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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) v.3 n.1 Ribeirão Preto fev. 2007

 

ARTIGO ORIGINAL

 

Mães com transtornos mentais: um estudo exploratório*

 

Mothers with mental disorders: an exploratory study

 

Madres con trastornos mentales: un estudio exploratório

 

 

Ana Maria Pimenta CarvalhoI; Joseane de SouzaII; Marciana Gonçalves FarinhaIII; Clarissa Mendonça Corradi-WebsterIV

I Profª. Drª. do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas/Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP.
II Psicóloga. Aluna do Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, nível doutorado.
III Psicóloga; Aluna do Programa de Pós-graduação em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, nível doutorado.
IV Psicóloga. Mestre em Saúde na Comunidade, Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas/Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Os transtornos psiquiátricos de mulheres com filhos têm sido abordados considerando-se que representam fator de risco ao desenvolvimento dos mesmos. Seus sentimentos e preocupações, contudo, têm sido pouco abordados. A partir da concepção de atenção à saúde mental, que considera a pessoa em seu contexto de relações, e sob perspectiva exploratória, este trabalho objetivou investigar o que pensam as mulheres e pessoas próximas, que convivem com elas, sobre sua condição. Temas abordados: adoecimento e sua percepção sobre ele, o cuidado com os filhos e o relacionamento familiar. Quanto às pessoas próximas, os temas foram as dificuldades frente ao adoecimento e o esforço para ajudar e buscar ajuda. É importante abordar a mulher, considerando-se também o papel de mãe que desempenha.

Palavras-chave: Maternidade, Transtorno mental, Crianças.


ABSTRACT

Psychiatric disorders in women with children have been considered as a risk factor for their development. Their feelings and worries, however, are less considered. Based on the conception of health care that takes into account patients in their interpersonal context and an exploratory perspective, this study aimed to examine what mothers and people close to them think about their condition. The most frequent themes were about the sickening and their perception about it, caring for the children and family relations. Among the persons related to these women, the themes addressed difficulties in view of the sickening, as well as efforts to help and seek help. It is important to deal with women in view of their role as mothers.

Keywords: Motherhood, Mental disorder, Children.


RESUMEN

Los trastornos psiquiátricos en mujeres con hijos han sido considerados como factores de riesgo a su desarrollo. Sin embargo, sus sentimientos y preocupaciones han sido poco considerados. Fundamentado en la visión del portador de transtorno en el contexto de sus relaciones interpersonales y una perspectiva exploratoria, la finalidad de este estudio fue conocer qué piensan estas mujeres y personas prójimas sobre su condición. Los temas más frequentes fueron el adolecer y su percepción de este proceso, el cuidado con los hijos y las relaciones familiares. Las personas del entorno manifestaron sus dificultades ante la enfermedad e los esfuerzos para ayudar y buscar ayuda. Es importante manejar la enfermidad mental de las mujeres, tomando en cuenta su condición de maternidad.

Palabras clave: Maternidad, Trastorno mental, Niños.


 

 

INTRODUÇÃO

A saúde mental da mulher tem sido estudada por alguns pesquisadores quando afirmam que elas são mais vulneráveis ao estresse que os homens, em virtude de seu maior envolvimento emocional com a vida daqueles que as cercam(1). São mais responsivas a maior rede de pessoas pelas quais se sentem responsáveis. A sobrecarga de papéis as deixa ainda mais sobrecarregadas quando acontecem estressores imprevisíveis como doenças, divórcio ou desemprego. Em outro estudo, encontrou-se que as mulheres são muito mais afetadas que os homens pela morte de uma pessoa amada e por outros eventos da rede social. As mulheres apresentam, nos relacionamentos conjugais tradicionais, um estado de saúde física pior, menor auto-estima, menos autonomia e pior ajustamento conjugal que as mulheres em relacionamento de maior igualdade entre os cônjuges(2-3).

