. Os atendimentos nas UBSs são agendados com antecedência. No entanto, quando uma paciente chega se sentindo mal com risco e/ou suspeita de aborto, ela é atendida imediatamente.
Nas UBSs pesquisadas, os procedimentos iniciais na ginecologia e obstetrícia são feitos pelos profissionais da área de enfermagem e consistem em orientação, acompanhamento pré-parto nas consultas e nos exames e grupos. Após serem atendidas nas UBS, as pacientes são transferidas para os hospitais especializados, as maternidades, onde são feitos todos os procedimentos necessários.
A maternidade onde o estudo foi realizado é responsável pelos atendimentos emergenciais com risco de aborto enviados pelas UBSs, por um terço dos partos realizados pelo SUS, atuando em casos de baixo risco, atendimento pré-natal que facilita o processo de parto, familiarizando a gestante com a estrutura do hospital e permitindo a permanência de um acompanhante na hora do nascimento. Possui, ainda, um centro de planejamento familiar, que desenvolve atividades educativas para a escolha de métodos anticoncepcionais e está credenciada para realizar laqueaduras e vasectomias.
Atendimento às mulheres
Nesta categoria podemos perceber que os atendimentos são realizados de forma técnica, em função do conhecimento adquirido a partir da formação profissional. Segundo os participantes da pesquisa, não existe diferença no atendimento prestado a pacientes que sofreram um aborto espontâneo ou provocado.
Para uma melhor compreensão, apresentamos as respostas dos entrevistados:
É realizado o exame especular e de toque para avaliar o caso de abortamento. Em seguida, os casos sem complicações são encaminhados à maternidade e se há alguma complicação do aborto ou doença materna grave ou descontrolada, pode ser encaminhada à Unidade de Emergência. (Entrevistado 5)
O atendimento para mim em qualquer lugar é o mesmo, o que é variado é a maneira como vai encaminhar e conduzir. (Entrevistada 4)
O que importa é salvar a vida da mãe que pode estar em jogo. (Entrevistada 9)
Essa triagem de aborto provocado ou espontâneo não é feita aqui, a paciente chega e nem é questionado se é aborto ou não, elas já vão para a sala de curetagem. Essa abordagem de se foi você que provocou é tratado como espontâneo, não é questionada com ela. (Entrevista 7)
De acordo com as falas apresentadas, nos serviços de saúde prestados pelos profissionais de saúde na área de ginecologia e obstetrícia, tanto na UBS quanto na maternidade, não há questionamento da etiologia do aborto (espontâneo ou induzido) durante o atendimento a mulheres que estão sofrendo ou já sofreram aborto, sendo assim todas tratadas com o mesmo procedimento técnico.
Este procedimento de não questionar qual é a etiologia do aborto pode derivar de uma recomendação da Norma Técnica intitulada: "Atenção Humanizada ao abortamento", elaborada pelo Ministério da Saúde, quanto ao sigilo profissional:
Diante de abortamento espontâneo ou provocado, o(a) médico(a) ou qualquer profissional de saúde não pode comunicar o fato à autoridade policial, judicial, nem ao Ministério Público, pois o sigilo na prática profissional da assistência à saúde é dever legal e ético, salvo para proteção da usuária e com o seu consentimento (Brasil, 2005, p. 14).
Observou-se que a atuação profissional de saúde está em dois extremos de uma faixa, como num espectro de vida e de morte. O profissional da ginecologia e obstetrícia está vinculado à vida, ou seja, trazer um novo ser para a vida; no entanto, com o aborto é o inverso, sendo dada a concretude da morte antes mesmo de chegar a viver. Lidar com finitude e impotência juntamente a fatores pessoais como crenças, valores e princípios do profissional pode ser uma situação conflituosa. Dentro desse aspecto das falas expostas, nota-se que há uma conduta de não questionar a etiologia do aborto, recomendada pelo Ministério Público, a qual podemos entender como uma forma de fortalecer sua atuação e evitar juízo de valores, aconselhamento, condicionar ou qualquer atitude que não seja o fazer o que é esperado, o atendimento voltado à técnica, não entrando em contato também com o aspecto emocional da paciente e da própria equipe. Segundo Kovács (1992), a tomada de consciência da morte, da finitude do ser humano, constitui-se em outra ferida ainda mais aterrorizante no caso do aborto que entra em contato com convicções internas e diversos sentimentos.
