Mental
ISSN 1679-4427 ISSN 1984-980X
Mental v.5 n.8 Barbacena jun. 2007
ARTIGOS
O desejo, os corpos e os prazeres em Michel Foucault
The desire, the body and the pleasures in Michel Foucault
Oscar Cirino*
Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais - Brasil
RESUMO
Neste artigo percorre-se alguns livros de Michel Foucault, especialmente os três volumes da História da sexualidade, analisando como os temas do corpo, dos prazeres e do desejo são elaborados e articulados. Essa análise demonstrou que a crítica à teoria do desejo, como foco de problematização da sexualidade, é apenas indicada no primeiro volume, A vontade do saber, e desenvolvida nos dois últimos volumes, O uso dos prazeres e O cuidado de si. Nesses dois livros, a questão da problematização moral da atividade sexual torna-se o novo foco de investigação. Pretende-se, também, estabelecer um contraponto entre essa abordagem foucaultiana e a psicanálise lacaniana.
Palavras-chave: Foucault, Corpo, Prazer, Desejo, Sexualidade, Psicanálise.
ABSTRACT
This article covers some books by Michel Foucault, specially the three volumes on the History of Sexuality, and analyzes how the topics on the body, on the pleasure and on the desire are elaborated and articulated. It is shown that the critique to the desire theory, taken as the focus of the problem concerning sexuality, is only indicated in the first volume (The Will to Know), and is developed on the two remaining volumes (The Use of Pleasure and Concern for Self). The consideration of the moral problem of sexual activity becomes the new focus of the investigation in these two last books.The present paper also seeks to establish a comparison between Foulcault's above approach and Lacan's view on psychoanalysis.
Keywords: Foucault, Body, Pleasure, Desire, Sexuality, Psychoanalysis.
O desejo, os corpos e os prazeres em Michel Foucault
A abordagem dos temas corpo, prazer e desejo pode ser investigada em distintos momentos da obra de Michel Foucault, e sua articulação se estabelece, especialmente, nos três volumes da História da sexualidade. Neste artigo, buscaremos tratá-la tendo, como pano de fundo, questões relacionadas a um contraponto entre o pensamento foucaultiano e a psicanálise lacaniana.
A temática do corpo recebe ênfases e desenvolvimentos diferentes conforme a perspectiva metodológica e o foco das pesquisas de Foucault nos campos do saber, do poder e da ética. Em um de seus primeiros livros, O nascimento da clínica (1963), Foucault busca entender as condições de possibilidade do aparecimento, no início do século XIX, da figura moderna, científica, da medicina: a anátomo-clínica . A doença deixa, então, de ser essência nosológica, espécie natural, estudada segundo o modelo da botânica, para ser considerada, segundo o modelo da anatomia, realidade localizada no espaço concreto, individual, do organismo doente. Essa atenção do médico para o singular, para o que é próprio de cada um, é o que fará Lacan citar esse trabalho de Foucault e destacar que, estruturalmente, a clínica psicanalítica encontra suas bases nesse momento do nascer da clínica médica, "momento originalmente recalcado no médico que a prorroga, transformando-se ele mesmo, a partir desse momento, cada vez mais no filho perdido" (LACAN, 1998 [1966], p. 326, nota 2).1
Será, entretanto, a partir da década de 70, quando ocorre um deslocamento de perspectiva no trabalho de Foucault, a partir de uma reformulação política, teórica e metodológica, que o corpo recebe mais destaque, por se constituir em um dos alvos privilegiados das relações de saber e poder (MACHADO, 1982). Trata-se, agora, de uma "anatomia política", de uma "história dos corpos".
Na série de revoltas ocorridas nas prisões francesas nas décadas de 60 e 70, Foucault constata algo paradoxal nas reivindicações e objetivos desses movimentos: eram revoltas contra a miséria física das prisões (fome, superlotação, maus tratos), mas também contra seu "conforto" (os atendimentos médicos, psicológicos e as propostas educativas das prisões-modelo). Não eram, então, lutas apenas contra o aspecto decadente e reacionário das prisões, mas também contra seu aperfeiçoamento, sua modernização. Para Foucault, o que haveria de comum entre esses protestos, à primeira vista distintos, seria o fato de que ambos se rebelavam contra o investimento de poder em nível de corpo.
