18 3Editorial Vínculo 18(3) 2021Experiência do departamento de fotolenguaje de APPIA. Uruguay 
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Vínculo

 ISSN 1806-2490

Vínculo vol.18 no.3 São Paulo set./dez. 2021

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v18nesp.p258-276 

ARTIGO

 

Falta básica, angústia e resistência

 

Basic fault, anguish and resistance

 

La falta básica, angustia y resistencia

 

 

Juan Adolfo Brandt

Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social. Psicanalista Titular do Instituto de Pesquisa em Psicanálise e Psicopatologia de Brasília (IPePP). Individual Member of International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). Professor. Autor

 

 


RESUMO

Debate da resistência em psicanálise, decorrente da formação de defesas psíquicas durante o desenvolvimento psicossexual, as quais têm como finalidade a recuperação do objeto perdido quando do evento traumático, evento esse que constitui um marco para a proposta do conceito de "falta básica", feita por Balint. O interesse pelo tema surge ao verificar-se crescente demanda de análise de pacientes com profunda angústia relativa ao desamparo e importantes conflitos familiares, descrença na instituição trabalho e em alcançar vida conjugal satisfatória. Trabalhamos na perspectiva de formular hipóteses, sustentadas em experiência clínica e campo teórico da psicanálise stricto sensu e psicanálise dos vínculos, que poderiam contribuir para a clínica de revisão dos vínculos. A análise envolve o Sujeito e os objetos primários bem como seus substitutos embora somente o Sujeito esteja em psicanálise.

Palavras-chave: Angústia; Desamparo; Falta básica; Resistência; Vínculo.


ABSTRACT

Debate in psychoanalysis of resistance resulting from the formation of psychic defenses during psychosexual development. These defenses have as their purpose the recovery of the object that where lost during the traumatic event which is a milestone for the proposal of the concept of "basic fault" by Balint. Our interest in the subject arises because we observe at present increasingly demand for analysis of patients with deep anguish related to helplessness and important family conflicts, disbelief in the work institution and in achieving satisfactory marital life. We work from the perspective of formulating hypotheses, based on clinicai experience and theoretical field of psychoanalysis stricto sensu and psychoanalysis of bonds, that could contribute to the clinical review of the bonds. The analysis involves the Subject and the primary objects as well as their substitutes although only the Subject is in psychoanalysis.

Palavras-chave: Anguish; Helplessness; Basic Fault; Resistance; Bond.


RESUMEN

Debate respeto a la resistencia en el psicoanálisis, que es resultante de la formación de defensas psíquicas durante el desarrollo psicosexual, cuyo objetivo es recuperar el objeto perdido durante el evento traumático, trauma ese que constituye un hito para la propuesta del concepto de "falta básica" de Balint. El interés en el tema surge por la constatación de que existe creciente demanda de análisis de pacientes con profunda angustia relacionada con el desamparo e importantes conflictos familiares, la perdida de la confianza en la institución laboral y bien en la esperanza de lograr una vida matrimonial satisfactoria. Trabajamos desde la perspectiva de formular hipótesis basadas en la experiencia clínica y en los campos teóricos del psicoanálisis stricto sensu y del psicoanálisis de los vínculos, que podrían contribuir a la revisión clínica de los enlaces. El análisis involucra al Sujeto y los objetos primarios, así como a sus sustitutos, aunque solo el sujeto esté en psicoanálisis.

Palabras clave: Angustia; Desamparo; Falta básica; Resistencia; Vínculo.


 

 

INTRODUÇÃO

Trazemos o debate do campo teórico da psicanálise vincular como contribuição à clínica psicanalítica individual. Propomos que a temática dos vínculos primários, considerados elementos fixos, porém interferentes, submetidos ao olhar do par analítico, permite ao sujeito da análise desocupar os pontos fixos nos quais busca suporte para as suas repetições sintomáticas.

No âmbito do conjunto que engloba angústia e desesperança, sob a atuação da transferência que abre as possibilidades de interpretação e construção em análise, a técnica de recorrer à análise da imutabilidade interferente das imagos relativas aos objetos primários, abre a possibilidade de provocação ao sujeito da análise, que poderá reconhecer a repetição no espaço psíquico do vínculo.