Cuidado e acolhimento
Cuidar e acolher são atitudes práticas frente ao sentido que as ações de saúde adquirem nas diversas situações, isto é, uma interação entre dois ou mais sujeitos visando o alívio de um sofrimento ou o alcance de um bem-estar, sempre mediada por saberes especificamente voltados para essa finalidade (Ayres, 2004).
As ações de cuidado e acolhimento são colocadas em prática no momento em que são realizados os atendimentos. Foi possível identificar que os profissionais entrevistados entendem cuidados e acolhimento de maneiras diferentes.
Como realizado na categoria anterior, seguem as falas dos profissionais:
Não há nenhum acolhimento ou cuidados específicos para tais casos, como psicóloga ou assistente social. Todos os cuidados e notícias são dados pelo médico e equipe de enfermagem. (Entrevistado 5)
São todas acolhidas. […] A gente pergunta o tipo de sangramento, se o sangramento é vermelho vivo ou sangramento escuro, detalhes do que aconteceu não, essas coisas elas contam para o médico, mas se é sangramento são todas acolhidas. (Entrevistada 2)
Mas a gente tenta ser o mais sensível com a paciente, pois o momento é triste, né? Então, nosso acolhimento é com carinho, com respeito. (Entrevistada 8)
As falas acima demonstram uma concepção de cuidado com aspecto técnico, não proporcionando a relação de cuidado humanista da atenção à saúde, na busca da escuta dirigida à urgência subjetiva da mulher. Em nenhuma das falas foi possível perceber essa busca da escuta, apenas a priorização do cuidado baseado em procedimentos técnicos.
De acordo com Ayres (2004), a consolidação da proposta mais ampla de cuidado e acolhimento depende de uma transformação bastante radical no modo de pensar e fazer saúde e na forma de compreender que cuidar e acolher vai além dos procedimentos técnicos.
Compreendemos que estar mais próximo da paciente que necessita de cuidados intensivos imprime um significado peculiar à atuação profissional, proporcionar um ambiente bom, no sentido de favorecer o amadurecimento emocional e sustentar a dor da perda, luto, culpa e do medo da mulher que está em abortamento ou vivenciou o aborto (Ambrosio & Vaisberg, 2009).
Compreensão dos profissionais em relação ao sofrimento
O processo de abortamento é, para muitas mulheres, desconfortável e doloroso, necessitando, portanto, de atenção adequada para o controle da dor. Situações emocionais influenciam na percepção da mulher em sentir a dor e podem dificultar seus cuidados.
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2005), quando as mulheres chegam aos serviços de saúde em processo de abortamento, sua experiência é física, emocional e social. Geralmente, elas verbalizam as queixas físicas e calam-se sobre suas vivências sociais e sentimentos.
Dessa forma, o abortamento desencadeia nas mulheres inúmeros sentimentos e percepções, físicas e/ou psicológicas, variando de acordo com as características individuais. De acordo com as entrevistas realizadas, foi possível perceber que, de maneira geral, os profissionais de saúde entrevistados identificam as dores e os sofrimentos causados pelo aborto.
