Revista da SPAGESP
ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.22 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2021
ARTIGOS
Psicologia em tempos de COVID-19: experiência de grupo terapêutico on-line
Psychology in times of covid-19: on-line therapeutic group experience
Psicología en tiempos de covid-19: experiencia de grupo terapêutico em línea
Pamela Perina Braz Sola1; Érika Arantes de Oliveira-Cardoso2; Jorge Henrique Correa dos Santos3; Manoel Antônio dos Santos4
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
RESUMO
A pandemia do novo coronavírus (COVID-19) impôs mudanças no funcionamento dos serviços de saúde. Este estudo objetiva contribuir com o enriquecimento da prática psicológica em resposta à situação de crise sanitária, analisando a implementação de um grupo terapêutico on-line oferecido pela equipe de psicologia para pacientes de um serviço público ambulatorial, de julho a dezembro de 2020. O grupo configurou-se como alternativa efetiva para oferta de cuidados psicológicos e ajuda mútua diante da crise, favorecendo recursos para conforto, alívio das tensões e manutenção da rede de apoio em tempos de distanciamento social. A intervenção suscita reflexões acerca de implicações éticas, limites e possibilidades do uso de tecnologias nas ações de cuidado e adaptações necessárias nas práticas grupais para modalidade on-line.
Palavras-chave: COVID-19; Pandemia; Psicoterapia de grupo; Terapia on-line.
ABSTRACT
The pandemic of the new coronavirus (COVID-19) imposed changes in the functioning of health services. This study aims to contribute to the enrichment of psychological practice in response to the health crisis situation, analyzing the implementation of an on-line therapeutic group offered by the psychology team for patients of public outpatient service, from July to December 2020. The group was configured as an effective alternative for offering psychological care and mutual help in the face of crisis, favoring resources for comfort, relief of tension, and maintenance of the support network in times of social distance. The intervention raises reflections about ethical implications, limits, and possibilities of using technologies in care actions and necessary adaptations in group practices for on-line modality.
Keywords: COVID-19; Pandemic; Group psychotherapy; On-line therapy.
RESUMEN
La pandemia del nuevo coronavirus (COVID-19) impuso cambios en el funcionamiento de los servicios sanitarios. Este estudio pretende contribuir al enriquecimiento de la práctica psicológica en respuesta a la situación de crisis sanitaria, analizando la puesta en marcha de un grupo terapéutico en línea ofrecido por el equipo de psicología para los pacientes de un servicio ambulatorio público, desde julio hasta diciembre de 2020. El grupo fue una alternativa eficaz para ofrecer atención psicológica y ayuda mutua durante la crisis, proporcionando recursos de consuelo, aliviando la tensión y manteniendo la red de apoyo en momentos de distanciamiento social. La intervención plantea reflexiones sobre las implicaciones éticas, los límites y las posibilidades del uso de las tecnologías en las acciones asistenciales y las adaptaciones necesarias en las prácticas grupales para la modalidad en línea.
Palabras clave: COVID-19; Pandemia; Psicoterapia de grupo; Terapia en línea.
PANDEMIA DA COVID-19: IMPLICAÇÕES PARA A ÁREA DA SAÚDE
No início de 2020, diante do rápido aumento da disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2), agente causador da COVID-19, medidas protetivas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde (WHO) (2020) passaram a ser adotadas nos estados e municípios brasileiros visando ao controle da pandemia. Com o objetivo de mitigar os impactos desencadeados pela crise sanitária em todos os setores da vida e evitar o colapso do sistema de saúde, diminuir o pico de incidência de novos casos de infecção e o número de mortes, foram adotadas medidas como isolamento físico de casos suspeitos, fechamento de escolas e universidades, confinamento de idosos e pessoas com comorbidades e quarentena para toda a população (Brooks et al., 2020; Ferguson et al., 2020).
O Governo do Estado de São Paulo (2020), por meio do Decreto n° 64.879, instituiu o início da quarentena, com vistas a aumentar a taxa de isolamento social. Em consequência dessa medida emergencial, a circulação de pessoas foi limitada a atividades essenciais a fim de conter a disseminação da doença. Durante os meses subsequentes, protocolos de operação e de monitoramento dos casos confirmados da COVID-19 foram utilizados para definir o enrijecimento ou flexibilização das restrições a atividades não-essenciais, mas houve uma série de falhas na implementação das medidas em razão da ausência de uma coordenação nacional da política de combate à pandemia, incúria do governo central, quebra do pacto federativo e consequente desarticulação das ações entre as esferas federal, estadual e municipal (Oliveira-Cardoso et al., 2020).
Medidas de distanciamento social são preconizadas em diversos momentos e contextos durante o curso de uma pandemia, a fim de conter a propagação descontrolada da doença. Do ponto de vista técnico, a quarentena consiste na restrição de movimento de uma pessoa potencialmente infectada e sem manifestação de sintomas. É uma das medidas mais antigas de controle de disseminação de doenças infecto-contagiosas e pode ser aplicada a grupos de indivíduos de maneira voluntária ou compulsória (Wilder-Smith & Freedman, 2020).
