SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas
ISSN 1806-6976
SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.17 no.3 Ribeirão Preto jul./set. 2021
https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2021.166121
ARTIGO ORIGINAL
A construção de políticas públicas de saúde mental com foco no trabalhador rural*
La construcción de políticas públicas de salud mental con enfoque en el trabajador rural
Cláudia Farias Pezzini; Raimundo Nonato Cunha de França
Universidade do Estado do Mato Grosso, Tangará da Serra, MT, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: analisar a inclusão da saúde mental do trabalhador rural na construção da agenda e implementação das principais políticas públicas de saúde do território nacional.
MÉTODO: estudo de caráter transversal e interdisciplinar realiza pesquisa bibliográfica e documental, investigando o "lugar" da saúde mental do trabalhador rural na construção da Política Nacional de Saúde Mental, Política Nacional de Saúde do Trabalhador e a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e Águas.
RESULTADOS: embora avanços tenham ocorrido no âmbito nacional da saúde mental e saúde do trabalhador, a inclusão do meio rural ainda é tímida e a consideração do sofrimento do trabalhador do campo é praticamente nula.
CONCLUSÃO: o termo trabalhador rural é pouco citado nas principais políticas nacionais e sem conceito integrativo, sendo referenciado de forma fragmentada, descontextualizada e excludente no processo inicial da definição e construção das principais políticas públicas de saúde.
Descritores: Política Nacional de Saúde; Saúde Mental; Trabalhador Rural; Atenção Psicossocial.
RESUMEN
OBJETIVO: analizar la inclusión de la salud mental del trabajador rural en la construcción de la agenda e implementación de las principales políticas públicas de salud del país.
MÉTODO: estudio de carácter transversal e interdisciplinar realiza pesquisa bibliográfica y documental, investigando el "lugar" de la salud mental del trabajador rural en la construcción de la Política Nacional de Salud Mental, Política Nacional de Salud del Trabajador y la Política Nacional de Salud Integral de las Poblaciones del Campo, de la Floresta y Aguas.
RESULTADOS: aunque se han producido avances a nivel nacional de salud mental y salud de los trabajadores, la inclusión de las zonas rurales sigue siendo tímida y la consideración del sufrimiento de los trabajadores rurales es prácticamente nula.
CONCLUSIÓN: el término trabajador rural rara vez se menciona en las principales políticas nacionales y sin un concepto integrador, se hace referencia de manera fragmentada, descontextualizada y exclusiva en el proceso inicial de definición y construcción de las principales políticas públicas de salud.
Descriptores: Política Nacional de Salud; Salud Mental; Trabajador Rural; Cuidados Psicosociales.
Introdução
O atual panorama socioeconômico tem reestruturando o sentido do trabalho e ressignificado o processo saúde-doença, atingindo com vigor a zona rural brasileira. Esse meio, até então segregado e estigmatizado, tem registrado uma nova identidade mesmo diante da sua heterogeneidade. A agricultura amplia-se para além do agronegócio e é acondicionada à indústria, sendo incorporada às demandas econômicas, tornando-se importante mundialmente. Para o trabalhador, o processo de modernização passa a ser excludente por um lado e única alternativa de cidadania por outro(1-2).
Esse rural caracteriza-se pela multissetorialidade e diversidade cultural, acoplada aos padrões tecnológicos, econômicos e ecossistêmicos, mas sobretudo, distinto do ponto fundiário, produtivo e social com implicações políticas estruturais. São comunidades com modos de vida relacionados ao campo, floresta, agropecuária e extrativismo, como: camponeses; agricultores familiares; trabalhadores rurais assalariados e temporários que residam ou não no campo; assentados e acampados; quilombolas; extrativistas; ribeirinhos; outras comunidades tradicionais; dentre outros(3-4).
Na perspectiva de perfilhar esse setor no Brasil, o trabalhador torna-se peça-chave e sua atividade laboral se complexifica, configurando não somente fonte de renda, como determinante de vida, saúde, inclusão e interface territorial. Nesse viés, o trabalho detém tanto efeito protetor, promotor de saúde, como também de mal-estar, sofrimento, adoecimento e morte. Tais efeitos estão correlacionados ao isolamento social, possíveis vulnerabilidades e deterioração ambiental. O que gera demandas de saúde mental que deveriam impactar diretamente as ações governamentais e as políticas públicas(5).
