Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.22 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2021
ARTIGOS
O binômio morte e vida para idosos em cuidados paliativos
The binomial death and life for elderly in palliative care
El binomio muerte y vida para mayores en cuidados paliativos
Cynthia de Freitas Melo1; Jaiana Cristina Cândido Morais2; Liana Carvalho Lima de Medeiros3; Ana Cláudia Freire Barreto Lima4; Lucas Ponte Bonfim5; José Clerton de Oliveira Martins6
Universidade de Fortaleza, Fortaleza-CE, Brasil
RESUMO
A sociedade contemporânea caracteriza-se por um processo de envelhecimento permeado por estereótipos relacionados à proximidade da morte, negada pela sociedade ocidental. Para descortinar essa temática, objetivou-se identificar os significados que idosos em cuidados paliativos atribuem à morte e à vida. Realizou-se dois grupos focais com 18 idosos em cuidados paliativos, compreendidos por análise textual no software IRaMuTeQ. Os resultados organizaram-se em quatro classes: "Significações sobre a morte" retrata sua aceitação, "As relações entre vida e morte na velhice" apresenta a ambivalência dessa díade, "Significações sobre a vida na velhice" avalia essa fase da vida, "Atividades diárias e ressignificação da vida" aborda seus novos papeis. Conclui-se que a rede de apoio e a espiritualidade influenciam a significação da morte pelo idoso.
Palavras-chave: Idoso; Velhice; Morte; Vida; Cuidados Paliativos.
ABSTRACT
Contemporary society is characterized by an aging process permeated by stereotypes related to the proximity of death, denied by Western society. To unveil this theme, the objective was to identify the meanings that elderly in palliative care attribute to death and life. Two focus groups were held with 18 elderly in palliative care, understood by textual analysis in the IRaMuTeQ software. The results were organized into four classes: "Meanings about death" portrays their acceptance, "The relationships between life and death in old age" presents the ambivalence of this dyad, "Meanings about life in old age" assesses this phase of life, "Daily activities and life resignification" addresses their new roles. It is concluded that the support network and spirituality influence the meaning of death by the elderly.
Keywords: Elderly; Old age; Death; Life; Palliative care.
RESUMEN
La sociedad contemporánea es demarcada por proceso de envejecimiento impregnado de estereotipos respecto a la proximidad con la muerte. En este entorno, el objetivo de este estudio fue identificar los significados que las personas mayores, en cuidados paliativos, atribuyen a la muerte y la vida. Así, se realizaron dos grupos focales con 18 personas mayores en cuidados paliativos para la recogida de datos, y luego sometida a análisis textual en el software IRaMuTeQ. Los resultados se organizaron en cuatro clases: "Significados sobre la muerte" retrata su aceptación, "Las relaciones entre la vida y la muerte en la vejez" presenta la ambivalencia de esta díada, "Significados sobre la vida en la vejez" evalúa esta fase de la vida, "Actividades diarias y la resignificación de la vida "aborda sus nuevos roles. Se concluye que la red de apoyo y la espiritualidad influyen en el significado de la muerte de los ancianos.
Palabras clave: Ancianos; Vejez; Muerte; Vida; Cuidados paliativos.
O processo de envelhecimento da população é uma característica da sociedade contemporânea mundial, que vive uma fase, denominada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como "Era do Envelhecimento" (Martins & Lopes, 2017). Expressando esses números no contexto brasileiro, estima-se que 13% da população possui mais de 60 anos e projeta-se que no ano de 2043 esse contingente deverá atingir cerca de 25% da população do país (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019).
Para composição de grupo crescente, o termo idoso é usado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para classificar pessoas com mais de 60 anos nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, e com mais de 65 anos em países desenvolvidos. Ademais, a literatura aponta que o envelhecimento humano pode começar a ser estudado a partir dos 45 anos, pois é nesse momento que os sistemas corporais apresentam os primeiros sinais do envelhecimento biológico, embora a maioria das pessoas não o perceba ou o negue (Martins & Lopes, 2017). O envelhecimento trata-se, portanto, de um processo que, além de cronológico e biológico, é subjetivo, sendo um fenômeno biopsicossocial e espiritual que acomete o ser humano em todos os domínios de sua vida (Oliveira et al., 2016).
