5 9Avaliação da satisfação e do impacto da sobrecarga de trabalho em profissionais de saúde mentalImperativo de gozo e propaganda no laço social da sociedade de consumo 
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Mental

 ISSN 1679-4427 ISSN 1984-980X

Mental v.5 n.9 Barbacena nov. 2007

 

ARTIGOS

 

Os encontros entre os agentes comunitários de saúde e as famílias dos portadores de transtorno mental

 

The encounters between the community health agents and the mental upheaval families

 

 

Adriana Pezzini CamposI, II*; Roberta Carvalho RomagnoliIII**

ICAPS-Cidadi de Matozinhos - Brasil
IIUniversidade Presidente Antônio Carlos - Brasil
IIIPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho apresenta-se um estudo dos encontros entre os agentes comunitários de saúde do Programa de Saúde da Família (PSF) de Matozinhos e as famílias dos portadores de transtorno mental, usuários do CAPS-Cidadi, realizados durante as visitas domiciliares, com o objetivo de conhecer os efeitos desses encontros nos processos de subjetivação e desinstitucionalização da loucura, sob a ótica da filosofia da diferença. Apresentamos os dados coletados na pesquisa de campo e, a partir desses dados, fizemos uma cartografia das marcas produzidas nesses encontros e concluímos que, apesar dos avanços alcançados durante o processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira, a desinstitucionalização da loucura ainda é um desafio que sofre os efeitos tanto dos encontros entre os agentes comunitários de saúde e as famílias dos portadores de transtorno mental como da desarticulação existente entre a atenção básica e a atenção à saúde mental, além daqueles oriundos dos "desejos de manicômio" presentes nas subjetividades.

Palavras-chave: Saúde pública, Saúde mental, Desinstitucionalização, PSF, Família.


ABSTRACT

This essay presents a report about the encounters between the community health agents from the staff of the Family Health Program (PSF) in Matozinhos and the mental upheaval families, which are frequent users of CAPS-Cidadi, during home visits, with the objective to achieve knowledge about its effects in the process of subjetivation and mentally ill desinstitucionalization under the philosophy of different point of view. It has been presented the collected data during the field research and based on the data collected, a map of the results achieved was drawn, and the conclusion is that although the Reformulation of Brazilian Psychiatric, the desinstitucionalization of mental illness is still being a challenge that suffers the effects of the encounters between the community health agents and the mental upheaval families, as the disarticulation that exists between basic health attention and the mental health attention, beyond the ones originated from the "lunatic asylum desires" that live in the subjectivities.

Keywords: Public health services, Mental health, Desinstitucionalization, PSF, Family.


 

 

Os encontros entre os agentes comunitários de saúde e as famílias dos portadores de transtorno mental

A partir da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, a desospitalização dos indivíduos enfermos tem sido enfatizada, seguindo o princípio de descentralização proposto por esse sistema e redirecionando a responsabilidade do processo terapêutico da população aos municípios. Muitos deles já implantaram o Programa de Saúde da Família (PSF), considerado a principal estratégia de redirecionamento do modelo de atenção básica à saúde. Esse programa sustenta a modificação da ênfase dada anteriormente ao hospital, substituindo-a pela valorização da saúde, entendida como conseqüência das condições de vida das pessoas, promovendo-a na comunidade local e em parceria com a população assistida.

As equipes que compõem o Programa de Saúde da Família cadastram as famílias residentes em sua área de abrangência (definida de acordo com os critérios de proximidade e número de pessoas), fazem o diagnóstico de saúde dessas pessoas, estabelecem ações e metas relacionadas aos principais indicadores de saúde e visitam mensalmente as famílias por intermédio dos agentes comunitários de saúde, tidos como elo de ligação entre a comunidade e os serviços de saúde.

O cuidado dispensado aos portadores de transtorno mental vem seguindo a mesma direção. A hospitalização não é mais considerada imprescindível e vários serviços substitutivos ao manicômio têm sido criados na tentativa de humanizar a atenção a esses novos sujeitos de direitos. Assim, a comunidade local tem convivido de forma mais próxima com aqueles que, em outro momento sócio-histórico, foram mantidos encarcerados em hospitais psiquiátricos. Para atender a essa demanda, tem sido construída a rede de atenção à saúde mental, apoiada pela luta antimanicomial. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) fazem parte dos serviços públicos de saúde que foram pensados para substituir os manicômios, no tocante à assistência dispensada aos portadores de transtorno mental. Eles são os responsáveis, segundo o Ministério da Saúde, por organizar essa rede em nível local.

Contudo, cabe ressaltar que essa desospitalização, que constituiu o primeiro desafio da Reforma Psiquiátrica e da luta antimanicomial, não significa necessariamente desinstitucionalização. Esta se refere a uma mudança paradigmática que propõe a ampliação do conceito de saúde para além das explicações clínicas diferenciais e a invenção de um lugar em que o portador de transtorno mental possa reconstruir a sua autonomia e o seu convívio social, sem a tutela do saber especializado, autoritário e normalizador. Essa mudança de paradigma não é suficiente para erradicar os desejos de dominar, controlar e oprimir o portador de saúde mental, o que Machado e Lavrador (2001) intitularam "desejos de manicômio". Esses desejos, de acordo com as autoras, são expressões das marcas, das linhas duras que a história e a cultura nos imprimiram, ao longo do tempo, e que nos induzem a subjugar e encarcerar o louco e a loucura em classificações nosológicas e saberes "psi". Por meio deles, os manicômios são mantidos em atividade, mas não têm endereços fixos, sendo encontrados disseminados na rede de atenção à saúde ou onde quer que existam "desejos de manicômio". Nesse sentido, podemos afirmar que esses desejos fazem parte da nossa própria subjetividade e emergem em determinadas situações.

