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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.14 no.25 Barbacena jan./jun. 2022

 

RESENHA

 

Resenha

 

José Mauricio de CarvalhoI; Stela Kasia GuimarãesII; Ana Clara Silva MoraesIII

ICentro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves (UNIPTAN/FAPEMIG). http://lattes.cnpq.br/0631305118814377
IICentro Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves (PIBIC/UNIPTAN/FAPEMIG). http://lattes.cnpq.br/9068119683534263
IIIPIBIC/UNIPTAN/FAPEMIG. http://lattes.cnpq.br/0517930916954201

 

 

A Vontade de Sentido. Viktor Emil FRANKL
[4ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2017: 239 pp]

 

Na obra O que não está escrito nos meus livros, Viktor Frankl comentou alguns aspectos fundamentais na construção da análise existencial. Ele viveu no século XX (1905- 1997) e enfrentou suas dificuldades. Sua teoria psicoterápica foi desenvolvida para responder às dificuldades de uma sociedade de massa e em crise, sem negligenciar os transtornos já reconhecidos nem as lições dos pioneiros da psicoterapia. Frankl tinha descendência judaica, o pai era de família típica originário de Mahren, cidade do antigo Império Austro-Húngaro.

Seus pacientes o colocaram frente à questão do sentido, não como tema teórico já considerado pelos filósofos, mas como realidade que se experimenta com dor na alma. A importância do sentido ele o experimentou no tempo de prisioneiro. No campo de concentração descobriu a necessidade de alimentar a esperança e encontrar razões para viver, mesmo quando o sofrimento parece tirar todas elas. O sentido tem a ver com dar um significado ao que se faz e ao que acontece.

A vontade de sentido é uma obra que foi elaborada a partir de palestras que o psiquiatra ministrou na Faculdade de Teologia Perkin, na Southern Methodist University (Dallas, Texas). Ele considerou os sistemas da logoterapia, partindo de seus pressupostos básicos resumidos em três princípios fundamentais: 1) a liberdade da vontade; 2) a vontade de sentido e 3) o sentido da vida. A obra também traz aplicações da logoterapia no tratamento das neuroses, separadas em noogênicas, psicogênicas e somatogênicas e aponta diferenças em relação a outras correntes psicoterápicas. Ele defende o sentido da vida como uma das principais necessidades do homem e afirma que, mesmo nas piores situações, a vida se mantém cheia de sentido.

A análise existencial ou logoterapia comentada está próxima da psiquiatria existencial, com muitos elementos semelhantes a outras teorias desse movimento. O autor afirma que o método fenomenológico usado na clínica é uma "tentativa de descrição do modo como o ser humano entende a si próprio" (p. 16). Para aplicá-lo, o terapeuta deve estabelecer uma relação do tipo Eu-Tu, nos termos de Martin Buber, que consiste em uma relação em que o sujeito vê o outro como igual, sem reduzi-lo a meio para um fim.

Frankl considera que a autotranscedência é a capacidade específica do ser humano e importante na clínica. "A autotranscedência constitui a essência da existência" (p. 67), pois o homem vive direcionado para algo além de si mesmo. Ele diz: "o homem transcende a si mesmo em direção ao outro ser humano e o sentido" (p. 29). Amor e sentido são únicos e permitem contemplar o outro em sua unicidade e singularidade. Por isso, na clínica teme o que não tem formação ampla, pois isso leva a generalizações inadequadas ou resume o homem a um recorte. A clínica psiquiátrica não pode prescindir dos fármacos, mas eles não servem para todos os casos. Ele recusa as teorias da motivação que consideram o princípio da homeostase, isto é, teorias para as quais o homem vive "preocupado com o equilíbrio interno, o que explica a necessidade de redução das tensões" (p. 45). A razão é que o homem é "portador de intencionalidade", o que significa "vive com propósito" (p. 47). Assim, a busca do prazer pelo prazer se anula. Quem faz do prazer um fim acaba frustrado, já que a felicidade e o sentido não se alcançam de forma direta.