A negação do envelhecimento ocorre mediante a dificuldade de aceitação desse processo na sociedade contemporânea ocidental, na qual se valorizam a juventude e o corpo jovem, sadio e produtivo. Consequentemente, ser idoso em uma sociedade de consumo desenfreado, que privilegia o sujeito jovem por seu ritmo de vida intenso e técnico, pode ser um desafio e assume conotações negativas. Isso porque prioriza-se um modelo social no qual as qualidades que eram tradicionalmente atribuídas ao idoso (sabedoria, respeito, prestígio) são, de modo geral, ofuscadas pelas imagens negativas do sujeito em declínio físico e social (Santos et al., 2018).
As visões mais comuns da velhice e do idoso na sociedade atual são marcadas majoritariamente por estereótipos, preconceitos e tabus. Prevalece a ideia de que o idoso é um indivíduo com grandes limitações e perdas físicas, devido à deterioração de sua saúde funcional, dependência e perda de seus papeis sociais e de sua autonomia (Colussi et al., 2019; Menezes & Lopes, 2014; Santos et al., 2018).
Tais representações sociais afetam a população idosa, pois viver e, principalmente envelhecer, inserido nesse cenário de instabilidade e discriminação, podem gerar no idoso sentimento de insegurança e mal-estar (Martins & Lopes, 2017). Como consequência, os idosos podem experimentar sofrimentos de base biopsicossocial e espiritual, ocasionados por perdas sucessivas comuns à velhice, como as perdas na saúde e/ou capacidade física, mas também a consciência da própria finitude, a morte de entes queridos e a redução da integração social (Ribeiro & Borges, 2018).
A proximidade do processo de finitude também se apresenta como uma perspectiva negativa atribuída à velhice, nutrida pelo preconceito e o medo de chegar a essa etapa da vida. Isso ocorre porque a morte na sociedade ocidental contemporânea, de um modo geral, é um tabu social: as pessoas tentam se esquivar dela, ignorando-a ou até mesmo negando-a, como se pudessem negar a própria condição de mortais (Kübler-Ross, 1998). Como consequência dessa negação, rejeita-se a velhice, por ser a fase da vida mais próxima desse acontecimento (Menezes & Lopes, 2014). Assim, a tentativa de adiar a velhice é também fruto da busca inútil de adiar o confronto com a morte (Cocentino & Viana, 2011). Nesse contexto, é importante compreender como os idosos, que são subjetivamente sobrecarregados por esse imaginário social, percebem e significam a morte que se aproxima, tendo em vista que o processo de morrer é contínuo e presente no cotidiano dessas pessoas (Menezes & Lopes, 2014).
Essa morte iminente pode ser sentida antes mesmo da morte real, diariamente, de forma simbólica, a partir das perdas vivenciadas na velhice, como uma forma de preparação para a morte real. Acontecimentos como a morte de pessoas próximas da mesma idade, limitações físicas e cognitivas e o fim das relações de trabalho, fazem com que os idosos lidem inevitavelmente com a própria morte e o processo de enlutamento (Cocentino & Viana, 2011; Menezes & Lopes, 2014).
Diante da certeza da morte e do processo de finitude, o idoso pode ter, ao mesmo tempo, reflexões sobre as conquistas e realizações ao longo de sua vida, e momentos de temor pela proximidade da morte, gerando sentimentos distintos. Esses sujeitos podem se perceber ainda mais importantes para a família, amados e realizados e, por outro lado, também podem sentir-se estressados e angustiados, em função das perdas que acontecem durante a velhice e com a proximidade da morte (Faria et al., 2017).
Para lidar com essas angústias e transformações, os idosos podem utilizar estratégias de enfrentamento singulares. As crenças espirituais, associadas ou não a religiosidade, se caracterizam como uma dessas importantes estratégias que influenciam a maneira como os idosos enfrentam os problemas de saúde e sociais, proporcionando bem-estar ao longo da vida (Arrieira et al., 2018; Santos et al., 2013). Além disso, a rede de apoio social na velhice, que envolve o suporte emocional, financeiro, instrumental e relacional, oferecido por pessoas ou instituições, também se configura como parte importante da atenção integral a saúde do idoso e facilitador para um processo de envelhecimento positivo (Guedes et al., 2017).
Diante do exposto, é importante ressaltar que o idoso deve ser compreendido em sua singularidade e integralidade, uma vez que as experiências no final da vida irão depender do contexto no qual esse sujeito está inserido, sua historicidade, suas diferentes formas de inserção social ao longo da sua trajetória e sua exposição a contextos de vulnerabilidade (Schenker & Costa, 2019). Dessa forma, é importante não generalizar a forma como os idosos percebem e significam a velhice e seu processo de finitude, compreendendo cada um de forma individualizada.
