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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.15 no.1 Ribeirão Preto  2014

 

ARTIGOS

 

As vivências do luto e seus estágios em pessoas amputadas

 

The experience of mourning and its stages among amputated people

 

Las experiencias de dolor y sus etapas en amputados

 

 

Renata Seren1; Rafael De Tilio2

Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A amputação de um membro corporal causa impactos na vida da pessoa envolvendo mudanças afetivas (tristeza, sensação do membro-fantasma e luto). O objetivo deste estudo foi investigar como pessoas que sofreram amputações lidam com a perda de um membro físico e como vivenciam o processo de luto. Foram entrevistadas quatro pessoas amputadas (média de idade de 56,5 anos), pacientes de um centro de reabilitação em Uberaba, Minas Gerais. A análise realizada foi de conteúdo temático, cujos principais resultados foram: diferentes reações à notícia da amputação, relatos de permanência de dor no membro-fantasma anos após a amputação e diferentes perspectivas de futuro. O luto pela amputação deve ser compreendido como um processo dinâmico, e não como um estágio, dependente das condições individuais e sociais dos amputados e envolvendo consequências psicológicas complexas.

Palavraschave: luto, amputação, membro-fantasma


ABSTRACT

The amputation of a body part has an impact on a person's life involving affective changes (sadness, phantom limb and bereavement). The aim of this study was to investigate how amputees deal with the loss of a body part and their grieving process. Four amputees (mean age 56.5 years), patients of a rehabilitation center Minas Gerais/Brazil, were interviewed. A thematic content analysis was conducted, and the main findings were: different reactions when receiving the news of the amputation, reported persistence of phantom limb pain several years after amputation and different living prospects. The grieving process due to the amputation should be understood as a dynamic process, not as a stage, depending on individual and social conditions of amputees involving complex psychological consequences.

Keywords: mourning, amputation, phantom limb


RESUMEN

La amputación de un miembro del cuerpo tiene un impacto en la vida de una persona que implica cambios afectivos (tristeza, miembro fantasma y el duelo). El objetivo de este estudio fue investigar como amputados lidan con la pérdida de un miembro físico y el proceso de duelo. Cuatro amputados (edad media 56,5 años), pacientes de un centro de rehabilitación en Minas Gerais/Brasil, fueron entrevistado. El análisis de contenido concluyo: diferentes reacciones a la noticia de la amputación, persistencia del dolor del miembro fantasma después de años de amputación y diferentes perspectivas. El duelo por la amputación debe ser entendida como un proceso dinámico, no como una etapa, depende de las condiciones individuales y sociales de los amputados que implican consecuencias psicológicas complejas.

Palabras clave: duelo, amputación, miembro-fantasma


 

 

O presente estudo se debruça sobre o tema do luto e as consequências psicológicas em indivíduos que o vivenciam após a perda de um membro devido à amputação. Oliveira (2004) afirma que, perante uma incapacidade física, tal como uma amputação, o sujeito pode desenvolver comportamentos agressivos, além de apresentar o isolamento social e a perda da autoestima, sendo que estes podem ser manifestações do processo de luto.

Gabarra e Crepaldi (2009), ao comentarem o estudo realizado por Parkes (que comparou o processo de luto em pessoas amputadas e a vivência do luto em viúvos), concluíram que em ambos os casos os sujeitos apresentaram o choque e a negação no início do processo de luto. No entanto, com o passar do tempo, tal comportamento diminuiu entre os viúvos à medida que eles retornavam ao trabalho, enquanto os amputados não apresentavam resultados semelhantes e continuavam envolvidos com a perda do membro corporal. Parkes (1998) comenta que embora em ambos ocorra uma perda seguida do processo de luto, o luto devido à perda de um membro não é aceito socialmente como o luto pela morte de um ente querido.

Kovács (2008) argumenta que a perda (nominalmente em casos de morte) envolve diversos sentimentos e a expressão destes é essencial no processo de elaboração do luto. Segundo esta autora, na atualidade, as pessoas são ensinadas a controlarem-se e a não demonstrarem demais seus sentimentos. Esta inibição e a não expressão dos sentimentos podem levar o indivíduo a uma cronificação do processo de luto por morte, que pode tornar-se patológico. O aumento do número de mortes devido à violência urbana também contribui para a dificuldade em lidar com o luto em geral, quando diversas notícias repetidas sobre o mesmo assunto levam à banalização da perda, sendo esta mais um acontecimento comum cotidiano. Kovács (2010) define a morte como um vínculo rompido. Este processo envolve duas pessoas: a que morre e a que lamenta, sendo que a última tende a internalizar a primeira em forma de lembranças. Combinato e Queiroz (2006) discutem a questão da morte como algo natural que faz parte do processo de vida. No entanto, as pessoas imprimem simbologias aos eventos e aos objetos, o que leva a morte a possuir diversos significados dependendo do contexto social, histórico e cultural no qual o indivíduo encontra-se inserido.

