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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.4 n.2 Rio de Janeiro dez. 2004

 

ARTIGOS

 

O homem sem qualidades. História oral, memória e modos de subjetivação

 

The man without qualities. Oral history, memory and modes of subjectivation

 

 

Heliana de Barros Conde Rodrigues*

Departamento de Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com base nas problematizações desenvolvidas na linha de pesquisa da autora a história oral como ferramenta para a construção da história da Análise Institucional no Brasil , o artigo explora conceituações da memória compatíveis com a crítica dos psicologismos e sociologismos dominantes. Recorre primordialmente à idéia de memória-composição do historiador oral Alistair Thomson, exibindo seus nexos com a noção de modos de subjetivação, conforme proposta por Foucault, Deleuze e Guattari. Esta interferência permite hipotetizar a existência de relações entre a prática da história oral, as formas de coleta de lembranças e o engendramento, no presente, de futuros alternativos tanto para as subjetivações quanto para os paradigmas teóricos e/ou historiográficos.

Palavras-chave: História oral, Memória, Modos de subjetivação, Análise institucional.


ABSTRACT

Based on the problematizations developed in the author's line of research the oral history as a tool for the construction of the history of Institutional Analysis in Brazil , the paper explores some concepts of memory that are compatible with objections to psychologisms and sociologisms, which constitute the dominant perspectives in this field of study. It falls back upon oral historian Alistair Thomson’s idea of memory-composition, showing its connections with the notion of modes of subjectivation, as proposed by Foucault, Deleuze and Guattari. This interference allows the formulation of hypotheses about the relationships among the practice of oral history, the forms of collecting memories and the creation, in the present, of alternative futures for subjectivations as well as theoretical and/or historical paradigms.

Keywords: Oral history, Memory, Modes of subjectivation, Institutional analysis.


 

 

INTRODUÇÃO

A construção de uma linha de pesquisa constitui processo nada linear, marcado por convergências e desavenças teóricas, cruzamentos de trajetórias acadêmicas e existenciais, esforços intencionais e acasos surpreendentes. Há alguns anos voltada para o estudo da História da Análise Institucional no Brasil1, a ênfase que hoje atribuo, com vistas à sua efetivação, a procedimentos e reflexões ligados ao movimento da história oral decorre de uma série de circunstâncias do tipo acima referido, dificilmente sintetizáveis no escopo de um artigo.

Cumpre ao menos mencionar, no entanto, o fato de haver encontrado o paradigma de meu interesse mergulhado em histórias outras da Psicologia Social, da Psicanálise, da Reforma Psiquiátrica etc., que lhe subtraíam toda virtual singularidade. Ressalto que não se tratava de mera diferença quanto ao objeto de historicização, levando outros trabalhos, evidentemente, a incluir acontecimentos ou documentos em séries distintas daquelas que eu mesma privilegiaria. Mais do que isso, inúmeras produções preexistentes tinham por efeito, quanto à Análise Institucional, a conformação de um paradigma sem passado, em virtude da proeminência por elas concedida, nem sempre de forma refletida e crítica, ao campo interno de disciplinas ou empreendimentos atualmente dotados de maior institucionalização e/ou reconhecimento.

Sendo assim, momentos que eu hipotetizava passíveis de constituir (ou gerar) fontes para a elaboração de uma história da Análise Institucional práticas e publicações do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais  nos anos 1960/1970; experiências com comunidades terapêuticas no Rio de Janeiro à mesma época; ações formativas, editoriais e organizacionais dos analistas argentinos exilados no Brasil nas décadas de 1970 e 1980 em função do golpe militar no país vizinho etc. apresentavam-se a tal ponto pré-mapeados segundo campos outros, justamente os que se tornaram posteriormente hegemônicos ou  “vencedores”, que dificilmente minhas lembranças divergentes, tênue base em que me apoiava ao início da trajetória de investigação, seriam capazes de propiciar argumentos para “escovar a história [instituída] a contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225).

Foi uma menção eventual à história oral, por parte de uma colega pesquisadora, que promoveu um desvio de percurso ou, melhor dizendo, a afirmação de um percurso historiográfico. Os jogos de força e, primordialmente, o heurístico embaralhamento entre memória e história facultados pela história oral contemporânea levaram-me, desde então, a fazer do recurso a depoimentos por parte do historiador da Psicologia o objeto de minha tese de doutoramento (RODRIGUES, 2002) e a definir com base no mesmo procedimento a linha de pesquisa em cujo exercício me acho atualmente envolvida.

Cumpre ainda dizer, para concluir esta introdução, que enquanto a história oral é conhecida por sublinhar a presença do sujeito na história, a Análise Institucional remete a um conjunto de saberes e dispositivos em que o sujeito é radicalmente desnaturalizado, desidealizado, desessencializado; ou seja, apreendido como instituição, efeito ou resultante provisória de discursos e práticas. Neste sentido, a despeito de ser ficcional, a pequena narrativa que se segue não é alheia aos jogos de verdade relativos à posição da subjetividade no empreendimento historiográfico desafio epistemológico-metodológico-ético que começa a dar o tom (e o tema) do presente artigo.

 

PROVOCAÇÃO

Existiu, no passado, um funcionário chamado Lembrete, alcunha que era um eufemismo para cobrador de dívidas: sua tarefa consistia em  “lembrar às pessoas o que elas gostariam de ter esquecido” (BURKE, 2000, p. 89). Enquanto teóricos como Burke vêem no ato de ser um lembrete uma das responsabilidades do historiador, meus recentes estudos sobre história oral primam pela multiplicação de lembretes à história, saídos de todos os cantos filosofia, literatura, cinema, antropologia, música etc. Tanta coisa lembram esses estudos que o inconveniente cobrador me bate à porta. Traz uma pergunta-promissória vencida, dívida fatal no caso de alguém ligado à psicologia que se aventura nos canteiros da história: qual o lugar do sujeito nessa trama?

Habituado a disciplinar devedores renitentes, Lembrete tira da pasta surrada um monte de papéis, nos quais reconheço minha caligrafia. Neles andou sublinhando o que apelida assinatura do psicólogo e enumera em voz pausada: memória, desejo, inconsciente, biografia etc. Tomada por um furor nietzcheano, praguejo contra esse delegado de Mnemosine, mãe de Clio e oito outras musas, de tanto deitar-se com Zeus!  Bem diziam os gregos que, presidindo à poesia lírica, Mnemosine fazia com que os homens recordassem os heróis e seus feitos herói  psi, história feita por um  psi, resmungo inconformada...

Mas algo tenho de oferecer, caso contrário o cobrador não me sai da soleira. Tento argumentar que está equivocado: ligada à Análise Institucional, há muito “desaprendi” os essencialismos característicos de meu ofício. Pouco interessado em novidades, ele me ameaça com mais documentos desta feita, diplomas universitários com firma reconhecida. Sem outro recurso além da voz divergente, capitulo. Falo-lhe rapidamente de literatura e afirmo que, qual no título da obra de  Robert Musil, vejo sem qualidades esse homem em relação ao qual me exige competência. No entanto, receando aborrecê-lo, passo logo à promessa: apresentar o que oficialmente devo unicamente quanto à memória, desde que não seja obrigada a recorrer aos clássicos de meu campo de estudos (já me esqueci das sílabas sem sentido de Ebbinghaus e mesmo os trabalhos Bartlett não me fariam perder um minuto de sono sequer).

Farto de querelas alheias ao estritamente documental, Lembrete me faz encher de letrinhas uma porção de novos papéis...e me deixa sem paz.

 

OS TRABALHOS DA MEMÓRIA

O funcionário das burocracias acadêmicas não revela negligência quando, à primeira vista, aceita pouco em troca da enormidade que demandava: raros são os temas tão propícios a reafirmar identidades objeto psicologizado e sujeito-especialista  psi - quanto à memória.