A fim de compreender essa "anatomia política", ele realiza em Vigiar e punir (1975)2 uma análise histórica de diferentes sistemas punitivos, desde os que utilizam métodos violentos até os que usam métodos "suaves", não tomando, entretanto, como referência, a evolução das regras do Direito ou das idéias morais. Foucault parte justamente do pressuposto de que todo poder tem um "corpo", pois se exerce por meio de diferentes mecanismos e instrumentos, sejam eles cadafalsos, cerimônias, muros, olhares, medicamentos ou diagnósticos. Sua "história dos corpos" busca pesquisar como o corpo foi percebido e valorizado na história. O autor constata que "as relações de poder operam sobre ele de modo imediato; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, submetem-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais"(FOUCAULT, 1983, p. 28. Ver também 1980, p.142).
O corpo não é, portanto, fixo ou constante, como quer a perspectiva naturalista, mas pode ser modificado, aperfeiçoado, e suas necessidades produzidas e organizadas de diferentes maneiras. Essa concepção traz a marca do pensamento nietzschiano, pois, segundo Foucault, a genealogia é um tipo de história que não se referencia na consciência ou no Eu (com sua unidade e coerência), mas no corpo e em tudo que se relaciona com ele: a alimentação, o clima, os valores. O corpo, "lugar de dissolução do eu", "volume em perpétua pulverização", traz consigo "em sua vida e em sua morte, em sua força e em sua fraqueza" a inscrição de todos os acontecimentos e conflitos, erros e desejos (ver FOUCAULT, 1982, p. 22).
Apesar dessa influência, o pensamento de Nietzsche concederia uma liberdade de ação muito grande ao corpo, o que não estaria de acordo com as descrições minuciosas de Foucault sobre as técnicas do poder disciplinar. Nesse sentido, suas elaborações também estariam influenciadas pelas reflexões desenvolvidas por Merleau-Ponty na Fenomenologia da Percepção (1945), especialmente as relacionadas às estruturas invariantes existentes no corps vécu ou corps propre. Entretanto, essas constantes ainda seriam muito gerais para lidar com a especificidade histórica com que Foucault descreve as técnicas de constituição do corpo. Foucault mantém-se, portanto, "evasivo" em relação à extensão das modificações impostas pelas tecnologias de poder, ou seja, ele não determina claramente até que ponto o corpo pode ser modelado pelas relações de poder. Em suma, como observam H. Dreyfus e P. Rabinow, mesmo percebendo as influências de Nietzsche e Merleau-Ponty, é difícil determinar, com exatidão, a concepção de corpo em Foucault (DREYFUS e RABINOW, 1984, p. 165-166).
Em 1976, é publicado o 1º volume da História da sexualidade - A vontade de saber. Trata-se de "uma primeira abordagem" de uma série de estudos históricos, que resultariam em seis volumes, sendo o segundo intitulado A carne e o corpo. Como sabemos, esse projeto inicial e hipotético - que Foucault considerava um "jogo"3, do qual Jacques-Alain Miller, Alain Grosrichard e outros quiseram participar - sofreu profundas modificações temáticas e cronológicas, que levaram à publicação, apenas em 1984, de O uso dos prazeres (vol. 2) e O cuidado de si (vol. 3).
Nesses dois últimos volumes da História da sexualidade, o tema "corpo" encontra-se presente de maneira marcante e recebe investigações privilegiadas. Em O uso dos prazeres, a "Dietética" - capítulo que trata da arte da relação cotidiana do indivíduo com o próprio corpo - analisa como filósofos, médicos e moralistas da Antigüidade grega procuraram definir um regime para a atividade sexual (suas condições favoráveis, sua justa distribuição), em função de uma certa maneira de o indivíduo cuidar ativamente de seu corpo, buscando integrar, da melhor forma possível, o comportamento sexual à gestão da vida e da saúde.