Assim, historicamente, com o avanço do capitalismo na era moderna, a morte é deslocada para o ambiente hospitalar. Devido ao risco de vida extremo, o paciente é mantido em um local isolado, ambientado artificialmente e controlado por equipamentos produzidos para manter a vida, ainda que esta seja unicamente mecânica (Oliveira, 2002). Na busca constante para a manutenção da vida e evitar perdas, a morte é negada, adquire sinônimo de fracasso e buscam-se maneiras de tentar vencê-la, como o avanço de tecnologias referentes à medicina com o desenvolvimento de máquinas e medicamentos (Combinato & Queiroz, 2006).

Para Falkenbach (2009), o corpo é sinônimo de identidade. O corpo é um meio de contato físico e social do indivíduo com o meio externo, a imagem corporal do sujeito está relacionada com suas potencialidades e limitações. Quando ocorre uma amputação há a perda não só do membro, mas também da função e da sensação relacionadas a ele. É neste contexto que pode haver relações entre amputação, perdas e morte (simbólica, de uma parte do corpo) e luto, surgindo relatos de membro e de dor fantasma, ou seja, a sensação de ainda possuir o membro, mesmo sabendo que ele não existe mais. Para Goellner e Paiva (2008), a perda real de um membro do corpo é também a morte simbólica de um projeto de vida e de transformação na identidade do sujeito.

Estimativas do Ministério da Saúde (2013) apontam que, em 2011, 49.165 pessoas tiveram algum membro corporal amputado. A causa mais relatada são causas externas (acidentes, doenças e procedimentos cirúrgicos necessários), com uma frequência de 33,1% do total de casos. O diabetes aparece na quarta posição, com índice de 13,6%. Tais números apontam relevância para a pesquisa nesse tema. Sendo assim, a possibilidade de investigar mais a respeito deste tema pode auxiliar positivamente profissionais de saúde e até mesmo os próprios indivíduos que lidam com o luto da amputação e também seus familiares.

Há diversos estudos a respeito do luto, como o clássico texto de Freud, "Luto e Melancolia", de 1915 e publicado em 1917 (Freud, 1917/2006), até investigações como a de Kübler-Ross (2008) que discorre sobre os cinco estágios do luto. Gabarra e Crepaldi (2009), a partir de um levantamento bibliográfico sobre aspectos psicológicos da cirurgia de amputação e suas consequências, apontam a importância de entender o processo de luto para poder lidar com ele de maneira mais adequada e saudável, evitando psicopatologias relacionadas ao luto, como, por exemplo, a depressão.

Freud (1917/2006) escreveu que "O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante" (p. 249 – grifo nosso). Completando, o luto profundo para Freud (1917/2006) seria reação à perda de um objeto e a perda de interesse pelo mundo externo, havendo uma incapacidade de adotar um novo objeto de amor: ao deparar-se com a realidade, o indivíduo percebe que o objeto amado não existe mais e sua libido deve ser retirada daquele objeto. Tal necessidade de desvencilhar seu interesse do objeto de amor provoca uma oposição, esta que, em casos extremos, o sujeito pode apresentar um desvio da realidade, caracterizada pela psicose alucinatória como meio de ter novamente o objeto. Sendo assim, a energia libidinal busca atender ao princípio de realidade e, aos poucos, ocorre o desligamento da libido do objeto de amor perdido até que o luto esteja concluído e o ego se torna livre para ligar-se novamente a outro objeto. Desta maneira, o aspecto patológico ao luto pode ser explicado através da autorrecriminação, a partir da qual a pessoa enlutada sente-se culpada pela perda do objeto amado.

Segundo Kovács (2008), a perda envolve sentimentos, e a expressão destes é essencial no processo de elaboração do luto. Para a autora, há o padrão da ética e do bom comportamento na atualidade, no qual as pessoas são ensinadas a controlarem-se e a não demonstrarem demais seus sentimentos. Este padrão tem repercussões críticas no processo de luto, no qual o sujeito passa a negar a morte e a esconder sua tristeza por qualquer perda. A inibição e a não expressão dos sentimentos podem levar o indivíduo a uma cronificação do processo de luto, tornando-o patológico. Outro fator que pode levar à cronificação do luto é o tipo de morte ou perda: acidentes e suicídios ligados à violência podem causar maior impacto na vida do enlutado.

