Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.21 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2020
ARTIGOS
A reinstitucionalização de crianças e adolescentes na região oeste de Natal/RN
The reinstitutionalization of children and adolescents in the west of Natal-RN
La reinstitucionalización de niños y adolescentes en la región oeste de Natal/RN
Ilana Lemos de Paiva1; Tabita Aija Silva Moreira2; Maria Luiza da Costa Oliveira3; Riane Maiara Feitosa Silva4; Amanda de Medeiros Lima5
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal-RN, Brasil
RESUMO
O objetivo do presente artigo é analisar a incidência de casos de reinstitucionalização de crianças e adolescentes e discutir como a política de atendimento a essa população está organizada para fortalecer a função protetiva da família. Para tanto, foi realizada pesquisa documental em bancos de dados oficiais. Estes dados foram posteriormente categorizados e analisados à luz dos princípios da Doutrina da Proteção Integral. Nas análises documentais foram encontradas 81 Guias de Acolhimento que apontavam a reinstitucionalização. Destas, 34,6% referiam-se a acolhidos cujas famílias eram oriundas da Região Administrativa Oeste. Os dados apontam que a reinstitucionalização das crianças e adolescentes pode possuir forte relação com a situação de pobreza e ausência do Estado na proposição de políticas públicas efetivas.
Palavras-chave: Acolhimento institucional; Reinstitucionalização; Crianças e adolescentes.
ABSTRACT
The purpose of this article is to analyze the incidence of cases of new institutionalization of children and adolescents and to discuss how the policy of attending to this population is organized to strengthen the family's protective function. For this, a documentary research was carried out in official databases. These data were later categorized and analyzed. In the documentary analyzes were found 81 Guidance Reception that pointed to the new institutionalization. Of these, 34.6% referred to foster families whose families came from the Western Administrative Region. The data indicate that the new institutionalization of children and adolescents may have a strong relationship with the situation of poverty and absence of the State in proposing effective public policies.
Keywords: Children´s shelter; Reinstitutionalization; Children and adolescents.
RESUMEN
El objetivo del artículo es analizar la incidencia de casos de reinstitucionalización de niños y adolescentes y discutir cómo la política de atención a esa población está organizada para fortalecer la función protectora de la familia. Para eso, se realizó una investigación documental en bases de datos oficiales. En los análisis documentales se encontraron 81 Guías de Acogimiento que apuntaban a la reinstitucionalización. De estas, el 34,6% se refería a acogidos cuyas familias provenían de la Región Administrativa Oeste. Los datos apuntan que la reinstitucionalización de los niños y adolescentes puede tener una fuerte relación con la situación de pobreza y ausencia del Estado en la propuesta de políticas públicas efectivas.
Palabras clave: Acogimiento institucional; Reinstitucionalización; Niños y adolescentes.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), a política de atendimento dos direitos desse público se dá por meio de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais. Sempre que crianças e adolescentes tiverem os direitos reconhecidos nesse Estatuto ameaçados ou violados, medidas de proteção deverão ser aplicadas. Dentre essas medidas, têm-se o Acolhimento Institucional. Em sua linha de ação, a política de atendimento estabelece políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes, prevalecendo o convívio junto aos seus familiares.
Um importante articulador dessa proposta é o Sistema de Garantia dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (SGDCA), que promove a integração intersetorial de instâncias públicas governamentais e sociedade civil, com o intuito de efetivar a operacionalização da proteção integral à população infantojuvenil. O SGDCA é divido em três eixos estruturantes para sua atuação na garantia de direitos, são eles: promoção, que está relacionada à política de atendimento protetivo; defesa, que se relaciona diretamente à responsabilização dos violadores e acesso à justiça; e controle, que consiste na fiscalização, monitoramento e avaliação da consolidação dos direitos.
