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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.6 n.10 Barbacena jun. 2008

 

ARTIGOS

 

A moradia protegida no contexto da reforma psiquiátrica: interlocuções com a família e o campo social

 

Therapeutic residence within the context of the Psychiatric Reform: family and social inter-relations

 

 

Poty Colaço FonsecaI, 1 ; Cláudia Maria GenerosoII, 2; Maria Silvana MaiaIII, 3; Magnus Luiz EmmendoerferI, 4

I Universidade Federal de Viçosa - UFV-MG
II Moradia Protegida em Saúde Mental da Prefeitura Municipal de Betim
II Clínica de Urgência em Saúde Mental Urgentemente

 

 


RESUMO

O objetivo deste relato de experiência é caracterizar, no contexto da reforma psiquiátrica, o processo de reinserção social de portadores de transtorno mental a partir de suas inter-relações com a família e a estrutura de uma moradia protegida. Os resultados evidenciam que a saúde mental no Brasil está diante de um novo cenário, que após um longo período de intolerância às diferenças começa a delinear outra clínica. Nota-se que a moradia protegida faz parte de uma rede terapêutica, que ao contrário do aprisionamento do profissional e, principalmente, do usuário é construída a partir do próprio movimento dado pelas superações diárias dos portadores de transtorno mental e do envolvimento dos familiares com a sua estrutura.

Palavras-chave: Saúde mental, Moradia protegida, Reinserção social, Autonomia.


ABSTRACT

Within the context of the Brazilian Psychiatric Reform in the 1980s, the aim of this report is to characterize the process of social reinsertion of mental illness based on its inter-relations with the family and the Therapeutic Residence structure. The results show that mental health in Brazil has surpassed the stage of intolerance to the differences, finding ways to promote social inclusion through a new psychosocial rehabilitation clinic. The Therapeutic Residence concept is part of a therapeutic net, which, instead of imprisoning the professional, and, mainly, the user, is built on the patient‘s daily capacity to overcome his/her own limitations and on family involvement through a Therapeutic Residence service structure.

Keywords: Mental health, Therapeutic residence, Social reinsertion, Autonomy.


 

 

PANORAMA INICIAL

A reforma psiquiátrica no Brasil é um processo que surge mais concretamente a partir da conjuntura da redemocratização em fins da década de 1970, e que não está fundado apenas na crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas principalmente na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda a movimentação político-social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização.

Entendemos por reforma psiquiátrica o processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da Psiquiatria.

À medida que esse processo de reforma da política de saúde mental avança no Brasil, depara-se, cada vez mais, com uma clientela que precisa de vários recursos que extrapolam os muros assistenciais e os tratamentos tradicionais. Depara-se, também, com uma parte dessa clientela que perdeu os vínculos afetivos, sociais, familiares e com o próprio corpo, seja pela exclusão imposta pelo tratamento ou pela segregação estabelecida por seu quadro clínico. Assim, outras formas de tratamento são necessárias para os portadores de transtorno mental e a reabilitação psicossocial, entendida como estratégia e não como programa a ser cumprido, se faz cada vez mais necessária.

Nesse contexto surgem os serviços substitutivos, que possuem características extra-hospitalares e estão localizados principalmente nas regiões metropolitanas, próximos aos domicílios dos usuários. A moradia protegida, exemplo de um serviço substitutivo, se apresenta como ação inovadora, tanto do ponto de vista clínico quanto social, seguindo os preceitos da reforma psiquiátrica.

Nos últimos anos, o Ministério da Saúde vem estabelecendo normas de funcionamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos – SRT. Assim, a internação hospitalar tem sido substituída por outros recursos, como as moradias protegidas, locais desvinculados do espaço físico do hospital psiquiátrico, localizadas em áreas residenciais e que têm por finalidade básica abrigar pessoas com histórico de perda significativa dos laços sociais e, ou, história de distanciamento familiar em decorrência do processo de adoecimento psíquico.

A concepção do projeto de moradia protegida inclui a participação da família no tratamento e a manutenção dos vínculos sociais do paciente, que minimizam os riscos de cronificação e de exclusão.

