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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.5 n.1 Rio de Janeiro jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Falando de morte com adolescente

 

Speaking about death with adolescents

 

 

Cláudia Fernanda Rodriguez*; Maria Julia Kovács**

Universidade de São Paulo - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A adolescência é um período de risco para mortes inesperadas. O objetivo deste estudo foi verificar a relação entre o tema da morte e a educação utilizando o vídeo “Falando de Morte com o Adolescente” (KOVÁCS; ESSLINGER;, BROMBERG; VAICIUNAS; MARQUES, 1999), enfocando o tema do limite entre o prazer e a autodestruição. Objetivou-se criar espaços de comunicação entre adolescentes e educadores sobre a morte. Utilizando questionários, procurou-se verificar se o vídeo abordava o tema de maneira adequada para os jovens. Participaram 16 profissionais e 48 adolescentes de duas escolas da cidade de São Paulo. Na opinião dos adolescentes, o vídeo favoreceu a reflexão, entretanto esperavam um filme com cenas mais chocantes e reais. Sugeriram a inclusão de temas sobre como enfrentar a morte e não tanto como esta pode ser provocada. Alguns profissionais demonstraram receio que certas cenas do vídeo estimulassem atos autodestrutivos, diferentemente dos jovens.

Palavras-chave: Adolescente, Morte, Comunicação, Comportamentos autodestrutivos.


ABSTRACT

In adolescence there is a high risk to the occurence of unexpected deaths. This study investigates death and the relation to education using the video “Speaking about death with adolescents (KOVÁCS, ESSLINGER, VAICIUNAS,BROMBERG & MARQUES). The main issue in the video is the frontier concerning auto-destruction and pleasure. The objective of this study was to observe how adolescents and education professionals discuss death. Questionnaires were used to verify if the video stimulated the communication about death to adolescents. 64 participants were chosen in 2 schools in São Paulo, Brazil, 16 professionals and 48 students. Most adolescents considered that the video stimulated reflection about various issues about death, but they expected more real and shocking scenes. Suggestions were made to include issues about death itself, how to cope in death situation and not what causes death, because they have this information. Some professionals fear that the images shown in the video may stimulate self destructive behavior in opposition to what the adolescents thought.

Keywords: Adolescents, Death, Communication, Auto-destructive behaviors.


 

 

1. INTRODUÇÃO

1.1 O tema da morte

O tema da morte, hoje em dia, é visto como tabu, é ocultado e visto como assunto “impronunciável”, mas a sua comunicação é vista como necessária para o enfrentamento das situações de perda. Porém, observa-se uma falta de preparo para isso.

Atualmente, com o incremento das técnicas médicas (não negando a sua importância) o homem não aceita sua finitude. Os séculos XX/XXI trazem a representação de “morte invertida”, ou seja, escondida, vergonhosa e vista como o grande fracasso da humanidade (KOVÁCS, 1992). Condena-se a expressão da dor, esta sendo vista como sinal de fraqueza, exigindo-se força e controle dos indivíduos, podendo resultar num processo de luto mal-elaborado e em doenças psíquicas.

Quando a criança perde um familiar, falar sobre a morte pode aliviá-la, facilitar a elaboração do luto e sua relação com o adulto. Se este reforça a negação da perda, fica difícil para a criança passar para as outras fases do luto: anseio e protesto (raiva e desejo de encontrar o morto), desespero (afastamento de pessoas e atividades, apatia, depressão) e a recuperação e restituição (retomando as atividades da vida.) Portanto, o esclarecimento é visto como essencial para o enfrentamento da morte (RAIMBAULT, 1979 & TORRES, 1999).

1.2 O Adolescente

A adolescência é objeto de inveja, admiração, felicidade, sonhos de liberdade e, ao mesmo tempo, objeto de medo, desconfiança, insegurança, e desordem. Kovács (2003) aponta que os jovens almejam realização pessoal, amorosa e vocacional. Estão no auge da vida, dirigem sua energia psíquica para a construção do seu lugar no mundo e a consolidação da sua identidade. Assim, normalmente, não existe espaço para se pensar em desconstrução ou morte.

