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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

La gestalt-thérapie va télle oser développer son paradigme post-moderne?*

 

A gestalt-terapia terá a ousadia de desenvolver seu paradigma pós-moderno?

 

Does gestalt-therapy will be bold enough to develop its post-modern paradigm?

 

 

Jean-Marie Robine**

Institut Français de Gestalt-thérapie

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O que me proponho a explorar neste artigo, com este título algo misterioso, são algumas das linhas de força e paradigmas que perpassam, implícita ou explicitamente, a teoria da Gestalt-Terapia, com o objetivo de delinear algumas implicações para sua prática clínica. Acredito que se pudermos compreender essas linhas de força, seremos capazes de aplicá-las melhor e, ao mesmo tempo, compreender mais facilmente os pontos-chave que dividem aqueles que promovem a Gestalt-Terapia. Eu também gostaria de ressaltar, logo de início, que não estou inteiramente satisfeito em apoiar-me no termo “pós-modernismo”, o qual está muito carregado com uma variedade de conotações; apesar disso, por carecer de um outro melhor, eu o farei, tentando especificar seus contornos e limites.

Palavras-chave: Gestalt-Terapia, Pós-Modernidade, Campo, Self, Relação Terapêutica.


ABSTRACT

What I propose to explore here, under this somewhat mysterious title, are some of the lines of force and paradigms which run implicitly or explicitly through the theory of Gestalt-therapy, with the idea of drawing a certain number of consequences for clinical practice. I believe that if we can better understand these lines of force, we will be able to apply them better, and at the same time more easily understand the lines of fracture which divide those who promote Gestalt-Therapy. I also want to stress at the outset that I am not entirely happy to be relying on this term “post-modernism”, which is far too charged with a variety of connotations; but I will make use of it all the same for want of a better one, while trying to specify what I see as the shape and limits of the concept.

Keywords: Gestalt-Therapy, Post-Modernism, Field, Self, Therapeutic relationship.


 

 

Ao ouvir termos como “epistemologia”, algumas pessoas, imediatamente, temem o pior, - o que Perls denominou em sua linguagem floreada “mind fucking” – o que significa dizer “massagear a massa cinzenta” ou “masturbação mental”. Eu espero evitar este problema, uma vez que o material que quero tratar com vocês está, para mim, muito carregado emocionalmente. Estes questionamentos surgiram do meu próprio desenvolvimento pessoal e se baseiam tanto na minha prática clínica quanto na minha reflexão teórica.

Em um estudo anterior, iniciei com uma citação de Prinzhorn (1984), retirada de seu trabalho sobre gestaltung: “Nós procuramos o significado de cada forma produzida no próprio ato de sua formação”, ou seja, o significado da forma à qual eu chego hoje, o significado das minhas conclusões e sobretudo o dos meus questionamentos podem ser encontrados no meu próprio processo, na minha própria caminhada e aos quais devo referir-me sem constrangimento.

 

A) FRAGMENTOS DE UM ITINERÁRIO

No início dos anos 80, após minha formação e um tempo de prática em Gestalt-Terapia – em um primeiro momento de modo “perlsiano” (do período de Esalen) e depois modificada pela contribuição do Instituto de Gestalt-Terapia de Cleveland (em particular dos Polsters) - eu tive a oportunidade de trabalhar por vários anos com Isadore From, um membro do grupo fundador da Gestalt-Terapia. Este repensar doloroso e radical levou-me a dar as costas firmemente para certas práticas, certas noções teóricas e certos preceitos éticos, em prol de outro enfoque, que eu já então percebia como sendo mais exigente (e eu ainda estava longe de medir todas as conseqüências). Tratava-se do enfoque de Goodman e Isadore From. Aliás, era difícil para mim distinguir a contribuição de From daquela de Goodman, pois ao longo de minhas duas formações anteriores em Gestalt, nunca havia ouvido falar em nenhum dos dois.

Nos meus primeiros meses de prática tive a impressão, com ou sem razão, de haver rapidamente assimilado os modelos perlsiano e de Cleveland, a ponto de encontrar seus limites e reconhecer seus impasses. Do mesmo modo, tenho a impressão agora, depois de 15-17 anos, de ainda não ter feito o tour completo do modelo proposto por Goodman. Agora, mantendo um pouco de distância, diria que levei de seis a oito anos para passar da <introjeção>, apenas parcialmente mastigada, para a <assimilação>. Depois, vários anos mais para ser capaz de desafiar alguns pontos e para ir além do que aqueles mestres me deram e perseguir algumas trilhas que eles abriram. Ao mesmo tempo, eu estou longe de considerar que o modelo transmitido por Goodman seja perfeito! Eu quero apenas dizer que novos caminhos foram abertos e que nos cabe identificá-los e explorá-los.

Assim, precisei de muitos anos para me desengajar de uma abordagem que considero hoje como sendo restritiva da obra de Goodman operada por Isadore From, sabendo que a minha própria leitura representa, ela mesma, uma outra forma de restrição. A restrição que noto é de ordem estrutural: a abordagem de self que From construiu se apoiava fortemente em um dos aspectos da noção de self de Perls e Goodmann - a saber, as estruturas parciais, as três funções, suas perturbações e perdas, etc. Esta é, pelo menos, a minha percepção, mais dos seus ensinamentos que de sua prática, que era mais “processual”. Ainda que ele tenha sempre recusado o termo “processo” por não considerá-lo um termo fenomenológico.

De minha leitura de Goodman nasceu, então, minha preocupação com o campo. Do campo, ao contrário, sempre tinha ouvido falar. Esse foi sempre um conceito que flutuava através do discurso dos gestaltistas, sem nunca ter sido exatamente definido ou realmente ter sido levado em conta além do nível dos slogans ou das vozes devotas.

Uma vez que eu realmente comecei a refletir, trabalhar e explorar esta área, fiquei alarmado. Uma verdadeira vertigem surgiu, ante o questionamento que me fazia e o que pressentia. A perda das certezas duramente adquiridas, ainda mais diante do fato de que nunca tinha sido fácil ser identificado com o título “Gestalt-Terapeuta” no mundo do establishment da psicologia do qual eu fiz parte por um longo período. Pelo menos as referências estruturais às quais eu podia me ligar naquele momento de fato me localizavam em um modo de pensar relativamente banalizado, institucionalizado e, pelo menos aparentemente, compartilhado pela imensa maioria de colegas. Eu pressentia que a referência ao campo poderia me isolar ainda mais, me condenando a ficar sozinho para caminhar, o que me parecia, e ainda me parece, impossível e impensável.