O isolamento físico, geralmente adotado em hospitais, é recomendado para separar uma pessoa com diagnóstico confirmado de doença contagiosa de outras não infectadas. Essa medida é efetiva para a prevenção do espalhamento de infecções virais, como a COVID-19.
O distanciamento social consiste na redução da circulação e interação de pessoas de uma comunidade, na qual pode haver pessoas contaminadas e ainda assintomáticas. Tal medida implica no fechamento compulsório de escolas, escritórios, empresas, lojas, shoppings, restaurantes, padarias, oficinas, concessionárias, bares, boates, academias, salões, feiras e estádios, além do cancelamento de cultos religiosos, reuniões e encontros presenciais. É uma estratégia adotada quando já há indício de transmissão comunitária da doença (Wilder-Smith & Freedman, 2020).
Medidas emergenciais para a contenção do contágio, como a suspensão do comércio e implementação de trabalho remoto, visam a reduzir a circulação de pessoas e evitar aglomerações. Os serviços de saúde, desde o início da pandemia, tiveram que implementar adaptações no seu funcionamento, a fim de atender à demanda crescente e assegurar a continuidade da assistência de outras doenças. Porém, as medidas tomadas no sentido de reorientar o atendimento para priorizar os pacientes afetados pela COVID-19 implicaram na redução ou cancelamento de consultas, exames e cirurgias eletivas, gerando impactos sistêmicos em toda a cadeia de assistência à saúde em geral.
As medidas de prevenção e controle devem seguir orientações baseadas em evidências científicas, constantemente atualizadas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (2020), por meio da nota técnica GVIMS/GGTES/ANVISA nº 07/2020, orienta a elaboração de plano de contingência para definir diversas ações práticas necessárias para o enfrentamento da situação de crise nos serviços de saúde. Assim, as medidas restritivas adotadas em diferentes níveis para controle de exposição a fontes de infecção envolveram a combinação de minimização da exposição, controles de engenharia e uso de equipamentos de proteção individual (EPIs). As dinâmicas de organização e funcionamento dos serviços sofreram alterações substanciais: triagem para identificação de casos suspeitos, distanciamento físico, higienização de salas, identificação e isolamento de casos suspeitos, disponibilidade de insumos para higienização das mãos e de máscaras para funcionários, pacientes e acompanhantes, além da limitação de visitas.
Além dos hospitais, em decorrência da pandemia o trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde de diversos outros serviços (atenção primária, urgência e emergência, atenção psicossocial, atenção ambulatorial especializada e hospitalar) também necessitou de adequações. O papel da psicologia, nesses contextos, consistiu em contribuir com a implantação dos protocolos sanitários e serviços estratégicos, apoio psicológico aos demais profissionais das equipes, divulgação de informações confiáveis para usuários da rede, orientação sobre os serviços da rede de assistência disponíveis e oferta de suporte psicossocial, com foco na promoção de bem-estar, por meio do fortalecimento da resiliência e redução do estresse agudo, de modo a mitigar o sofrimento intenso e prevenir agravos futuros (Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], 2020a).
Assim, a COVID-19 provocou alterações drásticas e abruptas na dinâmica do trabalho, exigindo adaptações e criatividade por parte das equipes de saúde. Nesse cenário de amplas e surpreendentes transformações, o uso de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) passou a ser amplamente reconhecido e incentivado. Com a impossibilidade de visitas hospitalares, os serviços implementaram estratégias de comunicação on-line entre pacientes internados e familiares, com a intermediação da equipe de saúde. A colaboração dos profissionais de psicologia foi decisiva nesse contexto. Além dessas medidas, acompanhamento telefônico e teleconsultas por meio de chamadas de áudio ou de vídeo passaram a ser adotados por equipes de saúde para diminuir o fluxo presencial de pacientes nos serviços (Oliveira-Cardoso et al., 2020).
Em relação à atuação profissional, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) (2020a), seguindo as diretrizes sanitárias da WHO (2020), publicou a Resolução N° 4, de 26 de março de 2020, dispondo sobre a regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de TIC durante a pandemia de COVID-19. Atendimentos psicológicos on-line foram autorizados mesmo antes da aprovação da plataforma e-Psi. Além disso, dadas as características do novo coronavírus, foi permitido o atendimento por meio de TIC de pessoas e grupos: (1) em situação de urgência e emergência; (2) em situação de emergência e desastres; (3) em situação de violação de direitos ou de violência. Todas as alterações previstas preservavam as considerações a respeito da ética, da legislação profissional vigente e da utilização de conhecimentos e técnicas fundamentados na ciência psicológica.
Frente os novos desafios decorrentes da pandemia, foi imperativo buscar subsídios para o entendimento da nova situação e refletir sobre suas implicações no cuidado em saúde. Estudos acadêmicos desenvolvidos em pleno andamento da pandemia e relatos de práticas exitosas foram publicados durante o ano de 2020. Diversos cursos a distância e webinários foram ofertados com intuito de prover ferramentas de compreensão e elaboração de estratégias de planejamento, preparação e resposta para nortear o trabalho com a população em geral, pessoas infectadas, familiares e trabalhadores da linha de frente do combate ao vírus.
