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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.14 no.25 Barbacena jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

A construção do caso clínico como recurso no tratamento das urgências subjetivas

 

The construction of the clinical case as a resource in the treatment of subjective urgencies

 

La construcción del caso clínico como recurso en el tratamiento de las urgencias subjetivas

 

 

Mariana Vasconcelos dos SantosI; Andreia Silva LimaII; Juliana Meirelles MottaIII

IPsicóloga; especialista em Saúde Mental pela Residência Multiprofissional em Saúde Mental - FHEMIG
IIPsicóloga; preceptora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental - FHEMIG
IIIPsicanalista; Membro da Associação Mundial de Psicanálise e Escola Brasileira de Psicanálise-MG; Mestre em Psicologia/FAFICH-MG; Coordenadora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental - FHEMIG

 

 


RESUMO

Este trabalho discute a metodologia psicanalítica de investigação - construção do caso clínico - como recurso no tratamento das urgências subjetivas. A palavra trazida pelo sujeito que chega à instituição hospitalar psiquiátrica é recolhida como ponto norteador do tratamento, enquanto as narrativas da família e instituição também são convocadas a compor o caso. A partir da construção do caso clínico de João, verificamos a ruptura que se produz no enunciado do sujeito psicótico frente ao Outro absoluto e concreto, fazendo irromper a urgência. A posição de secretariamento adotada pela equipe na figura da analista, entretanto, suscita fragmentos de discurso que aos poucos vão dando sustentação à casa-corpo do sujeito. Essa saída inédita por ele apresentada oferta à prática elementos para pensar possíveis tratamentos ao Outro e passagem ao ato na psicose.

Palavras-chave: Metodologia psicanalítica. Construção do caso clínico. Urgências subjetivas. Saúde mental.


ABSTRACT

This research discusses the psychoanalytical methodology of investigation - construction of the clinical case - as a resource in the treatment of subjective urgencies. The word brought by the subject who arrives at the psychiatric hospital is collected as the guiding point of the treatment, while the narratives of the family and institution are also summoned to compose the case. From the construction of João's clinical case, we verified the rupture that occurs in the statement of the psychotic subject in front of the other as an absolute and concrete instance, causing the urgency to erupt. The position of secretariat adopted by professionals in the figure of the analyst, however, raises fragments of discourse that gradually give support to the subject's body-house. This unprecedented solution that he presented offers to the practice elements to think about possible treatments to the Other and the passage to the act in psychosis.

Keywords: Psychoanalytic methodology. Construction of the clinical case. Subjective urgencies. Mental health.


RESUMEN

En este artículo se analiza la metodología de investigación psicoanalítica - construcción del caso clínico - como recurso en el tratamiento de las urgencias subjetivas. Se recoge la palabra que trae el sujeto que llega al hospital psiquiátrico como punto rector del tratamiento, mientras que también se convoca a las narrativas de la familia y la institución a componer el caso. Desde la construcción del caso clínico de João, hemos visto la ruptura que se produce en el enunciado del sujeto psicótico frente al Otro absoluto y concreto, haciendo emerger la urgencia. La postura secretarial adoptada por el equipo en la figura del analista, sin embargo, hace com que se pongan a la vista fragmentos de discurso que poco a poco apoyan el cuerpo-casa del sujeto. Esta salida inédita por él presentada ofrece a la práctica elementos que ayudan a pensar en posibles tratamientos al Otro y el paso al acto en psicosis.

Palabras-clave: Metodología psicoanalítica. Construcción del caso clínico. Urgencias subjetivas. Salud Mental.


 

 

Introdução

A prática clínica em saúde mental nos serviços de saúde passou por diversas transformações nos últimos anos. Nas instituições totais1, entre as quais estão incluídas as instituições psiquiátricas, a separação entre sujeito e mundo externo vem produzindo historicamenteefeitosdegeneralizaçãoque Goffmannomeiacomo mortificação (GOFFMAN, 1990). A Reforma Psiquiátrica2, iniciada nos anos 70, precipitou a construção de um modelo de cuidado que traz à tona os direitos do sujeito portador de sofrimento mental, dentre eles o direito a ter sua singularidade acolhida. As denúncias ao antigo modelo incidem sobre a exclusão e mortificação sofrida pelos sujeitos institucionalizados e pressionam a construção de novas formas de cuidado. Neste contexto, a clínica da subjetividade passa a ter lugar em algumas instituições.

É precisamente aos arranjos inéditos que a subjetividade providencia que a Psicanálise se atenta como método de pesquisa. Talvez por isso a técnica esboçada por Freud no início do século XX e aprimorada ao longo dos anos voltou a ganhar espaço nas reuniões e discussões das equipes em saúde mental da atualidade. Freitas (2000 apud MARCOS e MEIRELLES, 2019) pontua que o surgimento da Psicanálise está intrinsecamente ligado aos casos clínicos conduzidos por Freud, instaurando um método no qual o singular do caso permite ao mesmo tempo investigá-lo em profundidade, fazer avançar a teoria e reeditá-la.

Nesta perspectiva, o norteador do trabalho do analista frente às rotinas de uma instituição hospitalar psiquiátrica é a palavra do sujeito. Diferente do que se compreende por "crise" e outros termos variados, o dispositivo de acolhimento denominado urgência subjetiva destaca o enigma discursivo que suscita demanda de tratamento pelo sujeito que sofre (CALAZANS e BASTOS, 2008).

A primazia da palavra, entretanto, não desconsidera os discursos que operam na trama muito mais extensa que envolve o sujeito, onde quer que ele se posicione em relação ao discurso. Assim, a narrativa da família e da própria instituição são convocadas no que sucede ao acolhimento da urgência subjetiva: a construção do caso clínico. Figueiredo (2004) nos lembra que uma das características do método psicanalítico é admitir a dimensão ampliada da clínica. Isso permite que o caso seja construído em equipe a partir do que os vários profissionais recolhem de seu discurso.