Já no capítulo O corpo, em O cuidado de si, mostra-se, como na época helenística, que a mudança na Dietética e na problematização da saúde se deu por meio "de uma definição mais extensa e detalhada das correlações entre o ato sexual e o corpo, uma atenção mais viva à ambivalência de seus efeitos e às suas conseqüências perturbadoras [...] (Passa-se a temer o ato sexual) pelo conjunto de seus parentescos com as doenças e o mal" (FOUCAULT, 1985, p. 233). Ou seja, a atividade sexual produz uma inquietação mais intensa, sendo problematizada, cada vez mais, em termos patológicos e morais.
Para Foucault, em 1976, a "sexualidade" não é um dado da natureza, mas o nome de um dispositivo histórico, datado da metade do século XVIII: o dispositivo de sexualidade. Trata-se de uma rede trançada por um conjunto de práticas, discursos e técnicas de estimulação dos corpos, intensificação dos prazeres e formação de conhecimentos (FOUCAULT, 1980, p.100). Esse dispositivo teria se estabelecido como meio de afirmação da burguesia, que não desqualificou ou anulou seu corpo, instituindo-o, antes, como fonte de inquietação e cuidado. Se anteriormente a nobreza se distinguia pelo "sangue", a burguesia marcou sua diferença e hegemonia atribuindo-se um corpo específico com saúde e higiene. A valorização de seus prazeres e a proteção de seu corpo contra perigos e contatos, além de garantirem seu vigor, descendência e longevidade, serviam como emblema de respeito e poder social. Afinal, diz Foucault, sua supremacia, além de depender da exploração econômica, requeria uma dominação física, já que "uma das formas primordiais da consciência de classe é a afirmação do corpo; [...] (a burguesia) converteu o sangue azul dos nobres em um organismo são e uma sexualidade sadia" (FOUCAULT, 1980, p. 119).
A sexualidade torna-se referência fundamental no processo de produção da verdade e da subjetividade dos indivíduos na era moderna:
[...] segundo círculos cada vez mais estreitos, o projeto de uma ciência do sujeito começou a gravitar em torno da questão do sexo. A causalidade no sujeito, o inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber, nele, daquilo que ele próprio ignora, tudo isso foi possível desenrolar-se no discurso do sexo. Contudo, não devido a alguma propriedade natural, inerente ao próprio sexo, mas em função das táticas de poder imanentes a tal discurso (FOUCAULT, 1980, p. 68-69).
Assim, se antes não se distinguia o sodomita no vasto domínio dos hereges ou dos infratores jurídicos, no século XIX, o homossexual é individualizado como uma espécie. Ele se torna
uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida [...]. Nada daquilo que ele é escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas [...]. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém como natureza singular (FOUCAULT, 1980, p. 43).
A hipótese de Foucault é clara: a emergência da ciência do sujeito faz parte da expansão do dispositivo de sexualidade, que abre novas possibilidades para a infiltração do poder nos aspectos mais particulares e íntimos da vida. Assim, o que parecia ser liberação do silêncio imposto por um poder "repressivo", participação dos sujeitos no processo de sua constituição, revela-se como um insidioso mecanismo de sujeição. Trata-se de uma forma individualizante de poder, que classifica os indivíduos em categorias e os fixa à sua própria identidade. Essa é uma forma de poder que
transforma os indivíduos em sujeitos. (Entendendo) que há dois sentidos para a palavra 'sujeito': sujeito submetido ao outro pelo controle e dependência e sujeito fixado à sua própria identidade pela consciência ou conhecimento de si. Nos dois casos, a palavra sugere uma forma de poder que subjuga e sujeita (FOUCAULT, 1994 (1982), p. 227).
Por isso, a sexualidade se apresenta como campo privilegiado de contestação da representação jurídica e negativa do poder, pois, com ela, mais do que em qualquer outro aspecto, o poder parecia agir pela proibição. Sem confundi-los, Foucault considera que tanto os reichianos, partidários da temática da "repressão" - que concebe o desejo como algo estranho e exterior ao poder -, quanto os lacanianos, partidários da teoria da "lei" - que estabelece o poder como constitutivo do "desejo e da falta que o instaura"4 - apesar de distintos na "maneira de conceber a dinâmica e a natureza das pulsões", são solidários no modo de representar o poder (FOUCAULT, 1980, p. 79-81).