O autor explica o vazio existencial de nossos dias pela falta de tensão adequada. Quando pouco exigidas, as pessoas têm um baixo nível de tensão. A procura de tensão pode ser feita de forma saudável ou doentia. Em seguida, explica que liberdade não se afasta da responsabilidade para não se perder do sentido. Concluindo a parte inicial, o autor esclarece que a falta de sentido não só traz infelicidade, mas também torna difícil a adaptação do indivíduo à vida social. Isso porque o sentido não é mesmo para todos, é próprio de cada indivíduo e situação. O sentido é o que descobrimos e não pode ser criado, apenas identificado. É a consciência que guia o homem na busca desse sentido, cabendo-lhe descobrir "sentidos únicos que contradizem valores estabelecidos" (p. 83).

Frankl avalia que hoje em dia as tradições perderam força e esse é um dos motivos do crescimento do vazio existencial. Sem referências, o vazio cresce. O autor acrescenta: "mesmo se todos os valores universais desaparecessem, a vida continuaria cheia de sentido, já que sentidos únicos permanecem intactos mesmo com a perda das tradições" (p. 83). Assim, educar exige incentivar o indivíduo a se respeitar e tomar decisões próprias, mesmo que disponha apenas de uma consciência finita e falha.

O papel do logoterapeuta não é impor valores ou propósitos mas, se necessário, mostrar que há um sentido a ser buscado. Ele explica que são diversas as formas de encontrar sentido como, por exemplo, dedicar-se a uma obra ou amar alguém. O sentido também pode ser descoberto quando se é capaz de "transformar a miséria de um sofrimento inevitável numa conquista" (p. 90). Assim, a logoterapia é otimista, pois trabalha acreditando ser possível tirar aspectos positivos de todas as situações. Em síntese, o sentido da vida chega por uma tríade: valores de criação, de experiência e de atitude.

No início da segunda parte, intitulada de Aplicações da logoterapia, Frankl explora a ideia de que o vazio existencial pode ser motivado pela falta de sentido. Ele mostra que, diferentemente dos animais, não somos guiados só por instintos ou pulsões e que, nos dias de hoje, não existem valores universalmente aceitos.

Em seguida, examina a vida sexual, mostrando que ela está sendo utilizada como "fuga barata daqueles problemas filosóficos e existenciais que confrontam o ser humano" (p. 107) e lembra que as principais formas de manifestação da frustação existencial são o tédio e a apatia. Então, considera que "os sistemas escolares contribuem para o vácuo existencial" (p.108), quando reduzem a vida e tiram o entusiasmo dos jovens.

Apesar da seriedade do vazio existencial, diz que ele, por si só, não é patológico. Ele precisa se tornar uma frustração existencial para dar origem à chamada neurose noogênica. Nesse sentido, as neuroses noogênicas "representam uma nova síndrome clínica, que não pode ser apropriadamente compreendida através de nenhuma das descrições clássicas". Para ele, o desespero existencial que vem da inconsciência espiritual é um fenômeno tipicamente humano. Ele explica que "quando a vontade de sentido é frustrada, a vontade de prazer se impõe" e o homem tende a buscar o sexo ou o poder como distração, fugindo de si mesmo e se distanciado da responsabilidade de encarar o seu vazio interior.

Em seguida, comenta as duas principais técnicas da logoterapia, chamadas de "de- reflexão" e "intenção paradoxal", e afirma que "ambas repousam sobre dois constitutivos da existência humana, a saber: 'autotranscedência' e o 'autodistanciamento'." (p. 125). Essas técnicas visam a enfrentar a hiperintenção, que surge quando o homem busca desesperadamente o prazer e acaba por não alcançá-lo; e a hiper-reflexão, que consiste na atenção fixa em um desejo resultando no seu oposto.

Ele esclarece que a de-reflexão pode ser bem aplicada nas neuroses sexuais. Para ele, o excesso de atenção e preocupação no desempenho e a satisfação sexual podem prejudicar a performance. Assim, "a de-reflexão pode ser usada para remover o caráter de auto-cobrança excessiva que o paciente impõe à relação sexual" (p. 127).

