Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.21 no.1 Ribeirão Preto jan./jun. 2020
ARTIGOS
Trabalho infantil e ato infracional: análise histórico-cultural do desenvolvimento infantojuvenil*
Child labor and infraction act: a cultural-historical analysis of child and juvenile development
Trabajo infantil y acto infraccional: análisis histórico cultural del desarrollo infanto-juvenil
Maria de Fatima Pereira Alberto1; Manuella Castelo Branco Pessoa2; Thiago Augusto Pereira Malaquias3; Cibele Soares da Silva Costa4
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB, Brasil
RESUMO
Este artigo é um ensaio teórico sobre os fundamentos da psicologia histórico-cultural, trabalho infantil e ato infracional. O desenvolvimento psicológico é entendido como a transformação ocorrida ao longo da vida, resultante da interação externa da cultura com o interno biofisiológico; a constituição subjetiva é dependente das condições objetivas de vida. Utilizamos reflexões oriundas de estudos com adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas. São trabalhadores infantis, cujas atividades desempenhadas se configuram como piores formas, dentre estas o tráfico de drogas. Foram impedidos de acessar mediações essenciais ao desenvolvimento, os conceitos científicos. Foram alienados de si, desconhecem-se como trabalhadores, mas o trabalho configura suas subjetividades. São explorados, encarcerados, mas, paradoxalmente, atribuem ao trabalho a materialidade para o projeto de vida.
Palavras-chave: Trabalho infantil; Adolescente em conflito com a lei; Medidas socioeducativas; Desenvolvimento infantil; Psicologia histórico-cultural.
ABSTRACT
This article is a theoretical essay on the foundations of historical-cultural psychology, child labor and infraction act. Psychological development is understood as the transformation that occurs throughout life, resulting from the external interaction of culture with the biophysiological internal and the subjective constitution is dependent on the objective conditions of life. Reflections from studies with adolescents and young people who comply with socio-educational measures are used. They are child workers which the activities performed are configured as the worst forms, among them the drug trafficking. They were prevented from accessing mediations essential to the development like the scientific concepts. They were alienated from themselves, they are not known as workers, but work configures their subjectivities. They are exploited, imprisoned, but paradoxically attribute to work the materiality for the life project.
Keywords: Child labor; Infringing acts; Teenager in conflict with the law; Childhood development; Historical-cultural psychology.
RESUMEN
Este artículo es un ensayo teórico sobre los fundamentos de la psicología histórico-cultural, el trabajo infantil y el acto infracciónal. El desarrollo psicológico es comprendido como la transformación que ocurre a lo largo de la vida, como resultado de la interacción externa de la cultura con el medio interno biofisiológico y la constitución subjetiva depende de las condiciones objetivas de la vida. Utilizamos reflexiones de estudios con adolescentes y jóvenes en cumplimiento de medidas socioeducativas. Son niños trabajadores y las actividades realizadas son las peores formas, incluido el narcotráfico. Se les impidió acceder a mediaciones esenciales para el desarrollo, los conceptos científicos. Alienados de sí mismos, no se reconocen como trabajadores, pero el trabajo configura sus subjetividades. Son explotados, encarcelados, pero paradójicamente atribuyen al trabajo la materialidad para el proyecto de vida.
Palabras clave: Trabajo infantil; Adolescente en conflicto con la ley; Medidas socioeducativas; Desarrollo infantil; Psicología histórico-cultural.
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E A COMPREENSÃO DE DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO
Este artigo é um ensaio teórico sobre os fundamentos da psicologia histórico-cultural, trabalho infantil e ato infracional. Analisa a gênese, a constituição e o desenvolvimento histórico do psiquismo humano, a partir de uma perspectiva processual. A psicologia histórico-cultural busca identificar a historicidade dos fenômenos estudados, superando concepções naturalizantes do desenvolvimento psicológico e buscando identificar as condições necessárias para promover a potencialização humana (Leal & Mascagna, 2016). A análise do comportamento, da subjetividade e do psiquismo humano está diretamente ligada às condições objetivas de vida que são ensejadas na dinâmica social (Vygotski, 2006).
Para a psicologia histórico-cultural, o desenvolvimento psicológico não ocorre de forma natural, produto da maturação do organismo, tampouco como resultado exclusivo de forças externas sobre o indivíduo, mas se desenvolve na relação da atividade mediada e do processo de socialização. Desse modo, a consciência e os demais processos psicológicos superiores, a subjetividade e o comportamento, são determinados pela historicidade, criada pela vida em sociedade (Bernardes, 2010; Vygotski, 2006). O desenvolvimento dos processos psicológicos superiores depende da qualidade das relações sociais vivenciadas pelos sujeitos, que se apropriam e singularizam essas relações. Isso significa que a constituição da subjetividade decorre do permanente processo de troca entre o ambiente interno e externo, em que este passa a ser internalizado (Silva, 2009).
Para Vygostski (2006), somente com o resgate processual das condições históricas do desenvolvimento humano se poderia compreender a constituição das funções psicológicas superiores. Na superação das concepções anteriores, Vygotski retoma o conceito de totalidade do psiquismo humano, pois compreende que as funções psicológicas superiores (pensamento, linguagem, memória, atenção) possuem uma relação interfuncional entre si e com as funções psicológicas mais elementares, ou seja, não agem de forma separada ou fragmentada e, portanto, não podem ser estudadas como unidades independentes. As funções psicológicas superiores estão em permanente transformação, no movimento de apropriação dos elementos dispostos pela cultura, que possibilita novos nexos (Souza & Andrada, 2013).
