Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007
ARTIGOS
Intervenção na condição de vulnerabilidade social: um estudo sobre a produção de sentidos com adolescentes do programa do trabalho educativo
An intervention in the social vulnerability condition: a study on the meaning production with adolescents from the “trabalho educativo” program
Neuza M. F. Guareschi *, I; Carolina D. Reis **, II; Simone M. Huning ***, III; Leticia D. Bertuzzi ****, IV
I Orientadora do Grupo de pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS
II Bolsista de Iniciação Científica (FAPERGS) do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do PPGP da PUCRS
III Doutoranda (CNPq) do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do PPGP da PUCRS
IV Bolsista de Iniciação Científica (Edital 05/2004 CNPq) do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do PPGP da PUCRS
RESUMO
Este artigo tem por objetivo problematizar a condição de vulnerabilidade social vista como propulsora de políticas públicas. Entendemos vulnerabilidade social como uma posição de desvantagem frente ao acesso às condições de promoção e garantia dos direitos de cidadania de determinadas populações. Para realizarmos este estudo, trabalhamos com jovens do programa Trabalho Educativo, vinculado ao Serviço de Apoio Sócio-Educativo do município de Porto Alegre. Através de observações participantes realizadas no módulo básico deste programa, desenvolvemos discussões utilizando textos e vídeos que refletem temas do cotidiano. As análises desses registros foram fundamentadas na abordagem da produção de sentidos de determinados discursos, os quais, a partir de marcas identitárias, inscrevem jovens como vulneráveis. Deste modo, questionamos ações de programas sociais que, ao entenderem a priori os jovens como vulneráveis, podem atuar restringindo as possibilidades de promoção de vida, ao invés de oportunizar a produção de novos modos de subjetivação.
Palavras-chave: Vulnerabilidade social, Produção de sentidos, Políticas públicas, Adolescentes.
ABSTRACT
This article aims at problematizing the social vulnerability condition seen as a starting point of public policies. We understand social vulnerability as a disadvantage position in relation to the access to conditions of promotion and achievement of citizenship rights of certain populations. In order to carry out this study, we have worked with youths from the Trabalho Educativo Program, linked to Serviço de Apoio Sócio-Educativo in Porto Alegre. Through participative observations in the basic module of this program, we developed discussions using texts and videos that reflect daily themes. The analyses of those records were founded on the approach of meaning production of certain discourses, which from identity marks characterize youths as vulnerable. We question actions of social programs that, in understanding youths as being vulnerable a priori, may restrict possibilities of life promotion rather than giving opportunities to produce new modes of subjectivation.
Keywords: Social vulnerability, Meaning production, Public policies, Adolescents.
Intervenção na condição de vulnerabilidade social: um estudo sobre a produção de sentidos com adolescentes do programa do trabalho educativo
Este artigo visa a problematizar a vulnerabilidade social como propulsora de políticas públicas para determinados programas sociais da cidade de Porto Alegre. Para tanto, indicamos a necessidade de repensar a noção de vulnerabilidade social, apontando o paradoxo existente nas intervenções dos programas de políticas públicas que buscam a inclusão, mas partem de uma postura excludente em relação ao seu público alvo.
O trabalho toma forma a partir das discussões realizadas sobre “Vulnerabilidade Social e Políticas Públicas de Educação: um estudo sobre produção de sentidos com adolescentes do Programa do Trabalho Educativo”, que faz parte de um projeto de pesquisa composto por dois estudos sobre vulnerabilidade social na área da saúde e da educação1. O presente texto é realizado a partir de um recorte da pesquisa com adolescentes que participam do programa Trabalho Educativo e situa-se no campo da educação. Visa a discutir questões sobre condições de vulnerabilidade social de jovens que participam de um programa realizado em uma associação localizada em um bairro da periferia no município de Porto Alegre. Tem-se, ainda, como objetivo deste estudo, compreender os sentidos produzidos por determinados discursos hegemônicos sobre essas possíveis condições de vulnerabilidade social nos contextos de vida de jovens adolescentes.
O programa em questão é administrado pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC), uma instituição municipal cuja missão é formular, gerenciar e executar políticas de assistência social, promovendo programas e serviços para crianças e adolescentes. O Trabalho Educativo2 é desenvolvido paralelamente ao Serviço de Apoio Sócio-Educativo (SASE)3, que presta atendimento a crianças no turno inverso ao da escola. No que concerne especificamente aos adolescentes, essa proposta tem como objetivo a aproximação com a realidade do mercado de trabalho e o desenvolvimento pessoal e social, enfatizando os aspectos pedagógicos.