Em um texto de 1989, “La nevrose de champ”, escrito a partir de uma palestra dada em um encontro dedicado ao tema da transferência em Gestalt-Terapia, eu disse:

Uma coisa é certa para mim enquanto escrevo estas linhas: eu estou com medo! Eu pressinto que minhas reflexões desordenadas dos últimos tempos, que têm me levado a escrever, se levadas às últimas conseqüências, podem me levar a tal ruptura epistemológica que eu posso ficar ainda mais sozinho, permanentemente isolado daqueles que construíram um status quo confortável, em uma margem do que continua a fazer parte daquilo que se lê e aceita. Terei essa coragem?

Uma segunda trilha pessoal, aparentemente sem correlação, mas de fato profundamente conectada ao primeiro tema, foi trazida à baila pelo meu trabalho com a vergonha.

Em 1991, quando eu publiquei o primeiro (e muito teórico) estudo sobre a vergonha, que eu conhecesse, nada ou quase nada havia sido publicado em francês a respeito desse assunto, e não só no âmbito da Gestalt-Terapia. Desde então, muitos estudos floresceram, incluindo o mundo da Gestalt, pelo menos em língua inglesa. Por que a vergonha? Quanto mais eu aprofundava meu trabalho com as personalidades limite ou com as personalidades que apresentavam perturbações do narcisismo, mais a questão da vergonha se apresentava, indiretamente. Nunca, nas minhas terapias pessoais ou na minha supervisão, eu havia tratado desse tema; e, é claro, eu estava misturado com ele, sem sabê-lo. Minha própria vergonha, não consciente e não trabalhada, tomava a forma que uma dada coisa pode tomar quando não é assumida, ou seja, eu a projetei. Eu manejava a vergonha sem me dar conta dela; eu tentava escapar dela, gerando-a em outras pessoas, o que me permitiu cuidar, ou melhor, recobrir de ilusões as minhas velhas feridas narcísicas... e não se tratava de uma relevância terapêutica a toda prova nas relações terapêuticas com meus pacientes. A vergonha da qual estou falando, mais que aquela forma imediatamente sentida em certas situações embaraçosas, mais que aquela que funciona como formação reativa, refere-se a um direito à existência, ao reconhecimento que recebo ou não recebo por ser o que sou, sentir o que sinto, desejar como desejo. Assim, pude descobrir que cada vez que estou em uma situação que me faz sentir que deveria ser de algum modo diferente do que sou, estou em uma situação de vergonha. Pode-se imaginar, então, o grau de facilidade para um terapeuta, um supervisor, um formador, colocar alguém com quem ele está trabalhando em uma posição de vergonha, dando a ele a mensagem implícita de que ele deveria ser outro, diferente do que ele é e, ainda mais, em vista do fato de que este cliente, aluno ou supervisionando está vindo aqui precisamente porque ele considera que ele de fato deveria ser outro diferente do que está sendo.

A partir dessa preocupação e do trabalho que precisei desenvolver sobre este tema – estará algum dia acabado? - ficou clara para mim a importância da questão do suporte, do apoio, dando por certo que, como para qualquer gestaltista, os irmãos inimigos “suporte” e “frustração” faziam parte do instrumental metodológico oferecido por Perls. Mas é verdade que quando eu li ou assisti os protocolos de sessões que ele deixou para a posteridade, encontrei mais lá para nutrir minha competência em gerar frustração do que para gerar suporte. Até mesmo Laura Perls, que oferecia um contrapeso ao seu marido na aplicação desses “irmãos inimigos”, dando suporte para o suporte, compartilhou apenas alguns pensamentos acerca desse assunto. No entanto, eu já tinha há muito tempo me dado conta de minha irritação diante da proposta de Perls de permitir, graças à terapia, a transição do suporte ambiental para o auto-suporte – uma proposição que eu sempre tive e ainda tenho dificuldade de não considerar como um convite ao egotismo.

Não obstante – e trabalhar com a vergonha nos confronta diretamente com esse ponto – o suporte começa com a acolhida e o reconhecimento daquilo que está presente na experiência do contato na fronteira, o que significa dizer, com aquilo que está, do modo como está e não do modo como eu gostaria que estivesse ou fosse.

Também é verdade – e isso está diretamente conectado à minha história pessoal – que minha relutância anterior em me abrir para dar ou receber suporte estava relacionada a angústias de intrusão, de ser a vítima ou o agente da intrusão – assim como ansiedades de dependência, novamente tanto de depender dos outros ou de tê-los dependentes de mim. O contexto desses medos inclui toda a mitologia da autonomia e responsabilidade desenvolvida em nosso campo das Ciências Humanas, Clínicas e Sociais, particularmente ao longo do século XX, como será discutido mais adiante.

Hoje, esses medos não são mais tão fortes como eles podem ter sido alguns anos atrás: o contexto mudou, e, por conseguinte, eu aprendi a procurar e aceitar diversas formas de suporte. Indubitavelmente, o acidente automobilístico sério que sofri há pouco mais de um ano, que me confrontou com a probabilidade iminente de minha morte, contribuiu, também, para modificar meu olhar e meu contato com meu mundo de uma maneira tal, que correr esses riscos não é mais experimentado por mim da mesma forma. Algumas retroflexões desapareceram – ou foram se instalar em outros lugares!

Estas são algumas linhas de força fundamentais da minha evolução pessoal e profissional dos últimos anos. Eu me esforcei para delineá-las bem aqui porque as figuras que quero desenvolver agora têm um fundo, tanto pessoal quanto teórico, e também porque a construção teórica em si não é outra coisa além de tentar construir significado para a sua experiência, e talvez a integração dessa experiência em uma ordem maior de generalização. Os desenvolvimentos que desejo traçar com vocês aqui nascem, sobretudo, de mim mesmo e devem ser detidamente examinados nestes termos por vocês antes de fazer qualquer generalização. Se alguma dessas coisas tiver ressonância com a sua própria experiência e servir para ajudá-los a ordená-la de modo significativo, não terei desperdiçado meu tempo.

