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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

 ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.16 no.2 Ribeirão Preto abr./jun. 2020

https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2020.154623 

ARTIGO ORIGINAL

 

Uso de substâncias em adultos em situação de rua e associação com mindfulness

 

Uso de sustancias en adultos en situación de calle y asociación con mindfulness

 

 

Daniela Prado Rocha Silva; Marina Monzani da Rocha

Universidade Presbiteriana Mackenzie, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, São Paulo, SP, Brasil

Autor correpondente

 

 


RESUMO

OBJETIVO: analisar a relação entre o nível de atenção plena e o uso problemático de álcool e drogas em pessoas em situação de rua.
MÉTODO: foi realizado um estudo de corte transversal com 40 usuários de um serviço de convivência de adultos em situação de rua ou de abrigamento. Eles foram entrevistados utilizando-se as escalas MAAS (Mindful Attention Awareness Scale ou Escala de Consciência e Atenção Mindfulness, em português), CAGE (acrônimo referente às suas quatro perguntas em inglês: Cut down, Annoyde by criticims, Guilty e Eye-opener) e AUDIT (Alcohol Use Disorders Identification Test), além de um questionário sociodemográfico.
RESULTADOS: evidenciam alta prevalência de abuso de substâncias nessa amostra e mostraram correlação negativa entre o uso problemático de álcool e drogas e o nível de atenção plena, o que indica que baixos níveis de mindfulness podem ser um fator de risco para a população adicta.
CONCLUSÃO: o uso de meditação em intervenções com essa população é sugerido.

Descritores: Álcool; Drogas; Mindfulness; Pessoas em Situação de Rua.


RESUMEN

OBJETIVO: analizar la relación entre el nivel de atención plena y el uso problemático de alcohol y drogas en personas en situación de calle.
MÉTODO: estudio de corte transversal con 40 usuarios de un servicio de convivencia de adultos en situación de calle o de refugio. Contestaron, durante una entrevista, las escalas MAAS (Mindful Attention Awareness Scale), CAGE (Cut down, Annoyde by criticims, Guilty and Eye-opener) y AUDIT (Alcohol Use Disorders Identification Test), así como un cuestionario sociodemográfico.
RESULTADOS: alta prevalencia de abuso de sustancias en esta muestra y mostraron una correlación negativa entre el uso problemático de alcohol y drogas y el nivel de atención plena, lo que indica que bajos niveles de mindfulness pueden ser un factor de riesgo para la población adicta.
CONCLUSION: se sugiere el uso de meditación en intervenciones con esa población.

Descriptores: Alcohol; Drogas; Mindfulness; Personas sin Hogar.


 

 

INTRODUÇÃO

Mindfulness é um constructo de origem budista que foi adotado pela psicologia ocidental para se referir à capacidade de uma pessoa estar presente no “aqui e agora”, à habilidade de prestar atenção neste momento de maneira proposital e sem julgamentos(1). É uma habilidade que pode ser desenvolvida por meio de práticas meditativas de atenção plena(1). Apesar de existirem protocolos de intervenção baseados em mindfulness voltados para o tratamento de abuso de substâncias, como o protocolo MBRP (Mindfulness-Based Relapse Prevention ou Prevenção de Recaída Baseada em Mindfulness, em português), modelo desenvolvido no Addictive Behaviors Research Center, na University of Washington, nos Estados Unidos, trazido e adaptado para o Brasil com a ajuda da idealizadora do protocolo, Dra. Sarah Bowen(2), poucos trabalhos investigaram, até este momento, prejuízos na atenção plena dentre usuários de substâncias psicoativas. Diante dessa situação, faz-se importante investigar a relação entre a atenção plena e os comportamentos adictivos.

Um estudo norte-americano investigou os níveis de atenção plena em adultos encaminhados para tratamento em função de uso de substâncias psicoativas(3). Os autores encontraram que os usuários atingiram pontuações na escala de mindfuness inferiores à média nacional americana(3). Os resultados foram ainda piores quando foi analisada a atenção plena dos usuários de drogas múltiplas, que atingiram uma pontuação ainda mais baixa do que a dos monousuários. Tais resultados confirmam a hipótese de que há déficits na atenção plena dos usuários de drogas, o que dá suporte para o uso de estratégias para ampliar essa habilidade durante o tratamento do abuso de substâncias(3).