A importância deste estudo está relacionada às práticas da psicologia enquanto campo de saber que permite problematizar e transformar a experiência e a própria concepção do sujeito contemporâneo, apontando para a configuração de novos fazeres, novos contornos e novos fundamentos para essas práticas. Possibilita-se, assim, a interlocução de conhecimentos entre a psicologia, a educação e as políticas públicas na sociedade contemporânea (GUARESCHI, 2003).
Vulnerabilidade Social
O conceito de vulnerabilidade começou a ser trabalhado na área dos direitos humanos e mais tarde foi incorporado ao campo da saúde com os trabalhos realizados sobre AIDS na Escola de Saúde Pública de Harvard por Mann et al (1993). As primeiras discussões articulavam dois estratos de visibilidade: pessoas que eram discriminadas socialmente, tais como homossexuais e usuários de drogas; e a doença – AIDS –, associada ao medo e à moral. Essa composição inicial – grupos específicos que remetiam a questões de medo e moral – levou à ampla disseminação do conceito de “grupo de risco”.
O modo como pretendemos abordar aqui o conceito de vulnerabilidade social vai no sentido de contrapor a noção de grupo de/em risco4. Entendemos que, ao trabalhar com o conceito de vulnerabilidade social, não estamos remetendo ao indivíduo a condição de vulnerável. A vulnerabilidade, conforme é vista por Ayres (1999), está na falta ou na não-condição de acesso a bens materiais e bens de serviço que possam suprir aquilo que pode tornar o indivíduo vulnerável.
Assim, a conformação do conceito de vulnerabilidade sustenta-se nas implicações da objetivação do conceito de risco. O conceito de risco articula-se a marcadores, tais como comportamento e populações específicas. Essa estratégia individualiza certa condição de saúde/doença e a coloca na esteira de ações em termos de segurança e moralidade, ou seja, envolve formas de governabilidade das populações por meio de biopolíticas centradas em marcadores identitários. A objetivação da vulnerabilidade social desloca-se do campo da AIDS e da saúde exclusivamente e amplia-se para a esfera da vida social, juntando-se aos campos da educação, do trabalho, das políticas públicas em geral, na medida em que se refere às condições de vida e suportes sociais, e não à conduta, como marcava o conceito de risco.
Para Abramovay (2002), a vulnerabilidade social é definida como situação em que os recursos e habilidades de um dado grupo social são insuficientes e inadequados para lidar com as oportunidades oferecidas pela sociedade. Essas oportunidades constituem uma forma de ascender a maiores níveis de bem-estar ou diminuir probabilidades de deterioração das condições de vida de determinados atores sociais. Assim, o conceito de vulnerabilidade social está indiretamente vinculado com o de mobilidade social, posto que as possibilidades que indivíduos em vulnerabilidade social possuem de se movimentarem nas estruturas sociais e econômicas são restritas em termos de modificação de inscrição social.
Todavia, essa dificuldade de mover-se socialmente não pode ser reduzida às questões de pobreza ou de populações carenciadas. Vulnerabilidade não se restringe à categoria econômica, passando por organizações políticas de raça, orientação sexual, gênero, etnia. Do ponto de vista, por exemplo, da raça negra, os indivíduos tendem a ter restrita sua mobilidade social em função de sua cor, sem necessariamente apresentarem uma situação econômica de desvantagem. Dessa forma, as organizações simbólicas também estão intimamente ligadas ao conceito de vulnerabilidade social.
Ayres (1999) considera que a conformação da vulnerabilidade social acaba sendo constituída em torno de conjunturas básicas: a primeira diz respeito à posse ou controle de recursos materiais ou simbólicos que permitem aos indivíduos se desenvolverem, se aperfeiçoarem ou se locomoverem na tessitura social; a segunda remete à organização das Políticas de Estado e bem-estar social, que configuram os componentes de oportunidades que provêm do Estado, do mercado e da sociedade como um todo – ligeiramente associado à capacidade de inserção no mercado de trabalho e acesso às políticas; e, por fim, a forma como os indivíduos, grupos, segmentos ou famílias organizam seus repertórios simbólicos ou materiais para responder aos desafios e adversidades provenientes das modificações dinâmicas, políticas e estruturais que ocorrem na sociedade, de forma a realizarem adequações e ocupações de determinadas posições de enunciação nos jogos de poder da organização simbólica e política.