Foucault percebe, então, que enquanto questionava a relação entre a concepção jurídica do poder e a sexualidade, formulava uma crítica "bem mais radical" do que a crítica à teoria do desejo (1980, p. 79) e, com ela, à psicanálise, definida por ele, em termos explicitamente lacanianos, como a "teoria da mútua implicação essencial entre a lei e o desejo" (1980, p. 121)5.
Seu primeiro projeto da História da sexualidade percorreria dois caminhos interdependentes: "pensar, ao mesmo tempo, o sexo sem a lei e o poder sem o rei" (1980, p. 87). Entretanto, nesse momento de suas investigações, a crítica à teoria do desejo está subordinada ao seu interesse em pensar a sexualidade a partir das técnicas positivas do poder.
A problemática do desejo só ganhará destaque nos dois últimos volumes de sua História da sexualidade, quando o alvo de seu empreendimento genealógico torna-se a análise das
práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade de seu ser... (FOUCAULT, 1984, p. 11).
Sob a mira da suspeita de Foucault está, portanto, a identificação do sujeito sexual ao sujeito desejante, pois, para ele, o desejo não é algo constante, a-histórico, mas uma categoria isolada somente a partir da experiência cristã da carne - como marca originária da natureza decaída - e herdada pela experiência moderna da sexualidade - como estrutura própria ao ser humano (FOUCAULT, 1984, p. 41-42).
A psicanálise, como observou J-A Miller, encontra-se no âmago de todo o projeto da História da sexualidade, e Lacan, apesar de nunca ser citado, é referência fundamental. Em A vontade de saber, a psicanálise ocupa posição bem diferente daquela de As palavras e as coisas (1966). Nesse livro, como sabemos, ela recebe lugar privilegiado ao surgir como "contra-ciência" do homem e, juntamente com a etnologia e a lingüística, realiza a "contestação mais geral" das ciências humanas, desnudando seus limites e fronteiras. Já em A vontade de saber, a psicanálise ocupa lugar "inverso e simétrico": ela não se situa mais no princípio da investigação, mas é o seu próprio objeto; não é elogiada, mas referida com sarcasmo; enfim, pertence a um dispositivo cuja emergência histórica é contemporânea à das ciências humanas. (MILLER, 1989, p. 77-84).
É pelo viés desse objeto, inventado e nomeado, dispositivo de sexualidade - no qual "falar de sexo" se destaca como traço pertinente -, que Foucault situa o aparecimento da psicanálise: "A história do dispositivo de sexualidade [...] pode valer como uma arqueologia da psicanálise" (FOUCAULT, 1980, p. 122)6. Ele considera que a psicanálise desempenha "vários papéis simultâneos" nesse dispositivo: sem negar o mérito dela ter rompido com o conjunto perversão-hereditariedade-degeneração, ela fixaria a sexualidade no sistema de aliança matrimonial e familiar e funcionaria como elemento diferencial na tecnologia do sexo, permitindo a alguns eliminar seus efeitos patológicos (FOUCAULT, 1980, p. 106-107, p. 112-113, p. 121-123).
No capítulo intitulado Scientia sexualis, Foucault já havia contraposto à "ciência sexual" do Ocidente - cuja matriz é dada pela "confissão" - a outro procedimento de produção da verdade do sexo, a "arte erótica", praticada, por exemplo, na China ou na Índia. Na arte erótica, a verdade é extraída não do discurso, mas da própria prática sexual, que visa fundamentalmente ao prazer. No final de A vontade de saber, Foucault retoma essa mesma idéia, ao afirmar que: "Contra o dispositivo de sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres" (FOUCAULT, 1980, p. 147).