Reconhecendo a singularidade da experiência, mas também a comunalidade de algumas características biopsicossociais e espirituais compartilhadas pela maioria, a literatura reconhece que muitos idosos apresentam condições crônicas de saúde (75,5%), que podem resultar em limitações funcionais e incapacidades, que influenciam a forma como eles irão significar e perceber sua velhice e seu processo de finitude e morte (Schenker & Costa, 2019).
Para auxiliá-los nesse processo, os cuidados paliativos apresentam-se como uma abordagem que oferece um olhar integral e singular aos idosos, auxiliando-os numa experiência positiva ao fim da vida (Costa et al., 2016). Segundo a OMS, os cuidados paliativos se configuram como uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares que enfrentam doenças que ameaçam a continuidade da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento. Para isso, visa a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual. Tal abordagem, apesar de ser conhecida pelo seu trabalho com pacientes em processo de finitude, dedica-se a qualquer sujeito que possui doença crônica, que demande cuidado. Aos idosos, oferece atenção ampla sobre distintos aspectos físicos, psíquicos, sociais e espirituais que são alterados no processo de envelhecimento e que precisam ser ressignificados (Carvalho & Parsons, 2012; Santos et al., 2018).
Para que esse cuidado seja eficaz, é importante pensar em um contraponto às visões negativas sobre a velhice e os idosos que prevalecem na sociedade. É possível identificar na literatura algumas visões positivas, consideradas e reafirmadas pela abordagem dos cuidados paliativos, que possibilitam um processo de envelhecimento com qualidade de vida e ressignificações desse período do ciclo vital. Uma dessas visões envolve a possibilidade de os idosos desenvolverem novas habilidades para estimular a qualidade de vida (QV) na velhice, com atividades que lhes tragam satisfação e promovam um envelhecimento positivo (Martins & Lopes, 2017). Essa forma de ver o idoso contribui para que seja garantido a esse sujeito, além de maior longevidade, felicidade e satisfação pessoal (Simeão et al., 2018).
Com base na discussão supracitada, a presente pesquisa teve por objetivo identificar os significados que idosos em cuidados paliativos atribuem à morte e à vida. De forma específica, buscou ainda: reconhecer quais os artifícios usados pelos idosos para significar a morte; identificar que atividades contribuem para a ressignificação da vida; e compreender a relação entre morte e vida para o idoso.
A pesquisa partiu dos seguintes pressupostos: (1) a relação entre morte e vida são perspectivas complementares e positivas na percepção de idosos; (2) idosos significam a morte principalmente a partir de crenças religiosas e espirituais; e (3) a participação em grupos psicoeducativos, ginástica laborativa, fisioterapia, interações sociais e atividades artísticas, levam os idosos a ressignificarem a vida.
MÉTODO
TIPO DE PESQUISA
A partir dos objetivos expostos, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo exploratória e descritiva, e temporalidade transversal.
LOCUS DA PESQUISA
A pesquisa foi realizada no âmbito do "Projeto de Extensão em Cuidados Paliativos nas Instituições e Comunidades" (Pallium), realizado pelo Laboratório de Estudos e Práticas em Psicologia e Saúde (LEPP-Saúde), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UNIFOR. O estudo se desenvolveu no Lar Francisco de Assis, uma associação fundada em 22 de junho de 1962 na cidade de Fortaleza, que desenvolve um Programa de Assistência Social ao Idoso em situação de risco social. O projeto promove ações de cuidados paliativos junto aos idosos usuários dos serviços oferecidos pelo lar. Nele, são utilizados recursos lúdicos na promoção de discussões sobre temas como morte, vida, envelhecimento, saúde, família, espiritualidade, luto, saudade, dentre outros.
PARTICIPANTES
Contou-se com a participação da maioria dos idosos que participavam das atividades do projeto Pallium. No total, foram convidados para os grupos focais 27 idosos, com aceitação de 18. Estavam presentes no primeiro encontro 12 e no segundo 10. Na caracterização dos dados sociodemográficos, constatou-se que eles tinham entre 65 e 91 anos de idade, a maioria era do sexo feminino e estavam inseridos em contextos de vulnerabilidades sociais. A maioria dos idosos vinham sozinhos para o Lar, apesar de dividirem o domicílio com algum membro da família. Esse deslocamento se dava a partir de transportes públicos, andando, ou com veículo particular, sendo este último o caso de uma pequena parcela dos participantes que contava com acompanhantes e/ou cuidadoras. Como critério de inclusão, considerou-se: ser idoso (a partir de 60 anos) e frequentar o grupo há pelo menos seis meses.