Se o casal se divorcia é a mulher que cai para o nível da pobreza, pois ela sofre queda média de 40% nos rendimentos e ainda tem, sob sua responsabilidade, os filhos, ao passo que o rendimento do homem aumenta cerca de 17%. Atualmente, 75% dos pobres são mulheres ou crianças, a maioria vivendo em lares de um único progenitor(4).

A tarefa de “cuidado” de filhos, marido, pais e outros familiares, portanto, tem sido destinada às mulheres. Conforme afirmado acima, percebe-se que as mulheres têm adoecido devido ao estresse decorrente dessa responsabilidade, sentindo-se sobrecarregadas, apresentando não somente doenças físicas, mas também transtornos emocionais, como depressão, alcoolismo e outros. Há ainda outro aspecto do adoecimento que é quando a mãe é portadora de transtorno mental mais grave, como a esquizofrenia, por exemplo(5). Nesse contexto, toda a família sofre as conseqüências, principalmente os filhos, porque seu desenvolvimento e sua saúde dependem de seus pais.

Embora a família como um todo participe do desenvolvimento infantil, a figura da mãe tem recebido enfoque privilegiado da literatura e sua saúde mental é apontada como variável relevante. Associada a outras variáveis, pode participar da composição de um ambiente favorável ou desfavorável ao desenvolvimento dos filhos(6-8).

Estudo de revisão da literatura, produzida nas décadas de 70 até início da década de 90, focalizou a preocupação com os filhos de pais com desordens mentais. Argumenta a autora que a vulnerabilidade da criança a esse fator presente em sua vida é construída através de múltiplos caminhos que incluem os aspectos genéticos, como o temperamento da criança e seus ajustes ao temperamento dos pais(9).

A literatura sobre o tema tem mostrado duas tendências - o estudo das relações entre variáveis dos pais e das crianças e preocupação relacionada às percepções dos pais e voltada também para a sensibilização dos serviços de saúde mental que atendem adultos. Argumenta-se que há duas ironias na literatura sobre filhos de pais com desordens mentais. A primeira é a falta de recursos dos serviços que focalizam a prevenção e o tratamento precoce da doença mental, que perdem a oportunidade para a intervenção precoce. A segunda é o chamado “envolvimento familiar” que, na psiquiatria infantil, é operacionalizado pela inclusão dos pais, enquanto que o mesmo termo na psiquiatria do adulto parece ser operacionalizado pela inclusão apenas dos cônjuges. Visto que porcentagem considerável de filhos de pais com problemas mentais desenvolve também desordens psiquiátricas ou psicossociais, e passam, um dia, a dar entrada nos serviços de atendimento psiquiátrico, as crianças devem ser incluídas no cuidado a seus pais. Negligenciar esse componente do cuidado é perder a oportunidade para a avaliação e detecção de problemas relacionados ao exercício da paternidade e problemas da criança(9).

Nessa linha de buscar sensibilizar pesquisadores e profissionais da área, para unir esforços de serviços que atendem adultos com aqueles que atendem a crianças, insere-se o trabalho realizado na Dinamarca, que abordou pacientes internados em unidades psiquiátricas, buscando identificar as condições de seus filhos. Seus achados mostram preocupações dos pacientes com seus filhos, dificuldades no exercício do papel de pais, associação do surgimento do problema ao nascimento dos filhos, presença de discórdia nas relações familiares e necessidade de ajuda para lidarem com os problemas familiares(10).

Estudos realizados na Inglaterra sugerem ligação entre serviços para atenderem essa necessidade(11-12).

Na Austrália, foi conduzido estudo focalizando os sentimentos de mães portadoras de transtornos mentais em relação ao exercício de seu papel parental. Foi utilizada a metodologia do grupo focal. Os temas que emergiram dos encontros foram medo da perda da guarda dos filhos, trauma da hospitalização, sentimentos de isolamento social, acesso a recursos da comunidade para obter apoio em situações de crise, estigma da doença mental e insatisfação com os serviços de saúde mental(13).