O país lidera o ranking com maior prevalência de transtorno de ansiedade e 18,6 milhões de brasileiros, ou seja, 9,3% da população apresentam esse quadro. Entre 2012 e 2016, os transtornos mentais ocuparam a terceira posição entre os motivos para afastamento do trabalho, totalizando 668.927 casos. Os episódios depressivos foram a principal causa de pagamento de auxílio-doença não relacionado a acidentes de trabalho, 30,67%, seguido de 17,9% de transtornos ansiosos. Esses transtornos (como estresse grave e transtornos de adaptação, episódios depressivos e outros) somaram 79% dos afastamentos somente nesse período(6).
Portanto, a compreensão desse novo paradigma rural alinhado as questões de saúde e doença com foco no sofrimento mental é, sem dúvida, um desafio. Nesse sentido, essa reflexão baseia-se na necessidade de alvitrar uma investigação a partir da tríade mental-trabalho-rural, bem como refletir sobre a inclusão dessa demanda no debate sociopolítico a fim de contribuir para a construção das políticas públicas com foco em prevenir, acolher e tratar o portador de transtorno mental que trabalha no campo(7).
O estudo pauta-se numa discussão interdisciplinar transversal a partir da investigação comparativa dos conceitos de rural e saúde mental na análise sócio-histórica das principais Políticas Nacionais de saúde: a Política Nacional de Saúde Mental, a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas.
Tem como objetivo central analisar a inclusão da saúde mental do trabalhador rural na construção da agenda e implementação das principais políticas públicas de saúde do território nacional, partindo da problematização norteadora: qual o lugar da saúde mental do trabalhador rural na saúde pública com base na elaboração das Principais Políticas Nacionais de Saúde do Brasil?
Método
Esta é uma pesquisa interdisciplinar, bibliográfica de caráter transversal descritiva que tem como opção metodológica um estudo exploratório de abordagem qualitativa, com recorte temporal do período de 1990 a 2018. A escolha do período delimitado foi definida conforme a data da primeira lei coletada (Lei Nº 8.213, de 24 de julho de 1991) até o ano da finalização da busca de dados (2018).
Analisa de forma comparativa os temas "trabalhador rural" e "saúde mental" na construção das três Políticas Nacionais, utilizando as bases de dados SciELO (http://www.scielo.org), Cadernos oficiais publicados pelo Ministério da Saúde (http://bvsms.saude.gov.br) e Diário Oficial da União (http://www.in.gov.br/servicos/diario-oficial-da-uniao).
As etapas para a coleta de dados seguem: 1) Identificação geral: busca de legislação, portaria, normativa, lei referentes às políticas nacionais; 2) Triagem: delimitação dos temas e período; 3) Confirmação dos dados: em cadernos oficiais do Ministério da Saúde e Diário Oficial; 4) Elegibilidade: critérios de exclusão - legislações estaduais, não publicadas oficialmente e critério de inclusão - legislação federal; 5) Tabulação e Coleta final: pesquisa em cada item com novos descritores - na Política de Saúde Mental: "usuário" e nas outras duas: "saúde mental" e "trabalhador rural".
A escolha do campo federal pressupõe um panorama seguro norteador a fim de traduzir problemas candentes desde a sua implementação. O marco metodológico da pesquisa coaduna na investigação e correlação histórica, destacando a criação das principais diretrizes políticas. Ou seja, pauta-se na busca idiossincrática que regula esse tipo de pesquisa. O estudo sustenta a agenda política como principal traço, focando na identificação do tipo de problema que visa corrigir, no processo percorrido, nas arenas sociais e regras que irão modelar a decisão e a implementação das políticas públicas(8).