O interesse pelo tema surge da leitura das obras de Sigmund Freud e Michael Balint, além de Melanie Klein, W. Bion e Enrique Pichon-Rivière, espaço teórico no qual pretendemos descortinar a ponte que une os psicanalistas das relações objetais e a +psicologia social de orientação psicanalítica ao pensamento de Freud e aos temas clínicos que envolvem considerações relativas à influência do grupo familiar na formação dos quadros patológicos quando esse grupo primário não consegue constituir suporte para o amparo.

Uma interrogação atravessa os debates internos do psicanalista quando este se propõe refletir desde a prática psicanalítica do divã para incorporar os conteúdos que o sujeito singular transfere para direções variadas, transformando sua realidade social estendida em um campo de repetições sem fronteiras. As proposições desse corpo teórico agora substancial denominado psicanálise vincular passam a ter representatividade e já não se pode mais conduzir a clínica psicanalítica sem levar em consideração essas construções teóricas que propõem elucidar o drama intersubjetivo, tal como propõe Rene Kaes com sua proposta de uma metapsicologia do sujeito intersubjetivo.

A pergunta central que surge para o analista que pensa os vínculos é: Se a produção da psicanálise vincular tem contribuído para importantes desenvolvimentos quando é colocado o debate relativo a grupos, famílias e casais, quais seriam as condições que indicariam estar-se a praticar na clínica individual a psicanálise vincular? A pergunta decorre da obviedade de estar havendo psicanálise vincular quando se está com mais de um analisando dentro do setting e da tendência a pensar-se haver distanciamento do campo vincular quando se está com um só sujeito da análise no setting. Vemos que a inclusão da abordagem vincular ao setting individual "do divã" permite à psicanálise stricto sensu enriquecer o campo de análise mediante a revisão das formas de vinculação do sujeito da análise.

Considerando esses aportes teóricos, discorremos sobre experiências clínicas para abrir janelas de investigação a respeito do que seja trabalhar no campo vincular quando estamos perante um sujeito no divã.

 

ANGÚSTIA E VÍNCULO

A clínica psicanalítica contemporânea vem sendo demandada por sujeitos que apresentam elevada angústia. Falamos da angústia de sujeitos que trazem relatos de estarem retidos em sensações e sentimentos de não contarem com apoio, amparo, acolhimento, suporte, disponibilidade, compreensão, tolerância, companhia ativa de outras pessoas em grau suficientemente amplo e intenso. Além disso, esses sujeitos chegam com relatos indicativos de masoquismo moral (FREUD, 1923-1924/1981) e melancolia (FREUD, 1915-1917/1981).

Não se percebem aceitos e correspondidos nos lugares da realidade; isso inclui aqueles objetos que constituem o vínculo primário, os quais estão psiquicamente internalizados de modo a constituírem objetos internos, porém apresentando imagens deformadas em relação aos objetos externos, conforme é colocado na obra de Pichon-Rivière (1995), quando debate o tema da formação do vínculo.

A partir de Pichon-Rivière, o vínculo pode ser definido como uma estrutura complexa que inclui o sujeito e o objeto total, já não podendo ser considerada uma relação de objetos parciais. A formação dessa estrutura inclui interação, momentos de comunicação e aprendizagem, que está suportada em um processo em forma de espiral dialética. Nesse processo, as imagens internas e a realidade externa não são coincidentes porque o objeto atua em duas direções: para a gratificação, constituindo assim o vínculo bom e para a frustração, configurando o vínculo mau, enquanto o sujeito desenvolve mecanismos adaptativos relativos a cada uma das duas direções de atuação com as quais o objeto se apresenta ao sujeito. Aspecto importante desse debate, está na caracterização das imagens internas como deformação da realidade externa, o que implica em reconhecermos que deve ser difícil assegurar-se que a realidade interna coincide com o Real.

No presente debate estendemos a amplitude das formações vinculares de modo a incluir também aqueles outros objetos que deveriam ser representativos da vida adulta, que são substitutos dos objetos primários. Portanto, devemos incluir nesta abordagem, além dos vínculos familiares, as pessoas do convívio atual que poderiam e deveriam substituir aqueles primevos vínculos como objetos de identificação ou sexuais.

 

DESAMPARO E FALTA BÁSICA

A impressão que nos causam os primeiros relatos no atendimento a esses sujeitos, é que em sua história de vida, desde tempos primitivos, faltou-lhes o acesso livre a uma presença acolhedora no vínculo primário. Ambos os objetos adultos em seu vínculo edípico, teriam sido reativos recusando as demandas de amor do sujeito infantil. Olhares não correspondidos, bilhetes desconsiderados, sorrisos não compartilhados, desenhos não olhados ou não valorizados e uma porta de alcova lembrada como estando sempre fechada, surgem como prova do distanciamento afetivo nas palavras denotativas de angústia de nossa paciente. Podemos, devido a essas considerações, falar em trauma ou ainda algo como falta básica?