O que se investiga ao longo deste trabalho éa construção do caso clínico como recurso no tratamento da urgência subjetiva que precipita o sujeito na instituição hospitalar psiquiátrica. Para tanto, dispõe da Psicanálise como método de investigação e intervenção para reunir os elementos do caso e, neste percurso, colhe os efeitos da relação de secretariamento estabelecida pela equipe na figura da analista com o sujeito que sofre. Ao construir o caso de João, são reunidos os fragmentos de palavra que norteiam a direção do tratamento. A saída inédita por ele apresentada, por sua vez, oferta à prática elementos para pensar os tratamentos ao Outro e à passagem ao ato na psicose.

 

A clínica da palavra e as urgências subjetivas

Aintenção de construir um tratamento orientado pela palavra do portador de sofrimento mental parece ser a de amparar o deslocamento deste a outra posição que não seja a de objeto e sim a de sujeito. Viganó (2007) afirma que a impossibilidade de se representar pela palavra, vivida na psicose, possui efeitos de mortificação. Buscando tratar tal efeito há que se valorizar o uso que o sujeito faz da palavra como estratégia de vida, de autoconstrução. Para tanto, a posição de suposto-saber do analista também passa a ser relativizada.

Calazans e Bastos (2008) definem as urgências subjetivas como "um dispositivo de acolhimento aos sujeitos emcrise, que são levados a instituições a partir de demandas variadas [...], com o pedido de acolhimento emergencial do sofrimento psíquico" (p.641). Indicam que "Esse dispositivo sustenta a aposta no compromisso do sujeito com o seu padecimento, isto é,

a aposta de que a palavra do paciente produza enigmas que suscitem demanda para a continuidade do tratamento" (CALAZANS e BASTOS, 2008, p.641). A palavra funciona como regulador da função da equipe, na condição de acolhedora. A clínica é tomada como "um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do universal do saber, mas do particular do sujeito" (VIGANÒ, 1999, p.40).

Lacan (1955-56/1985), no seminário sobre as psicoses, defende o valor presente no discurso, na palavra do portador de sofrimento mental, especialmente pela sua particularidade. Quinet (2011), ao mencionar o supracitado trabalho, explica que a proposta é de fato secretariar o sujeito, tomando sua palavra literalmente. Assim, o analista passa do lugar de suposto-saber ao de "testemunha da relação do sujeito com o Outro" (p.136).

Um dos motivos de receber o sujeito que chega à instituição através do dispositivo das urgências subjetivas é viabilizar este testemunho. Há muitos discursos em voga em uma instituição hospitalar psiquiátrica. Existe o encaminhamento, a família, as medicações, os manuais de classificação. A palavra corre sempre o risco de perder-se. Se a demanda para a continuidade do tratamento parte do sujeito de forma inédita, este então é o cerne em uma investigação conduzida em conformidade com os princípios da psicanálise.

 

Considerações sobre a pesquisa em psicanálise

Ateoria psicanalítica, antes mesmo de constituir-se como tal, guarda em sua gênese uma orientação epistemológica diferente daquela usualmente adotada pelas ciências. Ao formular o conceito de inconsciente como manifestação da indissociabilidade entre objetivo/subjetivo e realidade/fantasia, a Psicanálise se distancia das ciências empíricas. Nesta abordagem, o acesso do pesquisador ao mundo não é imediato, pois a ele se interpõe a realidade psíquica (FIGUEIREDO, NOBRE e VIEIRA, 2001).

Marcos e Meirelles (2019) apontam que, apesar de os fundamentos da pesquisa e do exercício clínico em Psicanálise não se distinguirem, há um ponto de afastamento entre o que é próprio da clínica e o universal da teoria. A este intervalo é atribuído a possibilidade de avanço dos princípios teóricos pois ao analista "faz-se necessário que [ . . . ] incorpore em suas formulações teóricas os paradoxos impostos pela experiência clínica" (p. 150). Aclínica coloca em marcha a pesquisa e vice-versa.

A impossibilidade de separar procedimentos de coleta e análise de dados nesta pesquisa se dá por esta vocação da Psicanálise enquanto método. Figueiredo e Vieira (2002) explicam que existe uma "relação indissociável entre investigação e tratamento e que, portanto, a pesquisa em Psicanálise só pode se configurar e se sustentar na produção de algum saber possível sobre as próprias sutilezas de tal relação" (p. 8). A autora ainda refere que não há a pretensão de generalização dos resultados obtidos através deste método investigativo, pelo menos não às custas da riqueza de cada caso e tampouco de alcançar um valor de verdade. A pesquisa se define pela "inclusão do desejo do pesquisador na constituição do enigma que sua investigação coloca" (MARCOS e MEIRELLES, 2019).

Ao analista cabe a posição de escuta às questões suscitadas pela palavra do sujeito que traz a urgência subjetiva. É no "espaço entre parênteses", como descreve Miller (1999, p. 54), que surgem os indícios da singularidade do caso e também o norte para condução do tratamento.

Uma das estratégias possíveis de investigação em Psicanálise, frequentemente adotada como método nos serviços de saúde, é a construção do caso clínico em saúde mental. É um caminho a ser traçado frente ao impasse que se apresenta na questão: quais os recursos para enfrentar o que ocasionou a urgência subjetiva?

 

A construção do caso clínico em saúde mental

No Brasil, as mudanças no modelo de atenção à saúde mental adotado pelos serviçosde saúde fezcom que equipes criassem estratégias de trabalho mais receptivas às particularidades de cada sujeito. A Psicanálise voltou a ganhar espaço nas instituições, resgatando sua história de afinidade com a psiquiatria clássica. Hoje, entretanto, as equipes são multiprofissionais e provedoras de múltiplos saberes.

A construção do caso clínico em saúde mental tem demonstrado sua contribuição ao permitir a articulação de escutas dos diversos profissionais, sejam eles orientados formalmente pela Psicanálise ou não. O próprio termo construção carrega em si a ideia de um fazer conjunto, amplo, que conflui a produzir algo. O sujeito ao qual diz respeito o caso está incluído, pois é a partir de uma certa posição no discurso que ele age, o saber está do lado dele. A construção do caso seria, então, a disposição da equipe em colher os elementos discursivos que pendem do sujeito e rearranjá-los (FIGUEIREDO, 2004).