A desinstitucionalização aponta, portanto, não só para mudanças nas estruturas físicas e funcionais dos serviços de saúde, mas, principalmente, para a necessidade de mudanças subjetivas e culturais nas formas de pensar e de conviver com a loucura e com os portadores de transtorno mental. O conceito de desinstitucionalização perpassa tanto o Movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira quanto as atuais políticas públicas de atenção à saúde. Nesse sentido, é importante mencionar os atuais esforços veiculados pelas políticas públicas na tentativa de apoiar uma nova lógica de acolhimento e cuidado ao transtorno mental, principalmente por meio das políticas concernentes à atenção à saúde mental e à articulação desta com a atenção básica. A organização da atenção à saúde em diferentes níveis de complexidade, o incentivo à articulação dessas diferentes redes, a descentralização e a integralidade das ações como sustentáculos das práticas vigentes e o financiamento compartilhado dessas ações apontam para reformas políticas e pragmáticas.

Mas, se por um lado o redirecionamento das políticas públicas denuncia e ampara as mudanças propostas, por outro ele é insuficiente para efetivar a desinstitucionalização. Não é apenas a normatização que irá garantir o seu sucesso. Essa mudança de paradigma traz consigo o desafio de sua execução, no dia-a-dia, nos espaços em que deve ser sustentada. Para que isso seja possível, é necessária uma nova postura perante a vida: há que se ter abertura para o inusitado, para o inacabado, para o incontrolável, para que seja possível construir dispositivos coerentes com essa nova forma de pensar. Acreditamos que é nos espaços da prática cotidiana, com o que ela apresenta de singular, que a desinstitucionalização pode, de fato, se dar por meio da invenção de novas formas de relacionamento entre as pessoas, portadoras de transtorno mental ou não.

Nesse contexto, este estudo privilegia as implicações dos encontros entre os agentes comunitários e os portadores de transtorno mental nos processos de subjetivação, sob a ótica da filosofia da diferença e sua contribuição para a desinstitucionalização do portador de transtorno mental. Acreditamos que os processos de subjetivação são deflagrados por esses encontros e também por outros dispositivos que buscam transformar as formas de relacionamento com o transtorno mental. Buscamos cartografar esses encontros que são estabelecidos no terreno da micropolítica, no cotidiano, com o intuito de saber se eles têm sustentado a Reforma Psiquiátrica ao propiciar a circulação da vida ou se têm favorecido a proliferação dos "desejos de manicômio". Segundo Sales (2004), Deleuze problematizou especialmente essa questão do local e da forma como a vida é liberada e promovida, bem como onde e por quais agentes ela é limitada. Por isso, para acompanhar-nos nessa cartografia que nos propusemos fazer, escolhemos o olhar da filosofia da diferença como referencial teórico, por meio do diálogo com alguns autores dessa vertente.

 

Os encontros e os processos de subjetivação: o olhar da filosofia da diferença

Por filosofia da diferença, Sales (2004) designa a proposta filosófica, feita por Gilles Deleuze, elaborada em parceria com Félix Guattari, sob influência de Espinosa, Nietzsche e Bergson, que critica veementemente os postulados da representação e propõe a apreensão das diferenças em si, também denominadas singularidades. Para Deleuze e Guattari (1995), a realidade é concebida como coexistência e conexões entre vários rizomas que estão em constante transformação. Essas conexões, mais do que complementar os elementos que as compõem, podem criar o novo, operar a favor da invenção.

É importante ressaltar que esses encontros, essas conexões, não ocorrem apenas entre subjetividades humanas, mas entre todo tipo de intensidade existente. Dessa maneira, existe um corpo de sentido que não é algo corpóreo, semelhante ao corpo humano, mas algo que diz respeito aos incorporais, ou seja, aos efeitos, aos acontecimentos, que têm sua origem na relação entre os corpos e não possuem identidade plena e imutável. Cada encontro, cada situação, possui efeitos que emergem nas relações estabelecidas, nas conexões que os compõem. Essas conexões se dão entre as intensidades, corporificadas ou não, criando e recriando incessantemente o que é e o que está por vir. "Ou seja, quando dois ou mais elementos se conectam, eles não apenas se complementam, eles constituem um novo elemento, com uma nova forma e uma nova intensidade, prontos a se modificarem novamente" (PARPINELLI; SOUZA, 2006).