Surgem os relatos das experiências de isolamento ou, são as experiências de isolamento que induzem esses relatos? Anda tudo em condensação, deslocamentos de condensações (FREUD, 1900/1981), de modo que há muita casca de cebola a descascar. Tudo se liga em sobredeterminação e já não se diferencia o isolamento das experiências vinculares e as experiências vinculares do isolamento. Vem à mente do psicanalista a ideia de que há pessoas que permanecem em um "não-lugar" por não conseguirem estar confortáveis em qualquer ambiente que contenha gente, mas também em todo lugar vazio.

Posteriormente, desde que a nossa clínica nos convida a trabalhar em torno do que está disponível, aprofundando a pesquisa, tal como depreendemos do termo em alemão usado por Freud na obra Erinern, widerholen und durcharbeiten1, traduzida ao português como Recordar, repetir e elaborar (FREUD, 1914/1981) dentro dos espaços psíquicos que se abrem para o Consciente a partir de associações inconscientes que capturamos, vem-nos a compreensão de que o tempo primitivo catapulta suas marcas em direção ao porvir. Isto afirmamos porque lembramos de uma menina que é destinada a estar com outras meninas na rua enquanto seus objetos de amor primários estão no trabalho ou por trás da porta da alcova, uma menina que, tornando-se adulta, permanece retida nessas lembranças e atua em função delas quando ocorre o encontro com os objetos significativos.

 

MARCAS DE DIFERENÇA

Essa menina, colocada entre outras, é vista como não sendo uma delas, pelo menos nas lembranças que lhe ocorrem. Ou será que é a própria que não se vê como igual às outras? Há algumas diferenças que a apontam como de um tanto menor clareamento da pele, mas também há a diferença social. Será? Será a pequena diferença econômica e de tom na cor da pele ou no emaranhado dos fios de cabelo ou será a busca de um lugar de isolamento? Sabemos que seus pais são brancos ou quase brancos e as pequenas diferenças são possíveis no que poderíamos denominar "etnia brasileira" com ancestrais de cor negra. Sabemos também que é filha de profissionais de nível superior e percebemos que é uma bela mulher. Freud nos alertara (1910/1981; 1912/1981; 1918/1981; 1921/1981; 1925/1981; 1930/1981) das implicações a respeito do que denominou "narcisismo das pequenas diferenças", conceito que se aplica a partir do fenômeno grupal tendente a estabelecer certo afastamento em relação àqueles que trazem marcas corporais ou culturais indicativas de pertencerem a grupos externos aos grupos de pertencimento do próprio sujeito, havendo, portanto, importantes processos identificatórios e de negação de identificação que participam nos processos de ligação e desligamento entre sujeitos. O psicanalista pensa: como é difícil apagar as marcas do desamparo e como é difícil sair de um "não-lugar"! Como surgem justificativas veladas de que o impedimento está para além do si mesmo! O psicanalista percebe que esses tempos não querem ser lembrados.

Nos relatos surgem, após algum tempo, as queixas em relação às amigas atuais que não a apoiam e procuram causar-lhe mal, queixas que são entremeadas por outras relativas ao distanciamento da figura paterna e suas atitudes violentas, além de desconsideração por parte da mãe, os ataques injustificados das irmãs, o descompromisso dos homens, as intrigas das colegas de trabalho.

Neste momento da história clínica, o psicanalista recorre a Bion (1975), que propõe três supostos básicos se alternando nos processos grupais. Indica a dependência, o pairing2 e o movimento de luta-fuga. A nossa heroína está atuando sem chegar a uma solução adequada, pois todos os mecanismos adotados para vincular-se fracassam, sejam eles de dependência, recusada sistematicamente, sejam de formação de par quando se sente só, sejam de luta-fuga, quando ataca os objetos com palavras fortes ou deles se afasta porque deles espera o pior.