Marcos e Meirelles (2019) destacam as quatro lições que podem ser extraídas da escrita dos casos clínicos por Freud: o sujeito participa e o que produz é inteiramente novo. A atenção está direcionada aos detalhes. A palavra é um dado e, finalmente, o analista se posiciona de um local do não-saber. Assim, a responsabilidade de responder à pergunta suscitada pela urgência subjetiva deixa de estar a cargo dos profissionais. Figueiredo (2004) sugere que a indagação parta da posição do sujeito e sua própria solução frente à situação. A equipe funciona como suporte. "Isso significa de temos que suportar, no sentido mais radical da palavra, as ações do sujeito e chamá-lo à sua responsabilidade a cada vez, a cada ato" (p. 81).

A direção de trabalho disposta pela construção do caso clínico coloca em segundo plano a forma como a equipe se organiza ou possíveis disputas que possam existir no cotidiano de trabalho. Se a resposta à questão do seu sofrimento é o sujeito quem pode esboçar, então essas variedades não atravancam o tratamento. O fio condutor é ir tecendo sob transferência um saber sobre aquele sofrimento (VIGANÒ, 1999).

 

Construção do caso clínico a partir de Viganó

O psiquiatra e psicanalista Carlo Viganó, em um de seus textos a respeito da construção do caso clínico, aborda este método como ferramenta de investigação, avaliação e transmissão no campo da psicanálise e, portanto, da saúde mental. A partir desta matriz metodológica e analítica busca-se, nos discursos dos sujeitos que habitam a cena do tratamento, a resposta para a questão: o que no percurso do sujeito que sofre, deixou de funcionar fazendo irromper a crise?

Viganó (2010) propõe então a construção em três tempos. Num primeiro momento são colhidas as narrativas que partem dos sujeitos que compõem o caso, a saber: a família, o sujeito que experimenta a urgência subjetiva e a instituição à qual se dirigem para tratamento. A seguir, são levantadas as escansões dos tratamentos, que descrevem o percurso daquele sujeito já em processo terapêutico e os recursos desenvolvidos a partir do encontro com os profissionais que o acompanham. Por último é proposto o cotejamento entre o diagnóstico do DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) e o psicanalítico, operação própria ao trabalho que reúne diferentes eixos teóricos.

No texto "A construção do caso clínico", o autor ocupa este método com finalidade avaliativa. Neste trabalho, entretanto, foi instrumento para investigação da construção do caso como recurso no tratamento das urgências subjetivas. Assim, a segunda etapa proposta pelo texto de referência, que apresenta passos para realização da avaliação, não foi executada.

 

A narrativa

As informações aqui descritas foram obtidas a partir de pesquisa documental a registros em prontuários físicos e eletrônicos de Rede Hospitalar do Estado de Minas Gerais compreendidos entre 28/09/2018 e 20/03/2019. Entre as informações fornecidas pelos diversos profissionais que compõem as equipes assistenciais, encontram-se anotações por mim realizadas na condição de referência técnica do caso que será aqui mencionado. A presente pesquisa revela sobretudo a trajetória de João por hospitais psiquiátricos; porém, é preciso considerar que sua vida é marcada por outras instituições, como as prisionais, e por serviços substitutivos de atenção em saúde mental. Os dados relativos a passagens por estes lugares aparecem através dos registros de reuniões de rede de saúde, entrevistas e contatos realizados, contidas em prontuário.

João, 24 anos, sexo masculino, proveniente de uma cidade próxima à capital Belo Horizonte. É o mais novo de cinco irmãos (duas irmãs e dois irmãos) e divide uma casa com o irmão mais velho no lote da família, onde também vivem a mãe, padrasto e demais irmãos. O pai faleceu há 14 anos em decorrência de complicações de cirrose alcóolica. A mãe relatou à equipe que durante a gestação de João não houveram intercorrências, ainda que ela tenha consumido álcool durante toda a gravidez. A irmã mais velha contou que João e os três irmãos mais velhos permaneciam sem supervisão a maior parte do tempo durante a infância, já que os pais eram trabalhadores rurais e ambos etilistas.

Desde pequeno teria apresentado comportamentos agressivos, descritos como maldosos por uma das irmãs. Estudou dos sete aos 10 anos, sem sucesso em aprender conteúdos ou manter laços com outras crianças e professores. Começou a trabalhar ainda na infância, em profissões como roçador de terrenos, construtor de telhados, servente de pedreiro e carvoeiro. No mesmo período iniciou consumo de etílicos e solventes, além de envolver-se em furtos e brigas. João conta que, aos 13 anos de idade, iniciou consumo de maconha, além de outras substâncias psicoativas, e que esssas substâncias o ajudavam a tranquilizar-se para que pudesse trabalhar. Na época, recordava-se de escutar uma voz feminina em sua cabeça que o chamava, seduzindo-o. Aos 16 anos sofreu um traumatismo cranioencefálico devido a queda, o que so teria deixado mais "lerdo" e "esquecido" - conforme ele mesmo afirma.

Familiares afirmaram ser raros os momentos em que permanecia abstinente, mas não souberam descrever a permanência ou não dos sintomas ditos psicóticos diante do consumo ou interrupção no uso de substâncias psicoativas (SPA).

Em 2014, aos 20 anos, João diz ter começado a escutar outras vozes e a sentir-se perseguido: "sentia eles pegando em mim, achava que tavam pegando meu dinheiro. Pegava o ônibus, ia pra outra cidade e ficava dois, três dias dormindo na rua". Ainda nesta idade, cometeu ato grave de maus-tratos aos animais, o que ocasionou a primeira internação em um hospital psiquiátrico da rede pública estadual de Minas Gerais. Até então, João nunca havia obtido assistência especializadaem saúde mental. Aos 21 anos foi detido acusado de tentativa de homicídio, após agredir uma pessoa a facadas. Permaneceu por cinco meses em privação de liberdade, período em que compareceu regularmente ao Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) da cidade, até sua liberação com a tornozeleira eletrônica.