Ainda, na Inglaterra, buscou-se descrever as características sóciodemográficas e clínicas de portadoras de transtornos mentais, residentes em Londres. Para essa avaliação, os pesquisadores utilizaram os seguintes instrumentos: avaliação clínica neuropsiquiátrica, escala de rede social, avaliação das funções globais e das necessidades de bem-estar. Foi realizada uma entrevista para verificar como as pacientes avaliaram o serviço e outra para verificar a qualidade de vida das pacientes nas diversas áreas da vida. A média de idade foi de 43 anos, 83% das mulheres tinham diagnóstico de esquizofrenia, 13% desordem afetiva e 10% outros diagnósticos. Os resultados revelaram que 63% dessas mulheres tinham filhos. As mulheres com filhos tiveram mais contato com familiares e menos contato com desconhecidos do que as mulheres sem filhos e 22% delas apresentaram dificuldades para cuidar dos seus filhos. O resultado mostrou forte evidência de que mulheres com filhos apresentaram mais problemas em seus relacionamentos íntimos que as mulheres sem filhos. Os autores sugerem que essas mulheres têm problemas de habitação, transporte, relacionamento, com sintomas médicos e psicológicos. Das entrevistadas, 10% encaminharam seus filhos a um serviço social e revelaram ter poucos amigos e confidentes. Concluíram que mulheres com transtornos graves necessitam de ajuda para planejar cuidados alternativos para suas crianças. Esses achados têm implicações na saúde mental dessas mulheres e de suas crianças, bem como no planejamento do serviço de saúde mental(14).

Em estudo exploratório com mães portadoras de doença mental, foi abordada sua percepção sobre seu relacionamento familiar. Participaram do estudo 42 mães com doença mental severa, com idade média de 35 anos, sendo que 45% relataram estar casadas, ou vivendo com seu companheiro, 62% recebiam benefício para auxílio à doença, 81% viviam em sua casa própria e 55% tinham diagnóstico de desordens afetivas (depressão maior ou transtorno bipolar). Cada família tinha em média 2,2 filhos, 44% das crianças viviam com a mãe, ou com a mãe e o pai, 21% viviam com o pai, sem a mãe, 12% viviam com parentes, 10% foram adotadas, 7% estavam em instituições e 6% tinham idade para viver independentemente. Das mães que viviam com seus filhos, 43%, relataram que contavam com suporte social como creches e esposos 56%, centros de atendimento à criança, 39%, e avós, 14%. Quando as mães estavam hospitalizadas, 18 delas, 36%, citaram que o cuidado das crianças ficava com avós ou parentes, 28% citaram instituições de cuidado, 24% relataram o pai e 12% relataram amigos. Foram identificadas dificuldades no relacionamento familiar. Algumas mães mencionaram o fato de os familiares não entenderem a doença e reagirem com irritação, culpando-as pelos problemas. Os pesquisadores apontam que membros da família podem reforçar o papel de doente das mulheres quando não as consultam ou não consideram suas necessidades nas decisões sobre o cuidado dos filhos. As mulheres relataram se sentirem dominadas por seus familiares. Os maridos podem ser vistos como alguém que ajuda ou como alguém que atrapalha. Elas descrevem seus maridos/companheiros como pessoas que abusam delas e das crianças, podendo, ainda, ser abusadores de substâncias ou mesmo terem diagnóstico de doença mental(15).

Com relação aos outros membros da família e a seus próprios pais, os autores observaram que as mulheres poderiam estar estressadas diante de suas expectativas frente ao cuidado que elas deveriam dar a seus filhos. Concluíram que o estigma e a ignorância que os familiares têm sobre a doença e o tratamento, e a influência que eles exercem no relacionamento da mãe com os seus filhos são alguns dos fatores que podem dificultar o relacionamento dessas mães com seus familiares. A visão que as mães têm delas mesmas como inadequadas pode exacerbar no período em que estão com depressão. Devido aos traumas causados pelos pais, geralmente é concedida a custódia das crianças aos avós. Essa situação causa preocupação e conflito no relacionamento das mães com seus familiares e, concomitantemente, piora os sintomas da doença mental. Os autores afirmam que os serviços que atendem mães com doença mental não podem deixar de considerar que elas são mães devem, sim, identificar quais são as forças e as dificuldades que elas têm para exercerem a maternidade, devem aprender que elas têm esperança e expectativas sobre essa função e sobre suas crianças(15).