Em inúmeros autores pesquisados durante minhas andanças pela história oral, a tentativa de historicização da dimensão subjetiva tinha por funesto resultado a emergência de arraigados substancialismos. Segundo uma fórmula que me foi há muito sugerida por um excelente professor, em várias dessas tentativas, sendo x o sujeito, algo acontece a x, mas o próprio x não acontece; ou melhor, embora varie no tempo o que se vem a representar nessa incógnita, algum lastro a própria incógnita mantém-se imune às construções do historiador. E a memória, no que conota de esteio ou pano de fundo, ocupa lugar privilegiado em tal processo. 

O filósofo Gilles Deleuze (1996, p. 92) é um dos pensadores a denunciá-lo. Embora aprecie especificamente a noção psicanalítica de sujeito, formula o que mereceria ser alçado à posição de enunciado generalizável:

a concepção arqueológica da psicanálise (...) vincula profundamente o inconsciente à memória: é uma concepção memorial, comemorativa, (...) que se refere a pessoas e objetos, pois os meios não são mais que âmbitos capazes de conservá-los, de identificá-los, de autenticá-los.

Rejeitando tal perspectiva, que compara à “tumba do faraó, com sua câmara central inerte na parte inferior da pirâmide” (DELEUZE, 1996, p. 92), convida-nos a experimentações com modelos outros, os quais variam

do deslocamento dos continentes às migrações dos povos, tudo aquilo através do qual o inconsciente cartografa o universo: (...) a forma estética já não se confunde com a comemoração de uma partida ou de uma chegada, e sim com a criação de caminhos sem memória (DELEUZE, 1996, p. 92).

De historiadores pouco afeitos ao modelo faraônico também se obtêm interessantes sugestões: Alessandro Portelli (1997), com sua memória circunstanciada e mutante; Michel Foucault (1979a), através de um saber-memória que, escapando às grandes funcionalidades doutrinárias, mostra-se apto a inventar novos futuros para o pretérito; Edgar De Decca (1999), desvelando uma memória intempestiva, ficção coletiva a puxar fios soltos do que não chegou a se atualizar, com vistas à criação de diferentes agoras; Michel de Certeau (1994), insistindo em táticas cotidianas de temporalização como resistência aos panoptismos de um espaço-vigilância; Johnson e Dawnson (1998), integrantes do Popular Memory Group, acenando com planos de consistência para a memória popular alheios aos instituídos que a menorizam como idiossincrática e privada.

Quando receia cair em subjetivismos essencialistas, todavia, a historiografia muitas vezes prefere, a esses arruinadores de corpus, a segurança dos modelos das ciências sociais, em que a estrela maior é o conceito de memória coletiva de Maurice Halbwachs. O adjetivo destina-se a evitar que a memória se torne faculdade explicável por mecanismos psicológicos. Hoje mais do que nunca, porém, reconhece-se a validade de uma antiga advertência de Marc Bloch: não basta acrescentar o termo coletivo aos monolitos da psicologia para que todos os problemas se vejam solucionados (cf. BURKE, 2000, p. 71), pois novo monolito imediatamente se ergue em substituição aos anteriores o de um sujeito coletivo ou sujeito da história. Os exemplos (e problemas) são múltiplos: representações coletivas, consciência coletiva, mentalidade coletiva etc.

Ao contrário do que afirmam certos críticos apressados, contudo, Halbwachs não pensa que grupos ou coletividades recordem da mesma maneira que sujeitos particulares: como nas mentalidades coletivas de Durkheim, a memória coletiva mais está fora dos sujeitos em lugares institucionais de construção-preservação do que partilhada entre eles de modo idêntico.

A memória tampouco deixa, para Halbwachs, de ser seletiva restringe-se sociopoliticamente o memorável nem de dar margem a negociações relativas a o que e como recordar. No entanto, a despeito da mobilidade assim sugerida, alguns julgamentos de valor revelam o quanto o sociólogo tende à manutenção do status quo: a memória coletiva é por ele vista como uma construção, mas a história escrita é dita objetiva; a nação é considerada a forma mais perfeita de grupo, o que erige a memória nacional a mais completa forma de memória coletiva.

Em Michael Pollak (1989), encontramos uma apreciação da literatura histórica relativa à memória que, tendo por ponto de partida justamente uma avaliação crítica das contribuições de Halbwachs, se afirma radicalmente construtivista. Nessas perspectivas, diferentemente da metáfora usual, os fatos sociais não são coisas. Podemos, isto sim, investigar como se tornam coisas, ou seja, de que modo se reificam ou cristalizam, através de que processos são dotados de estabilidade, duração e continuidade.

Se nos apoiarmos nas teses de Veyne (1992) acerca da revolução historiográfica empreendida por Foucault, veremos nos enfoques construtivistas a oportunidade de dizer que a memória...não existe! Não obstante, ela pode ser explicada2, contanto que se identifiquem as práticas que a instauram, levando a que determinados eventos, processos e atores, e não outros, sejam edificados como memoráveis. Aproveitando o belo título do artigo de Pollak Memória, esquecimento, silêncio -, a pergunta da história quanto à memória ganha, conseqüentemente, a seguinte forma: através de que relações nos constituímos, a cada momento, como sujeitos que recordam, esquecem, silenciam?

Pollak (1989, p. 4) vê na história oral contemporânea um movimento essencialmente anti-halbwachiano, isto é, uma denúncia do caráter “destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional”. Com isso, “a memória entra em disputa” e os objetos de pesquisa passam a ser colhidos preferencialmente onde existe  “conflito e competição entre memórias concorrentes” (POLLAK, 1989, p. 4). Parafraseando Latour (1983), é válido dizer que se procura abrir a caixa preta da memória, iluminando: as revisões de que ela é palco nos momentos críticos da luta política; as cisões sempre mutáveis entre o englobante e o minoritário; as gestões do silêncio, passíveis de representar estratégias distintas em se tratando dos dominantes (emudecimento de outras versões) ou dos dominados (possibilidade de sustentar uma coabitação); os momentos favoráveis, ou não, à emergência do marginalizado; em suma, o trabalho implicado em um  enquadramento das lembranças que se alimenta, em parte não negligenciável, do material fornecido pela ciência histórica e seus agentes especializados (POLLAK, 1989, p. 5).

A este respeito, é possível estabelecer um primeiro nexo com nosso objeto de historicização: no Rio de Janeiro, a Análise Institucional da passagem 1970/1980 foi ora silenciosa - o exílio dos argentinos tinha grande peso quanto a certas precauções, em tempos de Ditadura Militar brasileira ora excessivamente barulhenta chegando, em momentos críticos, a anunciar-se como a precursora (esquecida) de todas as posturas contestatárias no âmbito da saúde mental. As vicissitudes históricas do paradigma em muito estão ligadas a tais circunstâncias.

Prosseguindo nesta linha de reflexão, cumpre ainda renunciar à ingenuidade na aproximação a um tema espinhoso: o vínculo entre memória e identidade. A primeira vista, a ênfase em uma história vista de baixo, valorizadora dos relatos orais de lembranças, faz pensar em identidades sociais minoritárias para cuja afirmação a memória seria indispensável instrumento. No entanto, se somos efetivamente construtivistas, desmancham-se funcionalidades apriorísticas: as identidades sociais são igualmente produzidas por processos de memorabilização, deixando por vezes de ser ferramentas de luta pela expansão da diferença para se tornarem totalidades enquadrantes identidades-prisão a consumir, mais do que identidades-liberdade a inventar.