 

B) UMA RELEITURA DO <GESTALT-TERAPIA> DE PERLS E GOOFMAN, COM UMA DISTÂNCIA DE QUASE MEIO SÉCULO

Uma vez que alguém obteve certa familiaridade com nossa obra inaugural, com o passar do tempo, zonas de desconforto podem começar a aparecer. Algumas contradições podem também aparecer, e desaparecer, para aparecer mais adiante, em particular no que se refere à concepção de self. Os avanços do pensamento nas Ciências Sociais, Filosofia, Sociologia e até na História da Arte, na contemporaneidade, podem nos ajudar a identificar melhor aparentes contradições, para explicá-las e tentar superá-las. Essas possíveis referências me parecem poder ser encontradas na passagem da Modernidade para o que é agora, por convenção, denominado “pós-modernidade”.

A modernidade corresponde àquela modalidade de pensamento que, desde o Iluminismo, buscou abrir novas visões do progresso científico e tecnológico, assim como novas áreas de conhecimento que representam uma ruptura com as tradições mais ou menos obscurantistas dos séculos passados.

No nível social, por mais que os diversos pensadores, sociólogos e críticos sociais possam divergir em suas análises, todos estão de acordo quanto a conectar a modernidade com o nascimento da primazia da noção de indivíduo e de seu “efeito perverso”: o individualismo.

De fato, a modernidade é associada com o nascimento da razão e da ciência, dos direitos humanos, junto com os seus princípios de igualdade e liberdade, com a destruição do tecido social da comunidade tribal em favor do conceito de sociedade e, assim, da primazia da individualidade e o conceito de sujeito que é tão central para as ciências humanas contemporâneas.

Desse modo, é a modernidade que deu luz ao Romantismo e com ele a noção de emoção como preeminente. A atitude estética, por esse meio, substitui a atitude religiosa.

Tudo está, então, nesse ponto, no lugar certo para nutrir o interesse pelo ajustamento, pelo contato, pela criatividade, pela autonomia e pela responsabilidade, todas fortemente relacionadas à definição de sujeito.

Os anos 50-70 me parecem hoje representar o auge do que é comumente chamado modernidade; e o livro Gestalt Terapia, publicado em 1951, contém inúmeras referências a este modo de pensamento: a idéia de abordar o self por suas estruturas parciais, a ênfase na responsabilidade, a autonomia do sujeito, as referências à psicopatologia, os suportes - ainda que críticos - nas idéias Freudianas e Reichianas, uma distinção por vezes confusa entre o <self>, o <ego> ou <eu> ou <organismo>, e assim por diante. Todas essas referências à modernidade foram então ampliadas nos posteriores trabalhos de Perls, mas não nos de Goodman – o que mostra claramente qual dos dois autores desenvolveu o projeto1 em direção às idéias modernistas.

Mas ao mesmo tempo, Perls e Goodman introduziram uma mudança de rumo fundamental, que os coloca no coração daquilo que mais tarde será chamado pós-modernidade: eles deslocaram o self, o descentralizaram e o temporalizaram. Na abordagem moderna, solipsista, o si individual era reconhecido como a única realidade. Em contraste, Goodman, cuja influência levou a teoria nessa direção, colocou adiante a idéia de que self é contato. O que chamamos de self só existe quando e onde há contato. Não mais o self existiria anteriormente e se revelaria, se manifestaria, se expressaria no contato, mas sim é contato. Mais freqüentemente, o self gestaltista foi reduzido à noção de organismo, ou um de seus equivalentes: o <ego>, o sujeito, a pessoa ... Por que não é aceitável pensar em si sem pensar primeiro na continuidade? No entanto, Goodman e Perls especificam sem ambigüidade: “O self é apenas um pequeno fator na interação total organismo/ambiente, mas ele tem o papel fundamental que consiste em desenvolver e criar os significados por meio dos quais somos capazes de nos desenvolver” (Perls; Hefferline; Goodman, 1951).

Goodman faz referência a uma realidade primeira: aquilo que existe é o campo. O campo é então definido como “um organismo e seu ambiente” e o self indica os movimentos internos do campo, movimentos de integração e de diferenciação, de unificação e de individuação, de ação e de transformação etc.

Mas essa abertura expressa por Perls e Goodman não é sempre salvaguardada nem por eles mesmos nem, como era de se esperar, por seus seguidores. Pode alguém respeitá-la? Não estaríamos nós facilmente tentados a reverter o paradigma individualista ou solipsista, que escolhemos chamar “organismo”, “psique”, “pessoa”, paciente ou cliente? Não estamos tentados, por comodismo, a contribuir para o desenvolvimento da psicopatologia de uma dada entidade isolada, mesmo se aquela psicopatologia se abre a problemáticas, tais como o “ser-no-mundo”? Não estaremos nós tentados a fazer referência a um tipo de psicogênese – mesmo quando, como é mais e mais comum nos últimos anos, essa psicogênese leva em conta as primeiras relações com o ambiente, ou “relações objetais”, com o risco de reduzir o campo ambiental em geral e o Outro em particular, a uma função instrumental e etiológica, “causa” do desenvolvimento e suas perturbações?

Voltemos a um exemplo anterior: Perls, em sua última fase, enfatizou a noção de “auto-suporte” em oposição à de “suporte ambiental”. Pode-se ver claramente aqui a oposição entre self e ambiente, no mesmo ponto onde poderíamos ter achado “organismo” e “ambiente”, em seu trabalho conjunto com Goodman. Assim, se sobrepusermos “self” com “pessoa” ou “organismo”, vamos promover ou encorajar o desenvolvimento de todo tipo de suporte às capacidades, recursos próprios do indivíduo a partir de uma posição egotista.

Se, por outro lado, consideramos o self COMO contato, promoveremos ou encorajaremos a descoberta do suporte no contato com o campo (lembrando que o campo inclui, ao mesmo tempo, organismo e ambiente).

A conclusão inevitável é que nós somos confrontados com duas psicoterapias muito diferentes. Poderemos então chamar as duas pelo mesmo nome, <Gestalt-Terapia>?