Ao abordar as necessidades e as percepções de 32 mães com doença mental, em relação às suas crianças, foram entrevistadas mulheres com idades idade entre 29 e 66 anos, cujos filhos eram crianças quando foram internadas pela primeira vez. Elas deveriam responder um questionário no qual as questões eram sobre suas dificuldades enquanto mães. A maioria das mães se dividiu entre aquelas que participaram do cuidado de seus filhos e aquelas cujos filhos foram cuidados por outras pessoas. E 38% dessas mães afirmaram que seus filhos foram adotados. Todas as mães, cujos filhos eram pequenos, relataram que foi muito importante continuarem a cuidar dos mesmos, ainda que estivessem em tratamento. E 15, das 32 mulheres participantes do estudo, relataram precisar de ajuda para lidar com sua doença e seus filhos. As necessidades menos identificadas foram ajuda para conseguir o retorno dos filhos, aprender a ser mãe, ou aprender a evitar bater nos filhos. Os autores apontam que esse estudo piloto confirma que as mães com doença mental querem ajuda para enfrentar a doença e as várias perdas decorrentes dessa situação, e para poderem se relacionar com seus filhos(16).

A atenção integral ao portador de transtorno mental tem sido meta preconizada pelo movimento de reforma na assistência psiquiátrica e, considerando a discussão, ainda incipiente em nosso meio, sobre as mulheres que são mães e portadoras de problemas mentais, foi proposto este trabalho, com o objetivo de identificar o que as próprias mulheres e seus familiares ou outras pessoas significativas pensam sobre sua condição.

 

MATERIAL E MÉTODOS

SUJEITOS - 10 mães de filhos com idade entre 1 e 5 anos, atendidas em um serviço público de saúde mental de uma cidade do interior do Estado de São Paulo. Foram entrevistados, também, familiares e pessoas com quem as pacientes tinham relacionamento próximo.

As mulheres foram selecionadas a partir dos prontuários do serviço de saúde mental. Essa busca visou levantar os casos que se enquadravam nos critérios: estar em tratamento nos anos de 1999 e 2000 e ter filhos com idade entre 1 e 5 anos. Foram consultados 3 049 prontuários; 993 referiam-se a pacientes do sexo masculino e foram excluídos. Foram identificados 61 casos de mães com filhos até 12 anos e desses, foram selecionados 23 prontuários de usuárias com filhos pequenos. A seguir, enviava-se carta, solicitando um primeiro contato, que deveria ser feito sempre no serviço de saúde mental, sendo que 11 usuárias atenderam a esse chamado e 10 dispuseram-se a participar do estudo.

A caracterização das participantes pode ser vista no Quadro 1.

 

 

Participaram, ainda, do estudo, dois pais, um deles trabalhador autônomo taxista, o outro funcionário público municipal – auxiliar de serviços gerais; quatro mães, sendo três delas do lar e uma auxiliar de enfermagem de um hospital público da cidade. Pais e mães tinham idades entre 50 e 60 anos e escolaridade fundamental incompleta. Uma irmã, do lar, casada; dois esposos, ambos desempregados, um deles identificado pelo serviço de saúde como alcoolista e uma amiga da usuária participante no estudo, casada, mãe de três filhos já adultos, que assumia o papel de família de origem da usuária, cujos pais já eram falecidos.