A moradia protegida “X”, caso pesquisado neste estudo, é um Serviço Residencial Terapêutico que está em funcionamento em Belo Horizonte desde 1998, tendo sido a primeira moradia de Minas Gerais organizada no sistema de cotização dos gastos entre os familiares dos moradores. Essa moradia, vinculada a uma clínica de saúde mental, foi criada com o objetivo de acolher, inicialmente, quatro pacientes de um plano de saúde que estavam em processo de desospitalização psiquiátrica. Esses pacientes estavam internados há vários anos e haviam perdido os vínculos familiares e sociais, o que impossibilitava o retorno direto para a casa dos familiares.

Visando sustentar uma prática que considere tanto a singularidade como a inclusão social, o trabalho da moradia “X” toma como referencial para a sua abordagem a Reabilitação Psicossocial indicada por Saraceno (1996), cuja idéia de base é a restauração ou a ampliação do poder de contratualidade e de negociação dos indivíduos.

A contratualidade refere-se à habilidade do indivíduo em efetuar suas trocas afetivas e materiais. Para Saraceno (1996), essas trocas podem ser feitas em vários espaços, como no tratamento, na casa, no espaço social etc., onde se têm as relações que podem apresentar um nível contratual alto ou baixo. Nesses espaços é que se desenrolam as cenas, as histórias e o efeito de todos os elementos como o dinheiro, os afetos, os poderes, os símbolos etc. Desse modo, onde há falta de contratualidade, ou seja, de trocas, é que deve haver a reabilitação como estratégia para possibilitar a ampliação das trocas. Para garantir uma abordagem que não seja ortopédica, considera-se, na base da reabilitação psicossocial, a dimensão clínica que se funda sobre uma concepção de subjetividade apontada pela Psicanálise, que implica um valor ético sustentado pela particularidade de cada um, ou seja, a singularidade de cada morador.

Portanto, a moradia como casa, como lugar doméstico, visa oferecer um espaço para a constante negociação, por meio da palavra articulada aos variados momentos do cotidiano: sentar-se à mesa para as refeições, tomar banho, fazer compras para manter a casa, circular pela cidade etc., possibilitando o aumento do poder de negociação e, com isso, mais autonomia.

Com base nesse contexto, o presente artigo teve como objetivo central caracterizar o processo de reinserção social de portadores de transtorno mental a partir de suas inter-relações com a família e a estrutura de uma moradia protegida.

 

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O delineamento deste relato de experiência pode ser caracterizado pelo método de estudo de caso (YIN, 2001), que foi compatível com o tema em questão ao permitir descrever e discutir não só os aspectos objetivos, mas também os aspectos subjetivos das percepções dos envolvidos na moradia protegida “X”, como os portadores de transtorno mental, seus familiares e os profissionais da saúde que fazem parte da rede de tratamento em saúde mental.

Para tanto, os dados foram obtidos por meio de observações feitas pelos pesquisadores na moradia protegida “X”, com o acompanhamento dos portadores de transtorno mental e o contato com seus familiares. A participação dos pesquisadores nas reuniões coletivas com os portadores de transtorno mental da própria moradia protegida contribuiu para o aprimoramento deste trabalho.

A análise de conteúdo (BARDIN, 1997) permitiu que as informações captadas se materializassem sob a forma de texto organizado, depois da interpretação e da descrição de conteúdos sobre a estrutura da moradia protegida, os sujeitos e instituições envolvidas, as práticas exercidas pelos profissionais de saúde no cotidiano dos portadores de transtorno mental, o resgate da autonomia dos portadores de transtorno mental, a convivência com outras pessoas com situações semelhantes e a reinserção familiar e social.

 

FAMÍLIA E SAÚDE MENTAL

Pode-se considerar “família” aquela que “representa a principal instituição balizadora das relações sociais, da construção da identidade pessoal, bem como espaço de solidariedade e reprodução material e ideológica” (VASCONCELOS, 2002, p. 263).