INSTRUMENTOS E TÉCNICAS
Foram realizadas entrevistas em grupos focais, uma técnica de interação grupal que promove uma ampla problematização sobre um tema ou foco específico (Backes et al., 2011), efetivados em dois encontros, com duração média de 40 minutos cada. Os temas e perguntas norteadoras do roteiro aberto utilizado na discussão contemplavam as categorias a seguir: (1) atividades que contribuem para a qualidade de vida na velhice; (2) ressignificação da vida na velhice; e (3) significação da morte na velhice.
PROCEDIMENTOS ÉTICOS E DE COLETA DE DADOS
Considerando-se os aspectos éticos referentes a pesquisas envolvendo seres humanos, o projeto desta investigação foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer nº: 3.773.919 e recebeu anuência da instituição onde foi realizado. Foram respeitados todos os aspectos éticos envolvendo pesquisas com seres humanos propostas nas Resoluções 466/12.
O convite para a participação nos grupos foi efetuado pelos próprios pesquisadores ao final dos encontros do projeto Pallium que antecederam a realização da pesquisa e durante o intervalo de outras atividades que os idosos participavam no Lar. Para tal, o estabelecimento de vínculo entre pesquisadores e idosos construído nos encontros anteriores à coleta de dados e sensibilização contínua dos participantes do projeto foram essenciais.
Os dois encontros do grupo focal ocorreram entre fevereiro e março de 2020 (às vésperas do início da pandemia de COVID-19 e fechamento do Lar por medida sanitária de isolamento social), no horário do projeto Pallium. Foram realizados após a anuência dos participantes, no auditório da instituição e conduzidos pelos pesquisadores a partir das perguntas norteadoras, com o auxílio de gravador. Desenvolveram-se em três momentos: o primeiro consistia em uma dinâmica de sensibilização, por meio de músicas e exercícios; o segundo focava nas perguntas e discussão da temática proposta; e o terceiro se configurava em uma dinâmica de fechamento e reflexão dos temas debatidos.
ANÁLISE DOS DADOS
Os dados obtidos a partir dos discursos do grupo focal foram analisados por meio do software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), com o intuito de apreender a estrutura e a organização do discurso, sendo capaz assim de informar as relações entre os campos lexicais que são mais frequentemente enunciados pelos participantes da pesquisa (Camargo & Justo, 2013).
As análises se deram em duas etapas: 1) Análises lexicográficas clássicas, para verificação estatística da quantidade de segmentos de texto (ST) – recortes de frases de cerca de três linhas -, evocações e formas; 2) Classificação Hierárquica Descendente (CHD), para o reconhecimento do dendrograma com as classes que emergiram, no qual quanto maior o χ2, mais associada está a palavra com a classe, e desconsiderando as palavras com χ 2 < 3,80 (p < 0,05) (Camargo & Justo, 2013).
Para aprofundamento do conteúdo emergido na CHD, foram realizadas análises de conteúdo de Bardin nas evocações que emergiram das quatro classes. Essa análise pauta-se na observação da frequência das características que se repetem no conteúdo do texto, de forma que se busca categorizar as unidades de texto (palavras ou frases) que se repetem, inferindo uma expressão que as representem (Caregnato & Mutti, 2006), explorando o conteúdo geral e seus refinamentos de cada classe.
No próximo tópico serão apresentados os principais resultados obtidos no estudo e a discussão à luz da literatura (Cocentino & Viana, 2011; Colussi et al., 2019; Costa et al., 2016; Martins & Lopes, 2017; Menezes & Lopes, 2014; Faria et al., 2017; Ribeiro & Borges, 2018; Santos et al., 2018; Santos et al., 2013; Simeão et al., 2018) sobre as significações apreendidas sobre morte e vida.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O corpus geral foi constituído por 87 segmentos de texto (ST), com aproveitamento de 60 STs (70,0%). Emergiram 3.003 ocorrências (palavras, formas ou vocábulos), sendo 727 palavras distintas e 420 com uma única ocorrência. O conteúdo analisado foi categorizado em quatro classes: Classe 1 – Significações sobre a morte, com 17 ST (28,33%); Classe 2 – As relações entre vida e morte na velhice, com 16 ST (26,67%); Classe 3 – Significações sobre a vida na velhice, com 11 ST (18,33%); e Classe 4 – Atividades diárias e a ressignificação da vida, com 16 ST (26,67%) (ver Figura 1).