Instrumento

Foi utilizada a entrevista semi-estruturada, visando abordar, junto às usuárias e familiares ou pessoas próximas, tópicos relacionados ao processo de adoecimento e relacionamento familiar. Optou-se por essa estratégia para coleta de dados em virtude de este estudo ter um delineamento qualitativo exploratório. As questões formuladas foram as seguintes: como tem sido para você enfrentar o adoecimento (desde os primeiros sintomas, depois que começou o tratamento na psiquiatria)? Como as pessoas de sua família têm lidado com isso? O que elas falam sobre isso? Como tudo isso tem interferido no seu relacionamento com filhos, marido/companheiro? E com outras pessoas, como amigos e vizinhança? Como tem sido lidar com as rotinas do dia-a-dia (trabalho, cuidados da casa...)?

Situação

Por ocasião do primeiro contato, explicava-se a razão do chamado, esclarecendo que o trabalho não era uma continuidade do atendimento, e lia-se o termo de consentimento livre e esclarecido. Os demais contatos foram feitos na residência, após as mesmas consentirem nas visitas. Das 10 mulheres, que se dispuseram a participar do estudo, apenas uma não permitiu a visita à sua casa. Todas receberam passes de ônibus, por ocasião da primeira entrevista, realizada no próprio serviço, como forma de ressarcimento de suas despesas de locomoção.

Aspectos Éticos

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, USP, e aprovado, em maio de 2000 (processo no. 0065/1999).

Procedimento

1 - Coleta de dados

Com as usuárias, foram conduzidas entrevistas individuais abordando informações para identificação e caracterização sóciodemográfica, e tópicos relacionados à sua vida cotidiana, a partir da identificação de seu problema e início do tratamento.

Com os familiares/pessoas significativas, as entrevistas também versaram sobre os sintomas apresentados pelas pacientes e sobre o relacionamento familiar.

2 - Análise dos dados

Optou-se pela análise exploratória do conteúdo do material obtido por meio das entrevistas, as quais foram transcritas após sua realização.

 

RESULTADOS

1 - O processo de adoecimento

As usuárias falaram sobre seu problema, com diferentes graus de compreensão, em virtude também do comprometimento que sua patologia impõe. O processo de adoecimento é representado pela apatia, irritabilidade e agressividade. Aliam-se a sua condição de saúde dificuldades de ordem econômica, falta de emprego e de dinheiro para uma subsistência mais digna.

Apareceram nas entrevistas relatos de irritabilidade, perda de controle, comprometimento das relações familiares e desconhecimento do que ocorre.

Eu sou louca? Eu não tenho mais nada, minha casa, meu filho...fiquei sem nada. Eu não entendo o que aconteceu.

Não tenho vontade de fazer nada,nem de cuidar do meu filho. Meu marido é que faz as coisas em casa, mas ele tem que trabalhar e às vezes me bate porque perde a paciência comigo.

Eu me descontrolo às vezes, tenho que ficar perto do meu marido e não deixo ele trabalhar.

Eu ficava irritada, não fazia nada em casa, meu marido me batia....Perdi a guarda do meu filho e vou tentar ter a guarda de volta.

Eu fico deprimida depois que tenho meus filhos.

Eu não tenho vontade de fazer nada. Às vezes tenho vontade de morrer.

Eu fiquei assim depois que nesceu esse menino (o terceiro filho da usuária). Minha sogra fala que ele não parece nada com o filho dela.

Associadas ao processo de adoecimento surgiram questões vinculadas ao relacionamento conjugal, condição socioeconômica, o lidar com as demandas dos filhos e das atividades domésticas. A percepção de inadequação e sentimentos de fracasso diante dos esforços para mudar a situação. Aparecem situações que sugerem depressão pós parto. Uma das usuárias tinha filhos já mais velhos (20 anos de idade e um rapaz de 18) e um bebê, após o nascimento do qual começou a apresentar sintomas de depressão e estava em tratamento. Após o nascimento da primeira filha ela relatou os mesmos sintomas e foi tratada na ocasião. Os achados são convergentes com outros estudos que focalizam mulheres com transtornos mentais(10-11).