Dolto (1990) aponta que a adolescência pode ser vista como a morte da infância, ou seja, um período de mutações e abandono de identificações infantis, quando ainda não existe uma maturidade para enfrentar a vida adulta. Assim, ocorre a perda de algo já conhecido e a angústia frente ao novo, podendo despertar medo, solidão e tristeza, sendo necessário um tempo de elaboração.

Segundo Erikson (1968/1987), a crise da adolescência é um efeito da sociedade. Para este autor, a rapidez das mudanças na modernidade torna problemática a transmissão de tradições de pais para seus filhos adolescentes. Estes podem ter que se inventar e se constituir sem referências estáveis. A vivência do adolescer vem se agravando, pois os jovens encontram dificuldades na busca de uma base segura, na qual possam estabelecer seus ideais como ser único e singular (JUNQUEIRA, 2000).

Deixando a infância, o adolescente sai de um lugar seguro e protegido e entra num mundo no qual a vida não é mais tão perfeita e, dificilmente, mostra-se próxima do que idealizou. O jovem percebe o quanto é penoso crescer. Mas poder reconhecer estas mudanças faz parte da vivência de um ser responsável e livre para fazer escolhas. Esta liberdade pode ser vista como o maior ganho quando se deixa de ser criança e este poder de decisão pode ser um aspecto central na busca de comportamentos que conduzam à vida ou à morte.

1.3 Por que o tema da morte é tão importante para os adolescentes e as estatísticas de mortalidade na adolescência

Adolescentes já sabem o que pode provocar a morte e que esta é irreversível, mas, às vezes, parece que preferem ignorá-la, realizando ações arriscadas que buscam reafirmar o quanto são poderosos. A prática de rachas, esportes radicais sem proteção, as afrontas agressivas a grupos rivais, as fugas de casa, a pichação de muros e monumentos, os distúrbios alimentares, a liberdade sexual e o uso de drogas lícitas e ilícitas ilustram como adolescentes desafiam a morte para se aproximar da idéia que possuem de vida (ESSLINGER; KOVÁCS, 1999).

Carvalho (2002) aponta que o uso de drogas por adolescentes ocorre, muitas vezes, por curiosidade, desejo de desafiar limites, tentativas de fugir da realidade em que vivem ou pertencer a grupos. Além disso, o acesso às drogas mostra-se bastante facilitado nos ambientes de convívio dos jovens nos dias atuais.

Na adolescência ocorre o auge da suposição da imortalidade, ou seja, a morte como possibilidade pessoal está distante. Paradoxalmente, a adolescência é um período de alto risco para a ocorrência de mortes inesperadas. Uma possível explicação para isso é que, na busca dessa identidade, o adolescente testa e acaba por ultrapassar seus limites. Para muitos, não é permitido sentir medo, principalmente dentro do grupo.

Atualmente, com a expectativa de vida elevada e com o avanço das técnicas médicas das sociedades modernas, as mortes de jovens devem ser consideradas “perdas injustificadas”. As estatísticas mostram dados alarmantes sobre o aumento da mortalidade entre adolescentes, principalmente relacionadas com acidentes e mortes violentas. Dados da UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) mostram que os homicídios e acidentes de transportes causaram mais da metade (55,5%) das mortes de jovens brasileiros entre 15 e 24 anos em 2002. Nessa faixa etária, 39,9% das mortes ocorridas deveram-se a homicídios (sendo 93,8% em homens) e 15,6% (83,5% em homens) a acidentes de trânsito, aéreo e em água.

O sociólogo da UNESCO, Júlio Jacobo Waiselfisz, responsável pela pesquisa, destacou que as causas externas (que envolvem homicídios e acidentes) assumiram um registro na mortalidade juvenil que antes era ocupada por epidemias e doenças infecciosas.

A partir desses dados, acredita-se que os óbitos por causas não naturais são, em grande parte, passíveis de prevenção. Reflexão, compreensão e investimento de adultos, pais, responsáveis, profissionais de saúde e educação são necessários para se poder lidar com as peculiaridades da vida, da saúde, do adoecer e do morrer dos adolescentes.