Esses aspectos diferentes e contraditórios podem ser considerados como sintomas da oscilação modernidade/pós-modernidade característica desta época e não nos autorizam, no meu entender, a nos queixar de nossos autores. Inteiramente o contrário, eles me parecem ter sido capazes de dar lugar no seu pensamento para um passo significativo além do discurso predominante em seu tempo e contexto. Cabe a nós, com nossas ferramentas contemporâneas de análise, encontrar o caminho para superar certas posições pouco claras ou coerentes em seu trabalho.

 

C) UMA PAUSA EM NOSSA LEITURA DA GESTALT-TERAPIA PARA OLHAR O QUE PROPÕE A "PÓS-MODERNIDADE"

A Pós-modernidade, ainda que possa ser relativamente coerente nas mãos de um ou outro teórico, me parece estar longe de poder ser considerada hoje um movimento homogêneo. Se aprofundarmos nossa reflexão, se manifestam, com facilidade, as contradições entre os diferentes domínios que se referem a este termo. A noção de pós-modernidade na música utiliza parâmetros que são muito diferentes, até mesmo contraditórios em relação àqueles parâmetros da arquitetura, que, por sua vez, são diferentes dos das artes plásticas. Se forem incluídas as linhas de força sugeridas pela Filosofia, Sociologia, Epistemologia e outras disciplinas, poderíamos facilmente perder todo o referencial. Com a pós-modernidade surge, para retomar a feliz imagem de Max Weber, o “desejo de re-encantamento do mundo”. As formas podem algumas vezes parecer caóticas, mas a própria noção de caos, com todas as dúvidas e tensões associadas a ela, é uma parte integral do paradigma pós-moderno. Muitos desses domínios são objetos de um <de> colocado como prefixo: desconstrução, decomposição, descentralização, desregulação, dessacralização, desinformação... A pós-modernidade assinala a perda de ilusões (do progresso, da ciência, da verdade, da hegemonia e da cultura dominantes).

Em Psicologia, é comum referir-se à pós-modernidade, ou mais precisamente a um de seus ramos, o construtivismo, junto com a Teoria Gestáltica, a obra de Piaget e os trabalhos da escola de Palo Alto. Tanto na Psicologia quanto na Psicoterapia é, de fato, sem dúvida, sob um duplo impulso que a pós-modernidade ingressou na história. Por um lado, o do movimento construtivista, inclusive no próprio seio do movimento analítico (bem representado, por exemplo, por S. Viderman) e de oposição entre descoberta e construção, que se aprofundou. Por outro, o do movimento dialógico iniciado por Buber e depois por Levinás, Ricoueur e outros, nos movimentos interacionistas, intersubjetivos, conversacionais e outras variações do primado da alteridade e da relação, e eu ousaria dizer, do campo, na definição do humano.

Eu poderia evocar particularmente o impacto do pensamento construtivista como uma das correntes ativas desse tipo de pós-modernidade. Com o construtivismo, vem a constatação de que não existe outra realidade além daquela que construímos, derrubando assim o mito da objetividade em ciência e em todas as outras abordagens, incluindo as Ciências Humanas, que flertam com o método científico.

A modernidade apóia-se na premissa que poderia ser expressa no adágio: “só acredito naquilo que vejo”. O construtivismo poderia dizer, então: “eu só vejo aquilo em que acredito”.

Com o construcionismo social, uma linha de pensamento desenhada a partir do construtivismo por Berger e Luckmann (1996) e desenvolvida por Gergen (1991, 1994), a ênfase é então elaborada da seguinte maneira (me interessa, sobretudo, que se reúnam os dois ingredientes da pós-modernidade que acabo de evocar): não há realidade além daquela que construímos na relação.

Esta hipótese tem conseqüências para o psicoterapeuta, no campo de sua relação com seus pacientes. Nós nos encontramos seriamente implicados em uma co-construção de significados baseada no que vivemos na experiência da relação, das palavras que dão forma para aquela experiência, ao mesmo tempo em que a experiência as encarna.

Sob a influência de filósofos como Wittgenstein, Ricoeur, Lyotard, Gadamer (apenas para citar uns dos mais influentes), o acento aqui é na linguagem. “Os limites de nossa língua demarcam os limites de nosso mundo”, escreveu Wittgenstein em 1953 – para dizer que os limites da estrutura de nossa fala, os termos que adotamos para nós e para os outros, nossa capacidade de nos expressar a nós mesmos em palavras, vão definir nossas possibilidades de entender e explicar e vão traçar os contornos daquilo que chamamos “realidade”. Em outras palavras, as palavras que usamos e os diálogos que construímos para compreender nossa experiência constituem o que pode ser incluído ou excluído daquela experiência.

A partir daí, tudo que dissermos sobre as noções de identidade e self será afetado pela onda pós-moderna. Na concepção tradicional, romântica ou moderna, o self remete à continuidade, à profundidade de si. O “normal” e o “patológico” são mais ou menos ligados à capacidade da pessoa de estar em contato com sua identidade no nível mais profundo; e a terapia – particularmente aquelas terapias ditas “modernas” – têm a meta de capacitar o sujeito para aceder a essa condição.

Na perspectiva pós-moderna, o foco é na evolução dos contextos e uma preocupação em pôr em perspectiva vai substituir a fascinação com a história pessoal, o como as mudanças podem ocorrer vai predominar sobre o porquê das significações descobertas. Nesta perspectiva, nós somos o produto do contexto de nossas conversações e dos significados que fazemos derivar socialmente disto. E, como nossas conversações estão constantemente mudando, nossos selves estão em perpétuo movimento e terminam tão múltiplos quanto nossas situações.

Como assinala Epstein (1995), essa mudança de vocabulário, de uma perspectiva que descrevia um objeto chamado “o self” para outra que descreve o self como produto de uma interação social infinita e cambiante, exige uma mudança radical da psicologia, e conseqüentemente, da psicoterapia. O problema já não é, efetivamente, estar ou não estar em verdadeiro “contato” com quem se é verdadeiramente, com nossa identidade “profunda”, mas sim recuperar a flexibilidade em nossas ficções, nossos discursos, histórias, narrações e mitos, que utilizamos cotidianamente para nos dizer, falar sobre nós mesmos.