Para Vygotski (2006) o estudo do desenvolvimento do psiquismo exige a análise do movimento histórico da sua gênese e constituição, relacionado ao processo de humanização decorrente das mediações instrumentais e simbólicas produzidas pela humanidade. São os instrumentos e signos criados historicamente pela humanidade que agem como mediadores na apropriação da realidade e oportunizam as condições para transformação dessa realidade. A ação do homem sobre a natureza se dá através da atividade criativa e produtiva, caracterizada pelo trabalho, que transforma o homem, com mudanças na constituição do psiquismo, como a ampliação das habilidades e aptidões motoras, da percepção e complexificação fonética que possibilitaram saltos qualitativos no desenvolvimento (Martins & Eidt, 2010).
A constituição e desenvolvimento das funções psicológicas superiores, que caracterizam a condição humana, têm a historicidade e a socialidade como elementos integrantes, em um movimento contínuo de transformação da realidade objetiva em que a individualidade só é possível na vida em sociedade. Vygotski parte do pressuposto de que as condições históricas atuam sobre os homens, mas estes não estão passivos, pois agem de forma intencional e planejada sobre a natureza, transformando-a e modificando a sua relação com o meio, estabelecendo assim novas condições de existência (Moretti, Asbahr, & Rigon, 2011). O meio, para Vygotski não se refere apenas ao aspecto ambiental, mas à relação existente entre o interno e o externo, que oportuniza o desenvolvimento da consciência e depende da existência de determinada situação social de desenvolvimento (SSD) (Souza & Andrada, 2013). Da mesma forma, a consciência não corresponde a um simples reflexo interno, mas à possibilidade de expressão do sujeito e compreensão do mundo social, histórico e cultural (Moretti, Asbahr, & Rigon, 2011).
Na análise do desenvolvimento psicológico, Vygostki definiu três dimensões: uma universal, característica da genericidade humana, uma dimensão singular, relacionada à individualidade dos sujeitos, que, por sua vez, é mediada pela dimensão particular, aquela que se relaciona com as condições objetivas produzidas na vida em sociedade. A relação entre essas dimensões se materializa na participação ativa dos sujeitos e no processo de apropriação dos bens materiais e culturais produzidos pela humanidade (Bernardes, 2010). A subjetividade se constitui como a possibilidade dos sujeitos de se apropriarem das produções humanas com base em determinadas condições de vida, que se expressam de forma particular (Silva, 2009).
Isso quer dizer que as possibilidades concretas e reais de desenvolvimento psicológico são dependentes das condições objetivas de vida, resultantes das condições históricas concretas e de múltiplas determinações impostas pela sociedade. A sociedade capitalista é permeada por contradições; apesar do seu progressivo desenvolvimento, não possibilita o acesso universal aos sujeitos, impedindo a democratização das ações nas atividades em geral (Anjos & Duarte, 2016; Martins & Eidt, 2010).
Ao adotar a perspectiva materialista dialética, Vygotski assume que o desenvolvimento psicológico dos homens é parte do desenvolvimento histórico geral de nossa espécie. Desse modo, é preciso estar atento a um processo híbrido de desenvolvimento, permeado por aquisições que não são dadas a priori e pela apropriação destas (Vygotsky & Luria, 1996). Diferente da psicologia do desenvolvimento tradicional, Vygotski não postula estágios, mas crises qualitativas, ou seja, acontecimentos que caracterizarão as crises das idades (Leal & Mascagna, 2016).
Cada crise é permeada por novas apropriações e habilidades e pela forma como os seres humanos vão lidando com estas e se relacionando com seu meio. Como afirma Pino (2005), ao nascer o ser humano se encontra dotado de um sistema sensório-motor que caracteriza o nascimento biológico, e este é propagado por meio da herança genética. Paralelo a este, há o nascimento cultural, onde vão emergir as funções mentais superiores, o que, segundo Vygotski (2007), vai tornar o homem "humano", sendo o cultural a matéria-prima do desenvolvimento humano. Essas funções se propagam por meio das práticas sociais, nas quais a natureza vai se transformando em cultura e a cultura, por sua vez, vai se materializando em natureza de forma simbólica.
Sendo assim, os processos que constituem as linhas centrais de desenvolvimento em uma idade se convertem em linhas secundárias na idade seguinte, e, por sua vez, converter-se-ão em linhas centrais em outra idade, duplamente determinadas pela maturação interna e pelo meio e relações estabelecidas (Vygotski, 2006). Esses processos são permeados pelas neoformações, que dizem respeito ao novo tipo de atividade da criança que caracteriza aquela idade, o novo tipo de personalidade, as transformações psicológicas que surgem pela primeira vez nessa idade (Vigotskii, Luria, & Leontiev, 1988). Assim, o desenvolvimento se produz como um movimento arrítmico, no qual fases diversas são reveladas. Ao superarem qualitativamente o componente primitivo, o desenvolvimento cultural se modifica, redimensiona-se, onde o indivíduo passa a ser controlado pelas funções superiores e a controlá-las (Vygotsky & Luria, 1996).