O presente artigo aborda a medida protetiva que ocorre por meio do acolhimento institucional, a qual deve ser aplicada excepcionalmente nos casos em que for verificada a impossibilidade dos pais ou responsáveis cuidarem das crianças e adolescentes. Deverá ser aplicada em situações de constatada violação de direitos de crianças e adolescentes e que, depois de aplicadas outras medidas de proteção, não teve sanado o risco, ou ainda quando a família não é conhecida, está desaparecida ou inexiste. A legislação prevê que a situação dos acolhidos seja reavaliada a cada três meses e que eles permaneçam na instituição por, no máximo, 18 meses.
A partir de um levantamento de dados realizado por pesquisas recentes, foi perceptível uma falha na garantia destes direitos resguardados pelas políticas e programas, além da legislação (Pinto, Oliveira, Ribeiro, & Melo, 2013; Silva, 2004). Estas pesquisas apontam um afastamento das crianças e adolescentes do seu seio familiar através da identificação da frequente ocorrência de acolhimentos apressados e sem a busca efetiva por alternativas à institucionalização (Leite, Nascimento, & Ribeiro, 2016). Além disso, a precária articulação do SGDCA e a não superação das situações de vulnerabilidade das famílias, em geral, motivadoras do Acolhimento, facilitam a ocorrência da reinstitucionalização de crianças ou adolescentes, e, por diferentes motivos, ocorre o fracasso na reinserção familiar, seguida de nova institucionalização do acolhido.
A incidência deste fato é recorrente no município de Natal. A capital do estado do Rio Grande do Norte tem uma população estimada em 885.180 habitantes, de acordo com a estimativa do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística (IBGE) para o ano de 2017 (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal - SEMURB, 2017b). O referido município é dividido em quatro regiões administrativas (Norte, Sul, Leste e Oeste), sendo a Região Administrativa Oeste a segunda maior em termos populacional e territorial, que congrega 27,17% desta população e é composta por dez bairros.
Além disso, a região supracitada conta com altos índices de violações de direitos. A Delegacia Especial de Defesa da Criança e do Adolescente (DCA), que tem como competência, dentre outras, atuar na prevenção, investigação e repreensão dos crimes de violência sexual e maus-tratos contra crianças e os adolescentes, informou que a Região Administrativa Oeste é a segunda Região com o maior número de ocorrências - perdendo apenas para a Região Administrativa Norte, que, em termos territoriais, possui quase o dobro do seu tamanho. Ainda de acordo com dados disponibilizados pelo setor de estatística da DCA, o número de denúncias nesta região é crescente: em 2015 foram contabilizadas 145 ocorrências, e, no ano seguinte, 163. Em 2017, esse número reduz para 126, mas volta a subir em 2018, registrando 173 ocorrências. Neste cenário, não é incomum o acolhimento institucional de crianças e adolescentes oriundos desta região, sendo necessária a discussão sobre possíveis reinstitucionalizações em Serviço de Acolhimento para crianças e adolescentes (SAICA).
Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo analisar a incidência na Região Administrativa Oeste de casos de reinstitucionalização de crianças e adolescentes após o retorno ao convívio familiar e discutir como a política de atendimento a essa população está organizada para fortalecer a função protetiva da família.
MÉTODO
A presente pesquisa é de cunho documental e foi realizada através de consultas em bancos de dados oficiais da Prefeitura de Natal e ao Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Estes dados foram posteriormente categorizados e analisados à luz dos princípios da Doutrina da Proteção Integral.
Os dados publicados pela SEMURB permitiram a construção da caraterização da Região Administrativa Oeste de Natal no que concerne aos seguintes aspectos: bairros componentes, dados sociodemográficos da população e serviços públicos disponíveis.