Diante do exposto, depreende-se que a o luto não se restringe aos episódios de morte de pessoas, envolvendo uma ampla gama de situações e objetos, tais como membros do corpo e, por isso, as formulações de cunho psicanalítico de Kübler-Ross (2008) sobre os estágios do luto poderiam ser extensíveis às vivências de luto por amputação de membro físico. Para Kübler-Ross (2008) os cinco estágios do luto seriam: 1) negação e isolamento (defesa inicial ao se recusar a aceitar a perda ou até mesmo falar sobre o assunto da morte ou perda); 2) raiva (sentimentos de raiva e ira em sinais de agressão ao meio externo ou a si próprio para tentar compensar a perda); 3) negociação (início da aceitação da perda ao tentar negociá-la e ter esperanças de procrastinar a morte); 4) depressão (compreensão da morte ou perda como uma certeza e tristeza em encarar a real situação; a depressão acontece como uma preparação para aceitar a perda do objeto amado); e 5) aceitação (aceita a questão da mortalidade ou das limitações; neste momento há uma tranquila expectativa para a morte ou compreensão da perda). Há de se ressaltar que a transição entre essas fases não se dá necessariamente de maneira linear e progressiva, mas sim de maneira dinâmica, permitindo recuos e avanços dependendo de cada indivíduo (Gabarra, 2010).

Sendo assim, a duração do processo de luto não pode ser estimada (e quantificada) temporalmente de maneira antecipada, já que as respostas variam em cada sujeito. O luto é avaliado qualitativamente, considerando-o normal ou patológico por meio do comportamento do indivíduo em relação ao objeto perdido; no luto normal o sujeito sente-se triste, mas preserva o princípio de realidade, encaminhando-se para a superação, enquanto no luto patológico a pessoa apresenta dependência em relação ao objeto perdido e não consegue desvencilhar-se da perda sofrida (Freud, 1917/2006).

Um indivíduo em processo de luto, com o tempo, consegue elaborar a perda e tem a consciência da limitação, passando a organizar um novo projeto de vida. É importante salientar que a capacidade do indivíduo em aceitar a mudança no projeto de vida original, adaptar-se às novas limitações e investir em si próprio são elementos essenciais no processo de reabilitação, visto que se trata do estabelecimento da qualidade de vida destes indivíduos (Galhordas & Lima, 2004; Milioli, Vargas, Leal, & Montiel, 2012).

Especificamente sobre a amputação, que significa remover ao redor, ela pode ser definida como a retirada total ou parcial de um membro ou parte do corpo por meio de um procedimento cirúrgico. O procedimento cirúrgico de amputação ocorre em casos necessários devido a acidentes, tumores, infecções ou diabetes (Bittencourt, 2006; Gabarra, 2010). Segundo Carvalho (2003), geralmente, doenças vasculares são a causa principal de amputação de membro inferior, enquanto traumas e tumores são responsáveis pelas amputações de membro superior.

Sentimentos de medo diante da nova imagem corporal, receio da não aceitação dos outros e as limitações da nova realidade devido à perda são fatores que perpassam a mente de sujeitos submetidos ao procedimento cirúrgico de amputação (Bittencourt, 2006; Gabarra & Crepaldi, 2009). Embora a amputação seja algo ocorrido no corpo físico, há questões psicológicas envolvidas, deste modo, as razões para o sucesso ou insucesso em lidar com a amputação dependem de fatores individuais e variam de caso para caso (Oliveira, 2000; Gabarra & Crepaldi, 2009).

Para Falkenbach (2009), o corpo é sinônimo de identidade. Segundo este autor, o conceito de identidade encontra-se relacionado com as vivências sensoriais dos indivíduos, de modo que o sujeito cria uma imagem de si próprio de acordo com suas visões de mundo. Sendo o corpo um meio de contato físico e social do indivíduo com o meio externo, a imagem corporal do sujeito está relacionada com suas potencialidades e limitações. Boemer e Chini (2007) e Ismael e Oliveira (2008) destacam que na vivência de uma amputação há alterações biopsicossociais, além de possuir estigmas referentes à deficiência devido à perda do membro. A cirurgia de amputação se faz necessária, mas a perda de uma parte do corpo é negada. É nesse contexto que aparecem relatos do membro fantasma, no qual o membro perdido continua presente na vida do amputado através da sensação, como modo de restaurar a parte que falta.