Em 2017, João foi conduzido pelo sistema prisional ao hospital psiquiátrico estadual novamente, após violar a tornozeleira eletrônica. A justificativa por ele apresentada, segundo registros da admissão naquele hospital, foi a de que o dispositivo o sugava e estava fazendo com que emagrecesse. Além disso, à época apresentava solilóquios, mussitações, risos imotivadosecomportamento de cobrir os espelhos de casa, pois sentia que alguémposicionado dentro do objeto o estava vigiando. Desde então, esta pareceu ser a via de chegada de João para tratamento: a determinação da Justiça.

Em 28 de outubro de 2018, chegou escoltado ao Hospital Psiquiátrico do Estado de Minas Gerais onde foi empreendida esta investigação, sem a presença de familiares. A ordem era para internação em regime compulsório, decorrente de processo judicial iniciado em 2018 por homicídio qualificado. Além deste pleito, respondia por diversos outros relacionados a agressões, ameaças contra familiares e desconhecidos e furtos.

A família queixava-se de que João não aderia ao tratamento, recusava a medicação e frequentou os atendimentos agendados apenas durante os momentos de privação de liberdade. Uma das irmãs, a segunda mais velha, disse ter percebido a intensificação de comportamentos que nomeou como psicóticos antes da passagem ao ato ocorrida em 2018. Alegou ter buscado ajuda no serviço de saúde mental do município, porém não chegou a levá-lo pela dificuldade no manejo. Ela relatou: "Todas as vezes que ele entra em surto, a gente tem que chamar a polícia, porque não pode nem chegar perto dele. Ele fica muito agressivo mesmo (...). Não é fácil conseguir internar ele. Como a gente traz ele aqui? Se ele voltar prá casa, a gente não sabe o que fazer".

A certa altura do tratamento, mãe e irmã responsabilizaram a instituição pelo cuidado de João e pela garantia de que não evadisse para voltar à cidade de origem, já que ele saiu por diversas vezes durante o período em que esteve no hospital.

No dia 19 de outubro de 2019, 22 dias após a primeira internação, houve a primeira menção de estabilidade do quadro de João registrada pela equipe em prontuário. Até dia 16 de janeiro de 2019, houve mais sete registros de melhora e estabilidade. No dia 22 de janeiro de 2019 João foi avaliado pela equipe do programa de psiquiatria forense do hospital, a pedido da equipe assistencial, para emissão de um parecer sobre a eficácia terapêutica e risco de violência em paciente internado. Esperava-se, com tal procedimento, obter algum elemento que pudesse funcionar como registro da evolução do quadro e pudesse ser enviado à Vara de Execuções Penais.

De acordo com teste de risco HCR-20 (Assessing Risk for Violence), aplicado àquela ocasião, João apresentou pontuação que configurava alto risco de violência. Outros critérios que deveriam ser observados, segundo o parecer, para avaliação da diminuição do risco foram: redução sintomática e presunção de adesão terapêutica pelo sujeito; responsabilização pelo ato e suporte social. A julgar por tais fatores, em consonância com os demais processos de avaliação, foi indicada a manutenção de internação hospitalar.

As hipóteses diagnósticas apresentadas pelo parecer, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10) foram de F20.3 (esquizofrenia indiferenciada); F19.2 (transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas substâncias) e F70.9 (retardo mental leve).

 

As escansões dos tratamentos

O período de tempo abrangido pela pesquisa ao prontuário revela um recorte no tempo total em que João esteve internado e é também segmentado entre as cinco evasões que ocorreram nos quase seis meses que compreendem esses registros. Em todas as ocasiões, João retornou trazido pela polícia ou familiares. Neste sentido, ele passou a ser considerado alguém capaz de sair da instituição facilmente, mas sempre com a expectativa de retorno.

Durante a entrevista de admissão hospitalar, relatou-se que João apresentava risos imotivados, solilóquios e pouca disposição ao contato. Dizia que não havia ordem judicial contra ele e que entrou em conflitos com a pessoa descrita em processo como vítima em razão de uma dívida. Falava com hostilidade sobre os familiares e do pai como se este estivesse vivo. Reclamava que os familiares saíam em atividades de lazer e não o avisavam. Quando questionado por outros atos delituosos, dizia que era assunto privado e que conversava apenas "dentro de mim". Evadiu no dia seguinte. Retornou acompanhado por policiais. Chegou hostil e ameaçador, dizia que estavam "lidando com o demônio". Dois dias após a readmissão, já em entrevista com equipe assistencial da unidade de internação, João demandou a alta hospitalar, referia que estava pagando "o preço" por toda a família e dizia que seus objetos teriam sido vendidos pelo irmão. Afirmava preferir a cadeia ou a morte à internação. Justificava sua preferência: "lá me sinto bem, estou em casa".

Quando da segunda evasão, regressou ao hospital em Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Mantinha hostilidade e ameaça estendida a toda a equipe, acompanhadas pela demanda por alta. Segundo relatou, sentia que havia "como se fosse gotas dentro de mim que me deixam mais tristes à medida que elas vão pingando. Eu sofro muito". Além disso, sentia seu corpo leve, "sem um pingo de sangue de tanto chorar por dentro". Contou que sua mãe não era verdadeira e que em realidade era filho de uma família muito rica. Em outros momentos, dizia que a mãe sempre preferiu o irmão a ele. Ao fim de dez dias, João recorreu novamente à evasão.

Voltou acompanhado pelo irmão e pelo enfermeiro do CAPS AD de sua cidade. Os primeiros contatos com ele enquanto referência técnica de seu caso foram difíceis, pois sua fala se apresentava quase inaudível. Entre as palavras que mussitava era possível identificar menção das saudades de casa, a dúvida sobre o motivo pelo qual estava internado e a manutenção de discurso persecutório em relação a diversos atores. Inicialmente, parecia incapaz de falar sobre si mesmo, sua rotina e família. Envolveu-se em desentendimentos com os demais usuários, por vezes necessitando ser contido fisicamente. Mantinha-se suspicaz com toda a equipe, até que abandonou o hospital outra vez.