Nessa lógica, as dicotomias perdem o sentido, uma vez que não há lugar para oposição em uma forma de pensamento que defende a multiplicidade e a heterogeneidade. Não há lugar, também, para as hierarquias, já que há um descentramento que permite infinitas ligações e religações de quaisquer partes dos rizomas, sem privilégio de umas sob as outras. Cabe ressaltar que a filosofia da diferença, sustentada pelo raciocínio de imanência, propõe outro modo de conceber a vida. O que esses pensadores defendem, no entender de Schöpke (2004), é o rompimento com a forma de pensar da representação clássica, bem como com os valores nela impregnados. Assim, a moral, as idéias de transcendência e de verdade absoluta devem ser combatidas para que a vida possa fluir, sem que fique aprisionada a conceitos transcendentes, superiores.

Nesse sentido, podemos afirmar que o que a filosofia da diferença, de fato, busca é conhecer a diferença em si, o singular. Singularidade não como sinônimo de particularidade, mas no sentido de combinações de forças originais, inéditas e provisórias, que só podem ser conhecidas após sua composição e antes de serem novamente capturadas. Assim, o singular não se refere ao individual, mas ao original, pois as combinações de forças que inauguram constantemente o singular são dinâmicas e produzidas nos agenciamentos, nas conexões com outras forças provenientes da exterioridade. Essa forma de pensar sustentará nossa análise dos encontros dos agentes comunitários de saúde com as famílias dos portadores de transtorno mental, bem como das forças e dos afetos que neles circula.

Ao utilizar esse raciocínio de imanência para pensar a subjetividade, percebemos que a filosofia da diferença a concebe como um processo interminável de fazer-se e refazer-se coletivamente, ou seja, como subjetivação em processo, que opera por agenciamentos presentes nos encontros. Baseada nessas idéias de Deleuze e Guattari, Rolnik (1995) defende que a subjetividade é constituída por duas facetas: a formal e a sensível. A faceta formal compreende a representação do sujeito por si mesmo e é composta por linhas duras, molares. Essa é a face que contém as referências identitárias e as divisões binárias de sexo, profissão, classe social, ou seja, tudo aquilo que o determina. Por outro lado, a faceta sensível da subjetividade é composta por linhas flexíveis e comporta as dimensões incorporais, invisíveis e moleculares. Essa é a face que possibilita o afetamento da subjetividade pela exterioridade, pelo que está fora dela. Por ser sensível, quando afetada pelas forças que emergem entre ela e os universos que a rodeiam, pode haver acontecimentos, desestabilizações e conseqüentes deslocamentos dessa subjetividade por meio dos agenciamentos produzidos pelos encontros com essas forças.

Esses acontecimentos se dão por agenciamentos, que se referem ao arrebatamento da subjetividade pela exterioridade. Quando isso ocorre, a subjetividade abandona temporariamente seu território estabelecido, composto pelas linhas duras e, por meio de linhas de fuga, arrasta-se para o inusitado. Nesse movimento, a força que existe em potência na subjetividade, denominada força virtual, e que corresponde ao incorporal, ao aglomerado de forças que acompanha as situações, "acontece", ou seja, atualiza-se, criando o novo. Atualizar o virtual é inventar, fazer outra composição que não é determinada pela interioridade ou pelo que já existia, mas sim governada pelas relações com a exterioridade. Os acontecimentos, ao atualizarem as linhas de virtualidade, convidam às invenções de novos sentidos. Ao aplicar essa leitura às visitas domiciliares realizadas pelos agentes comunitários de saúde, podemos pensar que há um campo de forças de exterioridade que perpassa esses encontros e pode afetar as subjetividades em sua faceta sensível, gerar rupturas no estabelecido e conduzir a outras formas de conviver com a loucura.

Essa perspectiva de imanência e exterioridade comporta ainda uma idéia de planos em que o mundo é concebido como uma coexistência de subjetividades, naturezas e culturas distribuídas nesses planos e superfícies superpostas, segundo Deleuze e Parnet (1998). Por compreender as idéias, as figuras e as imagens já estabelecidas da subjetividade, a faceta formal da subjetividade se articula naquilo que esses autores chamaram plano de organização, que é composto por estratos, segmentos, que encapsulam a vida de determinada maneira. Esse plano comporta as intensidades que foram capturadas em forma de corpos, de conceitos e de generalidades, restringindo os fluxos por meio de seu represamento. Por outro lado, a faceta sensível da subjetividade se situa no plano de composição ou de consistência e é aquela que possibilitará a retomada da abertura desses fluxos para estabelecer novas conexões. Essa retomada da processualidade da vida é possível em função dos afetamentos ocorridos nos encontros, por meio dos agenciamentos da subjetividade por outras forças que, ao provocar sua desestabilização, geram novas formas de expressão. É no plano de consistência que essa expansão se torna possível, por ser esse o plano em que as forças se articulam e se compõem.