É fundamental que se propiciem espaços de diálogo com os jovens. Carvalho (2002) aponta que, quando existe uma discordância da família ou dos educadores em relação às decisões tomadas por um adolescente, é importante que se explicite esta divergência, expondo, por exemplo, as possíveis conseqüências ou implicações de seu comportamento. Daí a necessidade de transmitir aos jovens referências, regras e limites. Além disso, nesta tentativa de comunicação, é importante que pais e educadores reflitam e expressem seus próprios limites e reconheçam desejos e expectativas, mesmo que conflitantes. Estes aspectos podem ser decisivos na formação de opinião dos adolescentes. Os pais e educadores deveriam, assim, envolver os jovens na tomada de decisões e assuntos a serem discutidos, apresentando razões para o que solicitam, relacionando as esferas do ensinar e do aprender. Dessa forma, as ligações afetivas com a família e demais grupos não deveriam ser vistas como obstáculos a serem superados, e sim, como forças que favorecem o desenvolvimento dos adolescentes.

1.4 O Projeto “Falando de Morte”

O Projeto “Falando de Morte” (KOVÁCS; ESSLINGER; VAICIUNAS; BROMBERG; MARQUES, 1997/2004) faz parte do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Esta pesquisa teve como objetivo verificar como os adolescentes se relacionam com o tema da morte e para isso utilizou-se o vídeo “Falando de Morte com o Adolescente” (versão 1999), que faz parte do projeto citado acima. Alguns aspectos desta pesquisa resultaram em modificações desse vídeo, que foi re-lançado em 2003, e contribuíram para um aprofundamento sobre a discussão do tema da morte com adolescentes e profissionais de educação.

Este projeto visa a abordar aspectos de grande importância para refletir sobre o tema da morte e expõe a idéia de que a morte se tornou um interdito no século XX/XXI, ou seja, algo banido da comunicação entre as pessoas (ARIÈS, 1997). Porém, neste mesmo período, a TV introduz diariamente, em milhares de lares, cenas de morte, violência, acidentes e doenças, e estas são presenciadas por crianças e jovens, sem a mínima possibilidade de elaboração, visto que este veículo de comunicação possui um ritmo propositalmente acelerado (KOVÁCS, 2003). Ao mesmo tempo que crianças e jovens convivem diariamente com essas imagens, eles são “poupados” pelos adultos de comentários e discussões, pois isto poderia “entristecer” ou “traumatizá-los”. Embora essas mortes estejam tão próximas, pode ocorrer um grave distúrbio na comunicação entre os adultos e as crianças e os adolescentes, denominado “conspiração de silêncio”.

Distante de uma perspectiva da proposição de receitas, pretendeu-se criar um espaço de facilitação da comunicação entre crianças, adolescentes, adultos, idosos, famílias e profissionais de saúde e educação diante desse tema tão complexo e presente. Esta comunicação e possibilidade de troca pode ser muito importante no alívio do sofrimento.

O projeto “Falando de morte” compõe-se de quatro vídeos:
“Falando de Morte com a Criança” – Lançado em 27 de agosto de 1997;

“Falando de Morte com o Adolescente” - Lançado em 27 de agosto de 1999 e Re-lançado em 26 de junho de 2003;

“Falando de Morte com o Idoso”- Lançado em 8 de março de 2002.

“Falando de Morte com os Profissionais de Saúde” – Lançado em 7 de dezembro de 2004.

Nesse estudo, utilizou-se o vídeo “Falando de Morte com o Adolescente”, versão 1999. Este vídeo procura se adequar à linguagem do jovem, focando principalmente os comportamentos autodestrutivos (KOVÁCS, 2003). Um dos pontos principais apontado pelo material é que o limite entre o prazer e a autodestruição é uma linha frágil, que se rompe diante do exagero e da irresponsabilidade, podendo se transformar em morte.

 

2. OBJETIVOS

a) Observar como adolescentes se referiam à morte após assistirem ao vídeo “Falando de morte com o Adolescente”.

b) Investigar se o vídeo abordava o tema de maneira adequada para os adolescentes, segundo o ponto de vista deles.