Conduzido novamente ao hospital em 25 de outubro de 2018, pelo Corpo de Bombeiros que a família acionou, João relatou que todos ficaram muito tristes com seu retorno ao hospital poisqueriam que ele continuasse em casa "estavam com saudades. Minha mãe ficou muito triste". Em seguida o discurso mudou, falava que sua mãe era "uma falsa", que fora ela quem acionou os bombeiros dizendo que ele estava "dando muito trabalho".

Frequentemente, João recusava atendimento pois acreditava que a equipe não queria que ele voltasse para casa. Sabia disso porque "entrou" em nossas cabeças, assim como acreditava que tínhamos feito com ele.

Reunimo-nos: equipe técnica, familiares e João para discutir o caso. Naquela ocasião reiterou suas suspeitas, falava que o juiz já teria liberado sua saída e que iria viver sozinho, pois não queria voltar a morar com a família. Esclarecemos que a deliberação de alta não nos cabia naquele momento. Familiares diziam sentir-se inseguros na presença de João. Foi pactuada a proposta de que todos se implicariam ativamente no processo de tratamento.

A demanda diária pela alta foi uma constante ao longo da internação. João se recusava a falar sobre o ato que o levara à privação de liberdade e dizia que tudo aconteceu em legítima defesa. Solicitava "roupas limpas" para ir embora, pois seu corpo estava "sangrando" e "entortando" de vontade.

À medida em que era convidado a falar e a circular, João passou a transmitir mais de si através da palavra. Além da demanda por tratar em sua cidade, passou a ter algum olhar sobre si mesmo. Reclamava que ninguém o ajudava com nada, que nada possuía de material. Solicitava contato com a irmã diariamente, acreditando que ela também poderia realizar algum tipo de apelo ao juiz para que tivesse alta. Conseguia falar sobre o sofrimento causado pela internação, a ponto de relatar sentir-se adoecido.

Havia vários pontos no plano sociofamiliar de João que interpelavam a equipe durante sua trajetória institucional, como a falta de documentos e a reserva da família em relação a ele. João dizia "estou mais morto que vivo, minha família não está nem aí prá mim" e "parece que ela não quer cuidar de mim", referindo-se à mãe. A irmã mais velha, por outro lado, tampouco sentia-se segura sobre uma possível curatela.

Em contato com o serviço de saúde mental do município, a funcionária que atendeu ao telefone disse: "Desista!" ao escutar o nome do usuário, considerando fracassadas as tentativas de vínculo para cuidados. O processo jurídico corria com pouco avanço ao longo dos meses e João constatava a morosidade em seu processo de alta provocada por tais percalços, apesar da melhora clínica "aqui é melhor que cadeia, mas é prisão também". Demonstrava a todo momento preocupar-se muito com o fato de não estar em sua cidade ou bairro. Até que em uma ocasião o ato surgiu em forma de questão: "Prá que que eu fui arrumar de fazer isso?". Alguns dias, após receber intimação sobre o processo, João evadiu mais uma vez. Retornou com a irmã, sem resistência alguma "eu queria dormir na minha cama, ver minhas coisas, comer a comida da minha mãe", disse.

 

O cotejamento entre o DSM e o arcabouço teórico psicanalítico

Embora o manual de classificação utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) seja a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID 10), é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V) a referência para metodologia de construção do caso clínico ocupada neste trabalho. Assim, se faz uma correspondência, aproximada, entre as hipóteses diagnósticas constantes dos prontuários, segundo a CID 10 e os presentes no DSM V. Durante o acompanhamento de João foram apontadas algumas hipóteses diagnósticas, sendo preponderantes as de F20.3 (esquizofrenia indiferenciada); F19.2 (transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de múltiplas substâncias) e F70.9 (retardo mental leve) (OMS, 1997). Dentre estas a de esquizofrenia (295.90) (APA, 2014), é certamente a que melhor caracteriza o caso acima relatado, pela frequência com que os critérios a ela atribuídos aparecem registrados em prontuário.

Henri Ey (1987) descreve no Manual de Psiquiatria a psicose esquizofrênica como

um conjunto de distúrbios em que predominam a discordância, a incoerência ideoverbal, a ambivalência, o autismo, as ideias delirantes, as alucinações mal sistematizadas e profundas perturbações afetivas no sentido do desinteresse e da estranheza dos sentimentos - distúrbios que tendem a evoluir para um déficit e uma dissociação da personalidade (p.536).

Tal conceito ocupa-se da apresentação descritiva de um sofrimento em saúde mental.

Lacan (1955-56/1985, p.14) pondera sobre esta forma de estabelecer um diagnóstico, argumentando que a suposta compreensão daquilo que se vê, isto é, a forma que tomam os sintomas em sua apresentação, pode resultar enganosa àquele que observa. O diagnóstico psicanalítico não passa por este processo, mas tam em outro aspecto o seu ponto de interesse.

A direção do tratamento que buscamos investigar a partir do método de Viganó só é possível diante do encontro do sujeito que apresenta uma urgência subjetiva e o profissional que o acolhe. Este encontro não viabiliza a compreensão - pois tão singular como o sujeito é a urgência que o leva ao serviço - mas sim um primeiro contato suscetível a devir transferência. Não há um imperativo para que o diagnóstico seja definido neste primeiro contato, no fazer psicanalítico. Entende-se que apenas ao longo dos cuidados e a partir da escuta sob transferência é possível chegar a definir uma direção de tratamento junto ao sujeito. Figueiredo e Machado (2000) afirmam que, ao atuar segundo esta lógica, o psicanalista "não trabalha como um leitor de fenômenos e sim como nomeador de um modo de incidência do sujeito na linguagem. O diagnóstico aparece então como estrutural e não mais fenomenológico" (p.67). As autoras destacam que é o analista como operador, e não pessoa, a quem se dirige a fala que ampara o diagnóstico estrutural.