É necessário cuidado, entretanto, na análise do que está em jogo na valorização/desvalorização de palavras de luta. Bom exemplo disso se encontra na entrevista concedida, em 1977, por Michel Foucault a Bernard-Henry Lévy - então meiaoitista arrependido, recente novo filósofo3. A certo ponto, contente com o andamento do diálogo, que se encaminha à contestação de todo e qualquer naturalismo, o entrevistador apressa-se em usá-lo a favor de seus propósitos, dizendo, ironicamente: “O tema é comum à vulgata marxista e ao neo-esquerdismo: ‘Debaixo dos paralelepípedos, a natureza em festa’” (FOUCAULT, 1979b, p. 238). Estrategista sutil, Foucault retruca: “Existem momentos em que estas simplificações são necessárias. Para de tempos em tempos passar do pró ao contra, um tal dualismo é provisoriamente útil” (FOUCAULT, 1979b, p. 238). Qual Deleuze, Foucault não vê o possível como alternativa ainda não ensaiada, sendo inversa a relação: não se tem o possível antes de o haver criado no acontecimento. Porém mais adiante, quando Lévy, já menos satisfeito com o rumo assumido pela conversa, o intima a dizer se existe, ou não, um lado correto, acrescenta:

É preciso passar para o outro lado - o ‘lado correto’ , mas para procurar se desprender destes mecanismos que fazem aparecer dois lados, para dissolver esta falsa unidade, a ‘natureza’ ilusória deste outro lado de que tomamos o partido. É aí que começa o verdadeiro trabalho, o do historiador do presente (FOUCAULT, 1979b, p. 239).

Com base nessas considerações, retomemos o problema do nexo entre memória e identidade: afirmar identidades com base na memória veiculada pela oralidade é provisoriamente útil, quiçá indispensável, para eventualmente romper com as totalidades sistemático-funcionais do discurso hegemônico; permanecer neste ponto é aderir ao que, acompanhando Rolnik (1995, p. 308), denominamos “drogadição da identidade” - nova totalidade-modelo que age como pólo de captura do múltiplo e nos torna carentes consumidores de imagens.

Pollak (1989, p. 10) expõe este risco quando adverte que, por vezes, mesmo os subterrâneos da memória ganham “atores profissionalizados”, através de gestões da competência para recordar. Esses atores variam enormemente no tempo, segundo as estratégias em pauta. Durante uma entrevista no âmbito de minhas pesquisas, Gregorio Baremblitt relata ter sido convidado, pelos organizadores, a enviar um artigo destinado a livro comemorativo dos 25 anos do Grupo  Plataforma4. A tonalidade bastante crítica de seu texto teria levado ao cancelamento da publicação como um todo. Presenteia-me com uma cópia, advertindo: “Pode ser usada, mas não citada”. Percebe-se, com isso, o quanto são inseparáveis as questões éticas, político-estratégicas e epistemológicas que assediam o historiador interessado na memória e na oralidade.

Do ponto de vista ético, ouvir o minoritário em nada nos garante contra a desventura de nos tornarmos historiadores orgânicos...do subterrâneo! No âmbito político-estratégico, o documento gerado pela história oral deixa de ser tábua de salvação para os silenciados, passando a representar simplesmente o que pode ser feito, nos períodos frios da história alheios aos instantes de comoção e agitação generalizadas -, para exibir, e eventualmente contestar, os limites gerados pelo trabalho de enquadramento/controle das lembranças. Finalmente, sob perspectiva epistemológica, uma nova conceituação para a memória tem a oportunidade de emergir: ao invés de mapa com nações-identidades previamente demarcadas - memória coletiva, memória de tal ou qual grupo, memória individual -, ela ganha a feição de um deserto de areias moventes que, a cada ventania provocada pelos dispositivos em ação, revela paisagens distintas.

De todas essas vicissitudes nos fala Alistair Thomson, historiador oral ao qual recorreremos, a partir de agora, na exploração do problema da memória. Thomson é incluído de modo tão destacado porque capaz de trazer novos acordes à perspectiva construtivista, por integrar habilmente o trabalho de campo à idéia de uma memória-composição - harmonia demasiado importante para ser deixada a cargo de qualquer instrumentista especializado, psi ou não...

 

COMPONDO REMINISCÊNCIAS

Quando aspiram a analisar o fenômeno da memória, os historiadores se deparam com um território antecipadamente conquistado: psicólogos, de um lado, e cientistas sociais, de outro, apropriam-se das lembranças em uma derivação do habitual (e tão custoso) contraponto indivíduo x sociedade. Tampouco existe, por sinal, estudioso de Psicologia que, em algum momento de sua trajetória, não tenha ficado paralisado por esta oposição, em que os termos são propostos como previamente posicionados, separados e enfrentados. Com tal ponto de partida, as tentativas posteriores de reuni-los geralmente se mostram infrutíferas: os domínios instituídos de saber funcionam como obstáculos político-epistemológicos difíceis de ultrapassar.

Certas vicissitudes da história oral podem ser entendidas sob a mesma égide: fenômeno psicológico, privado e dificilmente fidedigno, a memória não é fonte confiável para a representação do passado – argumentam os tradicionalistas, defensores incondicionais da exclusividade do documento escrito como fonte histórica; fenômeno social, público e objetivável, a memória é passível de rigorosa coletivização - replicam os que para ela buscam uma conceituação de peso, ancorada nas teorias da produção sócio-cultural das lembranças. Menosprezados por ambas as tendências, os ativistas, mais atentos à relevância da memória para o empowerment de movimentos do que às querelas acadêmicas, não chegam a encontrar um lugar confortável neste mapeamento intelectual permeado de armadilhas.

Quando o australiano Alistair Thomson iniciou, na Universidade de Sussex (Inglaterra), seus estudos de pós-graduação, essas polêmicas se achavam em um momento extremamente profícuo: começava a década de 1980 e, além do apaziguamento dos documentalistas tradicionais, conseguido com o auxílio do clássico de Paul Thompson (The voice of the past: oral history, publicado em 1978), as reconceituações anunciadas pelo Popular Memory Group britânico, pelos universitários norte-americanos e pela história oral italiana tinham enorme penetração entre os jovens pesquisadores. Ainda na Austrália, aliás, Alistair Thomson participara, durante seu curso de graduação, de experiências envolvendo entrevistas. À época, interessara-se por uma narrativa de imenso impacto entre os compatriotas: a dos anzacs.

Ao menos para mim, produto de atribulados e pouco sistemáticos estudos escolares de história, a Austrália, antiga e/ou moderna, é um mistério. Talvez por reconhecer que a situação não é incomum, ao introduzir seu tema de investigação, Thomson tem por hábito evocar o filme Gallipoli5.

A película versa sobre campanha militar datada de 1915, quando os aliados tentaram tomar ao Império Turco, associado ao  Eixo, o Estreito de Dardanelos. Às tropas formadas majoritariamente por britânicos reuniram-se cerca de 60.000 australianos e 18.000 neo-zelandeses, compondo o ANZAC (Australia and New Zeland Army Corps). Embora seja considerada, pela história militar oficial, uma escaramuça menor quiçá porque mal sucedida, a campanha de Gallipoli (nome da península em que os aliados desembarcaram e a partir da qual resistiram após o fracasso na tomada de Dardanelos) auferiu grande importância para os países da Oceania:

Os soldados australianos da Grande Guerra chamados anzacs ou diggers (escavadores) - gozam da reputação de terem forjado a nacionalidade australiana através de seu ‘batismo de sangue (...). Suas realizações e características supostamente australianas - independência, espírito de igualdade, coragem, companheirismo e inabalável patriotismo - constituíram a lenda nacional mais significativa da Austrália, (...) relembrada em comemorações, histórias e filmes, e representaram o baluarte da política conservadora através de todo o século XX (THOMSON, 1997, p. 54).