A presença de um portador de transtorno mental em casa produz forte impacto na família, aumentando a responsabilidade dos familiares com o tratamento e os cuidados para com ele. Ao pensar na relação entre a família e o portador de transtorno mental, deve-se considerar o grau de sobrecarga vivido pelos familiares, além dos encargos financeiros, sociais e subjetivos causados pela doença. Há uma forte tendência de as famílias se isolarem do ambiente social, evitando comparecer a eventos e afastando-se de amigos e outros familiares, devido ao grande preconceito existente na sociedade contra os portadores de transtorno mental.

Para essas famílias, o aparecimento da enfermidade mental e suas conseqüências fazem agravar eventuais conflitos e dificuldades do cotidiano, anteriormente enfrentados por elas. Não há dúvidas de que precisam de ajuda para lidar com essas e outras questões, como a culpa, a sobrecarga, o pessimismo e o isolamento social, que surgem do sofrimento que a loucura imprime, tanto para eles quanto para a pessoa que adoece (SOUZA e SCATENA, 2005).

Apesar de essas famílias se fecharem cada vez mais, é a interação social, a criação de laços de amizade e de solidariedade com as pessoas que vai constituir as bases de apoio ao portador de transtorno mental e à própria família em momentos de crise. Em relação a essa rede que se estabelece a partir das relações sociais, podemos considerar que:

Esse nível intermediário da estrutura social se revela crítico para uma compreensão mais inteira dos processos de integração psicossocial, de promoção do bem-estar, de desenvolvimento da identidade e de consolidação dos potenciais de mudança e, conseqüentemente, também ilumina os processos psicossociais de desintegração, de mal-estar e de adoecer, de transtornos e identidade e de perturbação dos processos de adaptação construtiva e de mudança. Constitui, assim, uma instância necessária para poder desenvolver um trabalho clínico no campo da saúde mental, mantendo uma óptica eco-sistêmica responsável (SLUZKI, 1997, p. 37).

No entanto, o portador de transtorno mental e sua família sofrem com a estigmatização e o preconceito que a sociedade, por desconhecer as condições de vida desses sujeitos, apresenta em relação à loucura, e isso intensifica os conflitos na esfera familiar, resultando em freqüentes reinternações psiquiátricas.

Essa situação tem sustentado, por longa data, as instituições psiquiátricas no modelo manicomial de asilamento, que se constituem historicamente como espaço de segregação e violência e começam a sofrer críticas e denúncias após a 2a Guerra Mundial. Mais tarde, essas instituições passam a ser julgadas, no plano ético e jurídico, como violadoras dos direitos humanos dos portadores de transtorno mental. Do ponto de vista clínico, os asilos:

[...] pela sua ineficácia terapêutica, tornou-se um espaço patogênico e cronificador; na sua face institucional reproduz a violência por sustentar-se em relações de poder desigual e em relações impessoais, desumanas, massificadoras e burocratizadas, figurando assim como uma instituição total – que fecha os indivíduos na lógica e no tempo construído organizacionalmente (VASCONCELOS, 2002, p. 265).

Atualmente as internações psiquiátricas são propostas para os períodos de crise; portanto, fora da crise, a família é orientada a seguir com o tratamento ambulatorial, e o portador de transtorno mental deve se reintegrar ao convívio familiar e social. Porém, para Vasconcelos (2002), os pacientes que não possuem família ou aqueles que têm vínculo familiar instável constituem os usuários majoritários da população psiquiátrica e apresentam quadros clínicos graves, necessidade de cuidados e abordagem com duração prolongada.

A relação entre a família e o portador de transtorno mental está longe de qualquer unilateralidade e é mais complexa que a mera necessidade de controle e repressão sobre os seus membros desviantes. Envolve também muitos fatores (diagnóstico; número de reinternações; sexo; idade; condições materiais e psíquicas para o seu cuidado) (VASCONCELOS, 2002, p. 269).

Na maioria das vezes, as famílias buscam os serviços psiquiátricos sem saber como lidar com o portador de transtorno mental; apresentam-se angustiadas, estressadas e carregam enorme sentimento de culpa em relação às condutas e ao convívio com o enfermo. Aqui surge um grande desafio para os serviços substitutivos à internação psiquiátrica, pois:

O distanciamento prolongado, a falta de convívio direto entre o portador de transtorno mental e sua família, a desinformação e o despreparo moldam condutas e cristalizam posições. A família perde o pouco traquejo que tinha com o portador de transtorno mental e as condições emocionais para o convívio. O portador de transtorno mental, por sua vez, perde, paulatinamente, com as freqüentes reinternações, seu espaço no âmbito doméstico [...]. Perda real, objetiva, que se reproduz simbolicamente na ruptura das condições relacionais para o convívio (VASCONCELOS, 2002, p. 280).