CLASSE 1 – SIGNIFICAÇÕES SOBRE A MORTE
Compreendendo 28,33% (f = 17 ST) do corpus total analisado, esta classe é constituída por palavras e radicais no intervalo entre x2 = 7,25 (Querer) e x2 = 16,86 (Deus). Ela é composta por palavras como "Dia" (x2 = 8,27); "Vez" (x2 = 7,99); "Bem" (x2 = 7,99); "Pegar" (x2 = 7,99) e "Pedir" (x2 = 7,99), e fala da ambivalência entre a aceitação da morte pelos idosos e a dificuldade/negação em falar sobre esse assunto na velhice. A maioria dos participantes afirmaram aceitar a morte e a ideia de finitude como algo inevitável e parte do ciclo da vida. Foi possível perceber que essa significação estava relacionada à espiritualidade e a religiosidade, tendo em vista que muitos relataram a morte como sendo o começo de uma nova vida e a vontade de Deus, afirmando estarem preparados para quando esse momento chegasse.
Tal aspecto corrobora a literatura que aponta os comportamentos religiosos como bastante frequentes na velhice, representados como a principal estratégia de enfrentamento e recurso para a elaboração da certeza da morte e do processo de finitude por idosos. A partir da religião, espiritualidade ou fé esses sujeitos lidam com o estresse, as aflições, os medos e as consequências negativas geradas pela experiência de envelhecer, de forma que esse enfrentamento religioso se relaciona ao processo de saúde/doença e à qualidade de vida do idoso (Santos et al., 2013).
Eu acho que ninguém deve temer a morte. Não deve, porque é o seguinte, a gente nasceu e a palavra já diz: 'nasceu, morreu'. Ninguém veio para semente, né verdade? Então eu tenho quase 87 anos [...], mas todo dia eu digo para o meu Deus verdadeiro: 'Senhor, eu estou preparada. Na hora que vós me chamar, eu estou aqui'. Também não vou dizer que não vou com saudades dos meus familiares, claro que sim, mas também tenho certeza disso: não adianta ficar aqui; já vivi bastante; estou bem feliz; estou bem satisfeita com os meus dias; muitas coisas que queria fazer, já fiz, com todos os meus filhos (Participante 14).
Quando Deus quiser me levar, eu estou pronta. A vontade é de Deus, não é da gente. No dia que Deus quiser pode me levar para o lugar que eu mereço (Participante 16).
Alguns idosos, por outro lado, apresentaram dificuldade e negação em falar e refletir sobre a morte como um fato próximo e inevitável do ciclo vital, afirmando que não pensavam nela, e que a queriam distante, mesmo sabendo que um dia vão morrer. Tais significações ambíguas estão relacionadas a sentimentos de medo, tristeza, saudade, e insegurança frente ao que esse fenômeno representa, fazendo com que ao longo da vida, e principalmente da velhice, essa morte seja negada, afastada e não significada. Essa atitude reforça o ideário social, os tabus, estereótipos e preconceitos sobre a morte e a velhice, de forma que, assim como a morte, ser idoso também se torna algo negativo por ser uma fase da vida com maior grau de proximidade desse acontecimento (Martins & Lopes, 2017; Menezes & Lopes, 2014).
Eu quero é a morte bem longe de mim. Quero nem me lembrar dela, porque ela já está chegando até meu mocotó. Eu quero é que ela vá embora (Participante 07).
A morte tem cara feia. Eu não penso na morte, porque ela é muito triste (Participante 03).
CLASSE 2 – AS RELAÇÕES ENTRE VIDA E MORTE NA VELHICE
Compreendendo 26,67% (f = 16 ST) do corpus total analisado, a segunda classe é constituída por palavras e radicais no intervalo entre x2 = 5,12 (Ruim) e x2 = 21,43 (Vida). É composta por palavras como "Melhor" (x2 = 15,00); "Família" (x2 = 11,79); "Nós" (x2 = 8,68); "Demais" (x2 = 7,93); e "Achar" (x2 = 7,93). Apresenta visões positivas sobre a vida, em contrapartida a visões negativas sobre a proximidade da morte na velhice.