Essa superação qualitativa está relacionada à força motriz que movimenta cada crise e impulsiona o desenvolvimento. Segundo Vygotski (2006), só o homem em seu processo de desenvolvimento histórico consegue criar forças motrizes da conduta, o que dá aos interesses humanos uma natureza histórica, cultural e social. Como aponta Pasqualini (2009), compreender essas forças motrizes auxilia na elucidação da sensibilidade de determinados períodos do desenvolvimento, na compreensão das leis de transição de um período a outro e a planejar atividades educativas que devem ser realizadas de forma a auxiliar o desenvolvimento.
As referidas transições entre períodos são momentos críticos que envolvem mudanças abruptas na personalidade em um curto espaço de tempo. As mudanças constituem as crises. E as crises correspondem às idades que estão expostas e são constituídas de forças motrizes (Davidov, 1986; Elkonin, 1960; Vigotskii, Luria, & Leontiev, 1988). Mas, "não é a idade que determina o conteúdo do estágio do desenvolvimento, os próprios limites de um estágio, pelo contrário, dependem de seu conteúdo e se alteram com a mudança das condições históricas-sociais" (Leontiev, 1988, p. 65-66). Destaca-se neste artigo a crise dos sete anos, a crise da adolescência (ou crise dos 13 anos) e a crise da juventude (ou crise dos 17 anos). A crise dos sete anos, porque é a idade em que a maioria das crianças começa a trabalhar (Alberto & Santos, 2011), a crise dos 13 anos (adolescência) e a crise dos 17 anos (juventude), porque correspondem às idades em que a maioria é acusada de atos infracionais e cumpre medidas socioeducativas.
Na crise dos sete anos a atividade dominante é o estudo: aparece a lógica dos sentimentos, uma nova formação afetiva, novas relações consigo mesmo, expansão e estreitamento das relações interpessoais, comportamento voluntário (Vygotski, 2006). Na adolescência e juventude escolher a profissão e orientar o futuro caracterizam esses momentos da vida: a adolescência no salto da infância para a juventude. Já a juventude se diferencia da adolescência pelo envolvimento com questões sociais e políticas da comunidade ou sociedade (Abrantes & Bulhões, 2016). Na crise (13 anos) da adolescência a atividade dominante é a comunicação íntima pessoal. O desenvolvimento psicológico se caracteriza por pontos de vista sobre a vida: as relações pessoais e o futuro, pensamento por conceitos, autoconsciência e consciência social. A ideia que terá de si e o projeto de futuro são baseados nas relações sociais vivenciadas. Na crise (17 anos) da juventude a atividade dominante é a atividade profissional de estudo: o desenvolvimento psicológico se constitui pela apropriação de ferramentas para a prática profissional, elevada abstração e generalização, busca por sentido social na atividade cotidiana (Davidov, 1986; Elkonin, 1960; Vigotskii, Luria, & Leontiev, 1988). O trabalho se configura como central para constituição do indivíduo e da sociedade, mas difere dependendo das condições objetivas de vida, da classe social.
Vale destacar que a base do desenvolvimento psíquico é dinâmica, como lembra Davidov (1986). Assim, cada atividade principal faz surgir e constituir correspondentes das novas formações psicológicas, configurando a unidade do desenvolvimento psíquico e se modificando de acordo com o processo de formação de novas estruturas. Por exemplo, como aponta Asbahr (2016), a atividade de estudo (referente à crise dos sete anos) vem de forma a modificar radicalmente a personalidade do sujeito. É quando a escola se torna potencialmente central na vida da criança e ela poderá superar os conceitos espontâneos, gerados no cotidiano, pelos conceitos científicos, formados por processos orientados, organizados e sistemáticos. A base para os conceitos científicos são os espontâneos, estes últimos serão reconfigurados, superados e só ocorrerão plenamente na adolescência (Vygotsky, 1934/2015; Vygotski, 2006).
Desse modo, Vygotski refuta a compreensão do desenvolvimento como um processo estereotipado de crescimento e maturação de potências internas dadas a priori. O que se tem é que cada idade é composta por uma multiplicidade de processos parciais que integram o processo de desenvolvimento (Pasqualini, 2009). O pensamento não se realiza de forma imediata, mas sim através da mediação, do contato com o outro e com a cultura, consistindo em um processo educacional que vai impulsionar esse desenvolvimento.
Desse modo, Vygotski entende que a realidade social, a relação da criança com o meio, é a fonte de desenvolvimento, e será ponto de partida para as mudanças dinâmicas que irão se processar naquela idade. Nesse sentido, as condições de vida e culturais serão imprescindíveis para um desenvolvimento considerado pleno. Assim, o desenvolvimento depende de condições histórico-sociais e envolve rupturas e saltos qualitativos. Contudo, a realidade não deve ser vista como mera externalização de uma subjetividade pré-existente nem os indivíduos como receptores passivos. Os processos educacionais, por sua vez, devem levar em consideração os progressos já realizados pelos indivíduos, identificar as potencialidades e promovê-las, propondo tarefas alinhadas com essas novas mudanças (Rios & Rossler, 2017).