Em um estudo com objetivos semelhantes ao anterior(3), foi avaliado o constructo mindfulness em 107 adultos que buscaram tratamentos para abuso de substâncias(4). Não foram encontradas diferenças entre homens e mulheres ou entre usuários de álcool e usuários de outras drogas. No entanto, foram encontradas diferenças na atenção plena dos usuários em comparação com a amostra normativa do instrumento utilizado para avaliar o constructo, sendo que os usuários alcançaram menores níveis mindfulness comparados aos não usuários de drogas. Os mesmos autores verificaram também a relação entre os traços de mindfulness e prováveis diagnósticos de depressão e estresse pós-traumático em usuários de substâncias(5). Os resultados indicaram que pacientes com provável diagnóstico de depressão ou de estresse pós-traumático relataram menor atenção plena que pacientes sem esses transtornos. Em especial, foi verificado que aqueles que apresentavam comorbidades entre os diferentes diagnósticos atingiram os menores níveis de atenção plena, indicando que baixos níveis de atenção plena podem ser um fator de risco para o desenvolvimento ou a manutenção do uso de substâncias, especialmente quando há outras psicopatologias em comorbidades(5).

Ainda que os estudos mencionados indiquem que há uma relação entre atenção plena e uso de substâncias, tal relação precisa ser melhor explorada, especialmente em populações de risco. A Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua(6) aponta que problemas com alcoolismo e drogadição estão entre as principais causas pelas quais as pessoas passam a viver e a morar na rua (35,5%). A vulnerabilidade desta população e a dependência de álcool e drogas levam à dificuldade em manter atividades de trabalho e à fragilidade nos laços sociais e familiares, gerando uma população que lida com condições precárias de vida e recorre às ruas como única opção de moradia e sobrevivência(7). Diante desse cenário, o objetivo deste trabalho é verificar a relação entre adicção e atenção plena em adultos em situação de rua ou abrigamento.

 

Método

Foi realizado um estudo transversal, quantitativo e descritivo. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Parecer Nº 2.541.680). Todos os participantes tiveram sua dignidade e autonomia respeitadas, conforme a Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes tiveram acesso, a priori, ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi assinado por eles. Os riscos para os participantes foram mínimos, como o possível desconforto em responder às perguntas.

Participaram deste estudo 40 pessoas, com idades entre 20 e 57 anos (média = 38,3 anos, desvio-padrão = 10,6 anos), sendo 37 homens (92,5%) e três mulheres (7,5%). Os participantes são usuários de um serviço de convivência de adultos em situação de rua ou de abrigamento. O critério de inclusão foi declarar não estar sob efeito de alguma substância psicoativa no momento da pesquisa. Com relação à raça/cor, 52,5% autodeclaram-se pardos; 27,5%, brancos; 17,5%, negros e 2,5%, indígenas. A maior parte dos participantes (90%) era solteira, sendo apenas 5% casados. No que se refere a emprego, 50% estão em situação de desemprego, 42,5% têm emprego informal e outros 7,5% possuem emprego formal. Além disso, 55,0% declararam receber algum benefício governamental. A escolaridade da amostra variou de Ensino Fundamental incompleto (30%) a Ensino Superior (cursando, completo ou incompleto) (7,5%).

Abaixo, a descrição dos instrumentos utilizados.

Questionário sociodemográfico: elaborado para a realização da pesquisa com indicadores como escolaridade, se está em situação de rua ou abrigamento, usa tabaco ou outras drogas e se já participou de intervenções de meditação.

Escala de Consciência e Atenção Mindfulness (MAAS- BR): avalia o fator mindfulness e é composta por 15 itens voltados para a avaliação da atenção plena, usando uma escala de seis pontos, que varia de um (quase sempre) a seis (quase nunca)(8). Altos escores refletem maior capacidade de mindfulness(9). O construto mindfulness é composto por dois fatores, consciência e atenção, que operacionalizam o construto unifatorial “atenção mindfulness”(9). A MAAS-BR foi adaptada com uma amostra brasileira (N=395)(10) em um estudo que corroborou sua estrutura unidimensional (α=0,83). Além do alfa de Cronbach, os autores efetuaram o teste-reteste (r=0,80) e o split half (0,67) como métodos para estimar a precisão da medida.