Todos os idosos atribuíram à vida uma percepção positiva, mesmo com as limitações e perdas presentes na velhice. Tal fato pode estar associado às reflexões que são feitas nessa fase do ciclo vital acerca das experiências e realizações ao longo da vida, mesmo que haja momentos de temor pela proximidade da morte, durante o processo de finitude (Faria et al., 2017). Essa positividade também é fruto de um sentimento de gratidão pela vida vivida e a aceitação de que ela não é mais como era antes. Esse resultado corroborou os dados encontrados em uma pesquisa realizada com idosos da cidade de Bambuí (MG) que, frente às limitações físicas e incapacidades, apresentavam o sentimento de gratidão, principalmente a Deus, pela vida, mostrando mais uma vez que religiosidade contribui para criação de novos sentidos reconfortantes para os idosos (Santos et al., 2013).
A vida é o melhor que tem. A morte eu não sei como é (Participante 09).
Quem é que acha a vida ruim? A vida é muito boa, tem que achar ruim não. Precisa nem dizer que acha a vida boa, porque todo mundo acha a vida boa, nem que seja ruim (Participante 10).
Na velhice a gente tem que entender que não vai faltar dor. Temos que nos conformar com a dor. Segundo, temos que ver que não temos mais 20 anos e o melhor de tudo é ficar feliz com tudo isso. Eu olho pros meus filhos, pros meus netos e bisneto, tataraneto, pra que melhor? Já danço com os meus tataranetos. Então, 'Jesus obrigado'. Todos os dias eu só tenho que dizer isso, só tenho lucro, durmo bem e como bem (Participante 14).
Eu digo todos os dias a Deus: 'Quando Deus quiser me tirar, você pode tirar, porque eu já aproveitei tudo de bom na minha vida e ainda estou aproveitando' (Participante 03).
De forma igualmente unânime, todos os idosos atribuíram à morte uma perspectiva negativa, relacionando esse fenômeno a sentimento de tristeza, saudade para os que ficam e irreversibilidade. Tal fato demonstrou como é difícil lidar com esse caráter definitivo e desconhecido da morte, aspectos que reforçam a ideia desse fenômeno como um tabu social, do qual as pessoas buscam se esquivar e ignorar. Entretanto, foi possível perceber que essa questão é ainda mais angustiante na velhice, uma vez que, diariamente, idosos são convocados a lidar com mortes simbólicas, como a perda de amigos, familiares, físicas e cognitivas, que fazem com que se deparem inevitavelmente com reflexões acerca da própria morte e com os processos de luto e finitude (Cocentino & Viana, 2011; Menezes & Lopes, 2014).
A morte é uma tristeza para a família, para os que ficam. Lembrei da minha irmã que morreu recente, faz três meses. Nós somos 12 irmãos e somos muito unidos, e aí a gente vai perdendo aos poucos a família (Participante 02).
Eu sinto um sentimento muito triste, porque eu vou deixando pessoas que eu vou sentir muita saudade, né? Porque de qualquer maneira a gente tem família e a gente vai partir para nunca mais ver, e fica uma coisa meio complicada para a gente. Mas se ela vier, fazer o que? Temos mais é que aceitar, não podemos fazer nada. Mas que eu sou feliz, eu sou (Participante 04).
CLASSE 3 – SIGNIFICAÇÕES SOBRE A VIDA NA VELHICE
Compreendendo 18,33% (f = 11 ST) do corpus total analisado, a terceira classe é constituída por palavras e radicais no intervalo entre x2 = 8,04 (Mais) e x2 = 19,8 (Hoje). É composta por palavras como "Velho" (x2 = 9,09); "Novo" (x2 = 9,09); "Sentir" (x2 = 9,19) e "Ainda" (x2 = 9,19). Fala dos significados positivos e negativos que são atribuídos ao viver na velhice e ao ser idoso.
A maioria dos idosos relatou que viver na velhice e ser idoso é algo positivo e prazeroso. É também sinônimo de ganhos, pois, ao chegar nessa fase da vida, conquistaram direitos, independência e respeito, e viveram experiências que não eram possíveis na juventude. Além disso, foi possível perceber que aqueles que apresentaram essa visão positiva da velhice, consideravam o processo de envelhecimento como uma etapa natural da vida, e se sentiam felizes em ter chegado a esse momento do ciclo vital.
Para Colussi et al. (2019), a visão positiva do envelhecer está associada a condições positivas de saúde, tendo em vista que se a pessoa idosa tem boas condições de saúde, terá uma melhor qualidade de vida e, consequentemente, ressignificará de forma positiva as transformações ocorridas na velhice. Foi possível observar tal aspecto nos participantes da pesquisa, uma vez que a maioria que relatou ser positivo viver na velhice, disse ter uma boa qualidade de vida, com autonomia, relações familiares saudáveis e boas condições de saúde.