 

O ato

Calazans e Bastos (2008) mencionam que o primeiro encontro com a equipe é um momento de escuta sobre a precipitação do sujeito ao serviço, a demanda ou encaminhamento que o acompanha e as indicações para a continuidade do tratamento. Neste cenário, é fundamental diferenciar demanda de encaminhamento. Os autores salientam que o motivo de chegada do sujeito ao serviço de urgência nem sempre é o reconhecimento do próprio sofrimento - demanda - e que em situações de crise é habitual que o acesso à instituição ocorra por encaminhamento de terceiros que se percebem afetados. Entretanto, é a demanda que se reconhece através da escuta que caracteriza uma legítima urgência subjetiva, pois parte do sujeito.

Neste caso, o motivo que antecede à chegada de João é a conformação judicial à qual estavam submetidos não apenas ele e sua família, mas também a equipe. Escutá-lo revelou a existência de um ato, não percebido como próprio, mas que parecia rondar suas mussitações e solilóquios. Ele não podia sustentar um discurso em sua desorganização com as palavras. Calazans e Bastos (2008) apontam como essa quebra do discurso por vezes reflete o que é insuportável e não simbolizável para o sujeito, podendo levá-lo a passar ao ato. Como explica Lacan (1962-63/2005), no seminário "A angústia", afirma que a passagem ao ato estrutura- se pela precipitação do sujeito para fora da cena. Este momento seria o do embaraço maior do sujeito, com o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento. Frente ao intolerável que, no decorrer do tratamento, seria desvelado, João atuava reiteradamente.

Ao longo das três primeiras internações João respondeu à instituição por meio da evasão, que também indica a precipitação no real para fora de um lugar que não se pode suportar. As pessoas desconhecidas a quem agrediu, a família e, naquele momento, a instituição ocupavam posturas similares segundo as palavras do sujeito. Todos o ameaçavam. Sua posição era frente a um Outro percebido como perseguidor. Esta configuração remete ao primeiro tempo do estádio do espelho descrito por Lacan (1949/1998) no qual a criança, alienada ao outro materno, figura como objeto assujeitado a seus caprichos. A negação pelo sujeito à intervenção do significante primordial Nome-do-Pai (NDP) na relação especular com o Outro é o mecanismo fundamental à constituição da psicose. A não incidência deste significante, capaz de produzir a separação, perpetua a relação primitiva e tipicamente paranóica entre o eu e seu duplo especular. Sem a barra, a composição imaginária do corpo como totalidade também é prejudicada, deixando o sujeito exposto à indiferenciação entre dentro e fora de si.

Maleval (2001) escreve sobre a passagem ao ato no campo das psicoses como uma tentativa de corte, no real, dessa presença invasora do Outro. Ele explica que aquele momento no qual o sujeito sai de cena e advém o ato, o outro a quem ataca é ele mesmo em relação especular. O sujeito não sabe, pois está fora, mas seu ato tem uma finalidade terapêutica: "atingir um objeto de angústia, [...] kakon, encarnação da doença transposta ao mundo exterior" (p.77). O enigma que emerge da cena na qual o João se fez ausente forneceu a direção para que o tratamento fosse esboçado: ele apareceria na escuta para além do ato, já que não se reconhecia nele. Era preciso tomar literalmente sua palavra, para chegar ao objeto de angústia.

A família, como Outro caprichoso, fazia o que queria com João, acionando a polícia, saindo para passear sem sua presença, negando-lhe amor. Ele apontava a cadeia como seu lugar de destino, marcando o lar como impossibilidade de acolhimento. Tomava a equipe como Outro onipotente, capaz de determinar sua alta ou permanência, de convencer o juiz de sua inocência. A hostilidade e ameaça à família e equipe mantinham todos em posição advertida, distante. Por outro lado, sua reação a esses Outros indicava a intensidade da angústia evocada pelas relações. O delírio do sujeito anunciava a dor do não-lugar e de um corpo esvaziado, "sem um pingo de sangue de tanto chorar por dentro", como se queixava. Somou-se àquele vestígio inicial um segundo, o de que a posição da analista precisaria produzir uma barra à instituição e à família. O "espaço entre parênteses" descrito por Miller (1999) poderia ser proporcionado simbolicamente pelo corpo da analista que secretariava, a mediação fictícia para uma realidade tão devastadora. Se já não havia lugar para João além da "cadeia", então seria preciso construir um próprio, um lugar de sujeito ofertado pela escuta.

 

O laço

A questão que se colocava era a de como escutar sem ameaçar? Como fazer presença frente à hostilidade? Obviamente que como referência técnica do caso eu também era interpretada como parte da instituição que o detinha naquele momento. Havia ainda o empecilho da compreensão. Inicialmente escutá-lo quase não permitia entendimento, sua fala era um balbucio caótico. A partir da quarta internação, quando João retornou à mesma enfermaria e mesma equipe técnica, da qual eu era parte, passei a ser reconhecida de alguma forma. Ele precisava aproximar-se de mim para proferir ameaças. Esse movimento foi tomado como indicativo da posição a ser praticada, o de que a presença da referência o fazia falar. Assim, passei a sistematizar horários ao longo do dia em que me aproximaria para escutar o que quisesse falar, fora do consultório. A presença operava algo na fala, ao passo que o consultório marcava o lugar da instituição.

Na primeira reunião para discussão do caso estavam presentes a instituição, a família e o próprio João. Nela foram revelados os furos necessários para uma aproximação menos ameaçadora entre os Outros e João. A família demonstrou a falta de recursos para abordar esta situação e outras, não relacionada apenas a João, mas adversidades que perpassavam toda a história doméstica. A falta de afeto e cuidado percebidos por ele eram uma constante também para seus irmãos, com a diferença talvez dos recursos simbólicos de que dispunham para tratar este ponto do real, tão doloroso. A instituição, por sua vez, pôde demonstrar também sua limitação frente à lei. De fato, a alta neste caso não era clínica, estava submetida à decisão judicial. Algo que se colocou também nesta reunião foi a distinção entre instituição e equipe assistencial. Se a instituição, em sua característica total, representava o lugar no qual o sujeito se tornaria corpo generalizável, a equipe atenta ao caso poderia interpor um intervalo, um limite a este Outro que formalmente também compunha.