 

O LUGAR E O NÃO-LUGAR

Repentinamente, surgem as lembranças da passagem da adolescência para a vida adulta e a entrada na academia. Esses relatos apresentam a autoridade paterna a cobrar de nossa anteriormente menina, compromissos de desempenho e de ocupação do lugar de adulta. Há que estudar! Há que se preparar! Há que bem escolher profissão! Há que ser alguém! Trata-se da sequência de obrigações que a remetem ao reconhecimento de que deverá se bastar. Mas, se já devia por toda a infância e adolescência se bastar, vem a angústia de reconhecer que bastar-se constitui sua sina de filha não desejada. Traz essas lembranças usando palavras que denotam angústia e raiva. São colocações que remetem o psicanalista a imaginar falas fortes, agressivas, sem diálogo, sem proximidade da figura paterna, mas também da materna.

Contudo, essas mesmas lembranças remetem a outras que são relativas à desconstrução do núcleo familiar, quando o pai se deslocou para outros espaços físicos e afetivos enquanto no espaço físico de nossa adolescente surgiram homens jovens, bem jovens é melhor dizer, que passam a permanecer por trás da mesma porta que a separa de sua mãe. A alcova continua fechada, mas o homem que ali está com a sua mãe é outro.

O setting é invadido pelo retorno aos tempos em que a esperança de paz com a partida do agressivo pai se perdeu na medida em que a mãe o substituiu por jovens rapazes. Essa mãe, anteriormente vista como omissa ante a agressividade paterna, passou a ser colocada como má por trair a nossa adolescente ao não escancarar a porta para o amor da filha, agora que o hipotético agente da separação entre filha e mãe não mais estava ali para fechar a porta. Infeliz essa moça que teve a esperança de ter um lugar no espaço ocupado pela mãe e que soube então que continuaria a estar num "não-lugar" por conta da presença odiada de todos aqueles rapazes que junto com a própria mãe permaneciam por trás da porta e quando de lá saíam, expunham a sua presença masculina indevidamente. Simultaneamente, manteve seu ódio em relação ao pai que não soube se deixar amar e nem soube após a separação, perceber que poderia tornar tudo diferente.

De início, a adolescente atende às determinações paternas e cumpre suas obrigações, mas, repentinamente, percebendo o quanto estavam seus objetos de amor ligados "exclusivamente" a seus prazeres, aceita o convite que lhe é feito pelo ambiente acadêmico e encontra a esbórnia, que imediatamente a cativa. Dessa vez, a nossa moça encontrou um lugar, o das bebedeiras, fumadas, experiências sexuais, tudo relatado de modo condensado, denotando complexos de sobredeterminação de experiências que se confundem e tornam dificultado descortinar entre experiências isoladas. Vem à percepção do analista que a ela somente foi possível dedicar-se à vida acadêmica, justamente porque encontrou um lugar de afastamento radical do desprazer, substituído que foi pelas oportunidades de esquecer as faltas que marcaram sua vida. Refugiou-se do "não-lugar" constituinte de sua vida pregressa ao ocupar um lugar substitutivo, pois bebida, maconha e sexo constituem um modo de existir fora da realidade que torna a vida amarga. Isto por propiciarem a doçura da alienação. "Sexo, drogas and rock and roll". Nossa paciente relata música nos bares nos quais iniciava a busca da eliminação do desprazer no modo maníaco.

O psicanalista, ao lembrar dessa história clínica, pensa:
Tudo que é efêmero se apaga no ar.
Tudo que se subordina ao tempo tem seu próprio tempo.
Só o tempo que não é efêmero, que não tem seu tempo, é que permanece através do tempo.
Esse é o tempo do inconsciente.
Eis que o tempo acadêmico demonstra o seu tempo e se faz efêmero.
Apaga-se no ar e retorna o tempo da falta,
Que se faz novamente aquele tempo do inconsciente,
Aquele tempo que nunca se desfaz.

Nossa então futura paciente é convocada pelo tempo a "cair na real". O concurso público, o trabalho, o lugar do Consciente que se manifesta através do saber relativo ao trabalho na instituição, cobram-lhe ocupar um lugar. Mas, como ocupar lugar, se novamente este não existe como possível por ela estar marcada por um não-lugar" do qual escapa unicamente quando cai na esbórnia? Sua única marca de estar num lugar é justamente aquela que se opõe às exigências da instituição do trabalho. Não é possível esquecer, no lugar do trabalho, que sua vida é de estar num não-lugar.

Para onde se desloca a fuga? Inevitavelmente para os não-lugares da vida, procurando os objetos perdidos, aquele estádio psíquico dominante quando o estádio de amor primário típico da primeira infância (BALINT, 1993) está perdido e a formação edípica não se apresenta como saída que leva ao amparo. Procura que encontra frustração, medo, raiva confrontados com ódio, desistência e persistência, são tantos mecanismos adotados para encontrar um "lugar" no "espaço do não-lugar", mas são tantas as substituições possíveis, que as próprias possibilidades de um lugar tornam-se condensadas.