Com esta perspectiva, perdemos a segurança de “ter” riquezas interiores, mais ou menos exploradas ou latentes, no mais profundo de nós mesmos e, por isso, perdemos o apoio fundamental na noção de inconsciente. Perdemos as ficções da identidade e, nesta lógica, a possibilidade de um conhecimento objetivo e mensurável do outro. Perdemos a normatividade e com ela a necessidade de conhecer uma "verdade" que não é apreensível senão como ficção. Perdemos a preocupação com a medida, o diagnóstico e outras práticas articuladas mais ou menos diretamente com quaisquer normas. Perdemos o interesse por uma explicação histórica e descontextualizada. Na relação clínica e terapêutica, perdemos a posição de poder e de domínio de quem sabe ou se supõe sabedor, e por isso nossos pacientes perdem assim a vergonha de não saber, de serem manipulados pelas costas por forças escondidas ou verdades ignoradas.

Cada um de nós pode decidir se estas perdas devem ser lamentadas ou celebradas!

O que nos oferece, em contrapartida, a perspectiva pós-moderna?

Adquirimos a convicção de que qualquer teoria é uma ficção entre outras ficções, mas que é graças a ela e através dela que construímos o significado de nossa experiência. Já que o acento está posto agora na co-construção de significados na relação, voltamos a dar uma importância central às situações de conversação e, por isso, à relação, ao vínculo, à solidariedade, à comunidade, em oposição ao que oferece o paradigma individualista, em termos de autonomia e de responsabilidade pessoal. Se perdemos em independência, ganhamos em interdependência. Estamos centrados no como das experiências, muito mais do que em seu porque, na invenção criativa do ajustamento da solução que virá, muito mais que na explicação causal. “Aqui-e-agora e a seguir”, em oposição a “aqui-e-agora assim porque ontem...”. A própria terapia se converte, assim, em co-criação de um contexto e não faz mais referência a um marco imposto. (Ademais é interessante destacar do que ali onde falamos de “marco”, a clínica anglo-saxã fala de “setting”, literalmente “colocação”, “posicionamento”. Aqui também, as palavras estão carregadas de nossas ficções). Procura-se muito mais a flexibilidade do self, a maior parte das vezes abordado como processo, que a conquista de um “verdadeiro self” que fosse conveniente alcançar, e então fixar. A psicoterapia se converte numa atividade que não é somente linguagem, mas uma experiência nova. Tal experiência é baseada em duas experiências particulares colocadas em palavras também distintas, onde o conflito de duas ficções e de duas representações, bem como a fusão de seus horizontes, permite a construção de novos significados. O terapeuta é convidado, portanto, a, com sua presença, não se colocar só como um expert, mas como curioso, ingênuo e também exposto dialogicamente à subjetividade do outro.

Aqui também cabe a cada um determinar se considera esta concepção como a possibilidade de um avanço ou como uma perda.

 

D) UMA ALTERNATIVA PARA A GESTALT-TERAPIA

A partir de nosso livro fundador, “Gestalt-Terapia”, estamos confrontados então com dois paradigmas que podem parecer absolutamente contraditórios: de um lado, o modelo individualista, em que o self está proposto como fundamentalmente separado, modelo que pertence à linha de pensamento do “intrapsíquico”; por outro lado, o paradigma do campo como “primeiro motor” (para utilizar a expressão de Aristóteles), modelo que privilegia o contato e a relação. De um lado, o modelo da agressividade oral preconizada por Perls; pelo outro, o do ajustamento criativo desenvolvido por Goodman. Por um lado, o sujeito é o primeiro; pelo outro, o campo.

Entre os gestaltistas, Gordon Wheeler (1996) é, sem dúvida, um dos que levou seu próprio pensamento mais longe neste terreno, mas vamos encontrar também, ainda que em termos diferentes, uma perspectiva parecida em Lee Mc Leod (1995), em escritos recentes de Gary Yontef (1993), e inclusive em Joel Latner, a partir de seu artigo, sem dúvida insatisfatório em vários aspectos, mas que deve ser visto como o esforço de um pioneiro: “Teoria do campo e teoria de sistemas”

Num de seus artigos recentes, Wheeler propõe uma comparação esquemática dos dois grandes paradigmas que estão no centro de nosso debate de hoje. Vejamos em primeiro lugar sua apresentação do paradigma individualista (quadro 1):

 

Quadro 1: A Perspectiva do Paradigma Individualista

 

Para aprofundar a diferenciação, Gordon Wheeler põe em perspectiva os dois paradigmas, o paradigma do campo, e o paradigma individualista, através do seguinte quadro:

 

 

Se eu corroboro uma boa parte do que Wheeler desenvolveu, não estou de acordo num ponto: ele assimilou o paradigma do campo ao enfoque construtivista. É verdade que é a lógica proposta pelo construtivismo que nos permite pisar firme no terreno deste novo paradigma, com muito mais clareza do que tinham podido oferecer-nos até então a Fenomenologia ou a Psicologia da Gestalt, os precursores. Apesar disto, a meu ver, pelo menos o construtivismo permanece encravado no paradigma individualista: sua proposta “não existe outra realidade que a que cada sujeito constrói” segue sendo uma afirmação solipsista. É a passagem ao construcionismo social que modifica este enunciado para: “não existe outra realidade senão aquela que cada sujeito constrói na relação”, o que vai significar verdadeiramente, em minha opinião, a mudança de paradigma.

Vamos, então, tratar de abrir alguns caminhos para um desenvolvimento da teoria e da prática da Gestalt-Terapia nesta direção.

 

A) DA IMPORTÂNCIA DA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA

Todos os trabalhos que se inscrevem nesta tendência nos convidam a interessarmos-nos pela construção da narrativa. Nos Estados Unidos, onde o impacto da pós-modernidade está muito mais marcado do que entre nós, este interesse pela narrativa já deu lugar a novas escolas de terapia como a “Narrative Therapy”. O próprio Erving Polster, há sete ou oito anos publicou “Every person´s life is worth a novel”, que significa aproximadamente que cada vida merece ser (mais) que uma novela. Mas a capacidade de construir um relato com base na experiência de uma pessoa já tinha sido abordada, enquanto tal, por Goodman no livro “Gestalt-Terapia”: ele o evocava com o termo “atitudes retóricas”. Ainda que só as esboçasse de maneira relativamente restrita, demonstrou como estas intervêm na formação da personalidade e se constroem nas relações interpessoais, no conteúdo, e ademais, se isto fora pouco, no não- verbal do verbal (voz, sintaxe, maneira de se expressar etc).