Para Vygotski, a socialização é uma condição fundamental na constituição do gênero humano, sendo compreendida como o conjunto de elementos culturais e históricos, produzidos pela humanidade. A dinâmica entre a realidade objetiva e universal depende das mediações entre as atividades humanas e o acesso aos bens culturais, o que, por sua vez, depende das condições objetivas de vida. Essas condições estão relacionadas a diferentes aspectos da vida: vida familiar, o processo educativo geral e o pedagógico escolar, relações constituídas na participação em diversos grupos sociais, os pares, como da transmissão de conhecimentos, de forma intencional pelas gerações anteriores, que possam atuar como modelo de desenvolvimento (Abrantes & Bulhões, 2016).
As condições objetivas de vida não garantem a possibilidade de objetivação do sujeito na dimensão genérica em razão do processo de fragmentação criado pela sociedade capitalista e acentuado pela lógica neoliberal (Bernardes, 2010). O pertencimento às diferentes classes sociais, decorrentes das desigualdades sociais, tem relação com oportunidades distintas de acesso, o que implica em possibilidades diversas do processo de humanização e socialização. Isso porque, apesar do progressivo desenvolvimento da sociedade em diferentes aspectos: tecnológicos, culturais, educacionais, esse desenvolvimento não retorna de forma igual para todas as pessoas, a maior parte da população vive em condições precárias, conseguindo atender apenas a parte de suas necessidades mais imediatas de sobrevivência (Martins & Eidt, 2010).
Para analisar o desenvolvimento histórico-cultural de crianças e adolescentes, é imprescindível considerar o lugar que estes ocupam em uma sociedade dividida por classes e o sistema de relações sociais daí derivadas. As atividades desenvolvidas estão condicionadas às determinações da produção social e das condições objetivas de vida, que regulam a qualidade e a diversidade de elementos que as crianças e adolescentes poderão acessar e, posteriormente, serem internalizados como conteúdos psicológicos (Martins & Eidt, 2010).
Nesse sentido, as atividades dominantes responsáveis por guiar as principais mudanças no desenvolvimento psicológico têm estreita relação com as condições objetivas de vida. No caso das crianças, a atividade guia se caracteriza pela atividade de estudo e a do adolescente/jovem, pela atividade de estudo profissionalizante, porém, nem sempre essas atividades encontram possibilidades reais de efetivação.
No caso do Brasil, um número significativo de crianças e adolescentes pobres vivenciam a necessidade de ingressar precocemente no trabalho para garantir as suas condições de sobrevivência e das suas famílias. De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra Por Domicílio – PNAD-2016, mais de 1 milhão e 800 mil crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, estavam trabalhando (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica [IBGE], 2017). Nessa avaliação do próprio IBGE, não foram contabilizados os dados de 716 mil crianças e adolescentes que trabalhavam para o próprio consumo; portanto, estima-se que o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho seja superior ao divulgado pela PNAD-2016, correspondendo a 2,5 milhões (Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil [FNPETI], 2017). Os dados revelam inserção precoce no trabalho. De modo que ao ingressarem no trabalho, crianças e adolescentes passam a cumprir longas jornadas de trabalho, em ambientes insalubres, realizando atividades nas piores formas de trabalho infantil.
Como consequência, as crianças e adolescentes deixam de frequentar a escola, por terem que assumir as responsabilidades do trabalho realizado ou em decorrência do cansaço das longas jornadas ou das atividades que exigem grande esforço físico e são repetitivas. Logo, a atividade principal que passa a guiar o desenvolvimento desses sujeitos não é a de estudo, responsável pela transmissão dos conhecimentos sistematizados e pela formação dos conceitos científicos, que amplia a capacidade de compreensão da realidade e formação da consciência, mas passa a ser a de trabalho, realizado em condições que obstaculizam o desenvolvimento integral dos sujeitos. Nesse período, a atividade guia da comunicação íntima pessoal, responsável pelo estabelecimento de relações sociais que potencializam os pontos de vista sobre a vida e sobre o futuro, como uma forma de preparação e aprendizagem (Anjos & Duarte, 2016), também passa a ser prejudicada, posto que as relações no ambiente de trabalho se configuram de outra forma, exigindo responsabilidades que são dos adultos, além de poderem se caracterizar como relações abusivas e violentas.
Da mesma forma, essas consequências atravessam a vida de adolescentes e jovens que são trabalhadore s. Para Leal & Mascagna (2016), se o adolescente pertence às camadas populares, a entrada no mercado de trabalho pode acontecer muito cedo. Já para os que fazem parte de classes com maior poder aquisitivo, a idade de transição pode ser perpassada por maior espera no ingresso ao mercado de trabalho e qualificação profissional. Como consequência, o jovem trabalhador termina sua juventude mais cedo do que aqueles que não trabalham. O período de desenvolvimento destes transcorre de forma reprimida, em dependênc ia das condições sociais. Como consequência, nesses períodos da vida, esses adolescentes e jovens ficam impossibilitados de realizarem uma formação profissional ou de construir projetos de vida, posto que estão inseridos em trabalhos precarizados, desempen hando atividades que não desenvolvem e que não possibilitam uma formação de qualidade (Abrantes & Bulhões, 2016).