Antes de se mudar para a Inglaterra, Thomson entrevistara vinte e cinco veteranos da Guerra de 1914-1918, interessado que estava em descobrir o quanto as recordações pessoais se enquadravam na lenda. Nesse primeiro momento, tanto percebeu contrastes – relatos em que romantismo e heroísmo não estavam presentes, dúvidas quanto ao companheirismo, rupturas com o nacionalismo conservador - quanto fortes entrelaçamentos - muitos depoentes contavam a história oficial como se ela correspondesse integralmente às experiências vividas. Acerca dos achados, comenta:  “Fiquei fascinado (...) e em vez de simplesmente – ou ingenuamente - contestar a lenda, eu agora queria compreender como e por que ela influenciava ou não os ex-combatentes” (THOMSON, 1997, p. 56).

Cerca de onze anos se passaram nessa busca, pois a tese de Thomson – Anzac memories: living with the legend só viria a público em 1994. Durante o período, contatos com o movimento crítico em história oral ajudaram-no a construir um original modelo de trabalho acerca da memória, capaz de escapar a alternativas disciplinares – indivíduo ou sociedade, psicologia ou ciências sociais.

Primeiro movimento do modelo: compomos – o termo é essencial - reminiscências para dar sentido à nossa vida passada e presente. Thomson reconhece que a palavra composição é ambígua, mas vê a característica como desejável: refere-se, por um lado, a uma “construção”; essa construção, ao mesmo tempo, “utiliza as linguagens e significados conhecidos de nossa cultura” (THOMSON, 1997, p. 56). Fica preservada, assim, a tensão entre o sujeito construtor e o sujeito construído, devendo as interferências entre ambos aguardar o desdobramento do argumento teórico para se verem elucidadas.

É fácil perceber, todavia, que neste primeiro movimento Thomson sublinha o peso da exposição pública ao passado: ela é básica para o processo de atribuição de sentido, trazendo à mente a tradição halbwachiana. Em linguagem de tonalidade positivista, também o sociólogo francês afirmara que o mais fácil de lembrar é o de domínio comum, ou seja, o que permite apoiar-se nas memórias de outrem.

Porém os ecos do trabalho de campo cedo se fazem sentir: Thomson adenda que  “as imagens e linguagens disponíveis usadas pelo público nunca se encaixam perfeitamente às experiências pessoais” e que estas se manifestam  “através de um desconforto latente, da comparação ou da avaliação” (THOMSON, 1997, p. 56). Jamais há completo apagamento, portanto, do que não faz sentido para a coletividade: “Incoerentes, desestruturadas e, na verdade, ‘não relembradas’, essas experiências podem (...) se manifestar em outras épocas e lugares – sustentadas talvez por relatos alternativos ou através de relatos menos conscientes” (THOMSON, 1997, p. 57).

Assim, de pesado lastro a sustentar a noção de um sujeito apriorístico - individual ou coletivo-, a memória se vai fazendo algo fluido, móvel, a oscilar em torno da relação presente-passado. Sendo a narrativa, por excelência, o campo de expressão da memória, há permanente transformação do relembrado, em função da mudança dos relatos públicos: “Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e, portanto, relembrar) e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do tempo” (THOMSON, 1997, p. 57).

Em minhas experimentações com a história oral, este primeiro movimento da construção teórica de Thomson se tornou ferramenta fundamental de compreensão. Não que eu tenha voltado, de forma sistemática, a colher depoimentos das mesmas pessoas em ocasiões distintas; mas o fato de trabalhar com a oralidade redunda, quase inevitavelmente, em substituir o contato com as traças dos arquivos pelas amizades. Como que em decorrência do procedimento, comecei a reencontrar meus entrevistados em situações alheias à pesquisa. Nessas ocasiões, conversas informais se encaminharam a tópicos adjacentes à história da Análise Institucional, exibindo curiosas relações entre o momento e a narrativa de lembranças específicas.

Para exemplificá-lo, preciso fazer belo recuo no tempo. Durante cerca de quatro anos, na passagem 1970/1980, fui membro do IBRAPSI (Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições), um estabelecimento de formação em Psicanálise e Análise Institucional que contava, como diretores, professores e supervisores, com inúmeros analistas argentinos exilados em nosso país. Àquela época, os companheiros argentinos pouco falavam do passado: à exceção das menções ao Grupo Plataforma, histórias de vida não costumavam ressoar nos espaços institucionais. Acerca desse silêncio, diferentes hipóteses podem ser levantadas: compreensível prudência em tempos de repressão; ausência de perguntas por parte dos brasileiros (devida seja a um ignorar ativo dos vínculos entre o psi e o político seja a uma respeitosa omissão); temor ao desmantelamento da autoridade teórica caso as opções conceituais exibissem sua interferência com embates político-ideológicos etc. Fosse como fosse, quando bem mais tarde, Baremblitt (1987) expôs em livro as ameaças que sofrera no Brasil, provavelmente por parte de órgãos para-oficiais de repressão, seu relato foi recebido com certa surpresa: grande parte dos integrantes do IBRAPSI desconhecia essas ocorrências.

Há cerca de três anos, momento em que a grande imprensa se encheu de notícias sobre a Operação Condor - pacto de repressão firmado entre ditaduras latino-americanas, inclusive o Brasil -, encontrei-me, durante um simpósio, com Eduardo Losicer e Osvaldo Saidón. O primeiro conversou longamente comigo sobre os anos 1970. Falou-me, em especial, das dolorosas vivências associadas a suspeitas de estar sendo seguido, de automóvel, pelas ruas do Rio de Janeiro. Impedido de narrar livremente o acontecido - via-se circunscrito, quando muito, aos companheiros argentinos igualmente exilados -, acabava, à época, por recair em penosas dúvidas sobre o quanto de real e o quanto de meramente persecutório haveria na experiência.

Já Osvaldo Saidón envolveu-me em uma deliciosa história sobre sua ida, quando recém-chegado a nosso país, a um Centro de Macumba, ocasião em que a entidade que o atendeu – segundo ele, um Exu - perguntou: “O que você está fazendo aqui?” Rimos bastante: eu lhe disse que a narrativa poderia receber o título Só Exu perguntou, visto que, a basear-se no silêncio circundante, ninguém mais parecia achar surpreendente que levas de psis argentinos se mudassem, num rabo de foguete, para o Brasil. É patente o quanto os relatos públicos sobre o passado criaram condições para essas lembranças.

Um bate-papo ocasional com Cecília Coimbra exibe configuração semelhante. Digo-lhe estar percebendo, através da prática da história oral, o quanto Pichon-Rivière, e especialmente Bleger, foram importantes na formação dos plataformistas. Com isso, entendo de um modo novo determinadas polêmicas da década de 1980: adorávamos, os brasileiros, a Análise Institucional francesa e queríamos deixar inteiramente de lado os grupos operativos e a Psicologia Institucional, coisa que os companheiros argentinos simplesmente não admitiam. Cecília me conta, então, detalhes da entrevista que fizera com Baremblitt ao tempo em que preparava sua dissertação de mestrado acerca da Psicologia Institucional (COIMBRA, 1980). Ao tomar ciência das duras críticas às concepções de Bleger contidas no trabalho, ele lhe dissera: “Você não entendeu nada. Bleger era um mestre!”. Por minha parte, pude ouvir recentemente do mesmo Baremblitt um hilariante relato – verdadeiro e/ou muito bem contado - sobre o respeitado professor, marxista de primeira hora6. Ao ver à janela de seu confortável apartamento de Buenos Aires um rapaz que fazia obras na fachada do edifício, trepado num andaime, Bleger murmurara: “É o primeiro operário que vejo há muito tempo...”. Conforme os relatos públicos, emergem diferentes composições de lembranças.