Confirma em cada encontro o desencontro por não alcançar um lugar dentro do encontro. Ao pouco saber de si, permanece na culpabilização do outro, dos outros, da vida, da mãe, do pai, das irmãs, das colegas de trabalho, da direção, da chefia, das amigas, dos ex-namorados, dos homens que vai conhecendo nas redes sociais, do governo etc. A angústia foi encontrando seu vínculo com a depressão que tomou conta de sua vida. Sabemos o quanto a psicanálise e a depressão em algum momento mostrarão sua aliança imprescindível para que possam surgir revisões nos automatismos que são reconhecíveis.

 

COMPULSÃO À REPETIÇÃO E REGRESSÃO

Balint (1993 p. 101), ao abordar a regressão, lembra que toda análise em alguns momentos induzirá regressão. Pensamos que se a regressão anda no caminho dos tempos até o tempo em que a angústia foi vivenciada, inevitavelmente, lá estará a depressão.

São inúmeras as repetições mesmo que os objetos não sejam sempre os primários, pois os substitutos mantêm a condição de permitirem repetições que se originam no tempo do inconsciente. Ao pensar em "compulsão à repetição", Freud (1914;1920/2006) introduz na psicanálise um conceito estruturante para compreendermos a fixação da libido. Indica que o caminho para o escoamento libidinal mediante o direcionamento do desejo para satisfações que requerem a presença do objeto, está de algum modo obstruído, ou repleto de bifurcações das quais não se sabe o restante do caminho.

Balint (1959/1987, pp.78-100) propõe os conceitos de filobatismo e ocnofilia como relativos aos mecanismos básicos de afastamento e aproximação em relação aos objetos. Para ele, quando ocorre o evento traumático, surgem dois direcionamentos reativos para a pulsão do sujeito. Um destes é o relativo à ocnofilia, que corresponde ao movimento de agarrar-se, uma preensão, ao objeto de modo a assegurar a presença dele a todo custo. O outro direcionamento, o do filobático, corresponde ao movimento de desenvolver novas formas de asseguramento da presença do objeto, um conjunto de mecanismos substitutivos daquele de agarrar-se ou de preensão. O ocnofílico tenderá a buscar constantemente as oportunidades de preencher os espaços vazios com as presenças físicas de objetos, enquanto o filobático tenderá a percorrer os espaços vazios acompanhado preponderantemente de seus objetos internos, porém com o apoio de objetos físicos denominados objetos ocnofílicos (tais como talismãs, ferramentas etc). Embora à primeira vista pareça que a ocnofilia é mais primitiva, Balint adverte que ambos direcionamentos surgem no momento traumático e que ambos são modos de reencontrar a plena harmonia perdida típica do estádio de amor primário, que é aquele que prevalecia na vida intrauterina e cujos resíduos prevaleceram nos primeiros tempos do período posterior ao nascimento. Balint também faz a ressalva de que o momento traumático não deve ser considerado como um ato único; pelo contrário, trata-se de um contínuo que constitui por longo tempo o momento traumático.

Portanto, o sujeito que desenvolveu a posição filobática permanece confortável estando distante de seus objetos porque os tem internalizados enquanto o ocnofílico não consegue bem lidar com a distância dos objetos, carecendo de sua presença física constante. A menina cuja história de vida acompanhamos onde estará, nessa formulação balintiana? O psicanalista a acompanha e percebe que ela luta pela possibilidade de ocupar o lugar ocnofílico mas ao encontrar o objeto, sente-se atacada e afasta-se ou ataca e também afasta-se imediatamente para evitar a retaliação (BION, 1975). O psicanalista percebe que o sujeito da análise vivencia bivalência (PICHON-RIVIÈRE, 1995). Evidencia-se que estão presentes demandas típicas da falta básica de Balint, com o desenvolvimento de mecanismos de defesa ocnofílicos e filobáticos (BALINT, 1959/1987) aplicados como modo de escapar à desesperança por vivência de desamparo, em duas direções - um complexo de mecanismos ocnofílicos e filobáticos - mas também, que estão ali os temas colocados por Klein (1948/1975, pp.46-63) no debate sobre o vínculo bebê-seio e depois criança-mãe. De algum modo, os objetos transitam entre o mau e o idealizado, mais próximo da posição esquizo-paranóide, com fantasias de ataque-fuga. A posição depressiva surge em idealizações. A "gratidão e reparação kleiniana" (Klein, 1957/1975, pp. 205-267) típica da posição depressiva, permanece distante na medida em que o sujeito está dominado por angústia ligada a desamparo.