No caso da intenção paradoxal, o objetivo é "encorajar o paciente a fazer ou desejar que aconteça aquilo que ele teme'' (p. 128). Isso permite quebrar o ciclo vicioso onde o sintoma evoca a fobia e a fobia provoca o sintoma, reforçando a fobia. Esse ciclo vicioso pode vir a ser quebrado com fármacos e na psicoterapia, dependendo do caso. Tratando-se de algo no polo psíquico, usamos a intenção paradoxal para encorajar: "o paciente a fazer ou desejar acontecer as coisas que ele teme (...). O medo patogênico é substituído por um desejo paradoxal. Na mesma moeda, perde força a ansiedade antecipatória" (p. 130). O psiquiatra acredita que a fobia consiste numa "fuga do medo", ou seja, o paciente procura evitar o que lhe provoca angústia.

Na parte final dessa segunda parte, intitulada Ministério médico, Frankl esclarece que nas neuroses somatogênicas, a logoterapia não trata a causa orgânica do problema, mas pode ajudar o paciente a lidar de maneira positiva com seu sofrimento. Ele explica: "nesse contexto, cuidar da atitude do paciente perante sua doença se mostra a única saída possível e necessária" (p. 147). Diante de pacientes terminais parece-lhe necessário recuperar o sentido do passado, indicando que ele encontra-se "protegido contra a transitoriedade da vida" (p. 150).

Pesquisa realizada na Universidade de Nova Iorque apontou formas de como é possível "ajudar os pacientes a chegar no sentido" (p. 146). Uma delas é confortar o paciente nas situações de sofrimento e morte iminente, o que não deve ser apenas de responsabilidade do médico, mas também do enfermeiro. Um desses métodos, o "da parábola", tem o intuito de, por meio de uma história, comunicar ao paciente que nenhum ser humano está isento de adoecer, mas que ele pode achar um sentido nisso.

Parece-lhe importante esclarecer que, embora a logoterapia não tenha caráter religioso, se o paciente for religioso o terapeuta pode usar sua fé no tratamento. Ele busca desconstruir a ideia de que uma neurose ou psicose interfira na vida religiosa, mostrando que elas podem ser estímulo à religiosidade. Então, aborda o sentido último, que só pode ser acessado pela fé. Para ele, mesmo as pessoas que se dizem ateias, têm uma "confiança primária" num sentido último, que eles não explicam. Para ele, "a confiança no sentido e a fé no ser, por mais latentes que sejam, são transcendentais e indispensáveis" (p. 187).

Frankl observa que os psiquiatras em geral tendem a escolher essa profissão motivados por alguma neurose, o que explica que os médicos psiquiatras são os profissionais da saúde mais propensos ao suicídio. Ele acrescenta que diversos pioneiros da psicoterapia procuraram entender as próprias neuroses, mas isso não é mal, pois conseguiram, além de superá-las, aliviar o sofrimento de outras pessoas.

Na conclusão intitulada As dimensões do sentido, Frankl afirma que os psiquiatras devem "resistir à tentação de se aventurar pela teologia" (p. 177). Quanto menos eles se preocuparem com o assunto, maiores serão as chances de se tornarem meios para propósitos divinos. Ele acrescenta que "a logoterapia não quer cruzar a fronteira entre psicoterapia e religião, mas deixa a porta aberta a esta" (p. 178). Para finalizar, ele comenta o futuro da logoterapia esperando ter adeptos e não imitadores, afirmando, "eu desejo, sim, que, no futuro, a mensagem da logoterapia seja levada adiante por espíritos independentes e criativos" (p. 196). Isso porque só conseguimos convencer alguém de algo que nós acreditamos.

Uma rápida avaliação crítica dessa obra revela que o que mais distingue a análise existencial de outras propostas psicoterápicas é uma antropologia que aposta na autotranscedência, reconhecida por Frankl como fundamento da vida humana. Um outro ponto significativo na obra é que, embora o autor aponte claras diferenças em relação à psicanálise e a análise comportamental, reconhece os inegáveis contributos que ambas trouxeram: a psicanálise na identificação do inconsciente e a análise comportamental ensinando que nem todas as neuroses surgem na infância. Ambas as posições se devem ao modo como ele utilizou, na clínica, o método fenomenológico existencial e os ensinamentos de Edmund Husserl e Max Scheler. Esse último foi uma referência intelectual para Frankl, de modo que ele, durante boa parte da vida, andava com seus livros debaixo do braço. Foi com ele que distinguiu os movimentos do espírito das outras manifestações da psique.

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