Segundo movimento do modelo de Thomson: o historiador reafirma serem variáveis as reminiscências, pondo-as agora na dependência de alterações sofridas pela  “identidade pessoal”, o que conduz a um sentido  “mais psicológico” de memória – “a necessidade de compor um passado com o qual possamos conviver” (THOMSON, 1997, p. 57).

À primeira vista, a teorização sucumbe ao rochedo psicológico-identitário, funcionalizando as lembranças em torno da necessidade de preservação de uma unidade previamente posicionada. Basta prosseguir com a leitura, contudo, para escutar acordes dissonantes: Thomson assevera que possuímos identidades, denotando o plural algo multifacetado; que essas identidades são construídas, ao longo do tempo, nas relações com os outros e conosco mesmos; e, fundamentalmente, que tal construção tem caráter narrativo - “construímos nossas identidades através do processo de contar histórias para nós mesmos (...) ou para outras pessoas, no convívio social” (THOMSON, 1997, p. 57).

Apesar disso, porém,  alguma coisa permanece preconcebida. Em nossos termos, gostaríamos de apelidá-la ideário da consonância, ilustrando-a pela seguinte proposição thomsoniana:

Reminiscências são passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes” (THOMSON, 1997, p. 57; grifos nossos).

Presumo que qualquer pessoa concordaria...e aí começa o problema: será realmente tão inabalável o vínculo entre consonância e rememoração? Não pretendo que o nexo inexista, mas uma perspectiva histórica necessita pôr em movimento, concomitantemente, tendências e modelações de tendências. Aceitando, conforme a sugestão de Thomson, serem nossas identidades construídas por meio das histórias que contamos (para nós e para os outros), julgo que a consistência memorialística que qualquer uma dessas histórias possa alcançar esteja em correlação com outras narrativas, relativas à admissibilidade e ao valor do relatado em modos de subjetivação dominantes.

É provável que um exemplo tirado da literatura seja mais capaz de dar conta desse aparente delírio imanentizador do que minha ainda tosca tentativa de conceituação. Evoco, para tanto, o romance O homem dos dados, de Luke Rinehart. Datado do final dos anos 1960, versa sobre um terapeuta nova-iorquino que escapa de uma vida medíocre, ao deixar que o risco guie sua existência: cria listas de coisas a fazer, emoções a experimentar, aspirações a perseguir e permite que o resultado do lançamento de um par de dados determine o caminho a seguir. A certa altura, o personagem principal imagina uma sociedade futura, moldada pelo mesmo procedimento, em que os pais poderiam elogiar seus filhos através de frases tais como: “Que bom, Fulaninho, você está indo muito bem na escola: até o mês passado só tirava dez e agora conseguiu uns zeros!”;  “Sicrana, você está ótima: a saia roxa destoando da blusa vermelha, e um sapato que nada tem a ver com a bolsa!”7.

Num mundo onde esses discursos fossem hegemônicos, em que predominasse o elogio do aleatório, o ideário da consonância não funcionaria como parâmetro para a composição de lembranças. Admito que nosso mundo se guia primordialmente por tal ideário, mas o historiador precisa imaginar subjetivações alternativas em imanência a mundos alternativos, caso contrário, abandonará a historicidade em benefício de alguma essência-sujeito (tendências, mecanismos, funções...). Vale dizer que nós, pesquisadores em ciências humanas, raramente somos capazes de fazê-lo, mostrando-nos aferrados às hegemonias do presente. O pior é que as usamos tranqüilamente para teorizar sobre a memória dos outros, como se apenas eles, tolos nativos, estivessem submetidos  a  mitos e ilusões...

Porém, a despeito de propor a consonância como princípio do relembrar, Thomson (1997, p. 58) admite igualmente a presença daquilo que não se harmoniza:

Nossas tentativas de compor um passado nunca são inteiramente bem sucedidas (...). A composição, por ser baseada em bloqueios e exclusões, nunca é plenamente alcançada; é constantemente ameaçada, abalada, despedaçada.

Sem a mencionar explicitamente, faz da teoria psicanalítica instrumento para entender essas identidades fragmentadas e contraditórias:

Sentimentos e impulsos reprimidos (...) são ‘descarregados’ (atravessando sorrateiramente as barreiras da coerência consciente) de forma específica – sonhos, erros, sintomas físicos e piadas ­ que permitem vislumbrar (...) os significados pessoais ocultos (THOMSON, 1997, p. 58).

Voltando a recorrer a Deleuze (1996), penso que a concepção arqueológica da Psicanálise não é capaz de salvar o segundo momento do modelo de Thomson dos essencialismos subjetivos que o assediam. Minhas ressalvas, entretanto, poderiam ser acusadas de desconsiderar a diferença entre a consciência – tendente à coerência - e o inconsciente - lugar da multiplicidade. Julgo que esta distinção tem funcionado à maneira de um gatopardismo: é preciso que tudo mude - substituindo a linguagem psicológica pela psicanalítica - para que tudo continue como está - aferrado ao subjetivo-identitário. No prefácio à edição italiana de Mille Plateaux, transcrito na versão brasileira da obra, Deleuze e Guattari (1995a, p. 8) definem ambição diversa (e bem mais radical) para um projeto construtivista:

as multiplicidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um sujeito.

Trata-se de evitar, por conseguinte, os pensamentos arborescentes, caracterizados por uma lógica binária (lei do uno que se torna dois, dois que se tornam quatro e assim sucessivamente), privilegiando os pensamentos rizomáticos, que não consistem em outro modelo, e sim em uma recusa às modelações apriorísticas, facultando o estabelecimento de conexões transversais, irredutíveis a um ponto central ou um contorno final (DELEUZE e GUATTARI, 1995b).

Mas, justamente quando tudo parece compartimentalizado e arborescente  no modelo de Thomson - às ciências sociais, o público e a regra; à psicanálise, o privado e a deriva -, o terceiro movimento surpreende:

o processo aparentemente pessoal de compor reminiscências seguras é, na verdade, um processo inteiramente público. Nossas reminiscências podem ser temerárias e dolorosas se não corresponderem às histórias ou mitos geralmente aceitos (THOMSON, 1997, p. 58; grifos nossos).

Os essencialismos desaparecem como que por encanto, embora o historiador siga manejando linguagem bastante clássica: ao que chamaríamos plano de consistência para  as recordações, denomina “reconhecimento”; ao que designaríamos como pólo de repúdio às multiplicidades, chama “alienação e exclusão”. No primeiro caso, são os dispositivos aptos, ou não, a acolher a diferença como algo capaz de possuir sentido, que farão com que virtuais reminiscências sejam experimentadas, ou não, como ameaçadoras. No segundo, cumpre acrescentar que, segundo Guattari (1987, p. 107), as formações coletivas oscilam entre pólos: o grupo sujeito – tendente a acolher o non-sense, aberto às conexões, passível de estilhaçamento - e o  grupo sujeitado - curvado sobre si próprio, pleno de medidas de proteção contra tudo que ameace sua unidade. A esse respeito, ele observa: “Não se trata (...) de considerar os fenômenos de alienação ou desalienação como coisas em si, mas antes como vertentes (...) de um mesmo objeto institucional”.

Não precisamos, entretanto, brigar por palavras: aquilo que rejeitamos no segundo movimento da teorização thomsoniana, por soar a naturalização do dissonante, desarmônico ou disfuncional, emerge agora inteiramente condicionado por dispositivos, inclusive narrativos. Apreciando nosso presente, torna-se então viável concluir, em franca aliança com o historiador australiano, que sociedades disciplinares, de controle, dominadas pela tríade mercado-mídia-militarização ou tendentes à instauração do pensamento único constroem como inconsistentes reminiscências (e subjetivações reminiscentes) que não se encaixem em seus cânones. Se alguém “sofre de reminiscências” - para utilizar o famoso enunciado freudiano -, não o faz por desarmonia ou dissonância psicológica, mas por uma composição singular em que público e privado são territórios moventes e redimensionáveis.