Nesse contexto, surgem os serviços substitutivos como alternativa para a crise. A saúde mental apresenta os dispositivos residenciais (moradias protegidas) como elemento essencial para o processo de desinstitucionalização psiquiátrica colocado em curso nos últimos 30 anos no Brasil, por meio da reforma psiquiátrica.

O processo de reforma da assistência psiquiátrica defende, ainda, uma nova forma de pensar o processo saúde/doença mental/cuidado. Fortalece a substituição da concepção de doença pela de “existência-sofrimento”, na valorização do cuidar e na adoção do território como espaço social de busca constante do pleno exercício de cidadania (BREDA et al., 2005, p. 451).

Ao pensar nos benefícios que as moradias protegidas proporcionam aos seus usuários, podemos observar que eles desenvolvem um processo de reapropriação pessoal, constituído por elementos fundamentais de seu bem-estar físico e psíquico, retomando as noções reais e simbólicas das dimensões do corpo, do espaço, do tempo e da criação de vínculos interpessoais na vida cotidiana. É importante compreendermos que essas vivências, muitas vezes, foram empobrecidas com o institucionalismo causado por longas internações; além disso, os vínculos pessoais e sociais foram quebrados ou, até mesmo, não existiam. Dessa forma, comparados com os serviços fechados, os serviços residenciais atingem um nível mais elevado de satisfação pelos usuários.

As moradias apresentam-se como base fundamental dos processos de reinserção, além de terem uma relação de custo-efetividade mais interessante que os serviços hospitalares.

No contexto brasileiro, a possibilidade de terceirização de uma parcela pequena de serviços residenciais para o Terceiro Setor pode ter aspectos interessantes, como o de aumentar a flexibilização, a despadronização, a ampliação mais rápida de experiências piloto e a maior capacidade organizacional de combinar e integrar recursos estatais, privados não lucrativos, comunitários e dos próprios usuários e moradores (VASCONCELOS, 2002, p. 109).

As moradias têm propiciado aos portadores de transtorno mental melhora expressiva de seu funcionamento social, do autocuidado e da qualidade de vida. Porém, para o bom funcionamento desse dispositivo, é necessário contar com o suporte de profissionais qualificados, que irão prestar auxílio quanto ao orçamento doméstico, às compras e à manutenção da casa e do acesso à rede de serviços de atenção psicossocial.

Os novos serviços, como as moradias protegidas, por exemplo, procuram atender a uma “clientela” que possui os vínculos familiares desgastados, seja pela rejeição e pelo abandono causados por longas internações, ou por dificuldades no convívio doméstico causadas por repetidas situações de crise e de agressões. Esses serviços buscam modificar a relação que a família possui com o tratamento do portador de transtorno mental, proporcionando mais envolvimento com sua abordagem e a participação dos familiares no processo de reinserção social dos usuários.

 

A EXPERIÊNCIA NA MORADIA PROTEGIDA “X”

A moradia protegida “X” surgiu da concepção de uma clínica de saúde mental que atua desde 1995, com objetivo de sustentar o paciente portador de transtorno mental grave, em crise, fora da estrutura hospitalar. Seus idealizadores planejaram desenvolver dispositivos que auxiliassem na construção da autonomia possível para o doente mental e sua real inserção social a partir do respeito à sua subjetividade e da crença de sua capacidade de convivência e produção, ainda que marcadas por uma forma peculiar de existência.

Em 1996, essa clínica assumiu, junto a um plano de saúde, a tarefa de desenvolver um projeto para a desospitalização de sua clientela psiquiátrica. Naquele momento, registrava-se um grande número de reinternações, inclusive com 32 pessoas internadas há mais de cinco anos (a internação mais longa era de mais de 30 anos). Foi detectada, também, a necessidade de desenvolver um projeto terapêutico individual para cada caso. No decorrer desse processo, percebeu-se que alguns casos necessitavam de uma estrutura intermediária entre o hospital e o retorno para casa dos familiares. A partir daí, foi desenvolvido e implementado o projeto da moradia protegida “X”.