Areunião legitimou o papelda equipe como referência e significou umpasso importante para a transferência pois, a partir do vínculo, o ato da referência passou a operar como recurso clínico. O modo de funcionamento psíquico no campo das psicoses institui relações específicas do sujeito com o real e com o Outro. Ao deparar-se com tais singularidades durante seus estudos sobre o caso Schreber, Lacan (1955-56/1985) sinaliza que também a transferência estabelecida no cuidado destes sujeitos traria em si algo de diferente daquela concebida por Freud no estudo das neuroses.

A não incidência do Nome-do-Pai repercute na transferência, caracterizando a relação com o Outro vivida no primeiro momento do desenvolvimento psíquico: imediata, arbitrária e paranóica. Ao atentar-se a este modo de funcionamento, o analista é capaz de reposicionar- se na dinâmica transferencial como forma de viabilizar a direção do tratamento. Soler (1993) sugere que prescindir do preenchimento de um vazio significante (foraclusão) por meio de suas próprias respostas e promover uma certa retificação do Outro, no sentido de impor algum limite ao seu gozo, são arranjos viáveis ao analista no trato com o sujeito. Este ato manobra a posição em que o sujeito, pela própria lógica da estrutura, o colocaria.

 

A casa-corpo

A aproximação entre João e a equipe aconteceu de forma mais frequente e recíproca nos cinco meses seguintes à reunião, período no qual não evadiu da internação. A partir da escuta em transferência foram colhidos alguns vestígios - significantes - que, aos poucos, construíram o caso clínico que também é dinâmico, pois caminha com o sujeito. Conteúdos frequentes na fala de João resgatavam o tema doméstico: a presença/ausência da família; as atividades de lazer que experimentavam; uma preocupação com o cuidar/ser cuidado; os animais de estimação; a casa e seus pertences. Dizia que gostaria de "derrubar uma casa e construir uma nova" e que voltaria para a rua pois lá era sua casa. Apresentava muitos fenômenos no corpo, como a sensação de que entortava tamanha era a vontade de retornar para casa ou a de sangrar por dentro/chorar por dentro. Casa e corpo apareciam em seu discurso como símiles, anunciavam a angústia do não lugar e a experiência de desintegração. João sentia-se profundamente expropriado pelo Outro. Não por acaso, os trabalhos que havia exercido eram relacionados ao construir (pedreiro, telheiro, roçador). Tudo era sentido neste corpo e a resposta também vinha dele através do ato. O convite a falar do corpo/ mover o corpo/ver o corpo poderia ser então uma possibilidade de tratamento do corpo/casa alternativo ao ato. Neste esquema, o corpo da analista também estava em jogo, conforme sinalizado desde o acolhimento.

Apesar de evadir com frequência e retornar para casa sem dificuldades, a percepção de João sobre a distância de casa era um aqui/lá absolutamente concreto, no qual estar no hospital implicava uma separação infinita e insuportável de casa. Propus que abríssemos o mapa no computador para que visse a distância entre o hospital e sua casa e imprimimos uma cópia para que tivesse sempre consigo como referência. Buscar intervenções também concretas parecia uma boa estratégia, pois produzia efeito de apaziguamento quando o falar de si ainda era muito difícil.

A demanda por alta foi uma constante, assim como a solicitação de ligações para a família/juíz. Com a família foi acordado que atenderiam suas chamadas, mesmo que acontecessem várias vezes ao dia, pois se manifestava como o meio pelo qual João se assegurava da presença familiar: "minha família vai prá praia, prá altos sítios e não me leva". Este acordo implicou em uma atuação relacionada à família, uma barra aos caprichos por parte da mãe e irmãos de João com a intenção de questionar o medo e rejeição a ele atribuídos.

Sendo impossívela mesma estratégia no trato coma justiça naquele momento, passamos a pesquisar fotos do prédio onde ficava o tribunal e as burocracias envolvidas no "falar com o juiz prá me soltar". Assim, materializávamos aquele órgão público e o limitávamos de alguma forma ao espaço de uma imagem. Por vezes, João ditava cartas que escrevíamos pedindo ao juiz permissão para que tivesse alta e, literalmente, secretariávamos.

De fato, havia muitas discussões em equipe para pensar uma forma de transmitir ao juiz um registro da evolução do quadro, da melhora clínica que percebíamos cotidianamente. Enviávamos relatórios e, com o mesmo objetivo, foi solicitada a avaliação pelo núcleo de psiquiatria forense do hospital. Ambas tentativas sem efeito jurídico até o período compreendido pela pesquisa documental desta investigação. Neste ponto, é fundamental ressaltar que o fato de a internação ser compulsória marcou um limite nas condutas institucionais, pois a equipe já não respondia apenas ao processo de tratamento do sujeito e ao contexto sociofamiliar que iria recebê-lo, mas também à Justiça. Pinheiro (2013) esclarece que a "natureza jurídico-constitucional da internação psiquiátrica involuntária e a sua constitucionalidade, (...), advém dos chamados 'direitos dos outros', que autoriza a restrição de direitos fundamentais em confronto com outros direitos ou valores constitucionais" (p.125).

Este tipo de internação delimita um campo específico para a construção do caso, pois introduz o discurso jurídico - ainda que institucional, de diferente natureza - que se sobrepõe legalmente aos demais. À equipe restava a difícil tarefa de fazer valer o particular do sujeito frente ao direito dos outros e a presunção de periculosidade.