CAGE (acrônimo referente às suas quatro perguntas em inglês: Cut down, Annoyed by criticims, Guilty e Eye-opener): é um instrumento para a triagem do abuso ou dependência de drogas que, por meio de quatro perguntas, busca detectar casos de dependência de álcool. A correção é feita a partir da atribuição de um ponto para cada resposta afirmativa e o escore de dois pontos ou mais indica grande possibilidade de dependência de álcool(11).

AUDIT (Alcohol Use Disorders Identification Test): identifica diferentes níveis de uso de álcool. São apresentadas dez perguntas de múltipla escolha com pontuações de zero a quatro pontos que indicam a quantidade e a frequência do consumo de álcool nos últimos 12 meses. Após a contagem dos pontos, a dependência é classificada em um dos quatro eixos que mostram a intervenção indicada: Zona I - Prevenção Primária (0-7 pontos); Zona II - Orientação Básica (8-15 pontos); Zona III - Intervenção Breve e Monitoramento (16-19 pontos); Zona IV - Encaminhamento para Serviço Especializado (20-40 pontos)(12).

Todos os instrumentos foram respondidos pelos participantes durante uma entrevista individual com a pesquisadora. A entrevista foi realizada em uma sala do serviço de convivência reservada para garantir a privacidade dos participantes.

As correções dos instrumentos CAGE, AUDIT e MAAS-BR foram feitas de acordo com as instruções dos autores dos estudos de validação e normatização para a população brasileira. Foram feitas análises estatísticas descritivas (média, desvio-padrão, porcentagem, mínimo, máximo etc.) para a caracterização da amostra no que se refere ao uso de substâncias e atenção plena. Os resultados dos diferentes instrumentos foram correlacionados (Correlação Bivariada de Pearson) com o objetivo de testar a associação entre as variáveis. Além disso, foi utilizado o teste U de Mann-Whitney para a comparação das médias obtidas pelos participantes divididos em grupos em função do número de substâncias utilizadas (não usuários x monousuários x poliusuários) e o teste qui-quadrado de Pearson para a análise dos dados categóricos. Todos os testes foram realizados utilizando-se o software SPSS 23.0. Para as análises estatísticas inferenciais, foi adotado o nível de significância p<0,05.

 

Resultados

Dos 40 participantes, 22 (52,5%) declararam fazer uso de tabaco e 19 (47,5%), uso de álcool. Revela-se, considerando apenas álcool e outras drogas, que 19 participantes foram considerados não usuários (47,5%); oito, monousuários (20%) e 13, poliusuários (32,5%). Dentre os poliusuários, a média de substâncias utilizadas foi 2,46 (DP=0,97).

A pontuação no CAGE variou de zero a quatro, com média 1,35 (desvio-padrão = 1,29). Ao todo, 17 (42,5%) participantes atingiram uma pontuação que indica risco de dependência de álcool na resposta ao CAGE (mais do que duas respostas positivas). O resultado do nível do uso de álcool, de acordo com a classificação do AUDIT, indicou que 35% estavam no estágio de Prevenção Primária; 22,5%, no de Orientação Básica; 7,5%, no de Intervenção Breve + Monitoramento e 35%, no de Encaminhamento para Serviço.

Na figura 1, é apresentada a distribuição dos resultados obtidos pelos participantes na resposta à MAAS. A linha vertical indica a mediana da amostra brasileira no estudo de validação da MAAS (62,0)(10).

 

 

A pontuação média obtida pelos participantes na MAAS foi de 57,07 (DP = 16,41) e a mediana foi de 56,5, sendo esse valor inferior à mediana da amostra normativa brasileira.

As correlações encontradas entre os dados demográficos (idade, escolaridade, situação de emprego e número de drogas que faz uso) e os resultados obtidos pelos participantes nas escalas CAGE, AUDIT e MAAS são apresentados na Tabela 1.