O membro fantasma é a relação entre o que se vê e sente no corpo e o que é percebido no psiquismo. O membro fantasma acaba sendo o efeito de uma tentativa de readaptação da mente à ausência de uma parte do corpo, já que antes este era completo, ou seja, ainda há a representação do membro amputado no córtex cerebral e, consequentemente, a sensação corporal. A dor fantasma pode ser um incômodo, uma queimação ou uma dor frequente. Geralmente, a dor é mais comum após a amputação, mas pode persistir e aparecer mesmo depois de anos (Demidoff, Pacheco, & Sholl-Franco, 2007).

A dor fantasma é associada ao membro e diz respeito a aspectos psicológicos, aparecendo de forma mais intensa em casos de perda traumática do membro amputado. Sentimentos de negação e comportamentos reativos de agressividade devem ser entendidos como um foco da terapia. O sucesso terapêutico também depende de fatores biopsicossociais, como episódios depressivos, apoio familiar e condição social, dentre outros (Machado, 2008; Resende, Cunha, Silva, & Sousa, 2007; Milioli et al., 2012).

Tavares (2003) diz que "a imagem corporal é a maneira pela qual nosso corpo aparece para nós mesmos. É a representação mental do nosso próprio corpo." (p. 27). Sendo assim, o corpo possui aspectos fisiológicos, psicológicos, sociais e ambientais e a imagem corporal representa o nosso eu e envolve aspectos conscientes e inconscientes sobre a identidade e as relações do eu com o mundo. Portanto, a imagem corporal é um fenômeno único e subjetivo, formado pelas experiências e percepções do indivíduo sobre ele mesmo.

A imagem de corpo "maquinicista" pode ser observada na atualidade no avanço da tecnologia voltada para a área da medicina. O corpo assume uma imagem fracionada ao considerar as possibilidades de reabilitação de um sujeito que tenha perdido algum membro, por exemplo. No caso da amputação, existem próteses que funcionam como substitutos do membro, e estas reintegram a imagem de corpo completo e perfeito segundo os padrões sociais (Le Breton, 2002).

Segundo Oliveira (2000), a tomada de consciência sobre a amputação acontecerá com o tempo, e torna-se mais aparente quando o sujeito começa a reabilitação, na qual a realização de diversas atividades e o confronto com sua nova adaptação corporal o levam a redescobrir-se. A confrontação com a nova imagem corporal e com as limitações pode gerar angústia, que ativa mecanismos de defesa do indivíduo, como a negação, para lidar com a situação.

Oliveira (2004) diz que, perante uma incapacidade física, o indivíduo tem que lidar com uma situação nova em diversas áreas da sua vida, tanto a pessoal, quanto a social e também a profissional. A nova realidade pode ser desintegradora para o sujeito, de modo que este utiliza mecanismos de defesa egoicos, como a negação, projeção, regressão, formação reativa, entre outros, para lidar com a perda sofrida. Comportamentos agressivos, isolamento social, perda da autoestima e impacto na identidade da pessoa também podem ser observados. Psicopatologias podem emergir devido à perda de um membro, e elas são diversas, complexas e difíceis de diagnosticar antecipadamente, como no caso de um transtorno depressivo que pode seguir o processo de luto (Oliveira, 2000).

Diante de todo o exposto, o presente estudo teve como objetivo investigar como as pessoas que sofreram amputações lidam com a perda de um membro físico e como eles vivenciam esse processo de luto.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho descritivo. Foram entrevistados quatro sujeitos amputados, pacientes do Centro de Reabilitação Prof. Dr. Fausto da Cunha Oliveira, em Uberaba, Minas Gerais, entre junho e setembro de 2013.

Participantes

Para o presente estudo foram entrevistados quatro sujeitos em tratamento no Centro de Reabilitação Prof. Dr. Fausto da Cunha Oliveira, em Uberaba/Minas Gerais. Este local é vinculado à Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e oferece serviços de fisioterapia, psicoterapia e terapia ocupacional para pacientes em reabilitação física, atendidos no local através do Sistema Único de Saúde (SUS). A participação dos entrevistados foi voluntária, de modo que todos os cinco amputados do Centro que naquele momento estavam em tratamento foram convidados a participar, e apenas um sujeito que estava em reabilitação não quis fazer parte do estudo.