É preciso pontuar que o plano de organização e o plano de composição ou de consistência estão presentes no plano de imanência, que é o meio no qual tudo se dá. É somente a partir de um raciocínio de coexistência e de justaposição desses planos que se torna possível abarcar as dimensões dos fluxos e das forças que capturam ou libertam esses fluxos e apreender as relações e as linhas de segmentaridade e de fuga que as compõem. "Os fluxos, em estado de imanência, estão presentes em todos os planos, sendo que o que se altera é sua composição: segmentar no plano de organização e fluida no plano de consistência." (ROMAGNOLI, 2005, p. 253). Vale lembrar que esses planos também estão presentes nas visitas domiciliares que acompanhamos - tanto no que se refere aos agentes, que se encontram presos a horários, planilhas, estatísticas e inserções na equipe de trabalho pré-estabelecidas quanto no que se refere às famílias, que possuem uma identidade familiar calcada no sofrimento e no fracasso social, o que, na maioria das vezes, impede novas relações entre seus membros. De fato, a baixa renda familiar, a cronicidade da doença mental, a necessidade de cuidado constante, a crise que advém da eclosão da doença afetam as subjetividades envolvidas e forma um modo de existência grupal que tem na doença mental seu eixo de sustentação. Essa composição incentiva um modo de funcionamento estereotipado e repetitivo que empobrece as reais possibilidades da vida e impede que o plano de consistência aflore.

A inventividade aponta para uma composição advinda da conexão da subjetividade com a exterioridade e se dá no molecular por agenciamentos, e esses raramente se realizam quando o plano de organização se torna muito cristalizado, como no caso acima. Ao conectar-se com o que vem de "fora", ao entregar-se à relação, essa entrega às conexões força a processualidade da vida. Ao deslocar-se de si rumo ao estranho, afetada justamente por ele, a subjetividade experimenta a necessidade de decifrar as forças que se apresentam e que ela não consegue incorporar ao que já existe. É esse desconhecido que a força a criar o novo e que é composto por várias intensidades diferentes. A subjetividade é também e, sobretudo, potência, devir, capacidade de invenção que só passa a ser conhecida no instante em que é atualizada nas conexões que efetua com o que vem de "fora", apesar de comportar uma faceta formal que aponta para o identitário, para o que repete e se reproduz.

Cabe aqui lembrar que não se trata apenas de conexões entre subjetividades humanas, mas de encontros entre intensidades humanas e inumanas, visíveis e invisíveis, corporais e incorporais, molares e moleculares, ou seja, trata-se de relações de forças que podem operar tanto para a imobilização da vida como para a invenção de algo. Dessa maneira, novas composições, novas singularidades vão sendo tecidas ao longo da existência ao mesmo tempo em que ocorrem reproduções e estabilizações que organizam as relações entre essas forças.

Nessa lógica, os encontros são fundamentais. É por meio dos encontros que se dão entre os corpos que a subjetividade se transforma e se reinventa. Ao se basear no pensamento de Espinosa, Deleuze (2006) aponta que tanto o corpo quanto a realidade são pensados como intensidades e combinação de forças. O corpo corresponde a uma composição complexa de movimento e repouso que forma uma individualidade. Tal individualidade se define por certo poder de afetar e de ser afetada. Nessa forma de pensar, o corpo é um todo que abarca elementos formados e não formados, bem como as relações entre esses elementos. Não há dualidade entre corpo e alma, entre idéia e sensação, assim como não há qualquer hierarquia ou dualidade entre o que é pensado e o que é corporalmente vivenciado. Não há, também, prevalência do humano sobre o inumano, uma vez que a razão que distingue os humanos de outros seres não é relevante nessa concepção. Nesse raciocínio, a ênfase é dada às intensidades e ao molecular, muito mais do que ao visível e mensurável.

Deleuze menciona, em uma de suas aulas, as idéias de Espinosa e a afirmação desse filósofo de que "[...] nós não podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos exteriores produzem sobre o nosso."(DELEUZE, 2006). Afecção, assim, é pensada como o efeito que a ação de um corpo produz sobre outro. Essa ação implica sempre um contato e indica mistura de corpos, o que não pode se realizar a distância. É nos encontros que as misturas e as afecções acontecem. As afecções seriam, portanto, a forma de conhecer: o que se conhece é o efeito de um corpo sobre outro. Ao ser afetado pelo outro nos encontros, o corpo sente esse afetamento como agradável ou desagradável e constrói uma idéia sobre essa afecção. Assim, por meio das idéias-afeccção, o corpo constrói seu conhecimento de si e das outras coisas a partir dos efeitos das misturas de corpos, ou seja, dos encontros. "Eu só conheço as misturas de corpos e só conheço a mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas." (DELEUZE, 2006).

Essa forma de conceber o papel das afecções aponta para a sua importância nas composições da subjetividade e reforça a potência dos encontros como criadores de novas formas de ser e de se relacionar. A afecção, sendo uma idéia, representa um pensamento e é, ao mesmo tempo, alguma coisa em si e não apenas representação. Mas, além das afecções, existem também os pensamentos, que não possuem caráter representativo e seguem em outra direção. A esses pensamentos, Espinosa nomeou afetos. Os afetos estão relacionados ao desejo, entendido como força pulsante capaz de transformar e produzir devires. Quando projetado no campo do social, liga-se a fluxos e acontecimentos, por meio dos afetamentos, buscando a ruptura de sentido para produzir o novo. O querer algo implica aquilo que quero, que é representado por uma idéia, mas o fato de querer, em si, não é uma idéia, é um afeto.