O Ministério da Saúde (2020), por meio da portaria n° 639, dispôs sobre a ação estratégica "O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde", que tratou da capacitação e cadastramento de profissionais da saúde, incluindo psicólogas/os, para o enfrentamento à COVID-19. Adicionalmente, a Organização Mundial da Saúde (WHO) (2020) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) (2020b) publicaram orientações e recomendações para cuidados em saúde mental, alinhadas às necessidades emergentes no contexto de pandemia. Discussões sobre as alterações das práticas profissionais e novas normativas compuseram o movimento de reorganização e reinvenção da prática psicológica em diversos contextos (Schmidt et al., 2020a).
As intervenções e adaptações realizadas pelas equipes de psicologia dos serviços de saúde são plurais e dependem das particularidades de cada serviço, contexto e comunidade. Portanto, é essencial conhecer as características de cada cenário antes de planejar ações. Além disso, fundamentar as ações em evidências científicas e valorizar as lições derivadas de experiências semelhantes implementadas em cenários de desastres e catástrofes, são estratégias que podem potencializar o trabalho.
Considerando o exposto, este estudo objetiva contribuir com o enriquecimento da prática psicológica em resposta à situação de crise sanitária deflagrada pela pandemia do novo coronavírus, analisando a implementação de um grupo terapêutico on-line oferecido pela equipe de psicologia para pacientes de um serviço público ambulatorial, de julho a dezembro de 2020.
ADAPTANDO-SE ÀS MUDANÇAS: ATUAÇÃO DA EQUIPE DE PSICOLOGIA EM SERVIÇO AMBULATORIAL
Localizado em um município do interior do Estado de São Paulo, o Hemocentro consiste em uma instituição pública considerada referência nacional e que conta, entre outros recursos sofisticados, com um amplo serviço ambulatorial. Assim, além de realizar coleta, processamento, testagem e distribuição de hemocomponentes, também disponibiliza atendimentos em regime ambulatorial e pronto-atendimento a pessoas que vivem com distúrbios hereditários da coagulação sanguínea e portadores de hemoglobinopatias. O serviço mantém ambulatórios subdivididos em Anemias, Hemostasia, Transplante Autólogo de Medula Óssea (TAMO) e Mieloma Múltiplo. O Hemocentro conta com uma complexa estrutura de laboratórios para realização de exames e pesquisas, além de uma estrutura de leitos de atendimento para realização de procedimentos terapêuticos como sangria e aférese.
Para atendimento dos pacientes, o Hemocentro conta com diversas equipes interdisciplinares compostas por profissionais de enfermagem, medicina, odontologia, psicologia e assistência social. A equipe de psicologia é composta por um/a psicólogo/a bolsista de especialização técnica em psicologia e estagiárias/os do curso de graduação em psicologia, vinculados ao curso de psicologia do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, que recebem orientação e supervisão de psicólogos e docentes da FFCLRP-USP.
Com as medidas decretadas pelo governo do Estado de São Paulo, em 20 de março de 2020, os protocolos de atendimento do Hemocentro foram alterados, a fim de minimizar os riscos de contágio pelo vírus e assegurar a continuidade da assistência. Assim, para evitar aglomerações de pessoas e garantir a assepsia e ventilação nos ambientes fechados, implantou-se a reorganização das agendas de atendimento e foram feitas adaptações nos espaços de atendimento. Com a reorganização dos fluxos de atendimento, as consultas nos ambulatórios e os exames de rotina passaram a ser agendados de maneira diluída durante a semana. Os atendimentos presenciais priorizaram apenas casos urgentes e situações emergenciais. Os profissionais de saúde passaram a realizar teleatendimento para acompanhamento dos casos à distância. EPIs e insumos para higienização das mãos foram disponibilizados para funcionários, pacientes e acompanhantes.
Em sintonia com as novas necessidades do serviço, os atendimentos psicológicos presenciais foram mantidos exclusivamente em situações excepcionais e para pacientes com necessidades específicas. Os demais atendimentos foram transferidos para o ambiente virtual. As atividades realizadas on-line foram coordenadas pela psicóloga, bolsista de especialização técnica em psicologia. Três estagiários da graduação do curso de psicologia foram afastados dos cuidados presenciais e as atividades de estágio foram adaptadas para funcionarem no modelo remoto, incluindo os atendimentos individuais, em grupo e as respectivas supervisões. Adicionalmente, compõem a equipe remota dois supervisores da FFCLRP-USP e um mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da mesma instituição, ex-bolsista de especialização técnica do Hemocentro, que contribuiu com as intervenções voluntariamente.
As ações, que serão apresentadas na sequência, são alinhadas ao sistema de saúde pública e consideram que, dadas as características da pandemia, a assistência deve ser direcionada para pacientes, familiares e para a própria equipe de saúde (Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], 2020b).
PRIMEIRAS AÇÕES: ESCUTAR, ACOLHER E CONHECER PARA INTERVIR
Com as mudanças provocadas no funcionamento da instituição, as intervenções da equipe de psicologia focalizaram dois públicos-alvo: funcionários e pacientes. A partir de demandas apresentadas pelos profissionais do serviço, foram oferecidos suporte e orientação à equipe a respeito de cuidados com saúde mental e informações sobre serviços e iniciativas de atendimento psicológico on-line disponíveis na comunidade em caso de necessidade.