MATERIALIDADE DA CONSTITUIÇÃO PSICOLÓGICA
A literatura revela a relação entre trabalho infantil, atos infracionais e medidas socioeducativas (Alberto, 2002; Barros, 2017; Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, 2018; Simão, 2014; Sousa, 2013; Viana et al., 2005). As causas da inserção precoce no trabalho são várias, relacionam-se às condições objetivas de vida, pobreza, necessidade de ajudar a família, rede de relações que oportunizam, falta de oportunidades, mercado de ofertas das drogas que coopta e seduz sob as artimanhas do acesso a bens de consumo e reconhecimento entre pares e comunidade (Feffermann, 2017). Alguns estudos identificam que a inserção precoce no trabalho tem implicações psicossociais contribuindo para a socialização desviante (Alberto, 2002) e para o "envolvimento" de jovens e adolescentes no tráfico de drogas (FNPETI, 2018) e o cumprimento de medidas socioeducativas.
Simão (2014), em pesquisa com jovens que cumprem medidas socioeducativas no Mato Grosso, identifica que vivenciaram situações de vulnerabilidade e começaram a trabalhar cedo. Sousa (2013), no estado de Goiás, identifica que há relação entre trabalho infantil e atos infracionais. A partir de pesquisa com 175 adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas de internação, identifica que 33,15% trabalhavam antes do cumprimento da medida. Viana et al. (2005), em duas pesquisas em Fortaleza, em 1998, com uma amostra de 30 participantes e, em 2004, com uma amostra de 45 participantes, identificaram na pesquisa de 1998 que 93,4% informaram ter trabalhado na infância e/ou na adolescência com faixa etária aquém da permitida pela Lei. Na pesquisa de 2004 esse percentual de trabalhadores precoces foi de 85,7%.
Os dados da literatura respaldam as pesquisas realizadas pela Universidade Federal da Paraíba, através do Núcleo de Pesquisa e Estudos sobre o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (NUPEDIA). Entre os anos de 2017, 2018 e 2019 (Alberto, Malaquias, Muniz, Santos, & Mello, 2017; Almeida, 2019; Cruz & Alberto, 2019; Malaquias & Alberto, 2019; Mello & Alberto, 2018; Pereira & Alberto, 2019; Ramos & Alberto, 2019), o NUPEDIA desenvolveu pesquisas com o objetivo de analisar a relação entre trabalho infantil e atos infracionais. As pesquisas são realizadas em Unidades Socioeducativas de Internação e os participantes são adolescentes e jovens a quem se atribui a prática de atos infracionais e que cumprem medidas de privação e restrição de liberdade. Fez-se uso de métodos quantitativos e qualitativos, de técnicas e instrumentos de pesquisa variados, tais como questionários, entrevistas individuais e coletivas. Dentre os aspectos comuns presentes nas pesquisas, destacam-se para análise, na perspectiva histórico-cultural, as idades em que começaram a trabalhar, a idade de envolvimento em atos infracionais, os prejuízos na escolaridade, a relação entre a inserção precoce e as condições objetivas de vida, as implicações negativas da inserção precoce, envolvimento em atos infracionais e medidas socioeducativas.
Os estudos (Alberto et al., 2017; Cruz & Alberto, 2019; Malaquias & Alberto, 2019; Mello & Alberto, 2018; Pereira & Alberto, 2019; Ramos & Alberto, 2019) revelam que dentre os adolescentes e jovens entre 12 e 21 anos, que cumprem medidas socioeducativas, mais de 80% foram trabalhadores infantis ou ajudantes. A ajuda é uma forma que invisibiliza o trabalho infantil, mas que revela a participação da criança ou do adolescente em atividades de trabalho, complementando ou assumindo o trabalho do adulto. Todas as atividades de trabalho infantil, desempenhadas pelos (as) adolescentes, configuram-se como piores formas, ou seja, atividades de trabalho que oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral, como determinadas pela Convenção 182, de 1999, da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1999), e o Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008 (Brasil, 2008). Destacam-se as atividades de trabalho nos setores da agricultura, dos serviços (inclusive doméstico), do comércio (principalmente informal de rua) e tráfico de drogas.
Em 67% dos casos, são adolescentes e jovens negros, predominando os do sexo masculino, cuja idade em que começaram a trabalhar ou ajudar variou entre sete e 17 anos. Em relação à idade de envolvimento em atos infracionais variou de nove a 17 anos de idade (Alberto et al., 2017; Almeida, 2019; Cruz & Alberto, 2019; Malaquias & Alberto, 2019; Mello & Alberto, 2018; Pereira & Alberto, 2019; Ramos & Alberto, 2019). Percebe-se proximidade entre o início do envolvimento com o ato infracional e a idade em que começaram a trabalhar, o que possibilita a análise de que a inserção precoce no trabalho se relaciona ao contexto de vulnerabilidade social e às condições objetivas de vida que se materializam na necessidade de ajudar a família, na falta de infraestrutura do lugar ou cidade em que moravam, na ausência protetiva do Estado e na rede de relações que oportunizam.