Não houve associação entre as diferentes variáveis, exceto pela correlação negativa moderada entre a MAAS e AUDIT e positiva moderada entre idade e pontuação no CAGE, ou seja: os resultados evidenciam que, quanto maior a dependência de álcool, mas baixos são os índices de atenção plena e que, quanto maior a idade, maior a probabilidade de dependência de álcool.

Foram analisados os resultados obtidos nas diferentes escalas em função do tipo de usuário (não usuários x monousuários x poliusuários). Além disso, verificou-se se havia diferença entre os tipos de usuários no que se refere à idade, nível de escolaridade e situação de emprego. Os resultados são apresentados na Tabela 2.

Houve uma maior prevalência de pessoas com níveis de escolaridade baixa (até o Ensino Fundamental) dentre os não usuários e os monousuários. Apenas 23,1% dos poliusuários tinham até o Ensino Fundamental completo, enquanto que os demais tinham níveis de escolaridade superior. Além disso, os monousuários e poliusuários obtiveram pontuações mais elevadas na AUDIT em comparação aos não usuários.

Por fim, os participantes foram divididos em três grupos em função do nível de atenção plena. Para isso, foram utilizados a média e o desvio-padrão obtidos no estudo de validação brasileiro da MAAS. Aqueles que tiveram pontuações dentro da média mais ou menos um desvio-padrão foram considerados com atenção plena “Média”. Aqueles cuja pontuação estava mais do que um desvio-padrão abaixo da média foram classificados como “Baixa” e aqueles que obtiveram uma pontuação, pelo menos, um desvio-padrão acima da média tiveram sua atenção plena classificada como “Alta”. A Tabela 3 mostra os resultados obtidos pelos participantes dos três grupos na CAGE, AUDIT e nas variáveis sociodemográficas.

O teste qui-quadrado não evidenciou diferença significativa entre os participantes com atenção plena Baixa, Média e Alta nos escores obtidos no CAGE (p=0,387), no nível de escolaridade (p=0,837), na situação de emprego (p=0,919) e no tipo de usuário (p=0,547). No AUDIT, foi encontrada diferença significativa em função do nível de atenção plena (p=0,048). Os participantes que usavam álcool com indicação de Prevenção Primária e Orientação Básica apresentaram, com maior frequência, níveis de atenção plena médios e altos, enquanto que os que tinham indicação para Intervenção Breve e Monitoramento, bem como para Encaminhamento Para Serviços Especializados, apresentaram, com maior frequência, pontuações Baixas na MAAS. Além disso, foi encontrada diferença na prática de meditação nos três grupos, sendo que apenas 16,7% dos que declararam que tiveram contato com meditação obtiveram uma pontuação baixa na MAAS.

 

Discussão

Para cumprir o objetivo de estudar a relação plena e o uso de substâncias em uma população com alto nível de vulnerabilidade social, 40 adultos em situação de rua foram entrevistados. Destes, 14 (35%) indicaram comportamentos compatíveis com provável risco de dependência, de acordo com os resultados do nível do uso de álcool com a classificação do AUDIT. Na avaliação com o CAGE, 17 (42,5%) atingiram a faixa de risco de dependências e, nesse sentido, entende-se que os resultados deste estudo confirmam a demanda, já destacada em outros trabalhos(7), por atendimento em função do uso de substâncias para a população em situação de rua. Devido ao grau de vulnerabilidade a que tais sujeitos estão submetidos, encontram-se, na prática habitual dos serviços de saúde, demandas de cuidados de saúde física e mental recorrentes em consequência da abstinência pelo uso de substâncias psicoativas(7). Outra questão abordada pelos autores é o acesso aos serviços de saúde, que se torna um desafio na atenção a essa população, já que, muitas vezes, a pessoa em situação de rua não acessa tais serviços ou acessa de forma precária(7).