2 - O cuidado com os filhos

O cuidado com os filhos fica muitas vezes prejudicado pelas condições atuais das usuárias, que chegam a contar com ajuda de familiares e de instituições, conseguida com a intervenção do serviço de saúde mental onde foram atendidas.

Eu não consigo cuidar dele, às vezes nem levo na creche. Mas devagar já estou dando banho e faço suco pra ele.

Minha mãe cuida dele.

Eu cuido da minha filha, levo ela na psicóloga também, mas minha mãe acha que eu não cuido direito.

Eu cuido do meu menino, mas a guarda dele não é minha e eu estou em processo de reaver ele.

Meus filhos estão numa casa e eu visito eles.

Como a literatura já vem mostrando, é comum a ocorrência da perda da guarda legal dos filhos, entre mães com transtornos mentais(15,17). E, embora algumas mulheres estejam cuidando de seus filhos sem ter perdido a guarda legal, esse cuidado tem sido árduo, gerando até conflitos familiares, e requer auxílio de outras pessoas, irmãs, avós e mesmo cuidado institucional, como o cuidado oferecido por creches. Ressalte-se que, no caso da usuária, que mencionou a creche, o serviço de saúde participou nos arranjos para que ela conseguisse que a criança pudesse freqüentar uma creche, uma vez que ela não tinha a justificativa de estar empregada. No caso em que os filhos não estão com a usuária, uma instituição não governamental que atende crianças que vivem em situação de risco assumiu a guarda temporária também a partir de arranjos em que o serviço de saúde teve participação ativa.

3 - O que pensam os familiares

Os familiares vêem com perplexidade o que ocorre com as mulheres e tentam explicar o adoecimento. Em algumas ocasiões parece haver intensa luta por acreditarem que é possível para a pessoa controlar-se melhor, investir no tratamento; isso ocorre, em especial, com relação àquelas que já estão há algum tempo em tratamento. Identificam-se, entretanto, esforços para ajudar e para buscar ajuda em serviços de saúde mental e outras instituições.

Ah, eu estou desanimada, ela não muda, não quer saber de nada. Tenho outro filho doente mental, que trata aqui também, mas não é tão ruim quanto ela.(mãe da paciente)

Eu não sei ... Acho que é uma coisa ruim que tomou conta dela. Ela devia ir na igreja. Ela não trata direito, não toma os remédios.(pai)

Eles sempre tiveram muito problema, acho que tudo porque o marido bebia muito e maltratava todo mundo em casa.(amiga)

Ela é nervosa, não ouve ninguém, é agressiva com a filha, não sei....(mãe)

Ela era vaidosa, ativa...não sei depois do primeiro aniversário do filho dela parece que foi ficando largada...(irmã)

Eu não sei o que acontece com ela, que fica tão nervosa. Mas acho que é uma boa mãe, é carinhosa. Eu tô tentando ajudar, nem posso sair quase...(marido)

Os extratos das entrevistas, aqui expostos, mostram, ainda que de forma recortada, a intensidade das experiências de adoecimento e as tentativas para enfrentá-las. Muitas vezes está presente o sentimento de não saber o que fazer, de ambigüidade, mostrando a idéia de atribuir a responsabilidade da doença ao próprio doente, especialmente quando ele tem dificuldade para aderir ao tratamento. Tais representações da doença e do doente levam à necessidade de atenção e orientação aos familiares, como têm sido apontado(15).

 

DISCUSSÃO

Em consonância com o objetivo deste trabalho, que se propôs fazer uma aproximação à temática da mulher portadora de transtorno mental, que também é mãe de crianças pequenas, verificou-se que, assim como no estudo de Wang e Goldsmith, os diagnósticos mais freqüentes encontrados nesse grupo de 10 mulheres foram os transtornos neuróticos e esquizotípicos(10).

Verificou-se que, além do transtorno mental, um outro fator, também já apontado, são as condições materiais que, no caso das pessoas aqui abordadas, em sua maioria parecem precárias. O nível de escolaridade dessas pessoas é também baixo e a maior parte das mães não está engajada em ocupações fora do lar.