Para o atendimento de pacientes, foi estabelecido horário de plantão para acolhimento presencial de demandas psicológicas das pessoas que tinham indicação de continuar frequentando o serviço para realização de consultas e procedimentos indispensáveis (transfusões, sangrias, exames, monitorização ambulatorial, entre outros). Os pacientes que já estavam em acompanhamento pela equipe de psicologia foram remanejados de acordo com suas necessidades, de modo que alguns continuaram sendo atendidos presencialmente e outros passaram a ser assistidos on-line.
Importante ressaltar que nem todos os pacientes em tratamento no Hemocentro contam com condições apropriadas para atendimento psicológico on-line devido à falta de acesso doméstico à internet, dispositivos incompatíveis, falta de privacidade no lar e dificuldades de manejo das tecnologias. Portanto, as alternativas de atendimento não são homogêneas para toda a população atendida. Dessa forma, acompanhamentos telefônicos também foram disponibilizados, de forma alternada com atendimentos presenciais, a fim de oferecer suporte psicológico adequado ao contexto de crise respeitando-se o princípio da equidade.
A realização de teleconsultas, reagendamento de consultas presenciais e ampliação de horários ao longo da semana para atendimentos, exames e procedimentos médicos culminaram numa diminuição significativa do volume de pacientes no Hemocentro, alcançando o objetivo de evitar aglomeração e riscos desnecessários. A fim de aproximar a equipe de psicologia dos pacientes-quarentenados do serviço, nos meses de abril e maio de 2020 foram realizados contatos telefônicos e por meio de aplicativos de mensagens. Tais contatos possibilitaram a coleta de informações atualizadas sobre a situação dos pacientes e seus familiares. Para tanto foram elaborados formulários considerando as particularidades das diferentes doenças hematológicas. A aplicação on-line dos instrumentos contou com a colaboração dos estagiários de psicologia.
As informações fornecidas pelos pacientes vinculados aos diversos ambulatórios permitiram: (1) compreender melhor o estado de saúde mental dos pacientes e seus familiares; (2) mapear as necessidades específicas dos usuários dos diferentes ambulatórios e seus recursos de apoio social; (3) identificar casos com maior risco psicossocial e indicação de acompanhamento ou encaminhamento imediato; (4) oferecer intervenções psicológicas alinhadas às demandas da clientela, considerando sua situação de vulnerabilidade.
Dado o estado de exceção imposto pela pandemia, foram criadas novas intervenções psicológicas voltadas aos pacientes de cada ambulatório, adaptadas ao cenário de incertezas e insegurança. Dessa maneira, foi possível oferecer amparo a diversas demandas emergentes. A intervenção que será exposta a seguir foi proposta para pacientes do ambulatório de Hemostasia, que agrupa adultos com quadros crônicos de hipercoagulabilidade. O levantamento preliminar realizado com as/os pacientes desse ambulatório revelou que elas/es compunham um grupo de risco com características sociodemográficas homogêneas, estavam em isolamento social, preocupavam-se com a saúde de familiares e amigos, apresentavam dúvidas em relação à pandemia, estavam tentando adaptar-se a modificações da vida diária e da dinâmica do serviço e revelavam sentimentos de ansiedade, angústia, medo e insegurança frente ao momento pandêmico.
Nem todas as intervenções propostas pela equipe de psicologia do Hemocentro foram realizadas de maneira on-line, pois dependeram das necessidades que surgiram ao longo do ano de 2020 em função da dinâmica da pandemia. De maneira consistente, as intervenções buscaram preservar seu caráter dinâmico e participativo, com adaptações e novos mapeamentos de necessidades no decorrer do tempo, repercutindo as mudanças no funcionamento do serviço.
ESTRUTURAÇÃO DO GRUPO TERAPÊUTICO ON-LINE (GTO)
O ambulatório de Hemostasia do Hemocentro conta com equipe multiprofissional para atendimento de pacientes com doenças hematológicas relacionadas à coagulação. O ambulatório é frequentado majoritariamente por mulheres adultas, o que condiz com as características de prevalência dessas doenças. Por caracterizarem condições crônicas, a maioria das/os usuárias/os deste ambulatório fazem acompanhamento no Hemocentro há vários anos. Antes das medidas sanitárias de prevenção ao novo coronavírus, as consultas eram marcadas em um mesmo dia da semana. As/os pacientes estavam habituadas/os a se encontrarem na sala de espera, que acabava funcionando como espaço informal de sociabilidade. Tais condições propiciaram o desenvolvimento de fortes laços de amizade e intercâmbio de experiências.
As significativas aproximações ocorridas entre as/os usuárias culminaram, em 2015, na criação espontânea de um grupo em aplicativo de troca de mensagens. Nesse grupo são compartilhadas mensagens informais, atualizações a respeito de novidades na vida pessoal, pedidos de ajuda e combinação de encontros. Devido à proximidade das/os pacientes com a equipe de psicologia, é comum que adicionem as/os psicólogas/os a esse grupo.