É importante ressaltar que o conceito de vulnerabilidade social é discutido aqui não como um mapeamento linear das condições do sujeito ou do grupo, mas como um conceito que procura analisar e/ou entender, em termos de inscrição social, como pessoas ou populações são tidas como vulneráveis. Isso leva a uma análise do conceito de vulnerabilidade social de forma complexa e multifacetada, pela análise da organização de diferentes vetores que dificultam o acesso aos bens e serviços, incluindo os de saúde e educação, conforme é ilustrado, por exemplo, pela ausência de acesso à educação formal (CASTRO et al, 2001).
Portanto, quando realizamos uma discussão sobre vulnerabilidade, é preciso considerar os fatores específicos da comunidade, o que desloca a questão da vulnerabilidade enquanto fator inerente ao indivíduo (plano individual) para as configurações do contexto social (plano social). É nesse sentido que tomamos o conceito de vulnerabilidade proposto por Ayres (1999), ao discutir a epidemia da AIDS, transpondo-o para uma situação social mais abrangente. Assim, observa-se que a vulnerabilidade cresce quando aparecem algumas das situações a seguir: falta de acesso à informação, aos serviços básicos de educação e falta de confiança ou credibilidade na sustentação de estratégias de ação. Evidencia-se, a partir desses aspectos, um deslocamento na atribuição da condição de vulnerabilidade, que já não se constitui como característica própria do indivíduo, mas como resultado da combinação de determinados arranjos sociais e políticos que vão incidir sobre os sujeitos.
Em nosso sistema social e econômico, diferentes dispositivos de marginalização são produzidos, contemplando, dentre esses, as condições de produção para o mercado de trabalho. Distanciando-se das condições de acesso a um emprego formal, muitos adolescentes passam a ser visibilizados a priori como vulneráveis por programas de políticas públicas. Como dispositivo de marginalização, isso pode ter como decorrência a inserção em processos de exclusão. Embora ocorram em certos espaços da sociedade onde a pobreza é mais visível, essas práticas não podem deixar de ser questionadas para se refletir sobre os modos de subjetivação que estão sendo produzidos por determinados discursos hegemônicos de exclusão social.
Em relação a determinadas populações consideradas socialmente vulneráveis, Hüning e Guareschi (2004) ressaltam a existência de discursos que normatizam o certo e o errado como algo produzido historicamente e que tem como preocupação a ordenação do mundo, o que está intimamente vinculado ao objetivo das ciências do comportamento ou da psique. Os saberes científicos produzem modelos e prescrições de modos de ser, englobando os referenciais desejáveis – do ponto de vista da ordem social – e os desviantes, sobre os quais devem voltar-se as intervenções pedagógicas, disciplinares, corretivas e punitivas, entre outras. Dessa forma, quando os jovens são considerados como vivendo fora de situações mínimas estabelecidas pela sociedade, emergem preocupações de políticas públicas no intuito de proporem alternativas. Se, por um lado, as alternativas podem ser vistas como uma concessão de possibilidades a esses jovens de desenvolverem condições iguais às de todos os cidadãos, por outro, podemos questioná-las na sua função de normatização através da ordem social hegemônica e conseqüente estigmatização das populações atendidas.
Uma leitura provocadora possível é a de que, quando os jovens fazem parte de populações carentes, políticas públicas podem enquadrá-los, naturalmente, como o grupo de excluídos que precisa ser ocupado para poder formar sujeitos úteis, que saiam das ruas e freqüentem escolas, pois o contrário se relaciona à possibilidade de infringir regras. Podemos indicar uma série de pressupostos que dão sustentação a essa lógica de ação: a vinculação da pobreza com a inutilidade social; a necessidade de enquadramento no modelo de produção capitalista; a marginalização da pobreza. A utilidade do indivíduo para o sistema vincula-se ao seu potencial produtivo e à preocupação que suscita enquanto ameaçador da ordem social em questão.