Ao ser afetado pelas forças provenientes do encontro com outros corpos, as vibrações corporais sofrem a incidência de afecções ativas, quando provenientes das ações do próprio corpo sobre outros corpos, e por afecções passivas, quando provenientes da ação de outro(s) corpo(s). As duas formas de vibração se inter-relacionam: ondulações internas se prolongam ao exterior e vice-versa. Assim, teríamos, de acordo com Deleuze (2002), duas espécies de afecções: uma intitulada "ação", que derivaria da essência do indivíduo afetado, e outra, intitulada "paixão", que derivaria da influência do exterior sobre o corpo afetado. Se uma mistura de corpos ocorrida em um encontro é compatível com a substância de um deles, essa mistura é percebida por esse corpo como agradável, alegre e, nesse caso, a potência de agir e existir é aumentada. De outro modo, se esse encontro é percebido como desagradável e triste, por serem as substâncias são incompatíveis, a potência de agir e existir é diminuída.

Esses efeitos, bem como o relacionamento com eles, nos colocam diante da micropolítica. A micropolítica, como aqui é entendida, cria micro agenciamentos para estabelecer linhas de fuga, para poder gerar o "novo", para liberar virtualidades. Nesse sentido, a vida que está encapsulada no plano de organização e se fixa a uma identidade pré-estabelecida, é liberada por meio dos afetamentos promovidos nos encontros, conectando-se com o diferente, com o estranho, para exercer sua potencialidade transformadora, seu devir. O devir é um processo de agenciamento coletivo e não pode, nessa lógica, ser concebido como individual porque é permeado de encontros. Vamos nos fazendo e refazendo nos encontros que ora potencializam a nossa existência e ora a enfraquecem porque, como dissemos, os afetamentos ocorridos nesses encontros, por meio das afecções, produzem efeitos diversos. Da mesma forma que os efeitos de alguns encontros são considerados ruins por diminuírem nossa potência de existir, outros são considerados benéficos por aumentá-la. Não há como prever a maneira como cada um se relacionará com a desestabilização produzida em cada encontro, com o que será produzido a partir desse afetamento.

Essa leitura é usada para examinarmos também os encontros entre os agentes comunitários de saúde e as famílias dos portadores de transtorno mental. Os encontros que insistem nas referências identitárias e nos estereótipos apontam e cultivam subjetividades endurecidas, que cerceiam a vida, e são considerados por nós como maus encontros. Já aqueles que acolhem a alteridade, desconstruindo conceitos naturalizados e se abrindo ao inusitado resgatam a processualidade da vida e, por isso, os consideramos bons encontros. Nos encontros com o portador de saúde mental não é diferente: ou eles apontam para a manutenção da mentalidade manicomial, ao se pautarem nos preconceitos ou nos manicômios introjetados, reproduzindo a institucionalização, como vimos anteriormente, ou propiciam a criação e a experimentação de novas formas de ser e de estar no mundo, ao permitirem e facilitarem a expressão das singularidades, contribuindo para a desinstitucionalização do portador de transtorno mental.

Na tentativa de cartografar esses encontros, acompanhamos as visitas domiciliares que os agentes comunitários de saúde fizeram às residências dos portadores de saúde mental. No decorrer desses encontros, presenciamos diversas combinações de forças que provocaram efeitos diversos. Constatamos que, sem dúvida, o agente comunitário de saúde é um elo de ligação entre a comunidade e o Programa de Saúde da Família, sendo que o seu transitar por esses contextos faz dele um possível desencadeador de rupturas de sentido e, conseqüentemente, de promoção de novos devires.

Assim como os encontros com os agentes comunitários afetam os portadores de transtorno mental, o convívio familiar também potencializa, ou não, o fluir da vida dessas pessoas ao permitir maior ou menor grau de experimentação de formas inéditas de ser e de estar no mundo. Concordamos com Melman (2001) quando discute a questão de que nem sempre o ambiente familiar é o melhor lugar para o portador de transtorno mental e quando aponta para a desidealização da família como remédio para todos os males. No entanto, os portadores de transtorno mental que visitamos moram com suas famílias, e as relações entre eles podem contribuir apenas para a reprodução dos papéis sociais ou para a cristalização do que se espera de um portador de transtorno mental; pode, também, propiciar a invenção de novas formas de existência e a descoberta de novas possibilidades de relacionamento consigo mesmo e com o outro.

 

Visitando as famílias dos portadores de transtorno mental

As visitas domiciliares que os agentes comunitários de saúde fizeram às residências dos portadores de transtorno mental foram realizadas no município de Matozinhos, interior de Minas Gerais. Nessa cidade há onze Equipes de Saúde da Família (ESF) e um CAPS que oferece à população acolhimento a toda demanda (espontânea ou encaminhada), atendimento psicológico e psiquiátrico, oficinas terapêuticas e permanência-dia, além de projetos que visam o fortalecimento do laço social entre o usuário e a comunidade. A clientela é constituída por psicóticos, neuróticos graves e egressos de hospitais psiquiátricos, todos adultos. Apesar de o trabalho desenvolvido por esse serviço ter sido reconhecido pela Gerência Regional de Saúde, em função da qualidade do atendimento prestado aos seus usuários, o CAPS-Cidadi ainda trabalha de maneira desarticulada com o Programa de Saúde da Família.