Com o início da pandemia da COVID-19 e as alterações implementadas no funcionamento da instituição, as/os pacientes perderam o espaço natural que tinham para os valiosos encontros semanais a que estavam acostumadas/os. Considerando a importância de manter o contato com as redes de apoio social nesse período e as demandas psicológicas identificadas no levantamento realizado, planejamos um grupo terapêutico na modalidade on-line (GTO). O grupo é compreendido como um microcosmo social, que permite explorar as interações de seus membros, de modo a facilitar experiências emocionais corretivas. Esse modelo de psicoterapia visa ao acolhimento de problemas psicológicos em que dois ou mais participantes interagem uns com os outros, na presença de um ou vários psicoterapeutas que servem de catalisadores, facilitadores ou intérpretes dos fenômenos inconscientes que circulam no grupo. Embora as abordagens grupais possam variar, em geral procuram oferecer um ambiente permissivo no qual os conflitos, recursos e interesses possam ser compartilhados em uma atmosfera de mútuo respeito, compreensão e aceitação dos aspectos emocionais (Bechelli & Santos, 2005).
O GTO busca fortalecer o respeito próprio, aprofundar o autoconhecimento e melhorar as relações interpessoais. Para que afetos possam ser evocados e integrados, o grupo necessita fornecer um ambiente seguro, com interações suportivas, feedbacks francos e relações honestas (Vinogradov & Yalom, 1992). Assim, o objetivo do grupo terapêutico on-line consistiu em configurar uma possibilidade de apoio psicológico durante a pandemia, oferecendo oportunidade de socialização, apoio e manutenção do funcionamento psicossocial.
O grupo de troca de mensagens preexistente foi utilizado para apresentação da proposta interventiva da equipe de psicologia. Todas/os foram convidadas/os a participar do grupo on-line. Após esse movimento inicial, de divulgação e apresentação da proposta, procedeu-se à seleção das pacientes. Todas as interessadas foram selecionadas.
O convite foi bem recebido pelas participantes, que identificaram na proposta a possibilidade de retomar os encontros semanais que fizeram parte de seu cotidiano por muitos anos. Dessa maneira, a composição do GTO é homogênea quanto ao diagnóstico de trombofilia, condição que envolve doenças relacionadas à coagulação sanguínea e que provocam trombos. As participantes são mulheres na faixa etária entre 45 e 65 anos, que estão em seguimento no Hemocentro há, pelo menos, 10 anos. Uma das participantes já havia recebido alta do serviço, o que é raro, e identificou no grupo a possibilidade de retomar vínculos importantes de sua vida, ainda mais na situação de crise pandêmica. A maioria é casada e todas têm filhos/as adolescentes e/ou adultos/as.
Após a primeira seleção das participantes, na qual todas aquelas que manifestaram interesse foram aceitas no grupo, foi feita uma segunda seleção logo nos primeiros encontros. Isto porque nem todas as 14 pacientes que se mostraram inicialmente interessadas na proposta compareceram aos primeiros encontros on-line. As pacientes ausentes foram contactadas para avaliar a viabilidade da terapia on-line, identificar necessidades e planejar a intervenção. Assim, considerando as diferentes necessidades e possibilidades individuais, foi oferecido, para algumas, acompanhamento individual e/ou encaminhamento para serviços da rede de saúde mental.
Para a organização do GTO, as pacientes interessadas foram adicionadas a um novo grupo no aplicativo de mensagens, batizado com o nome "Encontro". Neste grupo foi realizada uma preparação inicial para a terapia de grupo, na qual foram oferecidas explicações sobre o processo terapêutico grupal e feitos os combinados para seu funcionamento. Ao todo, 10 participaram dos encontros grupais. Cada sessão contou com, em média, cinco participantes.
Para a delimitação do setting grupal, uma plataforma digital de videoconferência (Google Meet) foi escolhida como lugar virtual de realização dos encontros. Essa plataforma pode ser acessada tanto pelo celular quanto pelo computador. Todas as participantes fizeram uso de aparelhos celulares. Antes do primeiro encontro, um guia informativo com instruções sobre o uso da plataforma foi disponibilizado. Nas primeiras semanas, fez-se necessário auxiliar algumas participantes para o acesso. Com o passar do tempo, todas adaptaram-se ao uso do dispositivo.
Também foram estabelecidos os combinados acerca da extensão, frequência dos encontros e duração das sessões. Definiu-se que as sessões ocorreriam de julho a dezembro de 2020, com frequência semanal e duração de 60 minutos. Em 2020, aconteceram 24 encontros do GTO. Não se trabalhou com pauta ou seleção prévia de temas, de maneira que as participantes exerceram sua autonomia para escolherem os assuntos a serem trabalhados em cada encontro, privilegiando-se a associação livre.
Para coordenação do grupo, os membros da equipe de psicologia foram divididos nas funções de coordenador/a, cocoordenador/a e observadores/as. Os três estagiários iniciaram sua participação na função de observadores do grupo e, progressivamente, assumiram funções de cocoordenação. O psicólogo voluntário também participou da coordenação das sessões. Dessa maneira, imprimiu-se dinamicidade ao grupo e o revezamento de papéis entre os membros da equipe. Além disso, foi possível ampliar a diversidade de olhares, enriquecendo as compreensões sobre as sessões. As supervisões clínicas realizadas semanalmente contribuíram para o aprimoramento da prática grupal, em benefício da qualidade dos atendimentos oferecidos.