Através da consulta ao CNCA, foi realizado um cruzamento das informações contidas nas Guias de Acolhimento e de Desligamento de crianças e adolescentes do acolhimento institucional no período de 2010 e 2017. Foram encontradas 2.269 Guias de Acolhimento na Comarca de Natal/RN; destas, 81 referiam-se a um novo acolhimento após a reinserção na família de origem. Após esta etapa, foram organizados os dados de caracterização dos acolhidos e suas famílias a partir das informações contidas nas Guias de Acolhimento e Desligamento com o auxílio do software de análise de dados IBM SPSS Statistics, relacionados à Zona Oeste da cidade.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
CARACTERIZAÇÃO DA ZONA ADMINISTRATIVA OESTE
O município de Natal, de acordo com a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o ano de 2017, teria uma população estimada em 885.180 habitantes. De acordo com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB), a Região Administrativa Oeste congrega 27,17% desta população, sendo a segunda região mais populosa do município. Esta possui em sua composição um total de dez bairros, sendo estes: Cidade da Esperança, Quintas, Nordeste, Dix-Sept Rosado, Bom Pastor, Nossa Senhora de Nazaré, Felipe Camarão, Cidade Nova, Guarapes e Planalto. Ou seja, trata-se de uma das maiores regiões do município (SEMURB, 2017a).
No tocante aos aspectos socioeconômicos, a Região Administrativa Oeste apresenta uma maior concentração de renda na faixa de até um salário mínimo per capita, ou seja, a somatória de toda a renda da residência dividida pelo número de pessoas do domicílio não ultrapassa o valor de um salário mínimo. Também cumpre destacar que seu rendimento médio mensal é de 0,99 salários mínimos, posicionando-se abaixo da média do município, que é de 1,78. O bairro que se apresenta como mais grave nesse quesito é Guarapes, com 0,53 salários mínimos. Este mesmo bairro ainda apresenta a pior taxa de alfabetização de todo o município, apontando 72,21% (SEMURB, 2017a).
A Região Administrativa Oeste, juntamente com a Região Norte – a mais populosa do município –, ainda contam com as maiores taxas do número de crianças, de acordo com dados apresentados no Anuário de Natal/RN de 2016, quando se compara a proporção de menores de cinco anos de idade dentro da população total residente nas regiões, ficando a Norte com 7,7,% e a Oeste com 7,5% (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal, 2016).
Além disso, a Região Oeste conta com os maiores índices de violações de direitos do público infanto-juvenil, pois é a segunda região com o maior número de ocorrências na Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA). Salienta-se, também, a situação das chamadas facções criminosas atuantes no município, as quais têm adentrado cada vez mais os bairros da Região Oeste, envolvendo adolescentes no comércio ilegal de drogas. Na referida região, pode-se destacar algumas comunidades que, para além da inserção das chamadas facções, apresentam também violentas intervenções policiais numa tentativa de abrandar as atuações criminosas, culminando, juntas, em um rastro de violências e de homicídios da população, incluindo adolescentes. E, ainda, é reforçada uma forte estigmatização em relação às comunidades como sendo locais de periculosidade, refletindo em uma criminalização da pobreza. (Souza, 2012).
Diante dos apontamentos apresentados, compreende-se que a supramencionada região apresenta uma série de vulnerabilidades que podem direcionar ou até agravar situações de riscos e vulnerabilidades sociais para sua população, especialmente para o público infanto-juvenil, que possui uma grande concentração na região e que apresenta dados alarmantes junto à DCA. Ressalta-se que se entende que os riscos e as vulnerabilidades são construções multideterminadas por aspectos interdependentes. Pessoas, famílias e comunidades são entendidas como vulneráveis quando não possuem acesso a condições materiais e imateriais para enfrentar e superar os riscos a que podem estar submetidas, como oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Dito isto, estratégias para reduzir os riscos implicam em uma articulação de diversas frentes integradas e complementares, como o acesso a serviços públicos básicos - educação, saúde, cultura, habitação, nutrição, etc. (Janczura, 2012; Morais, Neiva-Silva, & Koller, 2010).
Este estudo não possui pretensões de identificar se a população tem acesso a tais serviços, contudo, é importante destacar alguns números revelados pela SEMURB sobre os equipamentos que se encontram na região. De acordo com a SEMURB (2017a), a região Oeste apresenta setenta e duas instituições de ensino, sendo estas municipais e estaduais. No tocante às unidades de saúde, é revelado que vinte e oito se encontram na região, incluindo Unidades de Saúde da Família, Unidades Básicas de Saúde, Unidade de Pronto Atendimento, Policlínica, entre outros serviços que estão localizados na região e que atendem a toda a população do município, como o Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, etc. Além disso, são localizadas nove instituições de segurança pública, abarcando bases comunitárias, polícia militar, delegacias, entre outras.