Posteriormente, em 1983, Foucault reconheceu a inadequação em estabelecer comparações entre civilizações tão diferentes. A partir do seu interesse pelas "técnicas ou práticas de si" - regimes de saúde, meditações, exame de consciência, leituras, diários - sua pesquisa voltou-se para um momento histórico da própria civilização ocidental no qual o desejo não era ainda o foco das problematizações sexuais: a Antigüidade grega e greco-romana. Por outro lado, novas questões ganharam destaque em suas investigações: como e por que a conduta sexual e os prazeres a ela ligados tornaram-se o mais importante objeto de "preocupação moral" e de "cuidado ético" (FOUCAULT, 1984, p.15-16)? Nesse momento, em que tais interrogações tornam-se centrais, a sexualidade passa a ser considerada algo "bastante monótono" (FOUCAULT, 1994 (1983), p. 609).
Em suas análises dos textos de filósofos, médicos e moralistas desse período, ele perceberá que a problematização moral da atividade sexual enfatizava as "artes da existência", por ele definidas como
práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram transformar-se [...] e fazer de sua vida uma obra portadora de valores estéticos, respondendo a certos critérios de estilo (FOUCAULT, 1984, p. 15).
Nesse sentido, o cuidado de si, para os gregos, não implica uma volta para o "interior de si", em atitude de exame, exploração e suspeita em busca da verdade, mas um trabalho orientado para "fora de si", que visa à configuração de uma superfície, à elaboração criativa de uma obra. Fazer da vida obra de arte era o objetivo de uma minoria privilegiada, formada pelos adultos livres do sexo masculino, que, liberada da tarefa de reprodução material da sociedade, podia valorizar, em sua maneira de viver, certos princípios gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles se fazia, nos limites que se observava. É esse objetivo que explica, segundo Foucault, porque a reflexão moral, nesse momento, não se orientou para a codificação dos atos nem para uma hermenêutica do sujeito. Essa "moral de homens feita para homens" constituiu-se, sobretudo, em maneira de estilizar uma liberdade na busca da produção de uma existência bela, assegurando o renome e a memória dos outros. Por isso, Foucault assinala que os aphrodisia (conjunto dinâmico em que ato, prazer e desejo estão unidos de modo indissolúvel e circular) ocupam lugar imprescindível na formação ética do sujeito:
Porque é o mais violento dentre todos os prazeres, porque é mais custoso do que a maior parte das atividades físicas, porque diz respeito ao jogo da vida e da morte, [o prazer sexual] constitui um domínio privilegiado para a formação ética do sujeito: de um sujeito que se deve caracterizar por sua capacidade de dominar as forças que nele se desencadeiam, de guardar a livre disposição de sua energia, e de fazer de sua vida uma obra que sobreviverá além de sua existência passageira (1984, p. 125-126).
No início dos anos 80, Foucault, apesar de considerar a importância das lutas dos homossexuais para reconhecer sua identidade, apontava para o risco de tais movimentos ficarem confinados a uma noção definida pela "perspectiva médico-jurídica". Por isso, julgava importante ir além, ao propôr "novos modos de vida e de prazer" que escapassem às questões da "identidade" sexual ou do "desejo":
Acredito que ser gay não é identificar-se com os traços psicológicos e com as máscaras visíveis do homossexual, mas procurar definir e desenvolver um modo de vida. Um modo de vida pode ser compartilhado entre indivíduos de idade, status e atividades sociais diferentes. Pode favorecer relações intensas [...] pode produzir uma cultura e uma ética (FOUCAULT, 1994 (1981), p. 163-165).
O prazer, sua intensidade e plenitude, assim como a invenção de novas possibilidades no campo erótico são considerados experiências politicamente importantes:
Creio que é politicamente importante que a sexualidade possa funcionar como funciona nas saunas, onde, sem que se esteja aprisionado em sua própria identidade, em seu próprio passado, em seu próprio rosto, encontram-se pessoas que são para você o que você é para elas: nada mais do que corpos, com os quais combinações, fabricações de prazer serão possíveis (FOUCAULT, 1978, apud ERIBON, 1996, p. 168).