 

3. MÉTODO

3.1 Participantes e local da pesquisa

Participaram desta pesquisa adolescentes do Ensino Médio e profissionais de duas escolas da cidade de São Paulo. Da escola A participaram 16 adultos: o diretor, a coordenadora pedagógica, professores, profissionais de saúde, pais de alunos e 11 adolescentes com idade média de 16,1 anos. Da escola B participaram 37 adolescentes.

3.2 Da coleta de dados

a) Material: Vídeo “Falando de Morte com o Adolescente” (1ª versão - 1999, 15 minutos de duração).

b) Questionário

Como o estudo se propôs à obtenção de dados que trouxessem reflexão sobre a relação dos adolescentes com o tema da morte, buscou-se o registro de opiniões, dúvidas e questionamentos dos jovens que assistiram ao vídeo. Em ambas as escolas eles assistiram ao vídeo e responderam a um questionário elaborado de acordo com os objetivos da pesquisa:

 

 

c) Procedimentos

As pesquisadoras fizeram um contato inicial com as escolas e seus profissionais. Foram explicados quais eram os objetivos da pesquisa no contato com os adolescentes. Em seguida, distribuíram-se aos alunos as autorizações para a participação nas atividade, informando-se que a participação deles era voluntária e que esta pesquisa se referia ao tema da morte e a adolescência.

Depois dessa apresentação, os alunos foram convidados a assistir ao vídeo “Falando de Morte com o Adolescente” e, após sua exibição, responderam ao questionário. Foi aberto então um espaço para que os adolescentes expressassem suas opiniões e reflexões sobre o vídeo, suas vivências e experiências com a morte. Os nomes dos adolescentes foram mantidos em sigilo e os temas que surgiram nos questionários foram abordados por categorias.

 

4. APRESENTAÇÃO E COMPREENSÃO DOS DADOS

4.1 Relato das visitas às escolas e das impressões no contato com os adolescentes e profissionais de saúde e educação

Os contatos estabelecidos com as duas escolas que participaram do projeto já trazem questões importantes para reflexão. O contato com a escola A foi feito no segundo semestre de 2001, tendo sido o projeto analisado, discutido e aceito pela direção. A equipe da escola sugeriu que o trabalho fosse realizado no início de 2002 por ser uma época com menos atividades dentro da escola e pediu para que o contato fosse restabelecido no início de fevereiro quando, então, seria realizada a pesquisa.

Em fevereiro, foi feito novo contato e marcada uma reunião, na qual estariam presentes as pesquisadoras, a coordenadora pedagógica e o diretor. A reunião se iniciou com a coordenadora e o diretor demonstrando um grande interesse pelo tema da morte e a sua abordagem na escola. Acharam interessante a inserção do vídeo nas atividades pedagógicas, depois de terem lido o projeto e assistido ao material. Ambos alegaram que há cenas interessantes no vídeo, porém demostraram receio quanto a partes com cenas “mais fortes”, pois não sabiam avaliar as conseqüências de se mostrar, para os adolescentes, situações de risco, principalmente quando estas parecem acrescentar aos jovens informações sobre como realizar atos perigosos. Expuseram sua preocupação em relação a certas cenas “chocantes” do vídeo, como, por exemplo, as que envolvem uso de drogas e a cena de suicídio. Referiram-se a dúvidas de que se os jovens assistissem a estas cenas, poderiam ser incitados a cometer tais atos. Também demonstraram preocupação em relação à opinião dos pais dos alunos em relação ao tema da morte e à apresentação do vídeo.

A partir do levantamento das questões, as pesquisadoras apontaram que realmente há cenas fortes no filme, mas que o propósito é de favorecer discussões. Sabiam também que havia crítica quanto à linguagem usada em algumas partes do vídeo. Este era o objetivo principal da pesquisa: saber a opinião dos adolescentes sobre o vídeo, já que este fora elaborado principalmente para eles e até então só havia a apreciação de adultos.

A partir desta reunião, foi sugerido que as pesquisadoras estivessem presentes na reunião com o Conselho de Escola, para que fosse tomada uma decisão sobre a possibilidade ou não de exibirem o vídeo para os adolescentes. Na reunião com o Conselho, as pesquisadoras expuseram o projeto e os objetivos desta pesquisa. Foi esclarecido que o vídeo não visava substituir o contato com amigos, familiares e profissionais, podendo ser um facilitador na reflexão e debate entre os adolescentes sobre o tema da morte.