A organização da moradia vem sendo pensada de forma a desenvolver uma dinâmica por meio da qual os moradores participem da construção de seu cotidiano, resguardando as particularidades de cada um dentro da coletividade. Nesse cotidiano estão incluídos desde os cuidados básicos de higiene, cuidados com objetos pessoais, as relações com o outro e as circulações pelo bairro, até a adesão ao tratamento.

Os membros da equipe participam como intermediadores e agenciadores das relações do grupo. Periodicamente, são realizadas reuniões com os moradores, seus familiares, os membros da equipe e os funcionários da casa. O objetivo principal das reuniões é criar momentos de encontro para a convivência, a solução de problemas, a divisão de responsabilidades, as decisões coletivas quanto ao cotidiano da casa (compras, cardápios, horários, funções, etc.) e para apresentação de propostas de lazer, entre outros assuntos. É, em suma, um exercício do poder de contratualidade de cada morador que está em desenvolvimento.

A equipe da moradia é composta por coordenador, psiquiatra de referência, acompanhantes terapêuticos, cuidadores e empregada doméstica. Todos os membros da equipe atuam de forma a intermediar as relações entre os moradores, visando possibilitar melhor poder de negociação e mais autonomia entre eles, respeitando sua singularidade.

O objetivo do coordenador é se tornar um facilitador, aquele que está presente no cotidiano da moradia, atuando como “ponte”, para que coisas possam ser ditas e pensadas. No entanto, ele não deve oferecer aos moradores respostas prontas, mas ajudar a cada um deles a encontrar suas próprias soluções ou fazer com que o grupo se movimente para realizar mudanças importantes.

Ressalta-se que a moradia foi projetada para ser um espaço de passagem, de movimento, que não o da inércia ou da segregação, para que cada morador possa elaborar saídas criativas em sua relação com o mundo, seja morando sozinho, voltando para a casa da família ou de uma família substituta, tendo a moradia como referência, retornando a ela quando acreditar ser necessário, entre outras possibilidades.

Essa experiência retoma a idéia de pessoas morando juntas como em uma república, dividindo o espaço e o cotidiano de uma casa por algum tempo, embora esse espaço necessite de alguma proteção.

Durante o primeiro ano, o plano de saúde que deu início ao projeto financiou toda a estrutura da moradia. Nesse período foi disponibilizada uma coordenação administrativa responsável pela contratação de pessoal, pelas despesas e pela manutenção da casa. Havia outra coordenação técnica, independente da administrativa, responsável pela clínica de saúde mental. Ela visava a articulação e o direcionamento clínico dos moradores, como a manutenção do projeto terapêutico individual, a intermediação das relações entre funcionários e moradores etc.

Após um ano de funcionamento, as famílias assumiram o pagamento dos gastos (aluguel, luz, água, telefone, alimentação e funcionários), e a clínica passou a administrar os pagamentos e a contratação de pessoal, bem como a dar continuidade à coordenação técnica do projeto.

Com o passar do tempo, surgiram outros candidatos a moradores, porém eles não tinham história de internação hospitalar de longa permanência. Eram casos marcados mais pela dificuldade de convivência familiar. Durante os primeiros cinco anos de existência da moradia “X”, passaram por lá dez moradores, todos com diagnóstico de psicose. Nesse período, alguns retornaram para a casa de seus familiares, deixando seis pessoas na moradia.

Para que um morador participe dessa estrutura, é importante que ele esteja inserido em uma rede de tratamento (a moradia é mais um recurso da rede). É necessário, também, que ele consinta em residir nesse espaço, pois é um lugar planejado para se tornar uma casa, e não uma instituição fechada. Entende-se por rede de tratamento um conjunto de serviços de atendimento prestados por profissionais e instituições de saúde que interagem entre si, sem que se estabeleça uma relação hierarquizada. Busca-se atender a toda a demanda apresentada pelo indivíduo e desenvolver todo o potencial terapêutico dos serviços envolvidos. Além da equipe que atua diretamente na moradia “X”, a rede de tratamento também engloba profissionais como médico psiquiatra, psicoterapeuta, terapeuta ocupacional, bem como serviços do tipo hospital-dia e oficinas terapêuticas.