Em relação aos discursos hegemônicos, Coimbra (2001) ressalta o surgimento de um sentimento de incompetência de grupos considerados vulneráveis, que seria reforçado pelos saberes dominantes. Esses saberes chegam às classes subalternizadas como algo totalmente fora de seu mundo, de seu alcance: desconhecem como foram produzidos e para que servem. Com isso, são convencidos de que todos aqueles que não possuem informações competentes e científicas não podem expressar suas opiniões, já que estão longe da verdade e, portanto, se encontram efetivamente excluídos. Isso pode corroborar para a acomodação de populações tidas como excluídas, inibindo possíveis desejos e a possibilidade de lutar pelos seus direitos. Assim, a crítica que empreendemos não diz respeito à existência em si das políticas públicas, mas à necessidade de análise de como estas se constituem, que saberes e lógicas operam e como constituem os sujeitos sobre os quais intervêm, assinalando o paradoxo presente, mas nem sempre percebido, nas chamadas ações sociais ou políticas públicas de inclusão.
O Programa do Trabalho Educativo
Neste artigo, apresentamos parte da discussão decorrente da pesquisa realizada com adolescentes de 14 a 18 anos que participam de um programa de política pública em educação da rede municipal de Porto Alegre, denominado Trabalho Educativo. O Trabalho Educativo é desenvolvido paralelamente ao Serviço de Apoio Sócio-Educativo (SASE). Juntos, esses programas prestam atendimento a crianças e adolescentes de 7 a 18 anos no turno inverso ao da escola.
O programa busca uma forma diferenciada do aprendizado da escola formal, tanto para crianças quanto para adolescentes, pois propõe uma maneira de ensino voltada ao desenvolvimento total, com atividades planejadas de maneira integrada, a fim de que esteja garantida uma visão completa do processo de aprendizagem. Nesse sentido, com a realização de dois módulos, o módulo profissionalizante e o módulo básico, preconiza-se uma constante articulação entre eles, propondo-se as abordagens interdisciplinar e interinstitucional e sugerindo-se um diálogo entre os saberes da comunidade e da entidade.
O módulo profissionalizante é dividido em duas categorias: artesanato e corte e costura, em que se confeccionam produtos para posteriormente expô-los e vendê-los. Para atingir o objetivo desse trabalho, estimula-se a participação em feiras artesanais como forma de preparação para inserção no mercado de trabalho. O segundo módulo, o básico, tem como objetivo propiciar um ambiente favorável à discussão e à reflexão de alguns temas referentes ao cotidiano desses jovens. A discussão, nesse módulo, procura ampliar a visão dos adolescentes sobre si mesmos, o conhecimento e a construção da cidadania.
Concomitantemente aos dois módulos, atividades de lazer são realizadas: idas a cinemas, parques, museus, restaurantes. Esses passeios são mensais e integram as atribuições da entidade responsável pelo programa. Contudo, para os jovens participarem dessas atividades, um acordo é feito entre os adolescentes e a instituição: não lhes é permitido faltar mais que três vezes nos módulos durante o mês. Existe também, dentre as atividades do programa, um momento em que é concedida voz aos adolescentes, para que se sintam exercendo a cidadania. É uma assembléia que ocorre uma vez por mês e se destina à discussão e à avaliação das tarefas propostas nos módulos para realização de acordos com o grupo, construção e reflexão de regras e normas de convivência, assim como auto-avaliação.
Além disso, os jovens ainda participam de atividades de dança semanais. Embora a dança não seja reconhecida pelo programa por não ser entendida como uma prática educativa, é um dos momentos mais valorizados pelos jovens, e o número de faltas é reduzido. Durante a dança, são eles os responsáveis pela organização do grupo, criação dos passos, escolha das músicas, sendo que para isso não há a presença formal de um professor.
Todas essas atividades descritas têm como objetivo último educar e preparar esses jovens para o mercado de trabalho na sociedade. Fazem parte das oficinas de trabalho educativo e da pesquisa em questão, divididos nos dois módulos, 24 jovens entre 14 e 18 anos.
Notas Metodológicas
Para o desenvolvimento da referida pesquisa, realizamos observações participantes nas atividades do programa que são desenvolvidas durante o módulo básico e discussões de grupos originadas pelas temáticas trabalhadas nesse período. Essas temáticas se referem a tópicos relacionados com o contexto de vida dos adolescentes: drogas, namoro, gravidez, doenças, sexualidade, pobreza, violência, escola, aprendizagem. Para estimular a discussão e o debate, planejamos a utilização de vídeos, filmes, músicas e textos. Os materiais das observações, discussões em grupo e outras informações consideradas importantes para a pesquisa foram registrados em diários de campo. Posteriormente, esses registros foram organizados em mapas, de acordo com temáticas emergentes e discursos em relação à vulnerabilidade social.