Resultados
No período do estudo foram encontradas o total de 197 leis, portarias e normativas federais divididas em 3 sessões, segundo cada política. Na primeira etapa é possível conferir o número de leis e portarias com o número de vezes em que o rural é citado (Figura 1).
Com relação à Política de Saúde Mental, de 123 leis e portarias apenas 8 fazem referência direta ao rural. A análise qualitativa dos termos demonstra a ausência, fragmentação, superficialidade e falta de coerência conceitual da forma que é apreciado. Seu conceito dilui-se em termos como: a) "Entidades" (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura); b) crianças com deficiência ou em "situações específicas e de vulnerabilidade": (...) do campo; c) "usuários que não têm contato com o sistema de saúde, por meio de trabalho de campo"; d) "populações vulneráveis, como: trabalhadores rurais expostos a determinados agentes tóxicos e/ou com precárias condições de vida"; e) uso de álcool dirigido à "população dos assentamentos", e f) "residentes em assentamentos da reforma agrária".
Com relação à Política de Saúde do Trabalhador, os dados estão aparentemente mais organizados numa plataforma on-line e apresentam 67 itens. Desses, apenas 10 fazem menção ao trabalhador rural. Essas referências, na maioria das citações, marcam somente a diferença do urbano e mantém a falta de definição, como por exemplo: "para trabalhadores rurais e urbanos".
Somente com a Política de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (instituída pela Portaria n° 2.866, de 2 de dezembro de 2011) é que o rural ganha notoriedade. Na análise dos 7 itens encontrados, 5 tratam do trabalhador rural. Porém, a abordagem não dá redirecionamento nas ações de assistência à saúde nem debatem a integração do campo nos serviços de saúde mental. O trabalhador rural é citado apenas como solicitação de representatividade social.
A segunda etapa de coleta de dados integra os dados anteriores, comparando o número de referência ao rural com o número de referência a saúde mental nas legislações e portarias das políticas nacionais pesquisadas (Figura 2).
Esse levantamento de dados apresenta que na Política de Saúde Mental todos os itens contemplam o conceito de saúde mental e apenas 8 faz referência ao rural ou ruralidade. Na Política de Saúde do Trabalhador, 17 itens referem saúde mental e 10 ruralidades, sendo que em geral os termos são apenas citados de forma genérica, restrito a uma condição de saúde para admissão ao trabalho e não enquanto possibilidade de sofrimento. Na Política de Saúde Integral, não há referência à saúde mental e quase todos os itens abordam a ruralidade.
Discussão
As transformações sociais operam impactos que induzem a reelaboração constante de conceitos, principalmente no campo de identidade sociocultural. Para compreender o adoecimento no trabalhado rural é necessário, sobretudo, discutir o rural. De forma geral, ele é usado como antônimo de urbano. Essa definição recebe muitas críticas, na medida que deixa de construir características importantes para focar nas carências de forma comparativa(9-10).
Algumas características consensuais são: a) agricultura não equivale a rural b) apresenta multissetorialidade e multifuncionalidade; c) densidade populacional baixa; d) e não é totalmente isolado dos espaços urbanos. Já trabalho rural, refere-se à atividade humana de diversidade econômica, de relação direta com a natureza fundamentada nas relações familiares ou familiarizadas. A valorização da terra é ampliada, pois a atividade é desenvolvida nela para subsistência da comunidade(11).
É coerente que a concepção de rural seja baseada a partir da análise de território, tendo como bojo a Geografia social. Trabalhador rural deve ser compreendido a partir da concepção territorial, um lugar de construção de relações pessoais, sociais, políticas e culturais que influenciam diretamente os modos de vida e de produção dos habitantes. No Brasil, a constituição do rural traz uma marca escravagista, legalizada até 1888. Negligência assim como o Estatuto do Trabalhador Rural, que só foi criado bem depois das leis que garantiam os direitos dos empregados urbanos(12-13).
A definição não dicotômica fundamenta uma visão ampliada. Nessa pesquisa, seguimos essa concepção de rural, incluindo as duas principais áreas da atividade agrícola do pais, a Agricultura Familiar e o Agronegócio. Um não exclui o outro e a abordagem mais universal permite compreender a interdependência e complementaridade de tais atividades. Muitas vezes, a concepção antagônica busca ideologizar a leitura numa distorção maniqueísta, que confunde ou desconhece os conceitos teóricos criando um confronto desnecessário(14).