Procedimentos de coleta e análise dos dados

Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da UFTM. Após isso, sujeitos foram procurados pelos pesquisadores a partir de seus contatos pessoais e profissionais (amostra de conveniência) no próprio Centro de Reabilitação e convidados a participar desse estudo. Os que se interessaram foram novamente contatados pelos pesquisadores para agendamento das entrevistas, que ocorreram nas dependências do próprio Centro de Reabilitação. No momento das entrevistas, os sujeitos reatualizaram suas disponibilidades de participação e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), passando a responder a uma entrevista semiestruturada composta de dez questões, aplicada individualmente entre os meses de junho e setembro de 2013. Esta abordou questões referentes à reação da pessoa frente à nova situação de amputação, suas sensações de membro-fantasma, a visão sobre si e a possibilidade de um projeto de vida após a amputação do membro.

A técnica para organização da análise dos dados utilizada foi a análise de conteúdo temática das respostas dos sujeitos à pesquisa. Bardin (2010) define análise de conteúdo como "um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens" (p. 38). Deste modo, a vivência do processo de luto na perda (amputação) de um membro foi analisada por meio da construção de categorias que condensam depoimentos e significados das falas dos pacientes entrevistados, principalmente a partir de uma perspectiva teórica psicanalítica (Freud, 1917/2006; Gabarra, 2010; Kübler-Ross, 2008).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados apresentados sugerem a fase do luto na qual cada um dos entrevistados podem se encontrar com base nos argumentos de Kübler-Ross (2008), além de mostrar a vivência que cada um tem do luto, considerando o momento da entrevista. Os sujeitos são representados por números, a fim de manter o sigilo, e a identificação/caracterização de cada um está na Tabela 1.

 

 

O sujeito 1 é um homem de 78 anos de idade que teve a perna amputada há três anos por causa de uma trombose; ele mostrou-se disposto a participar da pesquisa, mas durante a entrevista falou pouco e era extremamente pontual em suas respostas. O sujeito 2 é uma mulher de 79 anos de idade que teve a perna amputada há dois anos também por causa de uma trombose; também concordou em participar do estudo e suas respostas foram bastante objetivas. O sujeito 3 é um jovem de 24 anos que teve a perna e o braço esquerdo amputados há dois anos por causa de um acidente automobilístico. Por fim, o sujeito 4 é um homem de 45 anos que teve ambas as pernas amputadas há um ano por causa de uma trombose. Três dos quatro entrevistados tiveram amputações motivadas por trombose, e apenas um sofreu amputação decorrente de evento externo (acidente motociclístico).

A análise foi feita utilizando as informações obtidas nas entrevistas realizadas entre os meses de junho e setembro de 2013 sobre as questões abordadas a respeito do tema e do objetivo da pesquisa. Os resultados foram agrupados em quatro categorias temáticas, sendo estas: a reação à notícia (que apresenta e discorre sobre como os sujeitos reagiram à notícia de que precisariam ter partes do corpo amputadas), a presença de membro fantasma (que apresenta e discorre sobre as vivências em relação às sensações atuais e reais do membro amputado), a visão de si e do corpo (que apresenta e discorre sobre a autoimagem dos entrevistados antes e depois da amputação, mais precisamente o impacto na autoimagem decorrente da amputação), e projetos de vida a realizar (que apresenta e discorre sobre como os entrevistados projetam suas vidas no futuro considerando a necessidade de reavaliação e reordenamento destes projetos decorrentes da amputação).

Reação à notícia

Esta categoria apresenta trechos das entrevistas que discorrem sobre como os sujeitos reagiram à notícia de que precisariam ter partes dos corpos amputadas:

Eu fui fazer uma cirurgia de cateterismo (pausa) aí teve um problema na cirurgia... É... trombose (...) aí eu só descobri 15 dias depois. (pausa) É, ou era a perna ou era eu (sujeito 1).
A gente assusta demais. Eu chorei muito quando eu descobri
(sujeito 2).
Na verdade eu fiquei em coma e quando eu acordei eu tava amputado. Primeiro foi um choque pra mim, eu não aceitava de jeito nenhum.
(sujeito 3).
Na hora foi triste. (pausa) Falou que tinha que cortar as duas (pernas).
(sujeito 4).

Segundo a revisão de literatura realizada para essa pesquisa, os resultados esperados para indivíduos amputados a partir do estudo de Oliveira (2004) seriam os de indivíduos vivenciando o luto e apresentando exclusivamente sentimentos de tristeza e de inferioridade quando da amputação, o que foi confirmado.