Foram levantadas algumas críticas pelos participantes desta reunião, entre as quais a de que o vídeo não mostrava o processo de morrer do adolescente e sim o que provocava a morte; que o material continha cenas violentas e mostrava formas de como se matar de maneira eficiente, como por exemplo, a cena do suicídio e da utilização de drogas. Na opinião destes profissionais, o vídeo funcionaria como uma instrução de uso, podendo ensinar os adolescentes a se matarem. Alguns profissionais apontaram que o vídeo não discutia o prazer envolvido no uso das drogas, apresentando um discurso moralista, pouco eficiente, no ponto de vista deles.

A partir destas pontuações, as pesquisadoras discutiram com os presentes a seguinte questão: É possível ensinar alguém a se matar? Realmente há cenas chocantes no vídeo, mas será que este fato impediria que fosse exibido para adolescentes? Será que estes teriam a mesma opinião que os adultos?

Os adultos presentes concordaram que as cenas consideradas como chocantes não eram mais violentas do que as da TV ou de filmes a que os adolescentes assistiram. Reconheceram a importância das discussões antes e depois da exibição do vídeo, visando à contextualização do tema da morte para esta população. A discussão sobre o tema da morte é necessária, pois está muito presente na vida dos adolescentes. Não se observa espaço de reflexão sobre a morte nas escolas e, mesmo quando ocorrem mortes de alunos ou professores na escola, os profissionais de educação não se sentem preparados para abordar a questão. Após votação, foi aceita a exibição do vídeo para os alunos da escola.

Os adolescentes manifestaram sua opinião após a exibição do vídeo e disseram que esperavam cenas mais chocantes, já que este tratava do tema da morte. Quando souberam que o vídeo era sobre o assunto “morte”, esperavam cenas mais reais, algumas delas pareciam artificiais na visão deles. Afirmaram que o texto do vídeo é bom e faz refletir sobre os temas abordados. Entretanto, esperavam um filme mais “forte”, que chocasse mais, sobre maneiras de se enfrentar a morte e não tanto como esta pode ser provocada, pois isso eles já sabem ao verem cotidianamente a violência exibida na TV, nos noticiários e filmes. Quando se perguntou se algumas cenas do vídeo não eram muito chocantes, mais particularmente as cenas da tentativa de suicídio e do uso de drogas, eles disseram que não, pois já as tinham visto várias vezes. O Projeto “Falando de Morte” mostra cenas fortes com um texto que sugere reflexão sobre as cenas violentas que são vistas diariamente na TV, aí sem a mínima possibilidade de elaboração.

Assim, se observou algo muito diferente do que foi apontado pelos educadores; o temor por parte destes de que algumas cenas do vídeo levassem os adolescentes a atos autodestrutivos. Constatou-se que tudo o que foi mostrado no vídeo os jovens já tinham visto e que este instrumento foi considerado muito bom para facilitar a discussão de temas relativos à questão da morte. Essa discrepância na opinião dos educadores e dos adolescentes leva a uma reflexão importante no que concerne às ações educativas, pois, havendo esta diferença, elas podem não atingir seus objetivos. Além disso, tendo o vídeo sido criticado na reunião com o conselho, apenas alguns profissionais não recomendaram a sua exibição. Algumas hipóteses podem explicar a diferença de opiniões entre educadores e adolescentes:

a) receio dos educadores em relação à abordagem do tema da morte no contexto escolar, já que este não é um trabalho desenvolvido com freqüência e que necessita de subsídios teóricos e práticos; b) receio em relação à opinião dos pais sobre o tema, já que este não faz parte da grade curricular; c) oferecer cuidado aos alunos se houver mobilização de emoções. Penso que, antes de impedir um trabalho nesse sentido deve-se, primeiramente, propiciar espaços para ouvir o que os jovens têm a dizer sobre o tema.