Atualmente é possível destacar sete fatores que estão reorganizando um novo rural: a) consolidação do modo de produção capitalista na agricultura; b) processo migratório no sentido rural-urbano; c) princípios e técnicas ligadas ao padrão global de acumulação de capital; d) novas formas de ocupação da população; e) reordenação dos espaços geográficos relacionados a produção e consumo; f) novos temas relacionados ao mercado de trabalho rural; g) e a decisão sobre o que produzir passa a ser determinada externamente e interdependente de agentes econômicos(15).
Se o quadro da ruralidade brasileira foi gradativamente moldado pelo Estado e condicionado às políticas públicas, o mesmo não ocorre no âmbito da saúde mental, menos ainda no que se refere à saúde mental do trabalhador rural. Somente no Governo Vargas (1930-1945) o olhar para o adoecimento e direito do trabalhador começa a ser institucionalizado e as políticas públicas ganham contorno. Saúde e trabalho passam a construir um valor social importante, tanto que para ser usuário da saúde pública era necessário ter um emprego(16-17).
A saúde mental ainda é um estigma e nem faz parte do vocabulário dos trabalhadores rurais. Um exemplo disso é a pesquisa realizada com agricultores familiares do município de Santo Antônio do Monte/MG, que apurou desconhecimento geral. Na concepção desses trabalhadores, problema de saúde é equivalente a problemas físicos como "problema do coração" e saúde está vinculada à alimentação saudável do campo, diferentemente dos alimentos industrializados da cidade(18).
O desafio de pensar a questão do adoecimento mental do rural é enorme não só pelo estigma e desconhecimento, mas principalmente pela diversidade de características e vivência dessa população em territórios tão plurais. A questão econômica também é um fator importante, na medida em que aproximadamente 50% da população rural vive em condição precária. Mesmo que os dados venham mostrando a diminuição dessa desigualdade com um aumento significativo de renda, ainda há precarização do trabalho(19-20).
Com relação à análise das políticas públicas, é possível afirmar que o direito de uma determinada população não está garantido simplesmente por ser citada na legislação. Contudo, a frequência e a forma como uma determinada população é referida na implementação de normativas importantes pressupõem uma relevância conceitual, aponta para um lugar simbólico dentro da agenda política e marca a sua relação com o Estado.
Se por um lado, há um reconhecimento de que essa população apresenta vulnerabilidade e não se equipara ao urbano, por outro, a abordagem se encerra nessa premissa. O avanço das Políticas de saúde em termos de desinstitucionalização e implementação de serviços extra hospitalares, de base comunitária, são claramente considerados na proposta. Porém, não há especificidade do trabalhador rural e os serviços são propostos numa visão generalista e urbanizada.
A reforma psiquiátrica possibilitou um olhar diferenciado sobre o sofrimento psíquico, trazendo dignidade ao sujeito que sofre. Entretanto, uma das críticas contundentes é de que ainda carece principalmente de ações integradas, formação de recursos humanos, insuficiência de profissionais e políticas sociais. Tais aspectos respingam diretamente na área rural que apresenta mais dificuldade de acesso e compreensão dos processos da RAPS(19-21).
A desarticulação entre o trabalhador rural e a política de saúde mental fica mais evidente nessa análise. Mesmo com a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador e dos Centros de Referências de Saúde do Trabalhador, a saúde mental é só mais um item dentre tantos que pode ter nexo causal com o trabalho. Sobretudo, o que mais chama atenção é a dificuldade na própria legislação em definir essa causalidade, abordando o termo transtorno mental relacionado ao trabalho de forma genérica e de difícil definição.
Se não há uma definição por parte dos legisladores sobre a população rural, nem sobre o trabalhador rural e a relação entre adoecimento mental e trabalho não é clara, muito menos prioridade, como é possível esperar efetividade de políticas públicas nesse âmbito? A ineficiência da presença do Estado fica posta desde a concepção da sua marca fundamental, Estado como garantidor de direitos. O lastro simbólico e a precariedade da abordagem ficam incompletos e evidentes.