Eu não me preocupo com a velhice, sempre estou me sentindo jovem. Ser velha é ser criança, é ter direito a muitas coisas. Eu gosto muito da minha vida, do jeito que eu sou, velha ou nova. O que eu fazia antigamente hoje eu faço do mesmo jeito, então me sinto assim uma velha com coragem para enfrentar ainda qualquer coisa (Participante 03).
Eu sou muito mais feliz agora do que quando eu era mais nova. Eu agora vivo, porque antes eu vegetava. Estou vivendo agora depois de idosa (Participante 04).
No entanto, outra parcela dos idosos relatou que viver na velhice e ser idoso é algo negativo e motivo de sofrimento. Esse sofrimento, conforme aponta a literatura, é biopsicossocial e espiritual e está associado as perdas sucessivas comuns a velhice, como de papéis sociais, autonomia, saúde física, relações de trabalho, entre outras (Ribeiro & Borges, 2018). Nesse contexto, ser idoso pode assumir características negativas por conta do contexto socioeconômico e cultural no qual o sujeito está inserido, acarretando consequências para a sua vida e na forma de significar essa realidade (Santos et al., 2018).
Diante disso, é imprescindível uma forma de cuidado diferenciada, que leve em consideração a singularidade e autenticidade de cada idoso, assim como suas angústias e temores. A abordagem paliativista, proposta nas intervenções do grupo, se configura como esse tipo de cuidado e o seu início precoce a indivíduos em idade avançada e portadores de doenças crônicas, como é o caso dos idosos assistidos no Lar, torna-se fundamental para a garantia de melhores experiências ao fim da vida e na melhora da qualidade de vida desses idosos, uma vez que leva em consideração todos os aspectos que são alterados no processo de envelhecimento. Para que possam ser ressignificados pelos idosos, tais aspectos precisam receber atenção ao longo de toda a velhice, e não simplesmente no contexto de iminência da morte (Carvalho & Parsons, 2012; Costa et al., 2016; Santos et al., 2018)
Eu não gosto de ser velha. Não gostei porque depois de velha eu sofri demais, e quando eu era nova nem sofria (Participante 07).
Eu era saudável quando eu cheguei aqui, pulando, brincando e hoje eu não faço mais. Perdi minhas atividades aqui por uns dias por causa da muleta, e também estou com falhas na memória (Participante 18).
CLASSE 4 – ATIVIDADES DIÁRIAS E A RESSIGNIFICAÇÃO DA VIDA
Compreende 26,67% (f = 16 ST) do corpus total analisado. A quarta classe foi constituída por palavras e radicais no intervalo entre x2 = 4,33 (Porque) e x2 = 11,03 (Pensar). É composta por palavras como "Casa" (x2 = 10,95); "Hora" (x2 = 5,12); e "Ficar" (x2 = 4,52).
Essa classe aborda as atividades diárias, os vínculos afetivos e os novos papéis sociais que contribuem para a ressignificação da vida na velhice e são importantes na qualidade de vida dos idosos. Retrata também uma mudança de paradigmas que vem ganhando força nos últimos anos, de que os idosos devem ser considerados por outra perspectiva, como sujeitos com possibilidade de desenvolverem novas habilidades, assumirem novos papéis e não estarem associados a uma ideia de dependência e declínio físico e social (Martins & Lopes, 2017). A partir dos relatos, ficou claro que a maioria dos idosos participantes da pesquisa é estimulado a aprender novas atividades, criar vínculos e estabelecer novos papéis sociais que repercutem na extensão de toda a sua rotina, o que contribui para a ressignificação de suas vidas. A satisfação pessoal propiciada por essas iniciativas auxilia na promoção de um envelhecimento ativo, garantindo, não só maior longevidade, mas também felicidade e qualidade de vida (Simeão et al., 2018).
Para mim, bem-estar é exercício físico, é fazer movimento. Em casa eu não paro. Eu, que saio para resolver tudo e me sinto bem, eu fico mais doente se eu ficar dentro de casa, eu adoeço (Participante 03).
Cozinhar para mim é a melhor coisa que eu faço da minha vida. Varrer casa não suporto, lavar prato eu não suporto, mas comida é comigo mesmo. Gosto de todo dia fazer uma novidade diferente, cada dia eu faço uma coisinha boa (Participante 01).
Fazer exercícios, cozinhar, ir para os meus grupos de oração da igreja, isso para mim é muito bom, é uma terapia maravilhosa. Se não fosse tudo isso, eu já tinha morrido de depressão. E também tem os meus animaizinhos, que eu me divirto com eles, sou feliz com eles, graças a Deus (Participante 17).