Conhecer as condições de vida das usuárias de serviços de saúde mental, num sentido mais amplo, é o primeiro passo para que se possa oferecer recursos terapêuticos e psicossociais mais amplos, que abarquem suas necessidades e, também, para se poder atuar preventivamente, em relação às crianças(9). É importante dizer que o fato de uma criança estar em creche e outra sob a guarda de uma instituição de atenção à criança em risco psicossocial envolveu iniciativas do serviço de saúde mental, que atende às mulheres e às demais instituições. Esse fato mostra uma diferença, no que tange à qualidade da atenção, que foi relatado por outros pesquisadores, em estudo realizado na Inglaterra com pacientes internados em unidades psiquiátricas(12). Os autores referem-se à ausência dos filhos dos pacientes, nas ações da equipe de tratamento. Relatam que, em um caso, anotou-se no prontuário do paciente que seus filhos viviam em condição de risco, mas nenhuma ação foi efetuada no sentido de proteção às crianças.

No serviço abordado no presente trabalho, há preocupação com os filhos, amparada nos dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e nas ações da Rede de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente -RAICA, criada em 1998, que diz respeito à busca de atendimento integrado, juntando os esforços dos serviços de saúde, equipamentos escolares, conselho tutelar e polícia(18).

Pesquisadores da área sugerem forte ligação entre serviços de atendimento à criança e aqueles que atendem adultos, pois, nem sempre, os pais estão sensíveis aos problemas enfrentados por seus filhos e, na maior parte das vezes, não sabem o que fazer para auxiliá-los(11).

O exercício da paternidade tem sido objeto de intervenção e pesquisa em um programa de atenção a pais, portadores de transtornos mentais, desenvolvido na Universidade de Queensland, na Austrália(13). Complementarmente, verificou-se, no relato de duas participantes, a relação entre o adoecimento e o nascimento de filhos. Essa questão remete à necessidade de atenção a puérperas e gestantes. Embora não apareçam em levantamentos como o que foi feito para este trabalho, sabe-se que, em nosso meio, há iniciativas nessa direção.

O presente estudo, ainda que exploratório de um campo de conhecimento e atuação pouco mencionado em nosso meio, vem mostrar, em uma realidade específica de uma cidade do interior do Estado de São Paulo, que pode ser considerada rica em recursos, que muita coisa ainda há para ser desenvolvida e implementada. A articulação desses recursos constitui-se em fatores ambientais de proteção à criança e atenção às usuárias e familiares.

Quanto aos aspectos metodológicos, julga-se que o emprego de entrevista e uma análise qualitativa das mesmas foram importantes, nessa etapa exploratória. Outros estudos têm lançado mão desse recurso para coleta de dados e também de grupo focal, reunindo usuárias de serviços em pequenos grupos de 3 a 10 participantes(15). Em geral, os estudos utilizam, além de entrevistas com as usuárias de serviços de saúde mental, consultas a prontuários. Incluiu-se, ainda, grupos focais com profissionais que acompanhavam casos case manegers, buscando traçar a compreensão do que é ser mãe e portadora de transtorno mental a partir da visão das profissionais(15). No presente trabalho, buscou-se complementar as informações a partir de entrevistas com pessoas que convivem com as usuárias – familiares ou pessoas muito próximas.

Muito ainda há que ser feito. Deve-se, sobretudo, ampliar esse tipo de trabalho para abordar maior número de participantes e também investigações devem ser feitas junto a serviços e suas coordenações. No presente caso, obteve-se aquilo que se pode chamar de uma amostra de conveniência a partir de uma instituição que permitiu sua realização.

 

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Endereço para correspondência
Ana Maria Pimenta Carvalho
E-mail: anacar@eerp.usp.br

Recebido: 01/11/2006
Aprovado: 15/01/2007

 

 

* Instituição onde o trabalho foi desenvolvido: Ambulatório de Saúde Mental de Ribeirão Preto/Secretaria Municipal da Saúde.

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