Uma das primeiras atividades a ser desenvolvida pela Atenção Primária em Saúde seria o diagnóstico da situação de saúde do território, incluindo mapeamento das atividades produtivas, identificação das situações de vulnerabilidade e possíveis impactos, riscos e perigos para a saúde dos trabalhadores. Na questão rural, esses objetivos são extremamente prejudicados, encontrando barreiras como: áreas mais remotas, baixa densidade demográfica, populações pequenas dispersas em vasto território, longa distância dos centros urbanos e trajetos com condições precárias(22-23).
Os avanços com relação à implementação da atenção ao bem-estar do trabalhador no sistema de saúde não debelam as críticas, principalmente quanto à falta de articulação com a rede, setorialização, falta de subsídios operacionais que contribuam para que a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador possa desempenhar seus objetivos. Além disso, falta planejamento e capacidade de resposta das equipes nos diversos níveis de atuação dos Centros de Referências de Saúde do Trabalhador(24).
Na Política Nacional mais atual, que propõe integração e atenção a comunidades mais isoladas, é possível observar uma mudança de conceito que nas políticas anteriores abordam "trabalhador rural" ser modificado para "trabalhador do campo", sem nenhum contorno de conjuntura teórica. Essa ampliação do termo inclui o máximo de usuários em atividade no campo, inclusive na convocação de vários atores para a sua formulação. A análise dos dados conserva a dificuldade de compreender o lugar do trabalhador rural portador de sofrimento ou transtorno mental dentro do sistema de saúde.
A Política de Saúde Integral amplia a discussão sobre a saúde do trabalhador rural, e marca um posicionamento positivo do Estado quanto à alteração dessa demanda. Porém, ainda não se consolida como marco regulador dos serviços de saúde, é pouco conhecida e não conseguiu implementar nenhuma ação articulada, significativa e com eficiência que provoque mobilizações e resultados territoriais. E principalmente, não contempla o tema da saúde mental do trabalhador rural.
De modo geral, a pesquisa corrobora que historicamente a zona rural tem pouca atuação governamental, principalmente no que se refere à promoção da saúde e assistência social. Essa carência é anunciada em todos os níveis da federação, com falta de atuação e atenção aos cuidados de saúde, com grande negligência ao campo da saúde mental a nível nacional(25).
Nesse sentido, mesmo com todos os avanços e mudanças paradigmáticas da atenção psicossocial, bem como das políticas públicas em saúde, a ausência histórica da saúde mental voltada a esses trabalhadores é clara na construção desse percurso. Algumas hipóteses podem estar relacionadas à dificuldade geográfica, aos estigmas e ao despreparo das equipes. Além de ter que se deslocar e se organizar de forma muito mais exaustiva, o trabalhador com sofrimento e adoecimento psíquico não tem encontrado acolhimento e se depara com a não escuta do seu modo de vida(26).
Positivamente, se articularmos a evolução das portarias que apontam o processo da reforma psiquiátrica, implementação e financiamento de novos modelos de atenção da saúde mental, com as deliberações orçamentárias e efetivação de serviços vinculados à saúde do trabalhador é possível constatar avanços importantes, acolhimento das demandas de saúde mental e saúde do trabalhador na rede de atenção básica por meio de políticas públicas instrumentalizadas, com marcos regulatórios e participação de atores de diferentes arenas.
Negativamente, as demandas do rural ainda padecem nesse processo. Não há integralidade dos temas, mesmo com a proposta de uma Política que priorize essa parte da população. Essa ausência é preocupante e pode representar: a) dificuldade de relação entre nexo causal de saúde mental e trabalho; b) desconhecimento da correlação na saúde integral; c) falta de articulação e diálogo intersetorial; d) falta de estudos epidemiológicos e registro referente ao diagnóstico de transtorno mental que corrobore a importância dessa inserção; e) ausência de dados e estudos sobre acesso da área rural às políticas públicas de saúde mental; f) falta de profissionais, capacitação e instrumentalização; g) preconceito e desinteresse pelas demandas do campo.