A construção do caso nos meses iniciais do tratamento apontou para a concretude e o corpo como ferramentas. Isso significava a frequente presença física por curtos períodos de tempo e muita repetição. O corpo da referência técnica parecia operar como um referencial de fato, um outro esvaziado, porém capaz de viabilizar instrumentos para que João tratasse o próprio corpo: as cartas, a companhia, o relatório, os telefonemas, o mapa. Mesmo quando recusava a escuta com o pretexto de não ter nada a dizer - "só quero minha alta" - ele me acompanhava pela enfermaria, interessado nas conversas que tinha com outros usuários. Com o passar dos meses, essas conversas renderam parcerias, João queria participar e falar mais de si. Buscava outros usuários para passear pelo pátio e manguear produtos não permitidos pela instituição, como comidas diferentes ou cigarros. O núcleo de psiquiatria forense passou a ser um representante simbólico da Justiça e João passava pelo local todos os dias para perguntar sobre o andamento do processo e a resposta sobre os relatórios, em uma mudança gradativa de posição.

 

O sujeito

Pouco antes da troca de equipe ocasionada por mudanças nas enfermarias do hospital, começamos a realizar passeios mais além das dependências da instituição. Combinávamos antes o que faríamos, mas João não apresentava vontades muito complicadas: queria tomar um refrigerante, fumar um cigarro tranquilo, comer uma coxinha. Quando estávamos acompanhados de seus colegas, como ele os chamava, João gostava de falar de si, contar estórias, trocar figurinhas, como costumava dizer. Parecia ir ajeitando os fragmentos de sua trajetória aos poucos, formando um enredo. Já não precisava falar com os familiares todos os dias e passou a recusar certos tipos de resolução que tentavam dar às pendências de anos. Ele não havia se alistado para o serviço militar, não tinha nenhum documento além da certidão de nascimento. Desta forma, era impossível solicitar algum suporte financeiro e até mesmo medicamentoso das instâncias públicas. Ele dizia: "Ah, não incomoda minha mãe com isso não.

Ela é idosa já. Eu olho isso quando eu sair". Monitorava as alterações nas medicações e falava sobre o que precisava ou os efeitos percebidos. Queria escolher os uniformes em melhores condições e que a família trouxesse objetos pessoais. Certamente foi o período em que a ação de secretariar encontrou mais demanda. Para que João aparecesse, era preciso driblar algumas normas da instituição. Um corpo antes tão completamente desenfreado, desintegrado e rejeitado conseguia revestir-se de algum sentido não proveniente do Outro, mas de um processo no qual ele mesmo fornecia as saídas.

Em uma das últimas conversas que tivemos no jardim externo do hospital, João falava que estava cansado de estar no hospital, que sentia saudades de suas coisas e de seu bairro. Disse: "Prá que que eu fui fazer isso heim? Olha onde eu vim parar". Pela primeira e única vez ele referiu-se ao ato como ação própria, sem separação, reconhecido através da palavra. Enquanto o ato existia apenas como equívoco ou ataque que partia do Outro em um arranjo especular, a posição da equipe foi escutar de um lugar diferente do jurídico. Tal manobra tornou possível que algo do sujeito tivesse o destaque e, como sujeito, João poderia responsabilizar-se pelo ato. O castigo que antes advinha no real, por ter sido rejeitado no simbólico, sob transferência aparecia retificado.

 

Devir conclusão

Para que conseguíssemos investigar a construção do caso clínico como recurso no tratamento das urgências subjetivas, foi necessário colher os inúmeros vestígios presentes na fala de João no encontro com a equipe. Sua chegada à instituição não foi admitida com obviedade. Reconheceu-se a urgência ao escutarmos o enigma suscitado: o que se passa com este corpo?

Orientâmo-nos pelo método psicanalítico de investigação. A Psicanálise, em seus fundamentos, não distingue a pesquisa e o fazer clínico. As particularidades com as quais nos deparamos na construção do caso são aquelas que fazem avançar a teoria que, por sua vez, norteia o fazer clínico.

Aconstrução do caso clínico em saúde mental figura como estratégia favorável à clínica ampliada, uma verdadeira contribuição da Psicanálise às equipes em serviços de saúde mental. Dentro de uma instituição hospitalar psiquiátrica, esta indicação de trabalho permitiu incluir os discursos dos demais profissionais registrados em prontuário na construção do caso de João.

Os discursos da família, da instituição e do sujeito forneceram mostras para a direção do tratamento, assim como indicado por Viganò, desde a chegada de João ao hospital, por ordem judicial, passando pelo histórico familiar de rejeição e negligência e a tendência das instituições totais a suplantar as singularidades. Identificamos que o ato foi, no princípio, sua saída diante da ameaça percebida como proveniente do Outro, o que enunciava a posição débil e esvaziada a ser adotada pela analista.

Para fazer frente à mortificação institucional, foi necessário um corpo intermediário que operasse como barra e suporte ao mesmo tempo (um cigarro, uma coca cola). A partir da posição da analista na figura da referência técnica, foi possível que João falasse de si para além do ato, despertou nele curiosidade pelos outros sujeitos, que já não interpretava como ameaça, facilitou a elaboração de algo do sofrimento em palavras e não só no corpo como era antes.

Ao confluir os diversos discursos, foram retomados fragmentos da vida de João que, reunidos e costurados, permitiram que algo de sua experiência fosse revestida de palavras, sua tão almejada casa/corpo. O sujeito surgiu quando se distanciou do Outro, já nem tão ameaçador, e falou do ato, responsabilizando-se.

A construção do caso permitiu a retomada de algo próprio do sujeito e teve como um dos efeitos a retificação do ato. À medida que a escuta clínica aportou os direcionamentos para a conduta, a Justiça como mandante foi esvaecendo, a instituição foi diminuindo, a família perdia a onipotência e João ganhou lugar.

 

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1 "O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. E no terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a sequência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários" (GOFFMAN, 1990, p. 17-18).
2 Um dos efeitos da Reforma Psiquiátrica no Brasil foi a promulgação da Lei nº 10.216 (Paulo Delgado) em 2001. Dentre as orientações dispostas estão o direito ao tratamento em território e preferencialmente em rede substitutiva ao hospital psiquiátrico e o direito ao tratamento singularizado, respeitoso, humanizado e livre de abusos (BRASIL, 2001).

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