Balint (1993) discorre dentro do capítulo "A regressão e a criança que existe no paciente", sobre o que acontece na clínica relativamente ao fenômeno da "atmosfera". Segundo ele:

Sem dúvida, a maneira individual de cada analista de expressar a sua compreensão, [....] à "exoatução", ao "comportamento" ou à "repetição", pode variar consideravelmente e todas essas variações influirão muito na "atmosfera" criada no consultório do analista.

[...]Todas essas palavras procedentes do paciente e de seu analista são usadas e compreendidas no modo convencional adulto. (p. 100)

O mesmo Balint (1993) aprofunda o debate introduzindo a passagem para a discussão da regressão como fenômeno que é viabilizado no "espaço psíquico" dessa "atmosfera",

[...] temos aprendido a compreender e a usar não somente o material verbal que nos entregam nossos pacientes, mas também o que eu denomino "atmosfera", criada em parte por palavras, em parte pela maneira que o paciente as usa e em parte por tudo isso que chamamos "exoatuação", "comportamento" ou "repetição" na situação analítica. Como disse, este último grupo sempre tem um aspecto de regressão.

Desde um ponto de vista clínico, esta circunstância significa que de vez em quando são observados fenômenos de regressão durante todo tratamento analítico.

[...] Mas, em geral, é o paciente quem e aos poucos é levado a expressar essas contribuições não verbais com palavras - entre essas ... as suas tendências regressivas -, com o que "converte a sua repetição em recordação"; [...]

Uma explicação teórica possível [....] está relacionada à ideia de trauma. [...] o indivíduo apresentou desenvolvimento mais ou menos normal até um determinado momento em que ficou ferido por um trauma. Desde então, seu desenvolvimento posterior estará fundamentalmente influenciado pelo método que ele venha a elaborar no momento do trauma para enfrentar os efeitos desse trauma em particular: esse método ou meio é a falta básica do indivíduo. O trauma em si não é, em princípio, um evento isolado; pelo contrário, geralmente equivale a uma situação que perdura se prolonga por algum tempo, a qual se deve a uma penosa falta de compreensão - falta de "ajuste" - entre o indivíduo e seu ambiente. Geralmente, o indivíduo é uma criança e seu ambiente está formado pelos adultos de seu mundo. (p.101)

Freud falara nos "dois tempos" das escolhas objetais (FREUD, 1905/2006, p. 210), com a afirmação de que "O encontro do objeto é, na verdade, um reencontro'". Sabemos que essas definições que ocorrem em dois tempos, o da infância e o da puberdade, estão diretamente relacionadas à resolução da temática edípica. É preciso o reencontro para que possa confirmar-se a impossibilidade ou a possibilidade. E é depois do segundo tempo que se torna possível algo diferente ou pode confirmar-se o igual que estará sempre cobrando seu reconhecimento. É depois da confirmação da impossibilidade, que a nossa clínica pôde propiciar à nossa heroína o reconhecimento de que os outros são os outros3 e que somente ela é que pode mudar, isto após ela ter a confirmação de que ela mesma a si não se basta para que consiga construir um porvir diferente. É desde esse momento que pudemos construir a história que apresentamos, a história do encontro clínico que em associação livre dentro do qual, manejando a transferência, o analista se envolve com durcharbeiten nos espaços da falta básica.

 

A ESCUTA E O TERCEIRO EXPLÍCITO AUSENTE

Na sequência dos encontros clínicos foram-nos apresentadas inúmeras cenas diferentes quanto ao tempo de sua ocorrência, porém sempre iguais quanto ao "lugar denotativo de não lugar" que a paciente em suas ações apresentava. Fomos ouvindo e escutando, a mãe má, o pai mau, as irmãs más, os homens que não a amam, as amigas que a invejam e com ela competem, as colegas que não a escutam e a atacam com falsidades, os homens que preferem as outras mulheres ou preferem os próprios homens. Todas essas pessoas ela procura em busca de amor, mas obtém em troca, somente a confirmação de falta de amor. Mecanismos ocnofilicos e filobáticos mesclados gerando reações insuportáveis para ela.