Quando tem brincadeira aqui eu danço, mesmo com a dor no joelho, eu danço. Me divirto, sou muito comunicativa, gosto muito de me comunicar. Quando conheço uma pessoa, trato de ser amiga, porque é muito bom encontrar uma amiga, para dizer quando não está muito legal e confiar nessa amiga, não é mesmo? Pois é o meu caso (Participante 04).
Em síntese, a partir dos resultados obtidos no presente estudo, foi possível apreender que os idosos participantes atribuíram percepções positivas à vida e negativas à morte, denunciando como a temática do morrer ainda é um grande tabu social, principalmente quando relacionada à velhice e as mortes simbólicas vivenciadas ao longo dessa fase da vida (Cocentino & Viana, 2011; Menezes & Lopes, 2014). Nesse contexto, eles sinalizaram que a religião e a espiritualidade funcionam como uma das principais estratégias de enfrentamento no processo de finitude de idosos, assim como contribuem na ressignificação de experiências negativas ocorridas no envelhecer, colaborando também para a percepção do fenômeno da morte como algo inevitável e parte do processo natural da existência (Santos et al., 2013).
Dessa maneira, percebe-se a importância de uma forma de cuidado singular e holística para idosos com doenças crônicas que vivenciam a velhice e a finitude, como a abordagem paliativista, que se aplicada de forma precoce, possibilita a melhora da qualidade de vida desses sujeitos (Costa et al., 2016; Santos et al., 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como objetivo identificar os significados que idosos em cuidados paliativos atribuem à morte e à vida. Desse modo, a partir do grupo focal apreendeu-se que a morte é negada e evitada por idosos que, mesmo vivendo mortes simbólicas diárias, evitam refletir sobre a morte real. Esse fato corrobora os estereótipos, tabus e preconceitos frente à morte e à velhice presentes na sociedade ocidental contemporânea.
A significação da morte possui estreita relação com a espiritualidade e a religiosidade, tendo em vista que esses aspectos funcionam como estratégia de enfrentamento do idoso ao seu processo de finitude e às perdas comuns na velhice. Além disso, observou-se a importância da rede de apoio social nesta etapa da vida, a qual se configura como fator importante para a saúde física e emocional dos idosos, fomentando condições positivas de saúde, fortemente associadas a visões e percepções positivas do processo de envelhecer, como também da qualidade de vida durante a velhice.
Formas de cuidado integrais e que levem em consideração todos os aspectos, angústias e particularidades do sujeito podem garantir melhores experiências no processo de envelhecer, assim como promover melhor qualidade de vida aos idosos. A abordagem dos cuidados paliativos, quando aplicada de forma precoce a pessoas com doenças crônicas, como a maioria da população idosa, se configura como uma forma de cuidado e garante benefícios para esses sujeitos e às vivências de seus processos de finitude.
Entre as limitações da pesquisa, estão a grande rotatividade de idosos que participavam do grupo, impossibilitando a criação de vínculos mais profundos com os pesquisadores, e a demanda de fala que os idosos apresentavam no decorrer dos encontros, pois em muitos momentos a discussão principal da temática da pesquisa era desviada para outras problemáticas. Por outro lado, reforça-se a relevância do presente estudo ao propiciar o debate sobre o cuidado ampliado de idosos que estão vivenciando o processo de envelhecimento e de finitude, dando voz a eles na compreensão sobre suas percepções sobre o morrer e o viver na velhice.
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Endereço para correspondência
Cynthia de Freitas Melo
E-mail: cf.melo@yahoo.com.br
Submetido: 16/06/2020
Reformulado: 11/02/2020
Aceito: 12/02/2021
1 Cynthia de Freitas Melo é doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
2 Jaiana Cristina Cândido Morais é graduanda em Psicologia na Universidade de Fortaleza. Bolsista de iniciação científica pela Fundação Edson Queiroz.
3 Liana Carvalho Lima de Medeiros é graduanda em Psicologia na Universidade de Fortaleza. Bolsista de iniciação científica pela Fundação Edson Queiroz.
4 Ana Cláudia Freire Barreto Lima é psicóloga e mestranda em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
5 Lucas Ponte Bonfim é psicólogo e mestrando em Psicologia pela Universidade de Fortaleza.
6 José Clerton de Oliveira Martins é doutor em Psicologia pela Universitat de Barcelona. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.