Ao analisar todo o projeto da História da sexualidade, J-A Miller considera que, na época de A vontade de saber, Foucault precisou de "um componente da perversão" - "a utopia de um corpo assexuado (hors sexe), cujos prazeres múltiplos não estariam mais reunidos sob o comando unificante da castração" - para pensar um "de fora da psicanálise". No entanto, segundo Miller, a "arte erótica" mostrou-se frágil, como ponto de apoio inicial, para realizar um "contra-ataque ao sexo-desejo". Por isso, Foucault teria sido levado a retroceder historicamente em suas pesquisas, até encontrar, na Antigüidade Grega, a "utopia realizada, não de uma sexualidade feliz, mas de um corpo de prazer plural, onde as coisas do amor não formavam um conjunto unificado pela função do falo castrado..." (MILLER, 1989, p. 82).
Por um lado, sabemos que Foucault não propunha, nostalgicamente, um retorno à experiência grega como alternativa às questões éticas atuais. E isso não apenas porque a sociedade grega alicerçava-se em um sistema de desigualdades e coerções (particularmente em relação às mulheres e os escravos), mas porque Foucault nunca acreditou que o passado pudesse resolver os problemas do presente, ou que a solução encontrada por uma época pudesse ser transposta para outra.
O que o pensamento grego oferece é a evidência de que a problematização moral - e os dois últimos volumes da História da sexualidade são livros sobre a moral sexual e não sobre o amor, a amizade ou a reciprocidade - pode ser realizada com certa autonomia, tanto em relação a preceitos religiosos quanto a obrigações legais. Por mais que esse seja um problema, em muitos aspectos, atual - uma vez que, hoje, muitos de nós já não acreditam ser possível fundar uma moral na religião, na tradição, num sistema legal ou mesmo no saber científico - não se trata de buscar um modelo. Como Foucault deixou claro, não era "a história das soluções" que o interessava, mas um "trabalho de problematização e de perpétua reproblematização" (FOUCAULT, 1994 (1983), p. 612). Desse modo, estaremos mais próximos do que Foucault considerava ser, por excelência, a atividade filosófica na atualidade - um trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento.
Referências
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Endereço para correspondência
Tel.: (31) 3337.2480.
E-mail: ocirino@uol.com.br
Artigo recebido em: 13/2/2007
Aprovado para publicação em: 16/2/2007
*Psicanalista e mestre em Filosofia pela UFMG. Autor de Psicanálise e psiquiatria com crianças (Autêntica, 2001) e co-organizador de Psicóticos e adolescentes: por que se drogam tanto? (CMT, 2000) e Álcool e outras drogas: escolhas, impasses e saídas possíveis (Autêntica, 2006). Participante das Formações Clínicas do Campo Lacaniano - BH e membro da equipe do Centro Mineiro de Toxicomania/FHEMIG.
1Essa nota foi acrescentada por Lacan, em 1966, quando reescreveu, para os Escritos, o artigo "Variantes do tratamento-padrão", originalmente publicado em 1955.
2Em Vigiar e punir, encontramos capítulos com os seguintes títulos: O corpo dos condenados e Os corpos docéis; o primeiro, em oposição ao famoso Corpo do rei.
3J- A Miller e outros entrevistaram Foucault para a Revista Ornicar? n.10, assim que o livro foi publicado. A entrevista foi intitulada de Le jeu de M. Foucault. A tradução brasileira encontra-se em Microfísica do Poder, com o título Sobre a história da sexualidade.
4A tradução brasileira preferiu traduzir "manque" por "falha"; no entanto, "falta" parece-me a melhor opção. Ver p. 79 (ed. francesa, p. 108).
5Jean Baudrillard certamente não considerou essa passagem de A vontade de saber ao censurar Foucault por falar em poder-saber-prazer, mas não ousar "dizer poder-saber-desejo, quando, no entanto, é desejo toda teoria do desejo que está diretamente em questão" (BAUDRILLARD, 1984, p. 27-28).
6Sobre a afirmação de Foucault de que a história do dispositivo de sexualidade pode valer como uma arqueologia da psicanálise, ver artigo MEZAN, Renato. "Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanálise", 1985. Uma análise divergente da posição de Mezan é feita por Ernani Chaves no apêndice de seu livro Foucault e a psicanálise (1988).