Mas o fato de que Goodman abra este caminho quando aborda a formação da personalidade (a função personalidade) deve chamar nossa atenção: a personalidade não é mais do que um aspecto, uma modalidade do self. O self não vai ser reduzido ou rebaixado ao que chamamos personalidade, e isso é, a meus olhos, o que freqüentemente fez Polster, infelizmente, ao longo de seus diferentes escritos. Que Winnicot, Jung ou outros nos proponham uma concepção de self próxima ao que designamos função-personalidade, não suscita objeções por minha parte. É outro referencial! Mas a riqueza (a genialidade?) de Perls e de Goodman é ter-nos proposto uma construção, o self, que, quando é abordado em termos de estruturas parciais, integra: a função-isso (id), o que quer dizer que a situação dada é entendida como a mobilização da direção de um desejo e de um sentido; e a função-eu (ego), que quer dizer a capacidade de orientar o contato com o mundo e construir ali a experiência.

Ter isto presente na mente pode nos ajudar a desenvolver o trabalho da função personalidade com base nos estudos sobre a narração, mas não deve nos fazer tomar a parte pelo todo, confundindo o trabalho com a função personalidade com a restauração do self.

 

B) REVISITAR A TEORIA DO CAMPO

Com freqüência mais citada como slogan que como realidade metodológica, a teoria do campo da Gestalt Terapia, num retorno a Lewin e aos seus princípios básicos, permite-nos entrar com pé firme na “construção social da realidade” preconizada pela pós-modernidade.

O campo, ou espaço vital, é definido por Lewin como o meio psicológico total no qual uma pessoa tem a experiência subjetiva. Desenvolve-o em cinco princípios essenciais:

1 . O princípio da organização: o comportamento deriva de uma totalidade de fatos coexistentes. O sentido de um “fato isolado” depende de sua posição no campo.

2 . O princípio da contemporaneidade. É o presente o que explica, e concretamente, não se procura nada no passado como causa ou no futuro como objetivo.

3 . Princípio da singularidade. Cada situação é única, as circunstâncias diferentes e as generalizações devem, portanto, ser suspensas.

4 . Princípio do processo cambiante. A experiência é provisória, não permanente.

5 . Princípio da pertinência possível. Nada do campo pode ser excluído a priori como não pertinente, ainda que pareça tangencial.

A partir destes princípios, a teoria de campo nos permite examinar o status e as modalidades operativas entre o todo e as partes, quer dizer, considerar como as partes afetam o todo e como o todo afeta as partes. Encontramos nesta orientação um convite para não nos encerrarmos no risco sincrético oferecido pelo paradigma holográfico ou, para retomar uma teorização elaborada em companhia de meu amigo Jaques Blaize, um convite para abordar a experiência como metonímia, parte que pode ser designada como o todo mas que não é o todo, e a qual não se pode considerar sistematicamente como metáfora, tal como os enfoques organizados sobre e para a transferência têm tendência a generalizar.

É também necessário retomar muitas de nossas definições, com freqüências excessivamente implícitas, para reescrever nossos conceitos mais claramente na perspectiva do campo. Penso particularmente nas funções do self (id, eu e personalidade), muito freqüentemente tratadas como estruturas intrapsíquicas, em quanto ganhariam em pertinência, em minha opinião, se as abordassem como funções do campo. O id definido como pulsão, muito próximo do biológico, ou como dado da situação. A personalidade como inscrição dos acontecimentos do campo e como mobilização aqui e agora em função dos parâmetros da situação. O eu, que identifica e aliena, saberia fazê-lo fora de contexto, fora do meio?

Penso também nos fenômenos de fronteira como a introjeção, retroflexão, etc. Pode-se introjetar se não existe outro para segurar a colherzinha? Vai-se retrofletir se não há um terceiro para incitar a isso com mais ou menos complacência? E assim por diante.

Trata-se, portanto e em primeiro lugar, de pensar a psicoterapia como o acontecimento da interseção: o campo entre.

 

C) A TEMPORALIDADE

Diferentemente das formas habituais de pensamento que “localizam” (mesmo que metaforicamente) a psique – e empregam conceito de “tópico” como um ícone -, o sistema teórico da Gestalt-Terapia dá prioridade ao processo, à temporalidade e adiciona a dimensão “crônica” (para rearticular topos e cronos). Recordemos que a “tópica” refere-se a lugares. Este termo serve para designar o ponto de vista que, numa concepção metapsicológica, aborda os “processos psíquicos” com referência aos “lugares” do aparelho psíquico. Esta localização é, sem dúvida, ficção, e se distingue de uma abordagem topológica que é conhecimento dos lugares. Distingue-se também da “Psicologia topológica” de Kurt Lewin, que buscava seu modelo descritivo na teoria dos campos físicos, na física e na matemática topológica. Encontramos a mesma analogia entre “tópica” e “topologia” e entre “crônica” e “cronologia”. A cronologia trata de estabelecer a ordem e as datas dos acontecimentos da história, enquanto a crônica é, antes de mais nada, relato, real ou imaginário, que se esforça em refletir a “realidade” histórica ou social, seguindo a ordem do tempo. Faz já uns quinze anos, sublinhei a importância do "Kairós" que marca o instante preciso, delimitado e pode nos ajudar a compreender o nosso famoso “aqui e agora”. É o articulando com Chronos que se permite apreender melhor a duração do tempo e, a partir disto, o processo, as seqüências e outros ciclos.

A referência maior (maior e não exclusiva) da terapia gestáltica é, portanto, uma “crônica” mais que uma “tópica”. Crônica da formação das formas, crônica da experiência, crônica da organização do sentido, crônica do campo de consciência, crônica dos contatos, crônica da construção dos contatos em relações e em associações temporárias... Já que o self não pode, na experiência, ser “localizado” do mesmo modo: em plena ação ou em pleno contato, ele não é vivido do mesmo modo em fase de integração, de assimilação, de retirada, de repouso, de meditação ou de preparação.