A inserção precoce possibilitou adultização, autonomia e a consequente migração para outras atividades de trabalho, como a venda e o tráfico de drogas, que se mostravam mais rentáveis, do ponto de vista econômico. Além de propiciar a imersão numa rede de articulações que prometia identidade de pertencimento (nominadas de várias formas, no Nordeste brasileiro popularizou-se como facção), acesso a serviços e bens de consumo, visibilidade, ascensão e status com o grupo de pares e na comunidade onde residiam.
Outra das implicações do trabalho infantil foi a relação com a escola. Os (as) adolescentes e jovens apresentaram analfabetismo, baixos níveis de escolaridade, evasão e defasagem escolar. A defasagem variou de 1 a 10 anos (Alberto et al., 2017; Almeida, 2019; Cruz & Alberto, 2019; Malaquias & Alberto, 2019; Mello & Alberto, 2018; Pereira & Alberto, 2019; Ramos & Alberto, 2019). A temática de ausência escolar, por sua vez, revela que as atividades de trabalho precoce e a ausência do Estado na efetivação dos direitos e na garantia de políticas públicas protetivas afastam crianças e adolescentes do contexto escolar, constituem-se em violações que os expõem a situações de vulnerabilidade, que os estigmatiza e "abre via para sua inclusão no trabalho ilegal" (Vieira, 2012, p. 106).
Os (as) adolescentes e jovens, apesar de avaliarem que o trabalho lhes trouxe algo que eles próprios consideram positivo como autonomia financeira, ter dinheiro, poder de compra e ajudar a família, também avaliam que houve consequências negativas em ter trabalhado precocemente. De modo que as implicações da inserção precoce no trabalho, quer em atividades "lícitas" ou "ilícitas", expressam que não obtiveram mudanças significativas nas condições objetivas de vida, nas condições financeiras e classe social ou que tais mudanças se constituíram em momentos passageiros que levaram aos prejuízos oriundos dessas experiências, resultando no envolvimento em atos infracionais e, consequentemente, aos processos punitivos com o cumprimento de medidas socioeducativas de internação.
Mas nem sempre a percepção dessas implicações é nítida para os adolescentes e jovens a quem se atribui a autoria de atos infracionais, que cumprem medidas socioeducativas e que foram trabalhadores precoces. Nem todos estabelecem relação causal entre o trabalho infantil e o ato infracional. Até porque nem sempre visualizavam o desempenho das atividades como trabalho, principalmente quando a atividade de trabalho é o tráfico de drogas. Utilizam nas mais das vezes a reprodução da internalização de uma valoração moral do trabalho, dicotomizando entre o que nominam de "trabalho suado/honesto" e "trabalho sujo/errado/dinheiro fácil", trabalho digno e indigno. Nem sempre visualizam o processo de trabalho que envolve o tráfico de drogas (preparação, distribuição, comercialização, venda e segurança). Imersos nessa cultura de exploração são alienados desse processo de trabalho e nem sempre se reconhecem como trabalhadores.
Vieira (2012) descreve tais percepções como uma dicotomia entre trabalhadores x bandidos, a ruptura entre sentido e significado das ações desses jovens, sendo que a nomenclatura, atrelada à moral, tende a favorecer a construção de subjetividades tidas como "criminosas". Portanto, quando os jovens utilizam o termo "envolvimento", ocultam o fato de que se trata, na verdade, da inserção nas piores formas de trabalho, silenciam a exploração que lhes recai, pois passam a ser vistos como criminosos e não como trabalhadores superexplorados.
A atribuição da autoria de prática de atos infracionais tende a ser extensão da exploração do trabalho infantil (Alberto et al., 2017; Almeida, 2019; Cruz & Alberto, 2019; Malaquias & Alberto, 2019; Mello & Alberto, 2018; Pereira & Alberto, 2019; Ramos & Alberto, 2019). Os direitos humanos desses trabalhadores infantis não se efetivaram. Consequentemente, a medida socioeducativa de internação é a política disponibilizada pelo Estado brasileiro. A resposta do Estado acontece quando o trabalho infantil se dá na venda e no tráfico de drogas, através de uma medida socioeducativa de internação. O Estado criminaliza, judicializa, encarcera.
Outra implicação para o desenvolvimento de adolescentes, trabalhadores precoces que cumprem medidas socioeducativas é a construção da imagem de si. Há resistência entre adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, para preservar uma imagem positiva de si (Malaquias & Alberto, 2019). Embora adolescentes e jovens tentem manter uma autoimagem positiva, há outros que apresentam culpa e uma autoimagem negativa de si, dadas as experiências vivenciadas. Entretanto, também nessa situação paradoxal o trabalho é apresentado como a âncora para resolver o dilema e projetar o futuro. No que tange, especificamente, ao projeto de vida dos adolescentes e jovens, sobressai a centralidade do trabalho em suas vidas, no sentido de que os planos para o futuro envolvem a conquista de um emprego para que possam garantir sua sobrevivência e de suas famílias.
As inserções e trajetórias de vida, tecidas nos contextos apresentados pelos jovens revelam situações nas quais os mesmos apontam ser a causa da apreensão e as condições atuais de privação de liberdade em que se encontram. Remetem ao sofrimento, arrependimento e abandono, à vontade de mudança no estilo de vida e às consequências durante o cumprimento da medida (Alberto et al., 2017; Malaquias & Alberto, 2019). O impacto da medida na saúde mental desses adolescentes que se apresentaram ociosos e ansiosos demonstra sofrimento psicológico decorrente da privação da liberdade.