Na escola B, o contato foi estabelecido com a coordenadora pedagógica e, de imediato, houve um grande interesse pelo tema. Destacou-se que as questões levantadas pelo projeto são trazidas pelos adolescentes para a escola e para os professores, como, por exemplo, a questão das drogas, dos comportamentos autodestrutivos, da violência e do medo da morte.

Ficou evidente a diferença que ocorreu no contato com as duas escolas participantes. Enquanto na escola A houve o receio em relação à exibição do vídeo, na escola B os profissionais de educação buscavam a realização deste trabalho com seus alunos. Apesar desta diferença no contato com as duas escolas, não foram percebidas diferenças relevantes entre os alunos, no que concerne às respostas aos questionários.

4.2 Resultados obtidos nos questionários A

A amostra da escola A incluiu adolescentes e profissionais de educação e saúde. Na escola B, os questionários foram aplicados somente nos adolescentes. Os dados obtidos foram analisados em conjunto.

A maioria dos adolescentes participantes gostou do vídeo. Acharam que era explicativo ao abordar o tema da morte, de forma clara e com diversidade de situações; além de retratar questões importantes da adolescência, da realidade atual e as formas possíveis de autodestruição. Foi apontado que o vídeo poderia ter mostrado, também, as razões que levam à autodestruição dos jovens. Este é um ponto fundamental que deve ser explorado nas discussões com eles. O adolescente, de maneira geral, já tem recursos cognitivos para compreender as características mais importantes da morte como a irreversibilidade e a universalidade, e conhecimentos de lógica formal que permitem estabelecer relações de causalidade. Por outro lado, acredita estar distante da morte num período da vida com intensas mudanças e expressões de conflitos de sentimentos.

Um dos pontos principais que marcam a adolescência é a ligação entre o “aproveitar a vida” e o “desafiar, vencer a morte”, ou seja, o limite frágil que existe entre o prazer e a autodestruição, que pode se romper diante do exagero e da irresponsabilidade, ocasionando a morte. Sobre os aspectos que mais chamaram a atenção no vídeo, foram citados: a) as cenas de uso de drogas e acidentes de trânsito; b) os depoimentos; c) a perda rápida da vida e formas de evitamento; d) a frase que encerra o vídeo; e) o que pode levar um jovem a morrer; f) a experiência da perda de um amigo adolescente; g) a cena do suicídio.

Para os profissionais, o que mais chamou a atenção foram as cenas fortes do vídeo, como por exemplo as do suicídio com armas e objetos cortantes, que poderiam incitar os adolescentes a tais atos.

Sobre partes do vídeo que poderiam ser modificadas, a maioria dos adolescentes em ambas as escolas disse que “não sabia” ou que “não mudaria nada”. Alguns incluiriam cenas mais “verdadeiras”. Um adolescente apontou que o vídeo poderia mostrar mais as razões do porque de não usar drogas. O alto uso de drogas nesse período pode ser visto como uma forma de anestesiar as angústias, incertezas e inseguranças, mas pode também ser uma busca de viver a vida intensamente e, nesse sentido, desafiar a morte. Esta mesma hipótese pode estar relacionada aos altos índices de acidentes de carro envolvendo adolescentes.

Os profissionais sugeriram que fossem retiradas as cenas envolvendo o suicídio. Foi sugerida a inclusão de depoimentos e diálogos, que poderiam permitir uma maior identificação dos jovens e o aprofundamento de algumas cenas. O aprofundamento dos temas pode ser realizado nas discussões posteriores à sua exibição, em debates, atividades didáticas regulares ou especiais no contexto escolar.

Sabe-se que o suicídio tem grande impacto e deixa marcas eternas nos sobreviventes. O livro “Longas cartas a ninguém” (1998), de Julio Emílio Braz, relata como o suicídio de um jovem, tido como ídolo, marca os amigos adolescentes que não conseguem entender as razões para tal ato. A adolescência corresponde a um período no qual ocorrem altos índices de tentativas de suicídio. Corresponde a uma morte de maneira brusca e inesperada, sendo difícil de se elaborar, já que desperta uma forte culpa, uma sensação de abandono, impotência e uma dificuldade de desligamento por parte dos familiares e amigos que ficam. No Brasil, nota-se um aumento considerável de tentativas de suicídio entre os jovens. Cassorla (1991, p. 69) enfatiza que podem ser fatores suicidas os aspectos melancólicos da adolescência e a natural impulsividade deste grupo: “tendência a atuar, num curto-circuito de pensamento, transformando em ação”.