Não vou desenvolver mais esta dimensão hoje, já tive ocasião de me estender sobre isto em minha conferência de Boston; unicamente quero insistir na necessidade de completar a modalidade ocidental e localizadora de pensamento em termos tópicos (profundo/superficial, central, em cima, embaixo, primeiro plano/segundo plano, vida interior, etc.), com uma referência ao tempo. Em minha opinião, só uma referência à temporalidade nos pode permitir superar o paradoxo contido nas diversas definições do self propostas por Perls e Goodman. O final do capítulo 8 de sua obra o pede com ênfase. Esta referência à temporalidade, a construir como “crônica”, associada ao paradigma do campo, deveria permitir-nos resistir ao canto das sereias que espreita qualquer navegante de nossa classe: o desenvolvimentismo, a biografia causal, a psicopatologia fundada nas fixações/regressões aos estágios de desenvolvimento da libido ou da relação de objeto. Vamos reler, a respeito deste tema, as páginas tão instrutivas que Lewin dedicou à regressão. Se não tiramos do centro de nossas preocupações a temporalidade como historicidade e etiologia, penso que não poderemos estar abertos para considerá-la no nível dos processos, da dinâmica e dos processos interpessoais e sociais que mantêm o sofrimento e os sintomas.

 

D) DO CONTATO À RELAÇÃO

Tenho estado sempre em desacordo com o amálgama feito por numerosos gestaltistas entre “contato” e “relação”. O essencial do livro Gestalt-Terapia fala de contato, e não fala mais do que um pouco de relação; o contato é, certamente, um componente da relação, uma parte de um todo mais complexo. As elaborações construídas por Perls e Goodman a propósito do contato não podem ser transferidas à relação, e o conjunto “relação” permanece, e permanecerá durante muito tempo, aberto. No fim dos anos 80, arrisquei-me a tratar deste conceito de contato e defini-lo independentemente do conceito de relação. O campo da época me dava pouco suporte e eu senti a necessidade de submeter meu estudo, com muita ansiedade, a Isadore Fromm, que tinha por costume não fazer quase nenhum comentário de volta. Desta vez, aceitou. Falamos durante muito tempo deste artigo, o qual ele aprovou, não deixando de advertir-me do risco que iria correr.

Hoje em dia permanecem presentes em minha cabeça os limites desse texto e do trabalho que fica por fazer para poder elaborar a articulação contato/relação. Entre outras, está a pergunta: “O que é terapêutico na relação terapêutica?”, quem nos impede de avançar nesta linha, agora que nos recusamos a responder àquela questão de forma monolítica, apelando para o manejo da transferência? Dotar-se de algumas ferramentas para avançar em “Como pensar a relação terapêutica?” em coerência com a teoria do self é a tarefa que me atribuo para os meses futuros, na perspectiva da “Universidade de Verão Inter-institutos 1998” que colocará estes temas no centro de nossa reflexão.

No âmbito deste tema da relação, gostaria de abrir um parêntese “político”. No momento em que a comunidade se mobiliza para dar ao psicoterapeuta uma definição, um status, definir o self como contato, e devido a isto enfatizar a relação intersubjetiva, abre terreno para “outra” definição do psicoterapeuta, dependente de outra maneira do saber psi preconizado pela maioria da Psicologia ou da Psiquiatria. Propor o self como instância mais ou menos interna, mais ou menos superposta à noção de sujeito, como o citamos mais acima no marco do paradigma individualista, leva o psicoterapeuta a desenvolver um “saber” objetivável, ou pelo menos a crer em tê-lo, como fazem outras psicoterapias. Sua intervenção será a de um especialista, baseado no conhecimento do objeto “humano”. Na perspectiva do paradigma pós-moderno, a ênfase será colocada, como disse durante toda minha apresentação, na co-construção dialogal da experiência. Isto já não supõe mais o especialista, mas o psicoterapeuta constituído como arquiteto da mudança, que está no centro do debate e, portanto, da definição, e isto nos permitirá constituir a profissão de psicoterapeuta, segundo os termos da declaração de Strasburgo, sobre bases diferentes e autônomas, tendo em conta a especificidade de nossa postura e de nosso enfoque. Aqui, Lewin pode contribuir para elaborar nosso pensamento com seu conceito de “pesquisa-ação”: não existe objeto de estudo independente da ação que se empreende com este último. Fecho este parêntese.

 

E) VIGILÂNCIA NECESSÁRIA EM RELAÇÃO À QUESTÃO DO SENTIDO

Recorri bastante, durante esta exposição, ao tema do sentido. Há muito tempo se consideram opostas as noções de “descoberta” e de “construção”. O tema do sentido nos leva inevitavelmente à hermenêutica, ou o estudo da interpretação, que tem o significado como objeto principal. O congresso europeu de Gestalt-Terapia, em 1998, teve como tema “Hermenêutica e Clínica”. A referência à hermenêutica gera em mim um mal-estar que, neste momento, ainda não está claro e que precisa ser melhor investigado. Paul Ricoeur (1990) pôs em evidência como “o campo hermenêutico está cindido em si mesmo”, explorado pelas contradições e pelas diferentes estratégias e, portanto, o recurso à hermenêutica pode fazer-se, certamente, segundo eixos diferentes. Mas, de novo, creio que colocar o tema do sentido no centro do problema terapêutico pode ser uma sutil fragmentação do processo. Com efeito, se a hermenêutica é parte de uma “ciência” da interpretação dos textos escritos, que se amplia rapidamente em diversas direções e no vasto tema do “sentido do sentido”, o que fica é uma conotação orientada para a interpretação dos textos escritos. Agrada-me muito a definição do humano proposta pelo filósofo belga Henri Van Lier: “o animal assinalado”, e a idéia de ler o humano como um animal recoberto de sinais está longe de ser desinteressante. Mas o que interessa saber é se a psicoterapia deve ser abordada, em primeiro lugar, como decodificação ou como construção. Creio – é uma questão de fé - que a Gestalt-Terapia se constrói mais sobre o conceito de experiência, e, baseando-nos nisto, o sentido não é mais do que um dos constituintes da experiência.

Seguramente, qualquer que seja o apelo, à hermenêutica, à pós-modernidade, às teorias das relações de objeto, à referência psicanalítica ao inconsciente, à transferência ou a outros conceitos, à fenomenologia ou à Psicologia da Gestalt (e poderia seguir), não podemos escapar à coerência epistemológica, que é facilmente esquecida pelos pesquisadores. Não se pode passar impunemente de uma disciplina a outra, de um sistema de pensamento e de referências a outro, sem correr o risco da cegueira que se segue à fascinação.