É importante ressaltar que a região possui dezoito unidades de desporto, sendo quadras, campos e minicampos. Ademais, possui oito equipamentos da Política do Trabalho e Assistência Social, são três Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) para Criança e Adolescente e um SCFV para Idosos, o Centro de Referência e Qualificação Profissional para o Trabalho e uma Unidade de Acolhimento Institucional para crianças. E, ainda, possui um Conselho Tutelar. Por fim, revela-se que a região Oeste possui onze instituições não governamentais cadastradas no Conselho Municipal de Direitos de Crianças e Adolescentes (COMDICA) que realizam atividades para essa população. Cabe salientar que quando se investiga o número de equipamentos existentes nas regiões Leste e Sul, as quais comportam um quantitativo populacional bem menor que a Oeste, percebe-se que o número de equipamentos são bastante próximos e, inclusive, em alguns casos, como a Saúde no Leste e a Segurança Pública e as unidades de desporto no Sul, são ainda maiores.
A REINSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA ZONA OESTE DE NATAL/RN
A Guia de Acolhimento é gerada pelos profissionais do Judiciário por ocasião da aplicação da medida protetiva de acolhimento institucional ou em família acolhedora. Ela reúne as primeiras informações sobre o contexto de vida do acolhido que seguem para o SAICA. Na Guia, devem contar informações sobre os dados de identificação do acolhido, pais ou responsáveis. Além disso, devem ser informados o solicitante do acolhimento, o Serviço de Acolhimento designado; outras medidas protetivas aplicadas; os motivos da separação do convívio familiar; o parecer da equipe técnica; o despacho da autoridade judiciária, ou seja, a cópia da decisão firmada pelo juiz responsável. Nas Guias estudadas, todos estes dados estavam registrados de forma suscinta e objetiva.
O levantamento realizado de todos os acolhimentos apontou que a maioria das Guias de Acolhimento geradas, em casos de reinstitucionalização, referiam-se a acolhidos cujas famílias eram oriundas da Região Administrativa Oeste, sendo esta a de maior incidência (Tabela 1). Esse índice é mais alto que o da Zona Administrativa Norte, que congrega maior dimensão territorial e populacional.
Chama a atenção que, em 18,5% das Guias, não foi possível verificar o endereço de origem dos pais ou responsáveis, o que pode significar uma possível situação de rua da criança ou adolescente. Os demais endereços registrados referiam-se a pais ou responsáveis residentes em outros municípios, detidos em presídio ou em situação de rua.
O principal solicitante da nova medida protetiva de acolhimento institucional foi o Conselho Tutelar em 13 situações, seguido da Promotoria da Infância e Juventude (7) e da Vara da Infância e Juventude (3), como pode ser observado na Tabela 2. Na realidade do município, entretanto, é comum que as solicitações das entidades dos Sistema Judiciário, também estejam fundamentadas em recomendações ou relatórios dos conselheiros tutelares. Esta realidade reforça a importância deste serviço no acompanhamento das famílias de origem antes, durante e após a reinserção familiar.
Em Natal, cada Região Administrativa possui seu próprio corpo de conselheiros tutelares, no intuito de possibilitar um acompanhamento mais próximo pelos cinco membros titulares. Dado o quantitativo populacional da Zona Oeste e seu tamanho territorial, este número pode ser considerado reduzido para o acompanhamento da garantia dos direitos das crianças e adolescentes, principalmente diante do contexto de baixa renda e violência existentes na localidade.
As principais justificativas citadas para a reinstitucionalização foram o abandono pelos pais ou responsáveis (8), responsáveis dependentes químicos ou alcoolistas (7), a negligência (06), seguida da situação de rua (05). Estes dados se alinham com os principais motivos para o acolhimento institucional, relatados no último levantamento nacional dos serviços de acolhimento, realizado entre 2009 e 2010 (Pinto, Oliveira, Ribeiro, & Melo, 2013).
