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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.6 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006
COMUNICAÇÃO DE PESQUISA
Louco e a ciência: a construção do discurso alienista no Rio de Janeiro do século XIX
The mad and the science: the construction of the alienist discourse in Rio de Janeiro in the nineteenth century
Silvia Rodrigues Pavão*
Psicóloga do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ
O Louco e a Ciência: a construção do discurso alienista no Rio de Janeiro do século XIX
Esta pesquisa teve como objetivo apresentar uma discussão sobre as representações e práticas relacionadas à loucura no Rio de Janeiro nos meados do século XIX e início do século XX. Para alcançar tal objetivo, analisamos teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, buscando identificar o conceito que os alienistas brasileiros possuíam sobre a loucura e as influências estrangeiras presentes em suas concepções.
O período foi escolhido por representar um momento de importante transformação política e econômica no país (transição do governo monárquico para o regime republicano) e por marcar o início da psiquiatria científica no Brasil.
Foi neste contexto de transformações do século XIX, que o discurso psiquiátrico se constituiu. O primeiro hospício brasileiro, o Hospício de Pedro II, foi inaugurado em 1852, numa tentativa do Império de estar em harmonia com a modernidade européia, ficando sua administração, inicialmente, vinculada à Santa Casa da Misericórdia, uma instituição religiosa.
A cadeira de clínica psiquiátrica e moléstias mentais foi criada apenas em 1881, nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, sendo que, somente em 1887, o Hospício de Pedro II deixou de ser administrado pela Santa Casa e passou a ser dirigido pelo primeiro médico alienista brasileiro, Teixeira Brandão (TEIXEIRA, 2000).
Logo, foi a partir da proclamação da República que o Estado assumiu a assistência aos loucos, amparado pelo discurso científico que começou a se erigir no país, havendo então a consolidação da gestão médica do hospício, que passou a se chamar Hospício Nacional dos Alienados. Todas essas mudanças evidenciaram uma tentativa de desligamento em relação ao regime monárquico (CUNHA, 1990).
A transição do Império para a República encerrou uma outra mudança relevante em relação ao convívio social com a loucura. Engel (2001) assinala a existência de diversos relatos de historiadores, demonstrando que, durante o período do Segundo Império, os loucos conviviam no cotidiano das cidades, seja com suas famílias ou vagando pelas ruas, o que evidencia a existência de um clima de aceitação popular.
Um aspecto que chamou a atenção nestes relatos relaciona-se ao fato de que, fazendo parte da paisagem urbana, a loucura possuía uma “visibilidade imediata”, sendo identificada pela população por meio do vestuário extravagante, dos hábitos estranhos, da fala incompreensível, dos gestos e principalmente pelo delírio, considerado, nesta época, a forma por excelência da loucura. Assim, a loucura era reconhecida pela diferença, porém não provocava necessariamente medo e inquietação.
No entanto, durante a República, tal relação com a loucura assumiu novas dimensões, o louco passou a ser caracterizado como perigoso e ameaçador. Entre os fatores que proporcionaram esta mudança, destaca-se a influência exercida pelo discurso alienista no Brasil republicano, que transformou a loucura em doença mental, e ainda, tomou a loucura, comumente associada ao delírio, como uma das formas de alienação mental (CUNHA, 1990; ENGEL, 2001).
Tomando essas pesquisas por base, realizamos a análise de cinco teses médicas produzidas por alienistas brasileiros da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Dentre estas, as de Peixoto (1837), Figueiredo (1847) e Gonçalves (1846), que foram escritas no século XIX durante o regime monárquico, e as de Oliveira (1891) e Lopes Sobrinho (1924), produzidas durante o regime republicano.
Nas cinco teses psiquiátricas investigadas, verificamos que os autores apresentaram definições da loucura que guardavam, em maior ou menor grau, diferenças e semelhanças entre si. Peixoto (1837) e Figueiredo (1847) afirmavam ser a alienação mental uma perturbação das faculdades intelectuais sem alteração profunda ou duradoura das funções orgânicas.