FISICAMENTE DISTANTES, EMOCIONALMENTE PRÓXIMOS: A EXPERIÊNCIA VIVA DO GRUPO ON-LINE
O contexto de pandemia impactou a saúde mental tanto das usuárias do serviço quanto dos profissionais de saúde. Intervenções psicológicas voltadas para diversos setores da população desempenham papel central para minimizar os efeitos psicológicos adversos que decorrem da COVID-19 (Bao et al., 2020; Shojaei & Masoumi, 2020; Zhou, 2020). A intervenção grupal proposta pela equipe de psicologia mostrou-se relevante para as pacientes do ambulatório de Hemostasia, que referem que obtiveram apoio durante um período de grande instabilidade. Os relatos apontam que o GTO se configurou como uma possibilidade efetiva de oferta de primeiros cuidados psicológicos às pacientes em momento de grave crise sanitária, econômica, educacional e ética, que desencadeia contínuo estresse psicossocial. Tais cuidados envolveram assistência humanizada, ajuda em situações de crise, busca por alívio de tensões, oferta de conforto e, sobretudo, ativação da rede de apoio social (World Health Organization [WHO], 2011).
Em um primeiro momento e, em consonância com a literatura sobre o tema, os encontros grupais permaneceram focados nos estressores relacionados à COVID-19 e nas dificuldades de adaptação às restrições impostas pela pandemia (Zhang et al., 2020). No entanto, logo se percebeu que o funcionamento do grupo não se limitou apenas ao compartilhamento das adversidades desencadeadas pelo cenário sombrio. Com o passar das sessões, diversos temas foram abordados, tais como: características pessoais, maneiras de agir no mundo, relacionamentos (familiares, amorosos, de amizade), assuntos relacionados ao manejo da doença crônica, autocuidado, redução do estresse e dos impactos das emoções negativas, reflexões sobre o presente, revelações sobre o passado e planos/desejos para o futuro.
Sintomas de ansiedade, depressão e estresse, bem como emoções como tristeza, medo, solidão e raiva foram relatados com muita frequência. Como aponta a literatura sobre intervenções em catástrofes e desastres, essas situações demandam enquadramentos que considerem o contexto adverso da pandemia. Além disso, coube à equipe de psicologia propiciar acolhimento e oferecer informações sobre as reações esperadas em situações de crise (Weid et al., 2020).
Os encontros grupais permitiram a criação e compartilhamento de estratégias para promoção de bem-estar psicológico e físico, como por exemplo: prática de atividades físicas, relaxamento, artesanato, organização da rotina de atividades diárias sob condições seguras e cuidados com o sono (Banerjee, 2020). Mesmo que os encontros com pessoas significativas tenham diminuído drasticamente, foi possível incentivar o fortalecimento das conexões alternativas com a rede de apoio social (Shojaei & Masoumi, 2020). Também foi possível atentar para a exposição excessiva a informações (dos noticiários televisivos e outras mídias) e a importância de checar a veracidade das notícias (Bao et al., 2020; Barros-Delben et al., 2020).
Os objetivos definidos para o GTO foram atingidos, uma vez que foi possível promover a continuidade do apoio psicológico durante a pandemia, incentivar a manutenção das relações interpessoais e garantir um espaço de socialização das participantes. O número médio de cinco participantes por encontro permitiu o estabelecimento de relação terapêutica na qual as pacientes atuaram como agentes de apoio mútuo, criando um espaço respeitoso e acolhedor, propício para autorrevelação e obtenção de amparo. Desse modo, o grupo on-line configurou um espaço de fala e escuta reconhecido pelas participantes como distinto de outros contextos sociais, de maneira que as conversas nas sessões não se assemelhavam às falas corriqueiras que eram estabelecidas com familiares ou amigas fora das sessões. O nível de adesão à intervenção sugere que os encontros passaram a ser extremamente valorizados pelas participantes.
Em meio à política de distanciamento/isolamento social, instaurada para contenção das altas taxas de transmissão do vírus, destaca-se o potencial fortalecedor da terapia de grupo à distância. Diversas experiências de grupo são fundamentais para o desenvolvimento humano, vividas em espaços de socialização como a família, escola, trabalho, atividades religiosas e de lazer. Antes da pandemia da COVID-19, as experiências de coesão grupal, que oferecem apoio e facilitam a autorreflexão, já eram em grande medida escassas na era contemporânea, marcada pela escalada do individualismo e pela sensação de desfiliação, isolamento, anonimidade, fragmentação social e alienação interpessoal. Destarte, no setting do grupo terapêutico, a partir das diversas relações que estabelecidas entre si e com as/os psicólogas/os e estagiárias/os, as/os pacientes puderam beneficiar-se das diferentes bagagens para aprender a lidar melhor com suas diferenças e similaridades, antipatias e simpatias, atrações e repulsas, medos, agressões, timidez, inveja e competitividade (Vinogradov & Yalom, 1992).