 

F) A EXPERIÊNCIA

A experiência vivida (do alemão, erlebnis), que designa o aspecto subjetivo de um acontecimento, tal como o sujeito o toma atualmente numa significação pessoal, individual e concreta, parece-me o único conceito organizador da subjetividade e da diferenciação no campo.

Permitam-me ler algumas linhas de Erwin Strauss, esse célebre psiquiatra de orientação fenomenológica que, a partir do fenômeno do suspirar, publicou em 1952 uma magnífica “Introdução a uma teoria da expressão”:

Infelizmente,a experiência imediata é inefável; não se conhece por si mesma, não porque seja inconsciente, senão porque não é refletida. Como uma Bela Adormecida que deve esperar o Príncipe que romperá o sortilégio, a experiência imediata deve esperar a quem esteja suficientemente dotado do poder das palavras para poder levá-la à luz. Mas no momento em que isto se realiza, a experiência está ameaçada por outro perigo (STRAUSS, 1952).

E o autor desenvolve então o impacto da tradição, da formação, da interpretação, dos estereótipos e dos preconceitos, no momento em que se coloca em palavras a experiência verdadeira e, portanto, da necessidade de não confundir a experiência com a consciência que se tem dela ou com o sentido que se lhe dá.

Strauss (1952) continua: “Experiência é sinônimo de ‘experiência-do-mundo’ e de ‘experiência-de-um-mesmo-no-mundo’. Está orientada em direção ao outro; mas não se tem a experiência do outro sem relação a um si-mesmo, e vice-versa. Esta relação não é um composto de duas partes, Eu e o Mundo; só existe como um todo”.

Lewin tinha dito que os fatos humanos “dependem não da presença ou ausência de um fator ou de um verdadeiro número de fatores abordados isoladamente, senão da constelação (estruturas e forças) do campo específico abordado como totalidade”.

Nesta dialética do contato do campo e no campo, da expressão do campo e no campo, da palavra do campo e no campo, pela dinâmica complexa das afirmações e das inclusões, das ressonâncias e da empatia, eu me vejo guiado pelo campo para fazer-me definir a psicoterapia como a experiência de tornar-se aparente a partir do encontro com o outro.

 

CONCLUSÃO

Tratei neste trabalho de citar como o pertencimento à referência modernista podia ser diferente do pertencimento à referência pós-moderna e algumas de suas conseqüências no terreno da Gestalt-Terapia. O filósofo J. F. Lyotard (1979), que foi o primeiro a escrever numerosos ensaios sobre estes temas, examinou cuidadosamente o conceito de pós-modernidade. Destaca que esta pós-modernidade implica uma referência à modernidade. “Pós” não significa verdadeiramente ruptura com relação ao que lhe precedia, mas ao contrário, implica, de certo modo, uma continuidade e significa que tudo isso se encontra impregnado dentro da modernidade. Para um gestalt-terapeuta familiarizado com o conceito de “pós-contato”, esta idéia é fácil de compreender, já que o pós-contato não é uma experiência independente do contato; faz parte do contato, é uma modalidade concreta, uma etapa temporária da construção de uma gestalt específica, a saber, a da desconstrução por assimilação. A pós-modernidade que citei aqui, com todas as reticências ligadas ao termo, deve ser considerada, portanto, como prolongamento e recomposição, e não como ruptura. Esta é, ademais, a direção na qual pesquisava Mc Leod (1995) no artigo já citado, ainda que eu não compartilhe todas as suas conclusões.

Também, e às vezes de maneira difusa, é precisamente o que parece se produzir no livro de Perls e Goodman: trataram de combinar e de tornar dialético em seu capítulo “teoria do self” algumas das modalidades de teorização que surgem da Modernidade, com outras que pertencem à filosofia pós-moderna. Isto foi possível graças a uma dialética da temporalidade que podemos captar nesta concepção, mas para fazê-lo precisamos de tempo e de muitas conversas! As poucas reflexões esboçadas aqui são um convite à reflexão compartilhada e não a um dogmatismo, seja qual for. No fundo, o convite da pós-modernidade é sobretudo um convite ao desconstruir. O ceticismo que se liga à realidade e à verdade se amplia em direção ao conhecimento, ao poder, ao self, à linguagem..., que não são interpelados na maioria das vezes e que servem para legitimar e perenizar nossa cultura ocidental. Os indivíduos constroem suas realidades e as realidades são mantidas pela interação social que, por sua vez, confirma as crenças, que têm, aliás, origem social. A pós-modernidade pode tranqüilizar-nos em relação a nossa necessidade de certezas, e nos permite rebater a novidade no já conhecido. É possível sair e ir ao encontro do desconhecido? Angústia! Recordemos o título do relato psiquiátrico romanceado de Hannah Green, que gostava de citar Perls: “Nunca te prometi um jardim de rosas”.

 

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Endereço para correspondência
Jean-Marie Robine
E-mail: jm.robine@wanadoo.fr / gestalt-ifgt@gestalt-ifgt.com

Recebido em: 13/06/05
Aceito para publicação em: 29/06/05

 

 

NOTAS DO TRADUTOR

* Este artigo foi traduzido por Mônica Botelho Alvim, Doutoranda em Psicologia Clínica na UnB - Universidade de Brasília; Mestre em Psicologia Social e do Trabalho – UnB. Membro da Diretoria do Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília. Professora no Curso de Psicologia da Universidade Católica de Brasília. E-mail: alvim@contatopsi.com.br.
** Diretor do "Institut Français de Gestalt-thérapie" Co-fundador e coordenador da GTin, Gestalt-Therapy International Network.Psicoterapeuta e didata pelo "Syndicat National des Praticiens de la Psychothérapie"Membro do "Collège européen de Gestalt-thérapie et directeur des "Cahiers de Gestalt-thérapie".Ex-presidente da EAGT - European Association for Gestal-Therapy Membro do comitê de redação do International Gestalt Journal.
1 Aqui o autor se refere ao livro Gestalt-Terapia, que, segundo ele, traria idéias modernistas e pós-modernistas.

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