Os participantes deste trabalho foram separados em não usuários, monousuários e poliusuários como em outro estudo(3). A diferença entre os resultados do AUDIT, em função do tipo de usuário encontrado neste estudo, pode indicar que o uso problemático de álcool está relacionado com o uso de drogas ilícitas. Um estudo estabelece o álcool como “porta de entrada” para outras drogas, o que contrasta com o ideário do senso comum de que seria a maconha a responsável por levar uma pessoa ao uso de múltiplas drogas(13). Dessa forma, enfatiza-se a necessidade de políticas públicas voltadas para a questão do uso abusivo de álcool, especialmente dentre aqueles que vivem em situação de rua.

Além disso, houve uma maior prevalência de pessoas com níveis de escolaridade baixos (até o Ensino Fundamental) dentre os não usuários e os monousuários. No mais, os monousuários e poliusuários obtiveram pontuações mais elevadas na AUDIT em comparação com os não usuários. Há uma tendência de maior uso de múltiplas drogas por pessoas com maior escolaridade, diferentemente de estudos encontrados(14), pois anos de escolaridade estiveram negativamente correlacionados com o uso de drogas ilícitas(14). No entanto, o nível educacional esteve positivamente correlacionado com o quociente de inteligência (QI) e negativamente correlacionado com a impulsividade, duas características que também estão correlacionadas com o uso de drogas e que não foram avaliadas nos participantes deste estudo. Assim, a correlação negativa entre educação e uso de drogas (14) pode refletir as questões que estão correlacionadas com a escolaridade e não a escolaridade em si. Sabe-se que, no Brasil, os estudantes universitários apresentam consumo de drogas mais frequente e intenso do que outras parcelas da população(15). Esse dado pode explicar o resultado encontrado neste trabalho.

Como era esperado, em função dos resultados obtidos em estudos anteriores(3-5), grande parte da amostra do estudo atingiu pontuação de atenção plena abaixo da média na MAAS, usando-se, como parâmetro, os dados da validação brasileira do instrumento(10). Além disso, os resultados indicaram que os participantes que já tinham experiências com meditação obtiveram maior pontuação na escala, o que reforça a validade do instrumento.

No que se refere à relação entre o uso de substâncias e o constructo mindfuness, os resultados indicaram uma correlação negativa entre AUDIT e MAAS, o que corrobora a hipótese de que, quanto mais o indivíduo faz uso abusivo de substâncias (nesse caso, o álcool), menor é o seu nível de mindfulness. Outros estudos transversais de nível basal, que usaram a MAAS como instrumento para avaliar traços de mindfulness e correlacionar com o uso de drogas, também obtiveram os mesmos resultados(3-4). As amostras que apresentavam algum transtorno em relação ao uso de álcool e outras drogas atingem pontuações abaixo do que é esperado para a população geral em escalas que avaliam a atenção plena(3-4), exceto no que se refere a usuários de opiáceos(5). Esses resultados sugerem que déficits de atenção plena podem ser comuns na população que faz uso abusivo ou que tem dependência de drogas. Maiores níveis de atenção plena podem ser um fator protetivo ao uso de droga, pois o fato de a pessoa estar focada neste momento a ajudaria a lidar com as emoções da forma como elas estão, sem precisar fugir para o álcool ou outras drogas, além de identificar mais rapidamente os gatilhos que antecedem o uso. Eles também indicam que déficits na atenção plena podem ser comuns em indivíduos que procuram tratamento para uso de substâncias psicoativas, o que faz com seja elaborada a hipótese de que tais déficits levam a um aumento da vulnerabilidade do sujeito, podendo representar um fator de risco para o desenvolvimento ou a manutenção dos transtornos de uso de substâncias. Estudos longitudinais devem ser realizados futuramente para verificar essa hipotética relação causal.