Foi necessário colocar nessa análise que em princípio dela devia ser, cada um dos outros que ela desejava odiando. Pôde-se reconhecer que assim foi surgindo a análise dos vínculos. Vínculos fortes negativos, vínculos fracos menos negativos, enquanto os positivos não eram descortinados. Tornou-se necessário seguir com Brandt (2010, pp. 139-140) que introduz o conceito de "terceiro explícito ausente" a partir da obra de Michael Balint (2005). Naquele texto, Brandt debate o terceiro ausente que é colocado como objeto de análise de contratransferência manifestada pelos integrantes de grupos Balint.

Propomos seguir um passo adiante, trazendo para a cena atual, dentro do setting psicanalítico, o "terceiro explícito ausente sobre o qual se fala para poder de si mesmo falar como sujeito faltante que culpabiliza o objeto que quer impor seu jeito de ser, seu modo de existir". Foi necessário colocar na análise alguma coisa do terceiro explícito ausente para desde o reconhecimento da estabilidade radical desse outro com estatuto de irredutibilidade, percorrer desvendando cenas primitivas. Tornou-se necessário tornar reconhecíveis as possibilidades de quebrar gradativamente e cuidadosamente, a estabilidade radical do sujeito da análise. Se alguém pode mudar, este é o sujeito da análise, pois o terceiro ausente não se submete à análise, é somente objeto passivo de análise no espaço da psicanálise dos vínculos, da qual não participa nem tem conhecimento. Talvez mera testemunha distante de mudanças que não compreende, percebendo-as ou não.

A clínica psicanalítica dos vínculos chega ao setting individual quando o outro, terceiro ausente da cena psicanalítica, recebe do analista um estatuto de reconhecimento de possibilidades no campo das hipóteses de trabalho que visam à pesquisa de seus modos de existir e relacionar-se ou vincular-se, considerando que desenvolveu modos de reagir aos movimentos ocnofílico e filobático de seu demandante de amor e, por sua vez, foi agente traumático da instauração desses modos de reagir. O psicanalista deve, contudo, isso tudo ir apresentando ao sujeito da análise como constituinte de "pontos fixos" irredutíveis ao desejo do sujeito da análise. Nesse sentido, propomos a leitura de Damergian (2009) que elabora o conceito de ponto fixo referido ao objeto materno a partir do vínculo bebê-mãe. Ao mesmo tempo, os pontos fixos do paciente podem ser reconhecidos como automatismos que se repetem ante "pontos fixos" como Michael Balint (1959/1987) propõe mediante a proposta de conjuntos de mecanismos ocnofílicos e filobáticos.

 

MAIS QUE SUJEITO, TRATA-SE DE INTERSUBJETIVIDADE

Quando chegamos à clínica psicanalítica com os contornos que vimos debatendo, fazemos também uma incursão pelo pensamento de Kaes (1997), que propõe uma metapsicologia do sujeito intersubjetivo. Pichon-Rivière, Klein, Bion e Balint, colocam apontamentos que levam de Freud a Kaes, do sujeito subjetivo para o intersubjetivo, do sujeito que não é totalmente analisável enquanto não são colocados no setting os fantasmas da vida primitiva e desde essa fantasmagoria surgem os fantasmas atuais - substitutos corpóreos - porém originais por substituição dos objetos internos.

Se o outro não está em análise e há no sujeito o desejo de encontrar o objeto, esse sujeito da análise pode rever seus automatismos, seja em relação àqueles objetos que quer manter, seja em relação aos que quer abandonar, ou em relação aos substitutos.

Trabalhar na clínica individual de acordo com a concepção da psicanálise vincular, é analisar o sujeito da demanda confrontado à apresentação - em análise - de hipóteses sobre os terceiros ausentes do setting. As atuações desses terceiros são atualizadas na clínica em função dos relatos do sujeito da análise, que incluem as respostas de seus objetos às suas demandas, de modo a possibilitar que possam ser reconhecidas como pontos fixos, imutáveis, que somente poderiam tornar-se mutáveis na perspectiva da mutabilidade do sujeito da análise. Se a mutabilidade do outro é nenhuma apesar dos esforços do sujeito da análise, restam a este último as perspectivas da substituição em maior ou menor grau do objeto por outro ou, in extremis, as soluções patológicas.