Já Oliveira (1891) compreendia a degeneração psíquica como “uma desordem dos centros nervosos superiores, orgãos especiaes da mentalidade, desordens estas que produzem perturbações taes no pensamento, sentimentos e acções que tornam os individuos pouco aptos ás relações ordinarias da vida” (p.1). Em 1924, Lopes Sobrinho considerou que, na alienação mental, a integração do indivíduo ao meio social estava gravemente abalada, de modo que definiu o alienado como o indivíduo que perdeu a capacidade de se adaptar ao meio.
Observamos, desta forma, que os autores da década de 1830 e 1840 possuíam uma definição de loucura muito semelhante à de Pinel, que postulou que na loucura a razão havia perdido seu rumo. A partir desta definição, Pinel também inaugurou a possibilidade de tratamento de tal doença. Ele considerava que, para recuperar a razão, ou melhor, para trazer a razão de volta ao seu rumo, o louco precisava de um orientador - o médico. Deste modo, concebeu o tratamento moral como o método que restabelece o louco no caminho do esclarecimento (EWALD, 1996).
No entanto, as teses de 1891 e de 1924 se diferenciaram por se aproximarem de uma concepção psiquiátrica que começava a se desvincular da teoria de Pinel e passava a associar a loucura a desvios e desajustamentos na esfera social, conforme apontava a teoria de Morel, que definia as degenerescências como desvios doentios em relação ao tipo normal da humanidade, transmitidas hereditariamente (ZILBOORG, 1968).
Parece haver entre este movimento da psiquiatria brasileira, de distanciamento do pensamento de Pinel e aproximação aos princípios de Morel, uma forte e intrincada relação com o contexto sociopolítico. O final do século XIX representou para o país o período de transição do Império para o regime republicano e, já em sua fase inicial, a República enfrentou graves problemas associados à desordem urbana das grandes cidades, como o Rio de Janeiro.
Neste sentido, o governo republicano, na urgência de lidar com a administração do rápido crescimento urbano e industrial do país, parece ter encontrado na teoria da degenerescência um eficaz mecanismo de controle, uma vez que tal teoria introduziu um caráter oculto e de pouca visibilidade ao conceito de loucura. O louco deixou de ser identificado apenas como aquele sujeito de gestos, roupas e pensamentos extravagantes (ENGEL, 2001).
A análise das teses também permitiu a verificação de outras divergências entre os autores, especialmente no que diz respeito às classificações adotadas, às causas, ao prognóstico e ao tratamento. É claro que tais diferenciações estão intimamente relacionadas ao fato de que o conceito de loucura variou de acordo com o posicionamento teórico de cada autor.
Em relação às causas, foi possível verificar que as teses das décadas de 1830 e 1840 priorizaram a discussão das causas sociais e morais, em detrimento das causas orgânicas – apenas fazendo menção à necessidade de uma determinada constituição física para o desenvolvimento da loucura – o que evidenciava, mais uma vez, a influência do pensamento de Pinel. Em contrapartida, as teses de 1891 e 1924 afirmaram enfaticamente o caráter físico e biológico da alienação mental, de modo que os autores quase não abordaram outras causas, posto considerarem a hereditariedade o principal fator gerador da loucura, tal como postulava Morel.
Um outro ponto que revelou diferentes posicionamentos diz respeito ao prognóstico e tratamento da loucura. Há, nas teses de 1837, 1846, 1847, relatos de curas bem sucedidas, conforme descrito por Figueiredo (1847): “por isso que se tem visto affecções deste genero curarem-se depois de vinte anos de pertinaz existência” (p.9) e por Peixoto (1837): “outros ficão perfeitamente curados: entrão no exercício de suas funcções” (p.20).