TRABALHO INFANTIL E ATO INFRACIONAL A PARTIR DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
As condições objetivas de vida que envolveram ter trabalhado precocemente, entre sete e 17 anos de idade, nas piores formas de trabalho infantil (agricultura, comércio em situação de rua, serviço doméstico e tráfico de drogas) em locais que oportunizaram relações com pessoas que facilitaram o envolvimento com atos infracionais, associados aos contextos de vulnerabilidade social de ter que ajudar a família, morando em territórios e municípios em que faltavam infraestruturas e políticas protetivas de retiro do trabalho e de garantias de direitos educacionais, resultaram na atribuição de autoria de atos infracionais e na penalização através de uma medida socioeducativa de internação.
São constituídos como sujeitos que resistem e se dividem em uma imagem positiva e uma imagem negativa de si, que não acessaram a escola e o patrimônio cultural da humanidade veiculada na escola através do conhecimento científico, artístico, histórico e cultural, sujeitos do sexo masculino e feminino, na maioria, negros, cujas referências de mundo são trabalho ou o ato infracional. O trabalho que contribuiu para o ato e a medida é também, nas suas concepções, o que pode lhes garantir um projeto de futuro.
São adolescentes e jovens cuja subjetividade se constituiu pela internalização das relações interpessoais nas piores formas de trabalho infantil, pela objetivação das condições de vida, por meio das mediações de outros indivíduos. As funções psíquicas elementares foram transformadas pelas atividades, pelo trabalho, pelo ato infracional, que são signos, em funções psíquicas superiores, em consciência. A internalização está no centro do desenvolvimento. O que é internalizado está fora, na cultura: no meio social (Silva, 2009). Foi a partir da atividade humana material que se desenvolveu a consciência (Moretti, Asbahr, & Rigon, 2011).
Por isso, a autoimagem varia entre positivo e negativo. Ora se percebem como trabalhadores (as), ora se percebem como autores de atos infracionais. Não com esse conceito, mas com o significado de "crime", de "coisa errada", de "tirar cadeia", como denominaram, e que são reproduções do que está expresso na cultura e que foi se transformando em forma simbólica (Vygotski, 2007) e constituiu suas consciências.
Na idade em que se encontra a maioria dos participantes, entre 14 e 19 anos, as neoformações consistiriam no pensamento por conceitos, configurando-se transformações psicológicas e um novo tipo de personalidade (Vigotskii, Luria, & Leontiev, 1988). Os adolescentes e jovens passam a ser controlados pelas funções superiores e a controlá-las (Vygotsky & Luria, 1996). Isso significa o uso do pensamento abstrato. Mas, como lembram Anjos e Duarte (2016), o adolescente pode não chegar a esse nível intelectual, o qual depende das condições sociais e do trabalho escolar (Rios & Rossler, 2017).
Desenvolvimento implica em movimento. Como todo movimento, tem contradições que o movem. A mudança resulta da qualidade das mediações. A mediação, no caso do trabalho infantil não é a escola, a educação científica, é a aprendizagem prática, é o desenvolvimento de conceitos espontâneos. Logo, conhecimentos caracterizados por ações de ordem prática da vida cotidiana, marcados muitas vezes pela distância dos conceitos científicos (Vygotsky, 1934/2015). Conceitos científicos que compõem as diferentes condições externas determinantes no processo de como se darão as manifestações do desenvolvimento. Nos estudos sobre trabalho infantil e ato infracional, identificou-se que a educação escolar está ausente, ineficiente para se apropriar das produções humanas mais elaboradas, filosofia, arte, ciência, que promovem a consciência e o pensamento dialético.
As condições objetivas de vida constituem os aspectos culturais a partir dos quais se dá o desenvolvimento. Para os trabalhadores precoces em cumprimento de medidas socioeducativas, diferentemente, a mediação não é a da escola, do conhecimento científico. Para esses e essas adolescentes e jovens a mediação são atividades práticas através das piores formas de trabalho infantil. As relações sociais são de submetimento aos adultos, de exploração pelos clientes, pelos chefes e patrões. Como analisa Bortolozzi (2014), a estrutura da sua personalidade e de seus comportamentos resulta do processo de desenvolvimento histórico, logo, social. A consciência desses trabalhadores precoces se forma a partir das suas condições objetivas de vida, da materialidade das relações sociais. Segundo o referido autor, ocorre uma "fragmentação psíquica", que seria não se reconhecer enquanto trabalhadores, uma noção modulada pela moral internalizada, tanto que, para os adolescentes e jovens com envolvimento, até a relação com o dinheiro é dicotômica - quando dizem "dinheiro fácil" ou "dinheiro suado" e "trabalho sujo" ou "trabalho honesto". Quando raro, os participantes se identificam como trabalhadores, consideram-se no trabalho "sujo" e para ganharem dinheiro "fácil". "Fácil"? E os riscos da atividade de trabalho no tráfico?