Alguns temas foram indicados para inclusão no vídeo: gravidez de adolescentes; chacinas; influências sociais que determinam o comportamento do adolescente; as fases do luto; e a inclusão de adultos nas cenas do enterro.

Foram sugeridas mudanças em relação à linguagem do filme. O tom moralista do texto e a citação de clichês foram revistos e algumas imagens foram rearranjadas na segunda versão. A narrativa do vídeo passou a ser feita por um jovem, permitindo uma maior identificação dos adolescentes.

Poucos participantes disseram não ter tido nenhum contato direto com a morte. Um jovem lembrou que não soube confortar um amigo numa situação de perda e que isso deixou marcas fortes.

Ao responder se conversam com amigos ou familiares sobre comportamentos que podem levar à morte, a maioria dos participantes disse que conversa com a família, filhos e amigos quando conhecem algum jovem que está apresentando comportamentos autodestrutivos, como por exemplo, o uso de bebidas alcoólicas e direção perigosa e/ou consumo de drogas em festas e shows. Deve-se refletir como é a “qualidade” dessas conversas, se envolvem um tom moralista, informativo ou acolhedor. Um adolescente disse que não precisa pensar nisso, pois o que mais quer no momento é viver; outro afirmou que já sabe tudo o que é certo e errado. Percebe-se aqui a suposição da imortalidade e a negação da morte. Faz parte do modo de ser de alguns jovens acreditar que podem “enganar” a morte, como “heróis invencíveis”. Portanto, ressalta-se a importância fundamental da comunicação dos adolescentes com amigos e familiares sobre comportamentos que podem levar à morte, já que, com isso, pode haver esclarecimento de muitas dúvidas, minimizando suas angústias.

Vinte e quatro adolescentes disseram que pensam com freqüência no tema da morte, citando motivos diferentes: “quando estão sozinhos tentam buscar uma compreensão sobre a morte com leituras ou reflexão”; “sentem medo de perder alguém que amam”; “pensam sobre o que vai acontecer após a morte”; “quando algum familiar adoece”; “devido à violência nas ruas e à vivência de situações de risco”, entre outras. A morte como possibilidade pessoal praticamente não apareceu nas respostas dos jovens.

Vinte e sete jovens e sete profissionais responderam que não pensam com freqüência no tema da morte. Alguns adolescentes disseram que só pensam neste tema quando assistem a filmes, que abordam o assunto, ou quando alguém conhecido morre. Um jovem disse que tem medo de deixar de viver e outro disse que não aceita a morte. Dois jovens disseram que tomam precauções para evitá-la. Os profissionais disseram que não pensam e não justificaram. Perguntamo-nos: o que leva profissionais, que lidam com o tema da morte em seu cotidiano de trabalho, não pensarem sobre esta questão? Estão dispostos a pensar no assunto?

Ao responderem a questão se a escola deveria abordar o tema da morte, 10 jovens disseram que “não”. Um dos motivos alegados foi o de que discutir o tema da morte poderia abalar os alunos. Um adolescente trouxe a seguinte frase: “quero morrer com mais de 80 anos, quero primeiro viver e depois pensar na morte”. Aqui fica clara a suposição entre os jovens de que a morte só ocorre para idosos. 2 jovens e 2 profissionais disseram que o tema da morte é importante, faz parte do cotidiano, se relaciona com outros assuntos e promove conhecimento, reflexão e conscientização. 5 adolescentes sugeriram debates, palestras ou pesquisas e 6 acham que deveria ser de outra forma, mas não especificaram qual. 23 jovens responderam “sim”, alguns exemplos são: “envolver psicólogos e outros profissionais na discussão do tema”; “discutir sobre a vivência do luto em situações de perda”; “seria uma forma de alertar mais os jovens”; “esta deveria ser uma atividade descontraída e educativa”; “deveria ser discutido como forma de prevenção”; “não dá para fingir que a morte não existe”; “poderia ser uma forma do jovem perceber que há pessoas que se preocupam com ele”.