Chama a atenção a continuidade da justificativa de acolhimento por recursos materiais da família ou responsáveis (03), mesmo diante da proibição constante no Estatuto da Criança e do Adolescente desde sua promulgação. Da mesma forma, diante do já apontado contexto de desigualdade econômica e social vivenciados pelas famílias da Zona Oeste, é preciso refletir sobre o que está sendo considerado como abandono e negligência. Autoras como Valente (2013) e Nascimento (2016) questionam se estas nomenclaturas estão sendo utilizadas para substituir a justificativa por falta de recursos materiais da família. Além disso, o uso de drogas pode estar associado ao alívio do sofrimento ocasionado por fatores vinculados à pobreza (Malheiro, 2019).
A pobreza afeta toda a organização familiar, pois a falta de recursos necessários para a sobrevivência está relacionada a uma maior exposição a situações adversas, ao aumento do stress familiar e do sofrimento psicológico dos pais, além da redução da habilidade destes em interagirem com as crianças (Chaudry & Wimer, 2016). Como resultado, a construção dos vínculos familiares pode se tornar mais frágil, situação intensificada pela separação ocasionada pela institucionalização. Cabe salientar que, em Natal, ainda persiste a prática da separação dos grupos de irmãos entre os SAICA’s.
Para as crianças e adolescentes, os impactos da pobreza arrefecem a estimulação do seu crescimento, desenvolvimento e segurança socioemocional (Chaudry & Wimer, 2016). Ademais, os pais tendem a ter baixa escolaridade que, por sua vez, está associada a trabalhos precários, pior remunerados, que tendem a perdurar ao longo das gerações familiares (Silva et al., 2019). Dentro deste contexto, marcado pela ausência de políticas sociais efetivas, observa-se a disposição de condições propícias para a manutenção do ciclo de pobreza e institucionalização das crianças e adolescentes pobres.
Os dispositivos sociais, também, tendem a adotar concepções errôneas sobre a população pauperizada, como a culpabilização pelos seus fracassos, o desenvolvimento de discursos sobre sua (in)competência em obter um determinado padrão de vida, além da sua associação à violência (Cidade, Júnior, & Ximenes, 2012). Na prática, estas visões podem ser incorporadas pelas próprias famílias que se resignam e incorporam o fracasso parental, exemplificado por duas situações em que a própria família solicitou a reinstitucionalização da criança ou adolescente (conforme apresentado na Tabela 2).
A garantia dos direitos das crianças e adolescentes, principalmente à convivência familiar e comunitária, necessita da construção de concepções e metodologias de trabalho que reconheçam os múltiplos fatores que permeiam o território onde vivem as famílias e como se organizam seus padrões de interação e convivência. Para tanto, é necessário que os componentes do SGDCA andem no mesmo chão das crianças, adolescentes e seus pais ou responsáveis e se tornem técnicos com quem eles possam contar. Em outras palavras, há a necessidade de compreender o contexto de vida das famílias, mas também de desenvolver alternativas concretas de minimização dos efeitos da pobreza, tendo em vista que ela se apresenta como principal propulsor da institucionalização e reinstitucionalização das crianças e adolescentes da Zona Oeste.
Ao considerar a dupla dimensão da pobreza, qualquer estratégia efetiva de enfrentamento deve combinar ações voltadas a atender necessidades materiais, mas também alterações nas dinâmicas psicossociais com os agentes públicos. São nessas relações que frequentemente se reforçam atitudes psicossociais negativas ou podem ser definidos novos rumos nas intervenções realizadas junto às famílias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa não teve a intenção de encerrar a discussão acerca do acolhimento institucional de crianças e adolescentes, mas problematizar as nuances existentes nesse processo, a partir do recorte de um território cuja população vivencia inúmeras situações de vulnerabilidade e risco. Evidenciamos a associação que, infelizmente, ainda pode ser identificada entre a medida protetiva aqui discutida e as situações decorrentes da pobreza, muitas vezes utilizadas como justificativa para o acolhimento institucional. Consideramos importante refletir em que momento e por quais razões as políticas sociais encontram-se falhando para que crianças e adolescentes vivenciem situações de reinstitucionalização.