Os encontros terapêuticos grupais propiciaram a difusão do senso de universalidade, com a percepção de que todas foram afetadas pela pandemia e por outras circunstâncias da vida, porém podendo sentir que não estavam sozinhas. O grupo também propiciou compartilhamento de esperanças em momentos difíceis, nos quais destacaram-se comportamentos altruístas, de ajuda mútua, oferecimento de apoio, sugestões de insights e mudanças de comportamentos inspiradas umas nas outras. Em associação ao cenário devastador da pandemia, temas existenciais relacionados à finitude, valor da vida, isolamento e liberdade de escolha foram abordados com frequência. Houve, também, momentos catárticos, de compartilhamento afetivo do mundo interno e acolhimento pelas demais participantes (Vinogradov & Yalom, 1992).
A coesão grupal pôde ser percebida na assiduidade das participantes, no compromisso assumido por elas e na participação ativa nas conversações, tanto no momento do grupo, quanto nas relações estabelecidas no contexto extra-grupo por meio do aplicativo de mensagens utilizados para organização dos encontros. Questões relacionadas à ausência de membros apareceram e foram contornadas mediante participação ativa e espontânea das participantes, que também estimularam o engajamento das demais. Também se realizou busca ativa para evitar a frequência irregular, estratégia que surtiu efeitos positivos. Assim, foi possível estabelecer um espaço propício à expressão de afetos, exploração dos próprios comportamentos, conscientização e integração de aspectos até então inaceitáveis em si mesmas e estabelecimento de relacionamentos mais profundos (Vinogradov & Yalom, 1992).
A coordenação do GTO permitiu que as participantes oferecessem e recebessem feedbacks acerca do significado e do efeito salutar de várias de suas intervenções sobre as outras. Tais interações pessoais são tão importantes que o próprio setting do grupo se torna um instrumento terapêutico bastante específico e poderoso. Assim, o grupo encoraja as participantes a se desenvolverem livremente, de modo seguro e orientado para a interação e o diálogo. O contexto de grupo permite que o microcosmo social de cada participante seja desenvolvido, a fim de propiciar aprendizagem interpessoal por meio da alternância entre expressões de afeto e análise da experiência emocional que elas desencadeiam no outro (Bechelli & Santos, 2005).
PORQUE TODA VIDA IMPORTA: ASPECTOS TÉCNICOS E ÉTICOS DA INTERVENÇÃO ON-LINE
Com a COVID-19, houve ampla e rápida transição da oferta de atendimentos presenciais para a modalidade remota. Da noite para o dia os encontros migraram para o ambiente virtual e em grande medida ficaram dependentes do uso de tecnologias. Aliás, não fosse a mediação das TICs, os encontros grupais não aconteceriam no Hemocentro, tendo em vista que a estrutura física não oferece espaço seguro para a realização de reuniões presenciais livres de risco de contaminação. Uma vez que as sessões migraram para a modalidade on-line, foram necessárias adaptações para a realização do grupo terapêutico. O maior desafio da equipe de psicologia consistiu em adotar alternativas criativas às técnicas consagradas que são frequentemente utilizadas em atendimentos presenciais, considerando, ainda, os aspectos éticos (Inchausti et al., 2020).
A cultura estabelecida com o grupo, ou seja, o conjunto de normas que orientam os comportamentos aceitáveis para o bom funcionamento grupal, passou a considerar a interação on-line intermediada por dispositivos móveis. O apoio oferecido no momento da transição se mostrou fundamental. Mesmo antes do primeiro encontro foi necessário oferecer auxílio para garantir o acesso das participantes. Nos primeiros encontros, fez-se necessário ensinar sobre o funcionamento das ferramentas da plataforma on-line, isto é, enquadramento das câmeras, uso dos microfones e ajustes de sinais de internet.
Desde as primeiras sessões grupais, criou-se uma cultura na qual eram estimuladas intervenções francas e honestas. Assim como ocorre em sessões presenciais, a preciosidade do tempo e a necessidade de permanecer até o fim do encontro foram transmitidas para o grupo. Os horários de início e término foram rigorosamente respeitados, bem como o limite de tolerância para entrar com atraso. Outras normas estabelecidas, referente às interações por meio das TIC, necessitaram de adaptações, de forma que foram realizadas orientações diretas antes dos encontros e reafirmações (implícitas ou diretas) dessas diretivas durante as sessões.
Uma das preocupações presentes na modalidade on-line refere-se ao manejo de situações nas quais as pacientes podem colocar em risco a si mesmas ou à vida de terceiros ou ficam expostas a situações de violência (Pieta & Gomes, 2014). Nesses casos, o amparo institucional proporcionou maior segurança, uma vez que se tem acesso ao histórico de atendimento e aos dados pessoais e sociodemográficos das participantes do grupo on-line. Assim, em caso de necessidade, era possível realizar intervenções que incluíam a equipe de saúde e o trabalho em rede (de saúde e assistência social) para garantir a oferta de cuidado sob medida.