Percebe-se que um número considerável de participantes demonstrou disponibilidade para a discussão do tema da morte no contexto escolar. A preocupação primordial da escola é formar pessoas saudáveis e autônomas, capazes de produzir e de se relacionar, por isto é importante a reflexão sobre o tema da morte, aspecto presente no desenvolvimento de todo ser humano e que, muitas vezes, não é abordado. Desde o nascimento até o fim da vida, passamos por perdas presentes em cada fase do desenvolvimento: o nascimento de um irmão; separação dos pais; mudança de série ou reprovação; mudança de escola, casa, cidade; perdas por morte na família, de um amigo ou até algum membro da equipe escolar etc. Estes são alguns exemplos que podem trazer desafios aos profissionais de educação no cuidado de seus alunos. Estas situações podem gerar crises e por isto estes profissionais necessitam de tempo, apoio e orientação de pessoas qualificadas para a abordagem destes temas. A escola pode se tornar um ponto de referência seguro, possibilitando aos seus alunos acolhimento e compartilhamento de dores e angústias, solidificando-se a relação aluno-escola. É essencial o trabalho com perdas no contexto escolar, visto que este espaço é fundamental para o desenvolvimento físico e emocional de seus alunos. Fonseca (2003) aponta que o trabalho com as perdas, realizado pelos profissionais de educação, reflete na melhora do rendimento escolar dos alunos, quando estes se sentem acolhidos e seguros, com espaços para compartilhar idéias, medos e angústias.

As questões a seguir foram feitas apenas para os profissionais de saúde e educação da escola A: como você se sente diante dos temas apresentados? As respostas mais freqüentes foram: “com muitas dúvidas”, “precisando de mais conhecimentos”, “preocupação com os inúmeros problemas com os quais não sabem lidar de maneira competente”; “reflexões sobre os riscos de ser adolescente nos dias atuais”; “os temas apresentados são rotineiros na sociedade e devem ser tratados naturalmente”.

Você se sente capaz de discutir o tema com os adolescentes? 7 participantes disseram que “sim”, 4 “não” e 4 disseram “ter dúvidas”. Os participantes que disseram “sim” mostraram também interesse em obter mais conhecimento e experiência sobre o tema.

Caso você não se sinta preparado, como gostaria de receber ajuda? As respostas mais freqüentes foram: com palestras, aulas, grupos de discussão permanentes e ouvindo experiências de pessoas que trabalham com o tema.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Kastenbaum; Aisenberg (1983), a morte sempre existiu em nossas vidas, mas nem sempre teve representação nítida em nossas mentes. Profissionais de educação, em contato constante com jovens, não parecem estar preparados para compreender, refletir ou enfrentar questões relacionadas à morte. Com isso, não queremos dizer que exista uma preparação específica para o enfrentamento da morte, como uma receita; entretanto, este tema faz ou fará parte da experiência de qualquer pessoa.

Ao criar estes espaços para o tema da morte nas escolas é preciso observar a dinâmica institucional e selecionar profissionais que sejam facilitadores para os demais membros da equipe.

É necessário criar espaços de facilitação da comunicação entre crianças, adolescentes, adultos, idosos, famílias e profissionais de saúde e educação diante desse tema tão complexo e presente. É importante tentar falar, questionar e compartilhar sentimentos, rituais, opiniões, crenças e medos sobre o assunto. O silêncio pode provocar um distanciamento entre as pessoas envolvidas, resultando em dificuldades de convivência. O fato é que a morte existe e, mesmo não se falando dela, esta acontece com as pessoas das mais diferentes idades.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Cláudia Fernanda Rodriguez
E-mail: claudiafr@uol.com.br

Maria Julia Kovács
E-mail: mjkoarag@usp.br

Recebido em: 06/07/2005
Aceito para publicação em: 16/11/2005

Os autores gostariam de agradecer ao CNPq pelo suporte financeiro; aos profissionais e adolescentes que participaram desta pesquisa.

 

 

NOTAS

* Psicóloga e Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo/USP.
** Professora Livre Docente e Coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte – Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo/USP.

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