Mas deve-se considerar se o fato dessas pessoas já estarem em atendimento auxilia em um melhor enfrentamento pela perda do membro corporal, haja vista que tais sujeitos já estavam recebendo cuidados de saúde e encontram-se em processo de tratamento e reabilitação, o que redimensionaria a vivência da perda pela amputação. Dois dos sujeitos já possuíam prótese, o que também pode auxiliar em uma maior aceitação da perda do membro através da restituição do objeto perdido na amputação. A prótese também facilita as funções corporais perdidas com o membro amputado. Por exemplo, a pessoa que perdeu uma perna apresenta dificuldades de locomoção; com a prótese, esta função motora é potencialmente readquirida (Gabarra & Crepaldi, 2009).

Presença de membro fantasma

Esta categoria apresenta informações da entrevista que versam sobre as vivências em relação às sensações atuais e reais do(s) membros(s) amputado(s):

Parece que ainda tá junto com a perna. (...) Sinto dormência. (sujeito 1).
Ainda sinto o membro perdido em forma de coceira, mas não como sentia antes, agora é de uma forma mais atenuada. (sujeito 2)
Sinto os membros perdidos como se eles estivessem dormentes. (sujeito 3).
Sente assim, não a perna aqui (apontou para o coto), é o pé. (...) É... coceira. (...) Aí coça aqui, né (o coto), pra ver se passa. (sujeito 4).

Assim como o item anterior, depoimentos de dor fantasma e de sensação do membro perdido (membro fantasma) eram aguardados de acordo com Demidoff et al. (2007), que descreveram o membro fantasma como o efeito da tentativa de readaptação da mente à ausência de uma parte do corpo. Tal hipótese pode ser confirmada ou observada em todos os sujeitos entrevistados neste estudo.

Pode-se observar que os relatos de todos os entrevistados se assemelham, dizendo que choraram muito e não aceitaram quando perderam o membro, e que sentem o membro perdido de formas semelhantes (dormência ou coceira). Sendo assim, apesar das diferenças individuais ao lidar com o luto, há comportamentos e vivências subjetivas semelhantes – como a negação e angústia (choro) inicial, e a persistência de sensação do membro corporal amputado – que podem trazer uma aproximação por identificação dessas pessoas que se encontram na mesma condição de enlutadas.

Visão de si e do corpo

Esta categoria apresenta excertos das entrevistas que se debruçam sobre a autoimagem dos entrevistados após a amputação, especificamente a questão do impacto decorrente da amputação:

(...) a amputação deixa muito restrito. (sujeito 1)
(...) normal. (sujeito 2).
(...) muda bastante. Antes eu era uma pessoa muito... muito hiperativa, eu tava sempre correndo atrás de alguma coisa (...) mas hoje em dia eu tô mais feliz (...) e certamente muito mais paciente. (sujeito 3).
Me conformei, é algo normal que pode acontecer. Mas podia ser diferente se ainda tivesse o membro. (sujeito 4).

Para Boemer e Chini (2007), a vivência da amputação teria como consequências alterações biopsicossociais como estigmas de corpo perfeito, sendo assim, a visão de si desses sujeitos estaria deturpada pelas fantasias que eles apresentam relacionadas ao pensamento e à visão do outro sobre o corpo amputado e imperfeito.

Todavia, considerando o relatado pelos quatro sujeitos deste estudo, os resultados foram outros e diferenciais do destacado por Boemer e Chini (2007), já que os entrevistados no momento da entrevista não apontaram mudanças em relação à forma que os outros possam vê-los como "imperfeitos". As principais mudanças apontadas foram relativas à restrição pela perda do membro corporal e às mudanças psicológicas em aprender a lidar com o luto.

Outras questões da entrevista consideravam aspectos sociais, como o apoio familiar e se a pessoa amputada tinha algum vínculo empregatício. Todos os sujeitos responderam que têm o suporte familiar e também de amigos, o que foi essencial para retomar a vida após a amputação; estes relatos estão de acordo com os de Oliveira (2000) quando diz que a presença e o apoio da família são fatores essenciais para o indivíduo enlutado.

Projetos de vida a realizar

Esta categoria apresenta trechos das entrevistas nas quais os entrevistados projetam suas vidas no futuro considerando a necessidade de reavaliação e de reordenamento destes projetos em função da amputação:

Gostaria de viajar. (sujeito 1).
(...) se der conta, né [de conseguir os objetivos]?. (sujeito 2).
Conseguir uma prótese melhor e comprar um carro. (sujeito 3).
Voltar a trabalhar e que, com a prótese posso fazer o que desejo. (sujeito 4).