Nesse sentido, pontua-se a importância do trabalho ofertado pelas políticas de atendimento para o fortalecimento da função protetiva das famílias, como prevenção de situações que possam culminar em futuros acolhimentos. Destaca-se o acompanhamento familiar (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate á Fome – MDSCF, 2005) realizado pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), tanto no âmbito da Proteção Social Básica, nos casos de famílias em situação de vulnerabilidade social, como no âmbito da Proteção Social Especial de Média Complexidade, quando já são identificadas situações de violação de direitos (Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS, 2009).
O acompanhamento familiar compreende uma série de ações e atendimentos continuados, executados de acordo com as demandas e especificidades de cada situação. Consistem em atendimentos individuais, familiares, coletivos ou em grupo, visitas domiciliares, orientações, dentre outras atividades. O objetivo desse acompanhamento é proporcionar suporte social, emocional e (jurídico social no caso da PSE), aos acompanhados; espaço de escuta qualificada e reflexão, visando o empoderamento, enfrentamento e construç ão de novas possibilidades de interação familiares e com o contexto social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2011).
Na Proteção Social Básica, o acompanhamento é realizado pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral a Família – PAIF, executado nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS. Já na proteção Social Especial, é realizado pelo Serviço de Atendimento Especializado à Família e Indivíduos – PAEFI, executado nos Centros de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS (CNAS, 2009). Nos dois níveis de complexidade, as ações relacionadas ao acompanhamento podem modificar a dinâmica e trajetória das famílias, ampliando a capacidade de enfrentamento dos indivíduos, trabalhando privações materiais e emocionais a fim de auxiliar suas histórias de vida.
Reconhece-se, contudo, que muitos são os desafios existentes nas políticas sociais públicas para execução da política de atendimento à criança e ao adolescente e dos entraves existentes na rede de proteção para que o acompanhamento familiar culmine em resultados significativos. Como bem sinalizou Bronzo, Mendes e Rezende (2019), temos os limites da própria política, os limites individuais dos trabalhadores, as limitações territoriais e a precariedade da infraestrutura social.
Nesse sentido, não basta apenas que o serviço esteja instalado, faz-se necessário o investimento do Estado no fortalecimento das políticas sociais públicas, oferecendo suporte e condições necessárias para o funcionamento adequado dos serviços destinados a proteção de crianças, adolescentes e suas famílias. É preciso que os recursos necessários para o pleno desenvolvimento do atendimento pelos serviços estejam disponíveis, como os veículos para as visitas domiciliares. Outrossim, muitas vezes, os profissionais se deparam com a inexistência ou indisponibilidade de serviços essenciais para o acompanhamento familiar, por exemplo, os serviços de saúde mental, quando lidam com famílias com histórico de uso ou abuso de substâncias psicoativas, inclusive, razão de muitos acolhimentos.
Através dos serviços instalados no território, as famílias podem, no decorrer do acompanhamento, apresentar outras demandas que, uma vez visibilizadas, devem ser trabalhadas desde o início. Para que esse processo ocorra, o papel da equipe técnica é fundamental ao oferecer apoio, suporte e serem pessoas com quem as famílias "possam contar".
Embora conscientes da contradição intrínseca às políticas sociais no Estado neoliberal - ao mesmo tempo em que enfrenta as consequências da questão social, mantém esse mesmo Estado em condições de existir -, acredita-se no poder mobilizador existente nessa mesma política social. Nesse sentido, entende-se aqui que o fortalecimento da proteção social básica e especial de média e alta complexidade (durante o primeiro acolhimento) é um caminho importante no desenvolvimento da função protetiva das famílias, diminuindo o índice de reinstitucionalização de crianças e adolescentes e o consequente sofrimento familiar resultante desse processo.