Seguem algumas das falas dos profissionais de saúde entrevistados:
Quando a pessoa já chega com um processo de aborto, a gente tem que lidar com algumas coisas: frustração, culpa. A paciente se sente culpada pelo que aconteceu, busca uma explicação, quer saber o porquê aconteceu isso… Lógico, estamos falando de um aborto espontâneo, né? E nem sempre estamos… temos essas respostas e isso deixa a paciente mais angustiada; porque a maioria dos abortos tem causas desconhecidas. (Entrevistada 4)
Essa situação é muito difícil. A gente sente o sofrimento, né? Da pessoa que chega. É uma gravidez que já tem uma expectativa em cima daquilo; às vezes, já comprou as coisa dela, do neném, já montou o quarto, às vezes... é frustrante. (Entrevistado 9)
Pela expressão dela a gente percebe, assim, quando a mulher esta sofrendo [...] (Entrevistada 1)
Pode-se perceber nas falas dos profissionais que participaram das entrevistas, que há uma compreensão dos sofrimentos destas mulheres que tiveram aborto espontâneo, como sentirem-se frustradas, fragilizadas, mas não aparece na fala o sofrimento da mulher que teve o aborto induzido.
Frente a estas dificuldades em perceber a dor da paciente que sofre o aborto induzido, compreende-se como um mecanismo de defesa, "existem várias possibilidades de ocultamento, tanto culturais quanto psicológicas" (Kovács, 1992, p. 2). O aborto desencadeia muitos sentimentos, preconceitos, discriminações e também valores religiosos e crenças muito pessoais que podem atravessar a prática profissional.
No entanto, observou-se que, no aborto, seja provocado ou não, existe por trás um sofrimento e uma dor, segundo Pessini (2009), em várias dimensões, ou seja, física, social, psíquica, emocional e espiritual. A assistência à saúde deve enfatizar a necessidade imperiosa de cuidado solidário que une competência técnica-científica e humanitária, principalmente naquelas situações extremas como o tema abordado neste estudo (Pessini, 2009).
Trabalho multidisciplinar e interdisciplinar na equipe
Ao longo do desenvolvimento da psicologia enquanto profissão, nota-se que desde sua regulamentação, por volta da década de 1970, iniciam-se demandas por trabalhos psicológicos sobre uma nova perspectiva que abrange o ser humano em sua totalidade (Maia, Silva, Martins, & Sebastiani, 2005).
Face à importância deste tema na atualidade, destaca-se a noção de que a assistência à saúde demanda participação interdisciplinar, pois nenhuma categoria profissional consegue contemplar, por si só, a totalidade humana na vivência do processo saúde-doença (Hoga, 2004). A inserção do psicólogo seria de grande importância. Muitos dos entrevistados relataram o trabalho do psicólogo nesse contexto, como apresentado a seguir:
[...] pessoa que é mais preparada, que sabe onde vai atuar naquela paciente. A gente fala o que vem do coração. O psicólogo sabe o que falar, como falar. (Entrevistada 9)
Ah, eu vejo como algo positivo que a gente percebe que a gente esta dando um atendimento diferenciado a paciente, e essa paciente estaria sendo beneficiada com isso, né? Teríamos um beneficio em cima disso, e a paciente teria vários profissionais para cuidar dela, que agente como medico não tem um preparo para dar apoios específicos, acho que temos pessoas qualificadas para isso. (Entrevistado 8)
Ajuda muito, ele é responsável pela escuta e acolhimento necessários as mulheres. (Entrevistado 9)
[…] a gente tem um psicólogo que fica aqui durante o dia. A gente vê que quando… que com a ajuda da psicóloga elas melhoram muito mais. Ainda mais aqui que a população é mais carente, esse tipo de atendimento é muito bom. Eu acho muito importante porque a alteração que a gravidez provoca é muita e nem sempre elas estão preparadas para isso e um psicólogo ajuda muito. (Entrevistada 7)
Deve ter um psicólogo, eu acho que sim, como toda a equipe, um ajudando o outro... E todo mundo aqui conversa bastante, é importante ter um dialogo na equipe, cada um tem sua função e pode complementar. (Entrevistada 10)
O reconhecimento de que as condições nas quais se encontram o corpo afetam a totalidade do individuo, a presença de uma equipe incorpora à dimensão que ultrapassa o objeto de conhecimento e de habilidade. Assim, segundo Costa (2004), o profissional deve observar além do caso a tratar, mas captar a totalidade da mulher na situação de abortamento. A presença da equipe multidisciplinar/interdisciplinar representa a possibilidade de integração dos conceitos que envolvem todo o manejo no atendimento à mulher (Pessini, 2009).