Entendemos que a estratégia utilizada pelo Programa de Saúde da Família de ir ao encontro da população, por meio das visitas domiciliares realizadas pelos agentes comunitários de saúde (inclusive às famílias dos portadores de transtorno mental), por si só não constitui um dispositivo que assegure a desinstitucionalização da loucura. Mas consideramos que os encontros entre essas famílias e os agentes comunitários de saúde afetam as subjetividades e podem tanto reforçar a repressão à singularidade do "louco" quanto contribuir para sua libertação. Ao partir da escolha dessa questão como norte para este estudo, optamos pela observação participante e pelas entrevistas semi-estruturadas como recursos metodológicos a serem utilizados na produção de uma cartografia das marcas produzidas nesses encontros. Considerando a ótica da filosofia da diferença, que só é possível conhecer por meio das afecções, a cartografia pode ser entendida como a confecção de um "mapa de sensações" (ROLNIK, 1989) a partir das afecções sofridas pelo próprio cartógrafo no contexto da pesquisa.

Acompanhamos as visitas dos agentes comunitários a quatro famílias de portadores de transtorno mental com diagnóstico de psicose, usuários do CAPS-Cidadi. Visitamos a Família 1 (F1) acompanhando o agente comunitário de saúde 1 (ACS1), a Família 2 (F2) acompanhando o agente comunitário de saúde 2 (ACS2), a Família 3 (F3) em companhia do agente comunitário de saúde 3 (ACS3) e a Família 4 (F4) acompanhando o agente comunitário de saúde 4 (ACS4).

Durante esse percurso, observamos que as visitas domiciliares realizadas mensalmente pelos agentes comunitários de saúde são, de fato, o sustentáculo do modelo de atenção à saúde proposto pelo Programa de Saúde da Família. Em nossa pesquisa de campo, ao buscarmos conhecer as singularidades e o cotidiano em que se dão essas visitas, encontramos especificidades e semelhanças nas subjetividades, nas práticas profissionais dos agentes comunitários de saúde e nas configurações e vivências familiares, o que tem provocado efeitos também diversificados.

Notamos que as famílias que visitamos diferem em vários aspectos. Em relação às condições socioeconômicas, embora todas morem em casa própria, a Família 1 é a que tem menor poder aquisitivo, e a Família 2 é a única que não vive na periferia da cidade e pode ser considerada pertencente à classe média. As configurações também variam, apesar de não termos visitado nenhuma família monoparental. A Família 1 é constituída por um casal, vários filhos adultos e dois netos, filhos de uma das filhas solteiras. As Famílias 2 e 3 são constituídas por mães viúvas e filhas solteiras; com a Família 3 mora também um neto adulto, filho da portadora de transtorno mental. A Família 4 é composta pelo casal que não tem filhos dessa união, embora os dois cônjuges tenham filhos adultos de relações anteriores, caracterizando o que Vaitsman (1994) nomeou novos arranjos familiares.

Percebemos formas diferenciadas de as famílias lidarem com as singularidades e, em especial, com as oscilações de humor que, muitas vezes, acompanham o transtorno mental, principalmente em momentos de crise. Essas oscilações interferem no autocuidado do portador de transtorno mental e na rotina familiar.

A Família 1 relata como o seu membro portador de saúde mental se descuida da higiene pessoal e dorme fora de casa quando não está bem mentalmente. Apesar disso, essa família acompanha passivamente essas mudanças, esperando que elas passem ou que as instituições de saúde façam alguma coisa, o que entendemos, a partir do nosso referencial teórico, como uma despotencialização de recursos próprios do grupo familiar, denotando passividade frente às questões enfrentadas.

A Família 2 tenta evitar possíveis desentendimentos com sua familiar portadora de transtorno mental, principalmente no cenário público social, mas arrisca-se a criar soluções para problemas que interferem no cotidiano doméstico, tentando encontrar uma saída que respeite a singularidade do portador de transtorno mental e as necessidades familiares.

A Família 3 incomoda-se com os sintomas depressivos de sua familiar portadora de transtorno mental e, apesar de compreender que eles fazem parte do transtorno, buscam ajudá-la a encontrar novas formas de viver que sejam mais voltadas para a saúde do que para a doença. Nessa família, percebemos uma ambivalência referente à possibilidade de superação da doença mental, ora percebida como eterna, ora considerada passível de modificações.

A Família 4 acolhe a singularidade do seu membro portador de saúde mental, respeita suas freqüentes oscilações de humor e seus temores, considera suas opiniões e respeita suas decisões, permitindo que ele assuma uma postura ativa em sua vida.

Quanto aos agentes comunitários de saúde, concordamos com a menção feita pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2001) quanto às possibilidades de atuarem como elos integradores entre a comunidade e os serviços de saúde, mas pensamos que para a sustentação dessa prática no cotidiano seria necessário que eles participassem de programas de treinamento e capacitação para a atividade, bem como de grupos de discussão propostos pelos Centros de Atenção Psicossocial. Tais grupos teriam o objetivo de construir novas formas de relacionamento com o portador de transtorno mental. Em nossa pesquisa de campo, constatamos que isso não acontece, apesar de previsto na legislação brasileira.