O terceiro movimento do modelo de Thomson está em conexão direta com o dispositivo metodológico da história oral: aquilo que os depoimentos colhidos comportam de eloqüência, segredo, oficialismo, omissão, imprecisão, envolvimento ou distorção encontra-se em uma relação complexa, transformável, tanto  com as histórias e mitos aceitos quanto com as circunstâncias da situação de entrevista – relação entrevistador-entrevistado, pergunta disparadora, reações do pesquisador, objetivos declarados (e supostos) da investigação etc. Neste sentido, a memória nem é social-coletiva nem individual-psicológica: é uma composição ou, voltando a apelar aos termos de Deleuze e Guattari, um agenciamento de enunciação. O relembrar se faz, portanto, acontecimento formado de elementos heterogêneos, ao invés de função, mecanismo, estrutura etc.

Pondo a funcionar sua ferramentaria conceitual, Thomson realizou, em 1987, uma segunda série de entrevistas com cinco dos anzacs dos quais colhera depoimentos no passado, agora explorando algumas interações-chave: entrevistador e entrevistado, lendas conhecidas e reminiscências pessoais, passado e presente, memória e identidade. A abordagem gerou “entrevistas longas e detalhadas”, nas quais os depoentes foram estimulados a “relembrar suas experiências como soldados e ex-combatentes e a refletir sobre o modo como haviam se reconciliado com seu passado dos tempos de guerra” (THOMSON, 1997, p. 59).

Através desse procedimento, Thomson arrisca-se a forjar o que aspira a descobrir: faz explícito questionamento temático, sugerindo aos entrevistados que certos aspectos de suas vidas, sobre os quais até então teria sido difícil falar, são dotados de  importância histórica. Abandonando uma neutralidade sabidamente inexistente – o dispositivo metodológico é, a seu ver, inegavelmente político -, reconhece que ajuda a reafirmar o valor de determinadas lembranças. As conseqüências variam: alguns entrevistados desconsideram o direcionamento proposto e continuam a contar histórias a seu modo, na seqüência que preferem; outros, porém, falam do medo e do sentimento de culpa durante a guerra, da angústia sentida no pós-guerra, das dolorosas recordações de companheiros mortos... Uma observação de Thomson a respeito é especialmente importante: “Vários comentavam que eu era a primeira pessoa com quem haviam comentado detalhes sobre ‘sua própria guerra’”( THOMSON, 1997, p. 59). A partir daí, conclui:

A entrevista (...) fora um acontecimento (...) em termos de verbalização e afirmação de suas memórias de guerra. A natureza da aceitação que pode ocorrer durante uma entrevista de História Oral tem um efeito importante sobre o tipo de reminiscências trazidas à tona (THOMPSON, 1997, p. 59).

Estudiosos com poucas simpatias pela história oral talvez digam que Thomson estaria melhor como psicólogo, atribuindo-lhe o exercício de uma terapia de reminiscências8. Outro de seus relatos funciona como potente desmentido da atribuição dos resultados a esta sorte de especialismo.

Fred Farrell ingressou na infantaria do exército australiano como recruta-mirim e passou por terríveis momentos, pois todos os que com ele se alistaram foram mortos nos primeiros meses de combate. Fred sofreu vários ferimentos e sentia um medo descomunal dos bombardeios. Conquanto este devesse ser um sentimento bastante comum, não o expressava aos outros soldados, dado que construíra uma auto-imagem negativa; em suas próprias palavras, “Eu não era como eles” (apud THOMSON, 1997, p. 63)

De volta à Austrália em 1919, sentia-se física e emocionalmente arrasado, a ponto de sofrer o que foi diagnosticado como um “colapso nervoso”: não tinha ânimo para nada e era atormentado por pesadelos terríveis, revivendo o terror experimentado nas trincheiras.

Fred não participava das formas de afirmação pública disponíveis nos anos 1920 – reuniões de ex-soldados, desfiles patrióticos no Dia dos Anzacs, exibição de medalhas por heroísmo. Apesar disso, através do que Certeau (1994) chamaria táticas, criou formas peculiares de celebração: escolheu para se casar o aniversário do dia em que fora ferido; deu à própria casa o nome do local onde dois de seus melhores companheiros foram sepultados. Quando finalmente conseguiu um emprego, tornou-se sindicalista e militante comunista, desenvolvendo uma análise crítica da guerra: interpretava suas experiências como as de uma vítima da rivalidade imperialista. Mesmo assim, continuava abalado por ter sentido tanto medo durante os combates e sequer com os companheiros de ação política mencionava o tema.

Tudo muda na velhice de Fred: desde o início dos anos 1970, passa a falar, dentro e fora do movimento trabalhista, sobre sua participação no conflito mundial, a freqüentar cerimônias comemorativas e reuniões do antigo batalhão, a exibir na parede da sala o certificado de dispensa, a conversar longamente com estudantes, produtores de filmes e historiadores acerca de suas vivências como anzac.  Fred Farrell não passou por nenhuma  terapia de reminiscências, prática especializada de grande penetração nos países de língua inglesa. Consoante Thomson (1997, p. 66),

conseguiu experimentar sentimentos positivos com relação a seus tempos de soldado (...) devido às mudanças na maneira como a sociedade australiana passou a relembrar a guerra. Foi particularmente influenciado pelas novas histórias (...) baseadas em relatos de soldados [que] tentavam transmitir os efeitos das condições enfrentadas na frente de combate.

Em 1987, quando foi entrevistado por Thomson pela segunda vez, Fred estava lendo um livro recém-lançado a respeito da participação australiana na batalha de Pozieres. Dizia não conseguir largá-lo, decerto porque o modo como nele se retratava a vida nas trincheiras permitia que suas lembranças ganhassem um plano de expressão, em lugar de se verem relegadas ao submundo do não-heróico, do não-glorioso, do inadmissível. Segundo suas palavras,  “antes de ler o livro sobre Pozieres eu não sabia que existiam tantas pessoas como eu” (apud Thomson, 1997, p. 67). Ou seja, “como o retrato público da participação dos australianos na guerra havia mudado, Fred Farrell pôde compor um passado para os Anzacs com o qual conseguia conviver” (THOMSON, 1997, p. 67).

 

MEMÓRIA, HISTÓRIA E TEMPO PRESENTE

O caso recém relatado mostra o quanto a história oral é parte das lutas atuais em  torno dos modos de subjetivação: em alguma medida, dela depende o repertório de memórias que terá lugar em um mundo no qual, cada vez mais, se procura gerar – na forma de consenso imbecilizante - e, pela mesma via, gerenciar aquilo que estará autorizado a fazer parte de nossa massa discursiva e experiencial. Nesta direção, novamente impressionam as semelhanças entre o tratamento que Thomson dá à memória e certas proposições de Felix Guattari. Referindo-se à subjetividade capitalística, este último afirma:

Para esse tipo de subjetividade, toda singularidade deveria ou ser evitada, ou passar pelo crivo de aparelhos e quadros de referência especializados (...). É a partir dos dados existenciais mais pessoais (...) que o Capitalismo Mundial Integrado constitui seus agregados subjetivos maciços, agarrados à raça, à nação, ao corpo profissional, à competição esportiva, à virilidade dominadora... (GUATTARI, 1990, p. 34).

Defendendo uma nova ecologia social, na qual devemos certamente incluir a memória, Guattari propõe práticas “cujo objetivo será o de tornar processualmente ativas singularidades isoladas, recalcadas, girando em torno de si mesmas” (GUATTARI, 1990, p. 34).