Segundo Marco (2003), há um grande número de pessoas para serem atendidas num curto espaço de tempo e, somado a outros fatores, temos vivenciado a crescente aceleração dos processos de atendimentos, que repercutem na questão da escuta dos pacientes. Devido ao grande número de usuários da saúde a serem atendidos, os profissionais não têm tempo para se dedicar à escuta das mulheres.
Um psicólogo na equipe de saúde pode colaborar para essa escuta e para a compreensão dos processos interpessoais, utilizando enfoque preventivo, de cuidado e acolhimento. Para Hoga (2004), a participação de vários profissionais na assistência à saúde propicia o envolvimento de todos os componentes da equipe com a assistência e favorece melhor disponibilidade dos profissionais diante de seus clientes.
A presença do psicólogo na equipe não será somente para o cuidado da paciente, mas, também, para o acolhimento e cuidado de todos os componentes da equipe, no que diz respeito a sua saúde psíquica promovendo, assim, um atendimento mais humanizado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao entrar em contato com os profissionais de saúde pública pudemos conhecer as representações desses profissionais quanto ao atendimento prestado às mulheres em abortamento. Não é possível falar em aborto sem lidar com questões éticas, legais, concepções pessoais e desafios profissionais.
A partir dos relatos dos entrevistados, foi possível perceber que os atendimentos prestados às mulheres em abortamento se dão de forma técnica. A maioria dos profissionais investigados demonstra evitar pensar nos aspectos legais quando de um aborto induzido, principalmente por estarem protegidos pelo código de ética profissional quanto ao sigilo das informações.
Devido ao aborto ser um tema polêmico e carregado de preconceito, antes de ser alvo de atuação profissional ele passa por uma questão pessoal e por convicções internas que foram construídas ao longo da vida. Apesar de a maioria dos entrevistados se dizerem contra a legalização do aborto induzido, afirmam não levarem suas opiniões para a sala de atendimento, deixando em suspenso suas crenças pessoais e tendo como base para os serviços prestados as complicações de saúde e o sofrimento de cada paciente. Esses profissionais identificam os sofrimentos acarretados pelo aborto e entendem o cuidado e o acolhimento como o ato de proferir palavras de conforto às pacientes, sem questionamentos sobre a etiologia do aborto e sem perceber os sofrimentos trazidos pelo aborto induzido.
A relevância deste artigo centra-se na possibilidade de despertar reflexões sobre o cuidado, o acolhimento e dispor de uma escuta ativa dirigida à urgência subjetiva da mulher, questões que vão além do conhecimento científico e de procedimentos técnicos, envolvendo percepções, sentimentos, ética, dentre outros, como uma possibilidade de implantação de uma equipe multiprofissional para que se tenha um atendimento com maior qualidade e uma diversidade de "olhares" e saberes. Desse modo, espera-se contribuir para a construção de um atendimento mais humanizado, conforme propõe o Ministério da Saúde.
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Endereço para correspondência
Mariana Gondim Mariutti
E-mail: mgmariutti@yahoo.com.br
Recebido em 31/05/2012.
1ª Revisão em 15/07/2012.
2ª Revisão em 31/07/2012.
Aceite Final em 10/08/2012.
1 Ana Silvia Sandoval de Freitas Barbosa é psicóloga pela Universidade Paulista, Ribeirão Preto (UNIP).
2 Jacqueline Aparecida Cosmo Bobato é psicóloga pela Universidade Paulista, Ribeirão Preto (UNIP).
3 Mariana Gondim Mariutti é enfermeira, Mestre e Doutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP). Professora da Faculdade Libertas – Minas Gerais.