REFERÊNCIAS
Bronzo, C., Mendes, M. C., & Rezende, E. (2019). Os serviços socioassistenciais como mecanismos de proteção: Explorando efeitos e limites. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, 24(77), 1-17. [ Links ]
Chaudry, A., & Wimer, C. (2016). Poverty is not just an indicator: The relationship between income, poverty, and child well-being. Academic Pediatrics, 16(3), 23-29. [ Links ]
Cidade, E. C., Junior, J. F. M., & Ximenes, V. M. (2012). Implicações psicológicas da pobreza na vida do povo latinoamericano. Psicologia Argumento, 30(68), 87-98. [ Links ]
Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. (2009). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Brasília: Autor.
Janczura, R. (2012). Risco ou vulnerabilidade social? Textos & Contextos, 11(2), 301-308. [ Links ]
Leite, J. A. C., Nascimento, M. F. M., & Ribeiro, W. R. (2016). Garantia de direito à criança e ao adolescente nas instituições de alta complexidade no município de João Pessoa/PB. In A. L. B. Aurino, E. B.M. Siqueira, L. R. Ribeiro, & M. S. S. Vieira (Orgs.), Defesa, abandono e acolhimento de crianças e adolescentes: O paradoxo do estado (des) protetor (pp. 125-143). João Pessoa: Editora da UFPB. [ Links ]
Malheiro, L. S. B. (2019). Tornar-se mulher usuária de crack: Trajetória de vida, cultura de uso e política sobre drogas no centro de Salvador, Bahia. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. [ Links ]
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDSCF. (2005). Política Nacional de Assistência Social. Brasília: Autor. [ Links ]
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDSCF. (2011). Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Brasília: Autor.
Morais, N. A., Neiva-Silva, L., & Koller, S. H. (2010). Criança e adolescente em situação de rua: História, caracterização e modo de vida. In N. A. Morais., L. Neiva-Silva, & S. H. Koller. (Orgs.). Endereço Desconhecido: Crianças e adolescentes em situação de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Nascimento, M. L. (2016). Proteção e negligência: Pacificando a vida de crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: Nova Aliança. [ Links ]
Pinto, L. W., Oliveira, Q. B. M., Ribeiro, F. M. L., & Melo, A. A. C. A. E. (2013). Características dos serviços de acolhimento institucional (SAI). In S. G, Assis., & L. O. P, Farias. (Orgs.). Levantamento nacional das crianças e adolescentes em serviço de acolhimento (pp. 82-110). São Paulo: Editora Hucitec. [ Links ]
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal (2016). Anuário de Natal 2016. Natal: Autor. [ Links ]
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal (2017a). Conheça melhor o seu bairro: Região Administrativa Oeste. Natal: Autor. [ Links ]
Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal (2017b). Natal e Região Metropolitana. Natal: Autor. [ Links ]
Silva, E. R. (2004). O perfil da criança e do adolescente nos abrigos pesquisados. In E. R., Silva. (Org.), O direito à convivência familiar e comunitária: Os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil (pp. 41-70). Brasília: IPEA/CONANDA. [ Links ]
Silva, I. de C. P. et al. (2019). Estresse parental em famílias pobres. Psicologia e Estudo, 24, 1-17. [ Links ]
Souza, C. (2012). Na fronteira da exclusão: Ações de enfrentamento à violência na juventude. (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil. [ Links ]
Valente, J. A. G. (2013). As relações de cuidado e de proteção no Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora. (Tese de Doutorado não publicada). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil. [ Links ]
Endereço para correspondência
Ilana Lemos de Paiva
E-mail: ilanapaiva@hotmail.com
Recebido: 05/08/2019
Reformulado: 05/11/2019
Aceito: 22/01/2020
1 Ilana Lemos de Paiva é doutora pelo Programa integrado de Pós-graduação em Psicologia Social UFRN/UFPB. Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2 Tabita Aija Silva Moreira é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista da CAPES.
3 Maria Luiza da Costa Oliveira é mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
4 Riane Maiara Feitosa Silva é mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
5 Amanda de Medeiros Lima é mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.