Outras preocupações a respeito do atendimento psicológico on-line envolveram questões de confidencialidade e privacidade. A garantia de sigilo é responsabilidade da/o psicóloga/o (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018). A equipe de psicologia preocupou-se em considerar a infraestrutura, garantir a criptografia de ponta a ponta nos aplicativos de mensagens utilizados, bem como a confiabilidade da rede de internet e do software utilizado para os encontros grupais. No entanto, considerando as características de distância física das participantes, tornou-se indispensável trabalhar a corresponsabilização, de forma que elas também foram conscientizadas da responsabilidade em proteger sua própria privacidade e a das demais (Lustgarten et al., 2020; Schmidt et al., 2020b).
Apesar de terem sido orientadas a buscar um lugar reservado e fazer uso de fones de ouvido, nem todas as pacientes contavam com espaços com privacidade e livre de interrupções. Esses aspectos foram abordados e negociados de maneira colaborativa e sensível, dentro das possibilidades de cada participante (Wrape & McGinn, 2019). Também foi necessário abordar a importância de evitar distrações no ambiente doméstico no momento das sessões grupais, a fim de aumentar o envolvimento das participantes e garantir maior coesão grupal (Matheson et al, 2020). Ao mesmo tempo, elementos do ambiente doméstico passaram a assimilar os encontros, de maneira que as participantes mostravam um pouco de suas casas e compartilhavam algumas produções artísticas e manuais confeccionadas durante o período de distanciamento social.
O setting grupal intermediado por TICs substitui as cadeiras dispostas em círculos pela visualização das participantes em pequenas imagens dispostas na tela bidimensional. Como mais um diferencial das sessões presenciais, tanto as pacientes quando as/os coordenadoras/es puderam ver suas próprias imagens, que ganhavam destaque durante as falas. Ganha-se uma espécie de espelho de si mesma. Com esse recurso auto-reflexivo, durante os encontros elas estiveram atentas em como as demais estavam se apresentando, reconhecendo diferentes semblantes e também demonstrando maior sensibilidade à própria autoimagem e expressões faciais.
Embora a comunicação não-verbal possa ser observada nos atendimentos remotos, torna-se mais difícil para as/os coordenadoras/es compreendê-la e utilizá-la como recurso terapêutico (Schmidt et al., 2020b). Interrupções podem ocorrer devido à perda do sinal da internet ou fim da carga da bateria de dispositivos, e os silêncios, muitas vezes importantes e impactantes nos atendimentos presenciais, podem ser confundidos com falhas tecnológicas (Pieta & Gomes, 2014). Problemas com sinal de internet também podem comprometer o áudio/vídeo, provocando ruídos na compreensão. Nesses momentos, sinalizar a intercorrência e repetir o que foi dito é importante. Pode ocorrer, ainda, que mais de uma pessoa fale por vez, o que exige que se ordenem as participantes, de maneira que uma terá que ceder o espaço para outra.
Esses aspectos demandam da equipe de psicologia ações para garantir o interesse e a participação ativa de todas. Para tanto, recursos como mencionar frequentemente seus nomes e direcionar perguntas específicas podem ser utilizados. Alterações no tom de voz e modificações mais acentuadas nas expressões faciais também podem auxiliar as/os coordenadoras/es no manejo do grupo. Perguntas que convidem a descrever sentimentos e percepções também contribuem para melhorar a comunicação entre os membros. Desse modo, incentiva-se a livre expressão verbal das experiências emocionais, o que leva as participantes a interagirem de maneira mais autêntica entre si e com suas próprias emoções (Wrape & McGinn, 2019).
É esperado que, mesmo após o controle da pandemia, a modalidade on-line continue a ser mais integrada à prática das/os psicólogas/os. Portanto, torna-se importante reconhecer as potencialidades e desafios inerentes a esse novo modelo, a fim de garantir avanços qualitativos na oferta de atendimentos on-line. Pesquisas brasileiras e internacionais apontam aspectos positivos nas diversas intervenções psicológicas realizadas no formato remoto. Novos estudos são necessários, considerando-se as implicações da incorporação do fator tecnológico no manejo grupal.
Com a pandemia de COVID-19, a modalidade de atendimento à distância constituiu a forma mais viável de dar continuidade e garantir o apoio psicológico durante a vigência da situação de crise. Com a experiência descrita, pode-se concluir que, mesmo por intermédio de celulares e aplicativos, foi possível estabelecer um relacionamento empático e colaborativo entre os membros do grupo (Skinner & Zack, 2004). Elementos caros à relação terapêutica, como confiança e empatia, foram reproduzidos também no meio on-line (Berger, 2017). Mesmo de maneira remota, fisicamente distante e por vezes sob condições técnicas precárias, os recursos integrados de áudio e vídeo propiciaram o estabelecimento de profícuos laços terapêuticos.
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Endereço para correspondência
Pamela Perina Braz Sola
E-mail: pamela.sola@usp.br
Submetido: 04/03/2021
Reformulado: 05/05/2021
Aceito: 15/05/2021
1 Pamela Perina Braz Sola é mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Érika Arantes de Oliveira-Cardoso é docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Jorge Henrique Correa dos Santos é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
4 Manoel Antônio dos Santos é professor titular da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.