Envolvido com problemas análogos, Thomson (1997, p. 63) acaba por definir seu próprio trabalho como “biografia das reminiscências” - rastreamento e  recomposição da complexidade singular de histórias de vida...de lembranças! Pensar  que esta direção de pesquisa represente asséptica opção de um acadêmico constitui sério equívoco. Como advertem Guattari e Rolnik (1986, p. 199), pessoas que trabalham na produção social de subjetividades – e quem não trabalha nela? - defrontam-se com um fundamental desafio: tanto podem fortalecer modelações que restringem os processos de singularização - monopólios de saber e prática, versões oniscientes e intocáveis - quanto agir em favor de uma apropriação coletiva e autogestiva da problemática subjetiva.

Nova narrativa biográfica ajuda a visualizar essa encruzilhada. No começo dos anos 1990, Thomson escreveu um pequeno artigo para um periódico inglês. A respeito do trabalho, o editor fez um press release, mencionando fugas de soldados australianos durante a guerra. Tendo a nota chegado à Austrália, o historiador assim descreve seus efeitos:

Por acaso, eu estava lá quando isso aconteceu (...) e meu tio veio com um jornal cuja manchete da primeira página era ‘Historiador britânico ataca soldado australiano’. Eles partiram do princípio de que eu tinha de ser britânico, pois obviamente um verdadeiro australiano não criticaria australianos. Então (...) a história gerou muita raiva e preocupação, e meu pai, que havia ele próprio sido um soldado, ficou muito perturbado com esse trabalho e (...) sugeriu que eu mudasse coisas na redação e assim por diante (THOMSON, 1997, p. 81).

Thomson tem sido um dos historiadores orais mais presentes nos debates relativos às questões ético-políticas envolvidas na coleta e edição de depoimentos. Em muitos de seus trabalhos, está em pauta a análise crítica da separação entre academia e militância, associada ao fato de serem eventualmente divergentes os objetivos dos depoentes e dos historiadores9. O relato acima  adiciona, a tais problemas, o fator apropriação-recepção: apoiado nas histórias de vida dos anzacs, o artigo de Thomson criava planos de consistência para diferentes vivências da guerra, incluindo tanto a permanência quanto a fuga; o press release registrou com especial destaque o que o editor imaginava que pudesse atrair a atenção imediata do leitor; a manchete do jornal aproveitou-se de um mito nacional para montar um espetáculo de rivalidades entre australianos e britânicos; o pai do historiador se viu menorizado pela narrativa jornalística e/ou temeroso de que o filho se tornasse, por causa da pesquisa histórica, foco da hostilidade dos compatriotas.

Estas ocorrências remetem a hesitações que percorrem minhas pesquisas atuais com a história oral. É evidente que meu tema - a Análise Institucional no Brasil - não mexe com mitos de dimensão comparável ao abordado por Thomson. Em seu restrito âmbito de repercussão, entretanto, está sujeito a formas de apropriação-recepção capazes de lhe dar destino bastante diverso dos propósitos que tenho ao elaborá-lo. Estariam entre tais propósitos: singularizar os percursos da Análise Institucional, até o momento um paradigma sem passado; liberar o paradigma do habitual clichê de prática psi revolucionária, pouco propício a torná-lo ferramenta atuante nos embates do presente; escapar à ciência normalizada10, na qual modelos exemplares aparecem como dados inquestionáveis; favorecer experiências desnaturalizadoras mediante modos de historicização em que lugar de destaque é dado a concepções (de subjetividade e memória) em linha de fuga quanto a especialismos instituídos; experimentar formas narrativas onde o saber erudito e o saber das pessoas se imanentizem, compondo uma crítica em ato ao silenciamento das diferenças instaurado por teorias sistemático-funcionais relativas às práticas  psi  etc.

De boas intenções, entretanto, o inferno está cheio! Meu trabalho historiográfico se arrisca, por exemplo, a ser recepcionado sob formas tais como: afirmação identitário-doutrinária de uma analista institucional (ou dos analistas institucionais); incontido subjetivismo, pretendendo que memórias do pesquisador e de sujeitos por ele selecionados possam desmentir resultados oriundos de pesquisa supostamente mais séria ou mais pura; literatura divertida, com a qual ou sem a qual o mundo continua tal e qual... E embora eu não vá, certamente, ganhar as manchetes dos jornais, receio sobretudo as apropriações mediadoras das recepções, pois os parâmetros que venho elaborando implicam: histórias pouco enaltecedoras, além de rebeldes a grandes princípios ou categorias; histórias passíveis de incluir desventuras, equívocos ou mesmo infâmias, com conseqüente crítica (e autocrítica) por parte do pesquisador; histórias abertas ao desmentido,  às indecisões e à polifonia, envolvendo o leitor no processo de construção da narrativa. Em suma, palavras e mais palavras sobre percursos da Análise Institucional, acerca dos quais não sei se a melhor estratégia, hoje, seria o intenso ruído...ou a discrição.

 

PALAVRAS E SILÊNCIOS

Este não saber encontra razões menos no que recomendam os cânones de historicização – todo este artigo constitui uma reflexão analítico-crítica a respeito dos mesmos - do que nos eventuais manejos, por parte das forças hegemônicas na formação e nas práticas psi, de que são passíveis tais palavras. As forças mencionadas podem usar essas histórias deliberadamente inglórias para incrementar um auto-enaltecimento, obtendo, assim, novas armas para invalidar trajetórias (historiográficas, teóricas, políticas, de intervenção) que porventura as contestem.

Evoco, a esse respeito, a participação de Alessandro Portelli na X Conferência Internacional de História Oral, realizada em 1998, no Rio de Janeiro. Chamado a falar dos desafios que se colocam à história oral no século XXI, ele inverte a demanda e dedica sua exposição aos desafios que a história oral é capaz de fazer ao século que se inicia, indagando: “de que maneira a história oral pode ser uma alternativa crítica, uma presença radical no século XXI?” (PORTELLI, 2000, p. 67).

A argumentação tem início com uma análise crítica das tendências contemporâneas que buscam levar os discursos a convergir para um modo oficial de pensar:

o resultado disso é o cancelamento de todas as experiências históricas que, de algum modo, situam-se além das ideologias liberais de livre mercado. Para entrar no século XXI precisamos esquecer que houve qualquer outra coisa; todo o resto foi um crime, todo o resto foi criminoso (PORTELLI, 2000, p. 68).

Segundo Portelli, há duas maneiras pelas quais a história oral pode desafiar esse pensamento único, ambas baseadas na ferramenta da memória. A primeira implica recordar insistentemente que o século XX, embora tenha comportado inúmeras atrocidades, foi também o tempo

dos direitos civis, de Martin Luther King e Malcom X; (...) do antiimperialismo, de Ernesto Che Guevara; (...) da luta pela igualdade social e da luta, muitas vezes mal conduzida, (...) por alternativas ao capitalismo; (...) uma época em que não estamos convencidos de que os derrotados vão permanecer derrotados para sempre (PORTELLI, 2000, p. 67).

Vendo a metodologia como uma “extensão da política” (PORTELLI, 2000, p. 69), o historiador italiano apreende o problema como intrinsecamente articulado ao contraponto história versus memória. Admite que a memória pode ser ideológica, mitológica e não confiável; mas adverte especialmente que a história se tem tornado propriedade de agentes e instituições determinados:

não estamos sendo convidados a substituir uma memória muitas vezes falha e não confiável pela história científica; estamos sendo convidados a substituir a memória de vários bilhões de indivíduos que vivem neste planeta pela memória profissional de um grupo de historiadores profissionais ou pelas memórias institucionais dos centros de poder (PORTELLI, 2000, p. 69).