Em relação aos discursos psiquiátricos presentes no regime republicano, fortemente influenciados por Morel, podemos assinalar que entendiam a loucura como uma degeneração de caráter hereditário, e consideravam que o louco deveria ser excluído da vida em sociedade. Oliveira (1891) não mencionou de maneira específica o prognóstico, tampouco propôs alguma terapêutica. Em seus relatos clínicos, a maioria dos alienados havia falecido no hospício ou ainda se encontrava internada. Lopes Sobrinho (1924) também não se deteve no prognóstico, porém, em relação ao tratamento suscitou algumas questões:
Mas, dir-se-á, sendo a herança morbida nervosa, a causa verdadeira da loucura, e vindo esta, de geração em geração, quasi desde os primórdios do mundo, como pensar em impedil-a? (...) Emfim, resumindo, não seria licito indagar, se não é uma utopia, ou antes, um absurdo, pensar-se numa prophylaxia da alienação mental? (p.69).O próprio autor respondeu que não, ou seja, que não era utópico pensar na profilaxia da alienação mental. E por considerar que “a virtude de cada geração é aperfeiçoar a geração seguinte” (p.70), concluiu sua tese, propondo como ação dos homens da ciência: “1o Combater a hereditariedade mórbida pela Eugenia. 2o Envidar os meios de attenuar, quando não possível evitar, a influencia das causas provocadoras da alienação mental” (p.70).
Com esta análise, pudemos observar que a psiquiatria, ao se desenvolver no século XIX e XX, ampliou seu campo de intervenção, uma vez que o conceito de anormalidade ganhou grandes proporções, a loucura adquiriu um caráter de invisibilidade e tornou-se associada à noção de periculosidade e nocividade. Logo, ao invés de tratamento, passou-se a falar em profilaxia da doença mental, através da defesa dos princípios da eugenia.
A análise das teses médicas possibilitou a verificação de que a representação médica da loucura modificou-se dos meados do século XIX até o início do século XX – período do nascimento da psiquiatria brasileira. Além disso, chamou atenção para o fato de que o discurso psiquiátrico se construiu e se constrói a partir do entrelaçamento de diversas influências, não podendo a psiquiatria – saber e prática – ser pensada isolada do âmbito político, social e cultural.
Neste sentido, acreditamos que o resgate histórico dos saberes e das práticas psiquiátricas contribui para a consolidação dos estudos sobre o nascimento e constituição do campo psiquiátrico no Brasil, notadamente no que diz respeito à desnaturalização dos conceitos e das práticas em torno da loucura, uma vez que evidencia seu caráter histórico e a insere no âmbito da cultura.
Referências Bibliográficas
CUNHA, M. C. P. Cidadelas da ordem: a doença mental na República. São Paulo: Brasiliense, 1990. [ Links ]
ENGEL, M. G. Os delírios da razão: médicos, loucos e hospícios (Rio de Janeiro, 1830-1930). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2001. [ Links ]
EWALD, A. P. Por uma razão não corrompida: pedagogia do Iluminismo e construção da ciência. Revista da Sociedade Brasileira de História das Ciências, n.16, p. 03-20, 1996. [ Links ]
FIGUEIREDO, A. J. C. Algumas generalidades a respeito da alienação mental. Tese – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1847. [ Links ]
GONÇALVES, R. J. A hysteria. Tese – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1846. [ Links ]
LOPES SOBRINHO, M. M. M. Causas de alienação mental no Rio de Janeiro. Tese – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1924. [ Links ]
OLIVEIRA, L. J. Da degeneração psychica. Tese – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1891. [ Links ]
PEIXOTO, A. L. S. Considerações geraes sobre a alienação mental. Tese – Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1837. [ Links ]
TEIXEIRA, M. O. L. Os primórdios da medicina mental no Brasil e o bruxo do Cosme Velho. Cadernos IPUB, Rio de Janeiro, v.VI, n.18, p. 84-101, 2000. [ Links ]
ZILBOORG, G. Historia de la psicologia medica. Buenos Aires: EDITORIAL Psique, 1968. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: srpavao@yahoo.com.br
Recebido em: 12/09/2006
Aceito para publicação em: 30/10/2006
Notas
* Psicóloga Especialista em Saúde Mental.