Para Goellner e Paiva (2008), a perda real de um membro do corpo é também a morte simbólica de um projeto de vida e, portanto, seriam esperados exclusivos sentimentos relacionados a dificuldades de ver e elaborar projetos de vida. Contudo, essa suposição não foi verificada junto aos sujeitos entrevistados, haja vista que dois sujeitos mostraram vontade de realizar mais atividades, um apontou apenas um projeto que gostaria de realizar e somente um não apresentou clara perspectiva de futuro (sujeito 2).

Dois dos indivíduos entrevistados relataram a prótese como um dos projetos futuros e outro entrevistado também se referiu sobre ela em outro momento da entrevista (quando questionado sobre sua autoimagem). A prótese aparece como uma possibilidade de restituição das funções do membro corporal amputado, o que está em consonância com Gabarra e Crepaldi (2009), juntamente com perspectivas relacionadas à manutenção da vida e projetos pessoais de convívio social (por exemplo, trabalhar e viajar).

A causa da amputação também foi abordada nas entrevistas, sendo que em três dos quatro entrevistados a perda do membro corporal deveu-se à trombose. Tal fato vai ao encontro das estatísticas do Ministério da Saúde (2013), segundo a qual diabetes apareceu com índice de 13,6% no número de amputações realizadas no ano de 2011. Tais números apontam relevância para a pesquisa nesse tema.

Considerando a diferença entre o luto normal e o patológico segundo Freud (1917/2006) e, segundo Oliveira (2000), a diferença individual nas respostas dadas por cada indivíduo frente à amputação, seria esperado encontrar indivíduos em diferentes estágios do luto – o que foi visualizado nos relatos dos entrevistados desta pesquisa: se consideramos os argumentos de Kübler-Ross (2008), os sujeitos 1 e 2 estariam provavelmente no quarto estágio do luto (depressão), o sujeito 3 estaria no quinto estágio do luto (aceitação), e o sujeito 4 estaria em uma transição entre o terceiro e quinto estágios do luto (da negociação à aceitação). Tais resultados reforçam os argumentos de Gabarra (2010) de que os estágios de vivência do luto são dinâmicos, e não estáticos, e dependentes de cada indivíduo.

Assim, considerando o luto como um processo, a partir do qual as vivências não são estáticas, um indivíduo pode passar por qualquer das fases – negação e isolamento, raiva, negociação, depressão e aceitação – em diversos momentos, podendo também passar da raiva à aceitação, sem necessariamente vivenciar outras antes. Desse modo, os resultados obtidos referem-se à fase do luto de cada sujeito no momento em que foram realizadas as entrevistas. Portanto, é possível que se a mesma entrevista fosse refeita, os resultados fossem diferentes.

Observou-se que o sujeito 3 apresenta elaborações consistentes sobre projetos de vida e mostrou-se durante a entrevista mais adaptado à nova realidade. Talvez isso se explique por ser ele o mais jovem dentre os entrevistados, enquanto todos os outros são mais velhos, já com famílias e empregos. Uma questão a ser levantada é se os jovens conseguem adaptar-se à perda/amputação melhor do que os mais velhos ou se foi apenas o fato desse sujeito estar na fase de aceitação da perda no momento da entrevista, sendo essa última hipótese mais plausível, visto que Gabarra e Crepaldi (2009) destacam que quanto mais jovem o sujeito, mais difícil sua adaptação à amputação, pois em condições normais, os mais velhos teriam a gradual oportunidade de habituar-se às restrições de atividade ao longo da vida e devido aos adoecimentos relacionados ao envelhecimento (limitações motoras e aumento da dependência), sendo a incorporação destas limitações mais acentuadas e difíceis aos mais jovens.

Relatos sobre luto patológico (relacionados, no caso específico, à perda de um membro por causa de uma amputação) não apareceram no momento das entrevistas. Isso poderia ser exemplificado a partir dos relatos dos sujeitos que apontaram perspectivas de futuro ao falarem sobre seus projetos de vida, ou seja, a libido pôde desligar-se do antigo objeto de amor (membro corporal perdido) e ligar-se a outros objetos, como a prótese, a viagem, um carro ou um novo emprego.