No que diz respeito às especificidades dos agentes comunitários de saúde e que foram percebidas por nós como pontos que afetam as visitas domiciliares, podemos citar a relação com a alteridade. A agente comunitária 1, embora tenha dito que escolheu essa função por considerar ter facilidade em se relacionar com o público, mostrou-se receosa e tensa sempre que a mãe da portadora de transtorno mental visitada fazia referência a questões inesperadas, que fugiam ao protocolo. Ela também nos pareceu temerosa quanto à nossa avaliação, no que diz respeito à sua conduta profissional, demonstrando dificuldade em lidar com o inusitado que acompanha o encontro com a alteridade.

Já a agente 2 demonstrou-se mais flexível para relacionar-se com outras subjetividades, criando recursos que facilitam a abordagem à família e, principalmente, à portadora de transtorno mental que visitamos, por meio de ações que propiciam satisfação a essa família.

Quanto à agente 3, percebemos uma precarização dos recursos utilizados na relação com a alteridade que, durante as visitas acompanhadas, restringiram-se a perguntas-padrão, respostas lacunares e superficiais, além de uma postura passiva perante as questões levantadas pela família, como, por exemplo, a queixa da portadora de transtorno mental relativa à mudança de sua medicação psiquiátrica e suas conseqüências.

A dificuldade que a agente 4 mencionou ter experimentado ao se relacio-nar com outras pessoas, e que ela associa a uma depressão anterior, pareceu-nos vinculada muito mais ao medo de perder o controle da situação, frente ao inusitado que permeia cada visita domiciliar, do que à depressão citada. Pensamos que a postura defensiva que essa agente assume durante as visitas, por meio da padronização excessiva das atitudes, aponta para tentativas de controlar qualquer coisa que coloque a própria subjetividade vulnerável a desterritorializações/desestabilizações produzidas pelo encontro com a exterioridade. Dessa forma, ela se protegeria do desconforto proporcionado pelo desconhecido. Cabe ressaltar que, embora na fala dos agentes a questão da alteridade tenha aparecido, na maioria das vezes, como referente à relação com outras subjetividades, entendemos alteridade como todas as forças e fluxos que nos forçam a ser de outra maneira, que vêm de fora e nos convocam a processos de subjetivação inventivos.

Outro ponto analisado foi que, com exceção da agente 2, as outras agentes que acompanhamos estavam bastante limitadas pelo plano de organização, tendo permanecido, muitas vezes, presas à manutenção da rotina e ao cumprimento das normas técnicas que deveriam seguir. Elas também demonstraram preocupação excessiva com a coleta dos dados (realizada por meio de perguntas padronizadas) e com as assinaturas que comprovavam as visitas. Em nosso entendimento, essa postura sugere a manutenção de identidades fixas, calcadas no papel profissional, desviando para essas questões grande parte da energia que poderia estar circulando nos encontros e a favor da vida.

Com base nesses dados, podemos arriscar-nos a pensar: como os profissionais das equipes de saúde têm circulado entre as exigências burocráticas a serem cumpridas, que determinam o repasse de verbas para a manutenção do programa, e o plano de consistência, que traz consigo o desconhecido? Entendemos que ainda prevalece o atrelamento às exigências burocráticas como forma de proteção da própria subjetividade contra as forças caóticas advindas do encontro com a exterioridade, em detrimento do mergulho nas intensidades do plano de consistência, que traz consigo não só o desconhecido como também a possibilidade de produção de devires por meio da invenção. Ainda assim, testemunhamos, com ajuda da agente 2, a existência de atitudes que contrariam os regulamentos, possibilitam a invenção de formas inéditas de relacionamento com a alteridade e propiciam a alegria e, em conseqüência, uma vida mais potente.Cabe lembrar que, segundo Deleuze (2006), a alegria advinda dos bons encontros aumenta a potência de agir e de existir, possibilitando a criação de formas de viver mais condizentes com a nossa vida, ou seja, com a potência inerente a cada um de nós.

Outra questão que norteou este estudo refere-se à possibilidade de os encontros ocorridos durante as visitas domiciliares serem desencadeadores de novas formas de acolhimento e de convivência com os portadores de transtorno mental, indicativas e potencializadoras da desinstitucionalização da loucura. Nesse aspecto, presenciamos encontros em que, na maioria das vezes, repetiram-se condutas que mantêm o instituído preso à instituição, por meio da reprodução de papéis, atitudes e estereótipos, durante aquelas visitas em que as agentes comunitárias de saúde limitavam-se a coletar dados e a transmitir informações padronizadas, além de insistirem em manter condutas assistencialistas direcionadas às famílias visitadas e aos seus membros portadores de transtorno mental.

Por outro lado, na segunda visita feita à residência de João, testemunhamos um encontro que gerou alegria e um excedente energético que o levou a investir na idéia de executar um projeto (reorganizar a horta do CAPS), trocando uma postura passiva, sustentada pelo medo do encontro com a alteridade, por uma proposta de ação que o lançaria justamente ao encontro com a exterioridade e à possibilidade da construção de novos sentidos para a sua vida.