Estudos demonstraram que a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), em comparação com outros tratamentos usuais para o vício de opioides (uso de metadona e o programa de doze passos dos Alcoólicos Anônimos), teve uma maior diminuição no uso da droga em relação aos outros dois tratamentos no follow-up de seis meses(16). Há dados de resultados positivos sobre a efetividade da Terapia Comportamental Dialética (DBT) em pacientes dependentes químicos com Transtornos de Personalidade Bordeline, visto que a maior parte dos estudos encontrou taxas melhores de abstinência, menor uso de substâncias psicoativas e avanço na regulação emocional nos sujeitos que aderiram a essa modalidade de tratamento(17). Tanto a ACT quanto a DBT incluem intervenções baseadas no conceito de mindfulness. Dessa forma, entende-se que as terapias comportamentais contextuais, que adotam princípios de mindfulness em suas intervenções(16-17), possuem impacto positivo na redução dos comportamentos aditivos, porém, como tais terapias envolvem outras intervenções, pode-se hipotetizar que outras variáveis estejam relacionadas com a diminuição do uso, como, por exemplo, a relação entre terapeuta e paciente.

Até o momento, o único protocolo específico de atenção plena para transtornos por uso de substâncias, o MBRP, foi criado para o tratamento ambulatorial do uso de substâncias(18). O protocolo MBRP, comparado com os tratamentos usuais (programa de doze passos e psicoeducação), e o Tratamento de Prevenção de Recaídas (RP). Os participantes designados para MBRP e RP relataram um risco significativamente menor de recaída ao uso de substâncias e consumo excessivo de álcool e, entre aqueles que usaram substâncias, significativamente menos dias de uso de substâncias e consumo pesado nos seis meses de follow-up. A RP cognitivo-comportamental mostrou uma vantagem sobre o MBRP na questão do tempo para o primeiro uso de drogas. Nos 12 meses de follow-up, os participantes da MBRP relataram significativamente menos dias de uso de substância e diminuíram significativamente o consumo pesado em comparação com RP e o tratamento usual. Práticas direcionadas de mindfulness podem apoiar resultados em longo prazo, pois fortalecem a capacidade de monitorar e lidar habilmente com o desconforto associado ao desejo ou afeto negativo(18).

Dessa forma, entende-se que intervenções usando meditação e técnicas de atenção plena são promissoras para ser usadas em complementação aos tratamentos usuais ao uso de drogas, já que tais estudos indicam que intervenções das terapias contextuais têm demonstrado efetividade e resultados longitudinais para tais transtornos(16-17). Os exercícios de atenção plena também podem fornecer uma alternativa gratificante e relaxante ao uso de drogas(3) e, de fato, acredita-se que intervenções baseadas em mindfulness possam ajudar a reduzir o risco de recaída(18).

Este estudo apresenta algumas limitações, como o número reduzido de participantes, a amostra ser predominantemente masculina e em situação de rua ou abrigamento, a escolha de um único instrumento unifatorial para medir a atenção plena e o desenho transversal do estudo, que limita a determinação da causalidade entre as variáveis. Assim, entende-se que um estudo futuro que utilize medidas de atenção plena mais sofisticadas e amplas para determinar se diferentes facetas de mindfulness estão mais fortemente associadas aos construtos examinados e uma amostra maior e mais abrangente poderiam ajudar a examinar melhor a associação de vários fatores com prejuízo em mindfulness e outros aspectos da atenção plena. Além disso, trabalhos longitudinais poderiam responder a questões de causalidade dentre as variáveis.

 

Conclusão

Apesar das limitações apresentadas, os achados deste estudo sugerem que há prejuízo na atenção plena em adultos usuários de substâncias e em situação de rua, o que faz com que se suponha que essa população pode se beneficiar de intervenção que inclua o treinamento de técnicas de mindfulness.

 

Referências

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Autor correpondente:
Marina Monzani da Rocha
E-mail: marinamonzani@gmail.com

Recebido: 11.02.2019
Aceito: 27.08.2019

 

 

Contribuição dos autores: Concepção e planejamento do estudo: Daniela Prado Rocha Silva, Marina Monzani Da Rocha. Obtenção dos dados: Daniela Prado Rocha Silva. Análise e interpretação dos dados: Daniela Prado Rocha Silva, Marina Monzani Da Rocha. Redação do manuscrito: Daniela Prado Rocha Silva, Marina Monzani Da Rocha. Revisão crítica do manuscrito: Daniela Prado Rocha Silva, Marina Monzani Da Rocha.
Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito.
Conflito de interesse: Os autores declaram não haver conflito de interesse.

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