Eles carecem da apropriação dos elementos dispostos pela cultura para construir novos nexos (Souza & Andrada, 2013), mas como não acessam os signos e mediadores científicos que oportunizam a transformação da realidade (Vygotski, 2006), reproduzem a realidade que acessam, presos às mediações das atividades práticas. Por isso o trabalho é o único elemento que vislumbram no projeto de vida. A ausência da escola (do acesso ao conhecimento como patrimônio humano) dificulta a formação de pontos de vista sobre a vida, o futuro e as relações com as pessoas. Como a ideia de si e do futuro é baseada nas relações sociais e na inserção em grupos, que mobilizem a capacidade dos adolescentes em construir projetos de vida, o modelo de ser humano que segue e do herói são fatores decisivos para o desenvolvimento; logo, veem na vida e na conduta das pessoas de suas relações sociais as imagens concretas para seguir (Abrantes & Bulhões, 2016).
O grupo é a referência. Originam-se novas tarefas e motivos de atividades, convertendo-se em atividade dirigida para o futuro, para o projeto de vida. Mas o não acesso à educação e à escolaridade limita as possibilidades de formação profissional, de trabalho e de futuro. Tais limitações reduzem as vivências, formação e trabalho à exploração da mão de obra, ao trabalho explorado, à inserção nas piores formas de trabalho que conduz ao ato infracional e à medida socioeducativa. Impossibilitando o acesso ao conhecimento afeta a formação por conceitos, o que significa que "no caso do cerceamento ao acesso às riquezas materiais e ideativas produzidas pelo homem, o pensamento por conceitos não se formará na adolescência ou em qualquer outra época do desenvolvimento humano" (Duarte, 2013, p. 121).
É impedida a mediação de elementos importantes e essenciais ao desenvolvimento (Anjos & Duarte, 2016; Bernardes, 2010). Em vez da cultura científica da escola o desenvolvimento se dá através da cultura de exploração, a cultura da violência. Como analisam Leal e Mascagna (2016), sobre os (as) jovens das classes populares, aos quais se impõe uma entrada muito cedo no mercado, faz com que seu processo de desenvolvimento se dê de forma diferenciada dos sujeitos que têm em suas trajetórias a possibilidade e efetivação da espera no ingresso ao mercado enquanto força produtiva (Vygotski, 2006).
A prática de atos infracionais (principalmente o tráfico, furtos e roubos) tende a ser extensão da exploração do próprio trabalho infantil que os privou do capital cultural, de relações sociais, de instrumentos e das possibilidades, adultizados ainda na infância ou na adolescência, em busca de conseguirem o que chamam de "trabalho digno" para suprir suas necessidades de sobrevivência. Os adolescentes sequer se reconhecem como trabalhadores, consideram seu dispêndio de energia como "bico", ou "ajuda", refratando a fragilidade de um sistema educacional no qual foram excluídos em consequência da(s) vulnerabilidade(s) vivenciada(s) e omissão de dispositivos de proteção, tornando-se alienados. Culpabilizam-se pelas violências praticadas e sofridas, violências que se reproduzem durante o cumprimento da medida. Veem no trabalho "digno", "suado", um meio de "mudar de vida", pois o trabalho é a aprendizagem que acessaram – a aprendizagem prática é o desenvolvimento de conceitos espontâneos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os adolescentes e jovens que cumprem medidas socioeducativas foram punidos pela violência de que foram vítimas através do trabalho infantil. Vivência que os constituiu enquanto sujeitos que se desenvolveram em contextos adversos, marcados pela objetividade das condições de vida, pela pobreza, pela necessidade de ajudar a família, em um contexto de exploração, sem garantia dos direitos e pela ausência da proteção social. Os adolescentes e jovens só se tornaram visíveis para o Estado e o sistema de justiça quando a atividade de trabalho passou a ser o tráfico de drogas. Passaram a ser acusados da prática de atos infracionais que tendem a ser extensão da exploração do próprio trabalho infantil que os privou do capital cultural, do acesso à escola e ao conhecimento científico.
Tais limitações reduzem as vivências, formação e trabalho à exploração da mão de obra, ao trabalho explorado. Seu desenvolvimento foi diferenciado, foram impedidos de acessar mediações importantes e essenciais ao desenvolvimento, que levam à formação dos conceitos científicos. O trabalho foi a atividade dominante que os formatiza, configurando suas subjetividades dicotomizadas para eles entre envolvidos e trabalhadores. Foram alienados de si e se desconhecem como trabalhadores. São explorados, expropriados da infância e juventude, encarcerados, mas, paradoxalmente, como uma apropriação dos elementos dispostos pela cultura que acessaram nas condições objetivas de vida, atribuem ao trabalho a materialidade para o projeto de vida.
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Endereço para correspondência
Maria de Fatima Pereira Alberto
E-mail: jfalberto89@gmail.com
Recebido:10/09/2019
Reformulado: 20/12/2019
Aceito: 22/01/2020
* Este artigo foi produzido com o auxílio do CNPq, por meio de bolsa de produtividade em pesquisa da primeira autora.
1 Maria de Fatima Pereira Alberto é doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Docente da Universidade Federal da Paraíba.
2 Manuella Castelo Branco Pessoa é doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Docente da Universidade Federal da Paraíba.
3 Thiago Augusto Pereira Malaquias é graduando em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista PIBIC.
4 Cibele Soares da Silva Costa é doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (FAPESQ/PB).