Considerando a aceitação social pela perda de um ente querido e a não aceitação do luto pela perda de um membro corporal, segundo Parkes (1998), poder-se-ia esperar relatos relacionados a um luto patológico. No entanto, todos os sujeitos relataram ter o apoio familiar, sendo este essencial, o que confirma Oliveira (2000) quando diz que a presença e o apoio da família são fatores essenciais para o indivíduo enlutado devido às amputações. O suporte social pode ter sido, portanto, um auxílio para os indivíduos amputados conseguirem desvencilhar a libido do membro corporal perdido e ligarem essa energia em projetos e perspectivas de futuro.

É possível verificar as postulações de Combinato e Queiroz (2006) quando discutem os diversos significados que a morte ou perda pode possuir dependendo do contexto social, histórico e cultural no qual o indivíduo encontra-se inserido. Na busca pela manutenção da vida e evitar perdas, a morte/perda é negada e adquire sinônimo de fracasso, levando os indivíduos a buscarem maneiras de tentar vencê-la, como a utilização de tecnologias médicas com o desenvolvimento de máquinas e medicamentos. Uma dessas maneiras é a prótese, que aparece como uma possibilidade de readquirir as funções do membro corporal amputado, confirmando estudos de Gabarra e Crepaldi (2009).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dessa investigação, conclui-se que a perda de um membro corporal na amputação leva a consequências psicológicas complexas, como o luto. Este é visto como um processo dinâmico no qual o sujeito vive as diversas fases descritas por Kübler-Ross (2008) – negação e isolamento, raiva, negociação, depressão e aceitação – em diversos momentos de sua vida, podendo estar relacionadas não somente com a morte, mas também com a experiência de amputação de membro corporal.

A vivência do luto engloba fatores físicos, psicológicos e sociais. A perda experienciada não é apenas do membro corporal, mas também da função, do papel e do significado daquela parte do corpo na vida da pessoa. Por exemplo, a perna perdida foi também a desvinculação de um emprego, a renúncia a uma vida social com liberdade de ir e vir como antes e a possível mudança no conceito de identidade da pessoa amputada.

Dentre as pessoas entrevistadas, cada uma estava em um momento da vivência do luto e, ainda que estivessem na mesma fase, cada uma a enfrentou de formas diferentes, considerando a subjetividade e particularidade de cada indivíduo. Mesmo sendo o luto algo recorrente na vida cotidiana de todo ser humano, as maneiras de lidar com ele podem ser completamente distintas, pois cada sujeito possui representações, condições e possibilidades de enfrentamento de luto, uma visão de corpo e de identidade.

Juntamente com o membro amputado, um indivíduo pode perder um corpo perfeito, um emprego ou até mesmo a liberdade de andar sozinho. Amputação de membro físico envolve consequências físicas, psicológicas e sociais que podem ser melhor enfrentadas pelos enlutados se tiverem o apoio de familiares e cuidadores.

Como pode ser observado nesta pesquisa, alguns comportamentos semelhantes (presença do membro fantasma e negação inicial da perda do membro) foram relatados por todos os entrevistados, experiências essas consoantes com a literatura especializada na área. Portanto, apesar das diferenças individuais ao lidar com o luto, há elementos que podem trazer uma aproximação dessas pessoas que se encontram na mesma condição de enlutadas por um motivo específico (amputação).

Sendo assim, um suporte psicológico, juntamente com o físico de fisioterapeutas e médicos, pode ser benéfico, tal como ofertado pelo centro de reabilitação no qual foi conduzido o estudo. A criação de grupos terapêuticos poderia ser uma ajuda a essas pessoas, de modo que possam compartilhar experiências e receberem um suporte multiprofissional que os auxilie a lidar com essa experiência impactante na (re)constituição de suas subjetividades e vivências.

Mesmo considerando as limitações deste estudo (destacadamente a limitação da amostra), os resultados obtidos podem auxiliar na compreensão da vivência do processo de luto em pessoas amputadas, permitindo avanços nessa área de investigação. Em especial quando os entrevistados relatam a importância de acompanhamento terapêutico multiprofissional após a amputação, a ressignificação da sensação do membro-fantasma, o papel dos familiares, cuidadores e amigos (e demais integrantes da rede de apoio pessoal e profissional) no redimensionamento da autoimagem e no estabelecimento de novos e exequíveis projetos de vida que podem servir como contrapontos à significativa perda ocasionada pela amputação.

 

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Endereço para correspondência
Rafael De Tilio
E-mail: rafaeldetilio@ielachs.uftm.edu.br

Recebido: 17/01/2014
1ª reformulação: 20/02/2014
2ª reformulação: 06/03/2014
Aceite final: 17/03/2014

 

 

1 Renata Seren é psicóloga pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro
2 Rafael De Tilio é professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.