 

RESISTÊNCIA

Não poderiamos encerrar este debate sem trazer o tema da resistência (FREUD, 1895/1981). Há obstáculos impedindo falar de si mesmo, reconhecer as próprias culpas, discernir que as repetições fazem parte do cabedal de automatismos, presente a tendência à racionalização e culpabilização do terceiro ausente. Os atrasos constituem marca que se repete, também os avisos meia hora antes da sessão, de que não se encontra em condições de comparecer, indicando que o tempo de análise deve ser postergado ou reduzido. Para a paciente é dificil suportar que é ela quem deve mudar. E, se falamos de resistência, a transferência encontra oportunidade de reconhecimento, preponderantemente por meio do pai ideal tolerante e disponivel, mas também o amante ideal, desejado e interditado.

Em continuidade, temos a oportunidade de apresentar a possibilidade e simultaneamente a irrealidade do pai bom, que poderia atuar para que a mãe fosse boa e as irmãs fossem amigas; capaz de amparar a criança em isolamento, reconhecendo seus trabalhos criativos e legitimos. Essa perspectiva é então trabalhada somente como possibilidade perdida, mas permite oferecer um lugar no setting que constitui uma saída do espaço do não-lugar, o encontro de um lugar para si mesma, em que é capaz de estabelecer, reconstruir e abandonar vinculos desde que pode reconhecer que o objeto surge irredutivel, mas o sujeito pode lidar com ele reconhecendo essa irredutibilidade para acessar esse novo lugar, novas formas de interação dentro da formação vincular em que o psicanalista ocupa o lugar de objeto bom possível.

Contudo, há dificuldade em transitar transferencialmente para os demais elementos objetais, porque a concretude de seu ódio não lhe permite deslocar no analista, do pai desejado e odiado para a mãe odiada e desejada. O psicanalista percebe estar mais próximo da resolução relativa ao amor paterno do que em relação ao seio mau. Mas persiste em ocupar o lugar de analista nos estágios regressivos a que Balint faz referência, pois é evidente que o ódio depositado no objeto paterno é menos primitivo e que esse mesmo sentimento relativo ao objeto materno permaneceu bastante encoberto pelo ódio ao Pai.

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

A psicanálise dos vínculos como setting individual tem seu passo inicial quando estabelecemos um espaço clínico no qual o outro do vínculo surge através do relato do sujeito da análise em todo o contorno possível de seu olhar para a exterioridade desse outro. Mas, essa psicanálise vincular somente pode almejar efetividade se o analista tem interesse em compreender essa exterioridade e propõe-se a deslocar a sua durcharbeiten para o espaço psíquico da interdependência que envolve sujeito e objeto. Contudo, a análise do vínculo somente ocorrerá quando for produzido um ato analítico que inclua hipóteses que envolvem o vínculo com todas as suas faces.

Desse modo, a psicanálise, ao ampliar o seu olhar de modo a abranger o vínculo, aprofunda o escape às certezas. Também aprofunda as possibilidades de encontros e desencontros de desejo e não-desejo ante um objeto que se apresenta e se esconde ou se nega como objeto. A psicanálise deve andar pelos espaços abertos que marcam o vínculo.

O sujeito da análise pode encontrar assim, a esperança e não desistir da luta tal como outros heróis fracassados que decidiram por outros caminhos, mais patológicos ou terminativos. Contudo, para que esse caminho possa ser percorrido, importantes obstáculos devem ser contornados. Profunda angústia, tempos de depressão, atuações na clínica e fora dela, procura e evitação do encontro psicanalítico, tudo ISSO4 está por aí, circulando no espaço psíquico clínico.

 

REFERÊNCIAS

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1 Durcharbeiten é o verbo original usado por Sigmund Freud que tem sido traduzido ao português como "elaborar", em especial na obra Recordar, repetir, elaborar. Consideramos essa tradução precária, pois durcharbeiten tem o sentido de um trabalho de aprofundamento mantendo o foco em torno do que está sendo pesquisado.
2 Pairing: os tradutores têm insistido em traduzir este termo por acasalamento. Contudo, nos parece melhor traduzir por formação de par, pois o termo escolhido para a língua em portuguesa exagera na conotação sexual.
3 Fazemos referência à letra "Os outros" de Kid Abelha, porém de modo distorcido do sentido original, pois em psicanálise propomos ao analisando que invista em suas próprias mudanças sem ficar preso à esperança de que os outros apresentem mudança magicamente, o contrário dessa letra, na qual a heroína permanece presa a um amor e tenta desqualificar a possibilidade de novos investimentos amorosos.
4 ISSO, para enfatizar que são movimentos que alcançam conteúdos primitivos.

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