 

Considerações finais

Concluímos, a partir dessas análises, que as visitas domiciliares podem ser dispositivos a serviço da desinstitucionalização do transtorno mental, quando propiciam o experimentar de novas formas de ser e de circular pela vida, por meio da atualização do virtual, do que existe em potência e que se desprende do aglomerado de forças que acompanha as situações a partir dos encontros.

Pensamos que as subjetividades, sempre singulares, interferem nessa questão, muito mais do que as capacidades técnicas dos agentes. Entendemos também que as subjetividades sofrem influência dos valores sociais e do conhecimento científico a que estão submetidos, dos planos de organizações da sociedade em que vivemos, e que a adequação das atitudes às transformações paradigmáticas podem não ocorrer no mesmo ritmo. Contudo, consideramos que a discussão do novo paradigma que norteia as ações de saúde e a desinstitucionalização do transtorno mental possa afetar os profissionais (sejam eles da atenção básica ou da atenção à saúde mental), instigá-los a repensar suas práticas e sua força na opressão ou na libertação do portador de transtorno mental, bem como fomentar a invenção de novas formas de relacionamento com essas pessoas e seus familiares.

Além disso, constatamos que ainda persistem, aninhados nas subjetividades, desejos de manter os portadores de transtorno mental presos aos estigmas de incapazes e agressivos que justificariam as condutas assistencialistas e tutelares, mantendo-os encarcerados em rótulos e institucionalizados em uma prisão conceitual, mesmo que disfarçada de liberdade física. A incapacidade e a agressividade (periculosidade) são pontos percebidos por nossa equipe como circulantes entre os agentes, os portadores de transtorno mental, os familiares deles e o CAPS, bem como vislumbrados na fala de um dos médicos das Unidades de Saúde da Família visitadas.

Não queremos, de forma alguma, com essas colocações, fazer julgamentos morais e transcendentes, mas apontar que apesar das propostas e das políticas que visam a desinstitucionalização do transtorno mental, que, de fato, constituíram um avanço no campo da saúde mental, ainda encontramos marcas dos valores construídos e disseminados a partir de uma lógica de se pensar a loucura anterior ao início da reforma psiquiátrica brasileira, que continua presente em nossa cultura, apesar de coexistir com outras formas diferentes de pensamento e ação.

Atribuímos a permanência dos "desejos de manicômio" aos momentos em que as subjetividades se deixam guiar apenas por sua faceta formal, reproduzindo estereótipos, atitudes, idéias e afetos, independente dessas subjetividades estarem inseridas nas instituições de atenção à saúde, nas famílias dos portadores de transtorno mental ou na sociedade em geral. Pensamos que é a faceta sensível dessas mesmas subjetividades que poderá facilitar a criação de novos dispositivos para a desinstitucionalização, por meio das desterritorializações das subjetividades que, a partir daí, terão a possibilidade de atualizar sua potência criativa e inventar novos sentidos para a loucura e para o portador de transtorno mental. Percebemos, assim, que os intercessores nessa mudança paradigmática não nascem necessariamente da normatização regulada pela legislação que vigora em determinada sociedade, o que foi uma conquista, mas da forma como as subjetividades se colocam frente ao encontro com a exterioridade. Portanto, não basta ocupar um cargo, exercer uma função, participar de cursos de capacitação ou obedecer normas; o essencial, nessa ótica sustentada pela filosofia da diferença, é ser capaz de afetar e deixar-se afetar pela exterioridade e pelo desconhecido e o inusitado que acompanham esse encontro.

Em nosso entender, o combate aos referidos "desejos de manicômio" fazem parte dos desafios que os CAPS ainda têm que enfrentar para se solidificarem como dispositivos a serviço da lógica antimanicomial. A nosso ver, é esse combate que possibilitará cuidar do portador de transtorno mental sem superprotegê-lo ou idealizá-lo e acolher sua singularidade sem reforçar o transtorno mental, passos importantes na reinserção social e na desinstitucionalização da loucura.

Outro desafio percebido neste estudo diz respeito à necessidade de consolidar a articulação das redes de atenção à saúde que, embora seja regulamentada pelas atuais políticas públicas, desejada pelas equipes de saúde da família que encontramos e prevista nas metas do CAPS-Cidadi, ainda não se sustenta no cotidiano, mantendo a dicotomia entre saúde e saúde mental.

Surge, aqui, uma nova questão: como fazer de nossos modos de vida um permanente desafio às fixações que nos tornam consumidores do já registrado, em lugar de produtores de novas formas de existência, marcadas pela amizade, solidariedade e alegria? Acreditamos que essa maneira de conduzir a vida, guiada pela recusa em se prender somente ao plano de organização e pela busca da invenção de novas formas de circulação e de potencialização da vida é que irá, de fato, permitir e sustentar a desinstitucionalização do portador de transtorno mental.

 

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Endereço para correspondência
Adriana Pezzini Campos
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Artigo recebido em: 9/5/7
Aprovado para publicação em: 25/7/7

 

 

*Mestre em Psicologia pela PUC - Minas, psicóloga do CAPS-Cidadi de Matozinhos, professora assistente I da UNIPAC
**Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP, Mestre em Psicologia Social pela UFMG. Professora adjunta III da PUC - Minas.

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