Neste panorama, a história oral tem um primeiro papel a desempenhar: o de enfrentar tal monopólio, já que lida com o singular, o variável, o mutável - sinais de divergência, de processos em andamento, de multiplicidade. Mais do que um lugar onde se “recorda” a história, a memória se torna, aqui, pensável (e indispensável) “como”  história (PORTELLI, 2000, p. 69).

Já a segunda forma de luta da oralidade contra o pensamento único leva principalmente em conta o fato de estarmos entrando numa era de informação total, em que as novas tecnologias, como todas as já inventadas, tendem a ser excludentes. Neste sentido, Portelli entrevê estratégias alternativas: por um lado, pode-se apelar à voz humana, insistindo na importância de que as pessoas falem umas com as outras - dispositivo nunca eliminável da metodologia (política) da história oral - e, conseqüentemente, na renovação (democrática) do diálogo. A segunda estratégia sugerida, porém, soa perturbadora, interferindo com o dilema que antes mencionamos: deve-se fazer (como?; por que?; para que ou quem?), ou não, uma história da Análise Institucional no Brasil? Pois Portelli também acredita que um dos principais desafios hoje colocados à era da informação total seja justamente o silêncio, na forma de

atestado de resistência contra a onisciência das tecnologias dominantes (...), que fazem com que os centros de poder saibam tudo sobre nós. E nós sabemos cada vez menos sobre eles (...); a informação sobre nós está cada vez mais acessível, enquanto a informação sobre quem tem a informação sobre nós está cada vez menos acessível (PORTELLI, 2000, p. 70).

Conquanto o historiador italiano ressalte que a metodologia da história oral se situa em linha de fuga quanto a esse moderno exercício inquisitorial - porque baseada na “luta por igualdade e na busca de diálogo” e em “uma defesa dos direitos das pessoas de nunca revelar tudo a respeito delas próprias” (PORTELLI, 2000, p. 70) -, reconhece que o procedimento, além de ter desenvolvido um respeito pelos silêncios, igualmente criou procedimentos para interpretar seus significados, e com isso os obrigou, inevitavelmente, a falar. Sendo assim, Portelli abstém-se de decidir por um repto primordial que a história oral deva fazer ao nosso tempo, concluindo: “um dos desafios à era da informação total e da informação como uma commodity é, de um lado, a palavra e, de outro, o silêncio” (PORTELLI, 2000, p. 71). Vale lembrar, na mesma linha, que o título da atual publicação periódica da associação internacional de oralistas é precisamente Words and Silences.

 

AJUSTE DE CONTAS

Lembrete mais uma vez me bate à porta e recebe finalmente este conjunto de  páginas, destinado a saldar minha suposta dívida. À medida que o folheia, percebo que se esboça em seu rosto um sorriso irônico mal disfarçado.

Mal ele vira as costas, porém, sinto que me reasseguro da impossibilidade de controlar, a priori, os destinos de um texto, bem como os de uma linha de pesquisa.

Assim pensando, volto, feliz, a colher perturbadoras re-lembranças.

 

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Endereço para correspondência
heliana@uerj.br

Recebido em: 01/08/04
Aceito para a publicação em: 13/10/04

 

 

NOTAS

* Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Social e Institucional - Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; integrante do Programa de Estudos e Pesquisas Clio-Psyché em História da Psicologia. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
1 Embora um trabalho histórico só deva definir seu objeto através da construção que dele realiza, tratando-se da Análise Institucional se faz indispensável, a bem da compreensão, uma apresentação mínima; caso contrário, não sendo o paradigma grandemente difundido, inexiste a garantia de uma apreensão ao menos intuitiva daquilo de que se fala. É possível pensar a Análise Institucional, em primeira aproximação, como um conjunto de saberes e práticas que remete aos conceitos e modos de ação dos socioanalistas (como René Lourau e Georges Lapassade) e/ou dos esquizoanalistas (como Gilles Deleuze e Felix Guattari). No Brasil, esses referenciais franceses geralmente se apresentam mesclados, sob formas diversas, com teorizações e formas de intervenção grupalistas, de origem sobretudo argentina, devidas a Enrique Pichon-Rivière e José Bleger. Vale ressaltar, finalmente, que as condições de existência da Análise Institucional em nosso país, destacando-se suas conexões com os campos da saúde, da saúde mental, da educação e dos movimentos sociais, lhe outorgam características singulares que não são cobertas por esta síntese, fundada exclusivamente em filiações doutrinárias. 
2 Em uma preciosa nota de rodapé, Veyne (1992, p.198) estabelece elucidativa comparação entre a fenomenologia, a perspectiva foucaultiana e o marxismo. Na fenomenologia, as coisas não são nem extramentais nem conteúdos psicológicos; existem como dados imediatos somente passíveis de descrição. Para Foucault, tampouco existem objetos naturais ou transistóricos, mas eles preservam suficiente realidade, a ponto de poderem ser explicados. A diferença entre a concepção foucaultiana e o marxismo é que este último eventualmente porta uma visão restrita de causalidade, na qual as relações responsáveis pela explicação são limitadas à última instância (produção de bens materiais).
3 Os novos filósofos, quase sempre militantes dos movimentos de 1968 e ex-maoístas, constituem tendência emergente na França a partir de meados dos anos 1970. Fazem severa autocrítica dos pressupostos supostamente totalitários presentes no antigo esquerdismo, optando pela valorização do individualismo democrático liberal.
4 Grupo de psicanalistas argentinos que, em 1971, rompeu com a Associación Psicoanalítica Argentina (A.P.A.) e, conseqüentemente, com a International Psychoanalytical Association (I.P.A.), denunciado os comprometimentos burgueses da Psicanálise institucionalizada. Gregorio Baremblitt foi membro de Plataforma e muitos dos analistas argentinos exilados no Rio de Janeiro tiveram vínculos teóricos e políticos com o grupo.
5 Datado de 1981, dirigido pelo australiano Peter Weir, com roteiro de David Williamson. Baseado no livro The broken years (1974), de Bill Gammage, e na história narrada pelo veterano C.E.W. Beans, que atuou como assistente de produção.
6 Psicoanálisis y dialéctica materialista, de José Bleger – tentativa pioneira de fundar um saber sobre a subjetividade no espaço da teoria marxista, influenciada pela Psicologia Concreta de G. Politzer, foi publicado pela Paidós em 1958. A Comissão Cultural do Partido Comunista Argentino condenou o livro, o que resultou, em 1961, no afastamento de Bleger da organização (cf. Vezzetti, 1991, p. 21).
7 Cito o trecho de forma aproximada, segundo o que dele recordo. Há muito tempo emprestei o livro a um amigo... e ele se esqueceu de devolver.
8 Prática terapêutica utilizada principalmente com pessoas idosas, enfatizando o valor das reminiscências na reavaliação de conflitos passados com vistas ao restabelecimento da identidade. Seus fundamentos estão no pensamento psicanalítico, em especial através de E.Erikson, porém a prática foi impulsionada pelo psiquiatra e pesquisador norte-americano Robert Butler (cf.Thompson, 1992, p. 210).
9 Uma apresentação detalhada desses problemas se encontra no artigo oriundo daparticipação de Thomson, em 1998, na X Conferência Internacional de História Oral, realizada no Rio de Janeiro (Thomson, 2000).
10 Ciência normalizada é expressão crítica inspirada em Prigogine e Stengers (1991, p. 220), que vêem na descrição da ciência normal por Thomas Kuhn uma concepção parcial e historicamente situada, porque limitada ao contexto das universidades modernas, nas quais, sem descontinuidade, os estudantes se transformam em pesquisadores através de comportamentos conservadores.

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