Com relação à saúde mental dessa população o quadro agrava-se, na medida em que a credibilidade da discussão não consegue acompanhar a elaboração da legislação. Da mesma forma, não há coerência no campo conceitual da abordagem feita pelo Estado, nem atuação de políticas específicas. Ou seja, a falta de dados na criação das políticas públicas corrobora para a invisibilidade do debate e não revela a gravidade do assunto.
Em suma, quando se fala em saúde mental se ignora o rural, quando se fala em trabalhador rural a saúde mental é citada de forma rasa e sem definição específica ou discussão de acesso aos serviços de saúde da rede básica. Constata-se, portanto, que a saúde mental do trabalhador rural não entra como prioridade e não é incorporada com robustez nas agendas das políticas nacionais.
Conclusão
Este artigo procura contribuir para o fomento da discussão desse tema praticamente ignorado, as políticas públicas de saúde mental do trabalhador rural. É possível constatar a sua invisibilidade perante o Estado, a precariedade de princípios fundamentais aos cuidados de saúde dessa população, ausência de marcos regulatórios e a falha conspícua no que tange à construção das diretrizes das políticas nacionais de saúde para o rural.
Com base no apresentado é possível afirmar que saúde mental, trabalhador e rural formam campos distintos na construção das políticas de saúde, confusos quanto a sua articulação e deslocados enquanto demanda de serviço. O detalhamento sócio-histórico da construção dessas políticas confirma que essa demanda aparece fragmentada, ambígua e sem conceito definido, no desenho dos instrumentos da rede de atenção e tratadas superficialmente dentro de paradigmas generalizantes, nem um pouco territorializadas, articuladas e integrativas.
Portanto, urge a necessidade de: a) avançar nas pesquisas sobre o tema para gerar resposta, buscando construir uma consciência coletiva sobre a necessidade de enfrentamento desse problema; b) inferir a importância de avaliar e monitorar a saúde e o sofrimento mental das comunidades rurais em que esse trabalhador está inserido; c) considerar e avaliar o acesso aos serviços dessa população e o desenvolvimento de tratamentos eficazes com monitoramento e avaliação das ações de saúde mental, repensando o lugar de acolhimento dessa demanda; d) capacitar os profissionais especialmente da rede de atenção básica e em cuidados primários que de forma clara incluam o trabalhador rural.
Cabe aos atores sociais envolvidos com o tema impulsionar a discussão nas diferentes arenas e responsabilizar os gestores a fim de assegurar a elaboração e implementação de políticas de saúde mental amplas, descentralizadas e territorializadas, fundamentalmente pelo empenho na construção de dados epidemiológicos, avaliação de demandas e integração do tratamento e dos serviços de saúde mental no sistema geral de saúde vigente.
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Autor correpondente:
Cláudia Farias Pezzini
E-mail: claudiafpezzini@gmail.com
Recebido: 29.01.2020
Aceito: 06.11.2020
Contribuição dos autores
Concepção e desenho da pesquisa: Raimundo Nonato Cunha de França, Cláudia Farias Pezzini.
Obtenção de dados: Cláudia Farias Pezzini.
Análise e interpretação dos dados: Cláudia Farias Pezzini.
Redação do manuscrito: Cláudia Farias Pezzini.
Revisão crítica do manuscrito quanto ao conteúdo intelectual importante: Raimundo Nonato Cunha de França.
Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
Conflito de interesse: os autores declararam que não há conflito de interesse.
* A publicação deste artigo na Série Temática "Recursos Humanos em Saúde e Enfermagem" se insere na atividade 2.2 do Termo de Referência 2 do Plano de Trabalho do Centro Colaborador da OPAS/OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil. Artigo extraído da dissertação de mestrado "Políticas de saúde mental com foco no trabalhador rural no Brasil: problemas e avanços", apresentada à Universidade do Estado de Mato, Tangará da Serra, MT, Brasil.