Há um “contrato de adesão”, cujos itens são discutidos com o morador e a família. Por meio dele, algumas regras são estabelecidas para todos: o respeito mútuo pelo espaço de cada morador, o não uso de bebida alcoólica na moradia e a necessidade de seguir o tratamento proposto, conforme cada caso. As regras são aceitas pelos moradores, individualmente, em um momento anterior à sua entrada na casa; outras regras e outros modos de melhor convivência são construídos dia-a-dia, com a participação de todos.

A moradia protegida propõe uma prática coletiva de respostas e intervenções que não pode se limitar a um determinado momento do dia e nem a uma só pessoa, pois a forma de endereçamento que o morador faz necessita de intervenções imediatas, que não podem ser adiadas. As intervenções são feitas no próprio dia-a-dia dos moradores, em um espaço onde coabitam várias pessoas estranhas, num primeiro momento.

A moradia foi pensada para propiciar outro tipo de relação entre os membros da equipe e os moradores que não a de uma hierarquia rígida, repetindo-se, aí, as relações vivenciadas pelos moradores em seus lares originais ou instituições. Por meio dela, estabelece-se um campo de trocas, embora as funções exercidas pelos moradores sejam fundamentais no delineamento de seus papéis na casa.

A partir do acompanhamento dos moradores (portadores de transtorno mental), foi possível observar certas características que sinalizaram a viabilidade do projeto e os benefícios que traria a essas pessoas e suas famílias:

- os quatro primeiros moradores faziam parte do projeto de desospitalização do plano de saúde e, portanto, tinham histórico de internações de longa permanência (entre seis e 25 anos), tendo permanecido excluídos da coletividade, o que comprometeu suas habilidades em gerir o próprio cotidiano, fazer escolhas, lidar com o inesperado e estabelecer vínculos sociais. O retorno imediato para a casa dos familiares também era inviável naquele momento;
-nnos demais casos também havia dificuldade para estabelecer e manter vínculos familiares e sociais; os laços afetivos estavam empobrecidos ou inexistiam, e a circulação pela cidade era limitada e dependente de terceiros;
-ntodos tiveram a indicação para outros dispositivos da rede, além do tratamento psiquiátrico com uso de medicação atípica. O acompanhamento terapêutico foi necessário em todos os casos (de acordo com a demanda de cada um deles), uma vez que todas as pessoas apresentavam algum comprometimento que dificultava a organização da própria rotina de forma independente e a administração dos bens pessoais e do dinheiro;
-nem dois casos houve também a alteração da percepção corporal, o que levou a situações de descuido com a higiene pessoal; e
-na formação heterogênea do grupo em relação à idade, ao sexo, ao nível cultural e à evolução do adoecimento oferecia grandes possibilidades de ocorrerem trocas. Por serem os moradores os grandes parceiros no projeto, a diversidade facilitaria o desenvolvimento do grupo e de cada membro, já que a contribuição de todos seria fundamental para o processo. Como o instrumento regulador da convivência são “contratos” diários, todos podem participar da “negociação”.

Ao considerar o relato da experiência realizada, foi possível apontar os principais resultados e as discussões que permitiram compor o desfecho deste trabalho.

 

CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS

A moradia protegida é uma iniciativa pioneira, com mais de cinco anos de existência, cuja prática tem exigido reavaliações e discussões. São considerados satisfatórios alguns dos principais resultados alcançados:

-ndos moradores tidos como “pacientes crônicos” pelas instituições anteriores, em processo de desospitalização ou com histórico de longa internação, três voltaram a residir com familiares;
-ntodos conseguiram desenvolver significativamente o poder contratual, o que permitiu o exercício de escolhas, a tolerância às decisões coletivas e a melhoria dos relacionamentos interpessoais na moradia;
-ntodos ampliaram sensivelmente a circulação pela cidade. Sete se tornaram independentes, sem a necessidade de acompanhamento para transitar; os outros três continuaram necessitando do trabalho do acompanhante terapêutico para circular pela cidade;
-na apropriação dos bens pessoais e a administração do próprio dinheiro também são fatores marcantes em todos os casos. Toda a equipe manteve-se atuante no sentido de provocar a subjetivação em cada atitude individual;
-ncomo as reuniões são freqüentes, inclusive para a cotização dos gastos, os familiares tendem a estar mais próximos do parente e a participar mais do projeto terapêutico. As questões não resolvidas nesse fórum podem ser tratadas, com cada família, por profissionais da equipe ou outros indicados por ela;
-npelo fato de todos os moradores estarem inseridos nos tratamentos, ao contar com vários pontos de uma rede, as tensões do dia-a-dia e aquelas impostas pelo próprio processo de adoecimento se diluem entre várias pessoas, o que provoca maior apaziguamento para o morador e movimento para o caso:
-num dos moradores retomou o trabalho, em parceria com uma empresa da família, e outro está freqüentando um curso supletivo para dar continuidade a seus estudos;
-nverificamos alguns fatos que indicam melhoria da afetividade e do humor de alguns moradores: atualmente, são freqüentes almoços e festas de aniversários e em datas comemorativas, propostas e realizadas por eles próprios, contando apenas com a ajuda da equipe. Tem-se verificado também grande interesse por atividades externas, como passeios e viagens a cidades próximas;
-na moradia tornou-se a referência para os moradores. Em dois casos houve retorno, de curta permanência, em momentos de conflito com o grupo familiar/social.

Acredita-se que a moradia protegida depara-se com o desafio de ampliar os horizontes de profissionais de saúde mental, a partir de uma prática ainda em construção. Contudo, percebe-se que a experiência relatada tem sido extremamente enriquecedora para todos os envolvidos, devido ao desafio diário de continuar desenvolvendo formas que possam não apenas promover a remissão dos sintomas, mas também (re)habilitar psicossocialmente o portador de sofrimento mental, integrando-o à convivência familiar e social e contrariando a velha lógica da exclusão.

Por fim, a moradia protegida é um dispositivo fundado em uma ética em que prevalece a subjetividade articulada ao corpo social, para que o individual e o coletivo sejam trabalhados de forma conjunta para oferecer as melhores condições de vida às pessoas que procuram por esse serviço.

Por meio da experiência relatada, percebeu-se a importância da formação da associação de familiares, a partir de uma assessoria jurídica que permita a continuidade do projeto, que busque mais envolvimento das famílias com as questões administrativas da moradia e permita a elas autonomia nas deliberações. Também considera-se importante o registro histórico do projeto, com a montagem de banco de dados e de bibliografia que possam estruturar o conhecimento teórico para os técnicos que atuam na moradia, além de subsidiar outros projetos semelhantes.

Por fim, acredita-se na existência de uma potencial clientela interessada na proposta clínica e social da moradia protegida, abrindo espaço para investimentos e expansão desse projeto, tanto no setor público quanto no setor privado, envolvendo, assim, diferentes grupos sociais.

 

 

REFERÊNCIAS

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YIN, R. K. Estudo de caso. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2001.         [ Links ]

 

 

1 Assistente Social e mestranda em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa - UFV-MG. Professora do curso de Serviço Social da Escola de Estudos Superiores de Viçosa. Atuou na área de saúde mental como coordenadora de uma moradia protegida particular - Tel.: (31) 3885-2005 / (31) 8451-6453. Email: potys@hotmail.com
2 Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Psicologia pela UFMG, titular da Moradia Protegida em Saúde Mental da Prefeitura Municipal de Betim e ex-coordenadora de uma moradia protegida particular Email: claudiageneroso@bol.com.br rosangd@uol.com.br
3 Médica Psiquiatra, Diretora da Clínica de Urgência em Saúde Mental Urgentemente e responsável clínica por uma moradia protegida particular Email: msilvanamaia@terra.com.br
4 Administrador, doutorando em Sociologia e Política pela UFMG, professor do Departamento de Administração da UFV-MG Email: magnus@ufv.br

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