O processo de análise e discussão desses materiais fundamenta-se na abordagem da produção de sentidos, proposta por Spink:
O sentido é uma construção social, um empreendimento, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta (SPINK, 1999, p.41).
A produção de sentido e as práticas discursivas são relevantes na medida em que visibilizam a importância da linguagem no processo de interação social, visto que é por meio dela que as pessoas significam suas práticas.
Segundo Spink (1999, p.107), os mapas têm o objetivo de sistematizar o processo de análise das práticas discursivas em busca da construção lingüística e dos repertórios utilizados nessa construção para subsidiar a discussão, dando visibilidade ao processo de análise e compreensão dos materiais utilizados na pesquisa5.
Logo, a partir da produção de sentidos, visualizamos como os jovens significam e situam as práticas cotidianas em relação a determinados discursos hegemônicos, como, por exemplo, o da vila como um lugar perigoso, das drogas, da marginalização, da violência. A produção de sentidos sobre as situações de vulnerabilidade social se dá pelas práticas de significação das experiências do cotidiano. Essas críticas remetem a discursos que tomam os adolescentes da vila como o “outro”, o que está situado como fora do padrão, que deve ser normalizado.
Os sentidos produzidos sobre as condições de vulnerabilidade social remetem a marcadores identitários que inscrevem os jovens como população considerada vulnerável (ser pobre, negro, morador da vila, etc.). Quando esses marcadores identitários são os únicos a partir dos quais os jovens passam a ser reconhecidos, podem operar no sentido de limitar as possibilidades de os sujeitos se posicionarem a partir de outras marcas que não as de população vulnerável.
Os Jovens, os Marcadores Identitários e a Vulnerabilidade Social
A vila como um lugar perigoso está colocada em determinados discursos, o que pudemos observar ao longo deste estudo, pois essa questão tem sido enunciada pelos adolescentes. No entanto, esse entendimento da periferia é construído em um dado momento. Cecília Coimbra (2001), ao estudar essa construção, afirma que, com o passar dos anos, o centro das grandes cidades, que era antes o lugar onde ficavam os pobres e desabrigados, passa a ser apenas um lugar de circulação dos que vão trabalhar e consumir, e não mais dos pobres.
O centro passa a ser cada vez mais valorizado pelo mercado imobiliário, e as casas mais pobres começam a ser “jogadas” para as periferias. Logo, surgem outros “centros”, de onde “a miséria, a insalubridade, os pardieiros, as ruas mal traçadas e pavimentadas fazem parte” (COIMBRA, 2001, p.98). Nesse momento, dá-se o surgimento da periferia, da vila, da favela, daquilo que vai de encontro aos padrões. Por ser contra os padrões, a periferia passa a ser vista como ameaçadora da ordem e, portanto, perigosa. Assim, esse discurso acaba por discriminar os jovens que habitam essas localidades.
Nos “territórios pobres e violentos” que surgem ao longo dos anos, vivem os ditos pobres, doentes, sujos, indisciplinados, vagabundos. As pessoas que vivem na vila passam a ser vistas como podendo ser perigosas. Faz-se, logo, uma construção desses sujeitos que vivem em lugar propenso ao crime e à desordem. Constroem-se o perigo e os sujeitos da transgressão. Esquece-se da história e interpreta-se o diferente como natural. As naturalizações sobre as diferenças passam a ser corriqueiras ou até banalizadas: “Se é preto, vai preso, como ele é branco e tem dinheiro, tá solto!”6. Entretanto, alguns assuntos, como o racismo, remetem a preconceitos e são explicitados, por vezes, com sentimentos de injustiça em relação a jovens que moram em vilas. “Eu acho que a maioria do pessoal que mora na vila é assim meio revoltado, sabe? A gente é muito discriminado, principalmente pela classe alta, entendeu”.
Diante dessa significação do contexto é que se organiza toda uma estratégia de ordenação dos espaços urbanos, caracterizada, ao longo dos tempos, pela segregação, exclusão e isolamento das “classes pobres”, corroborando a crença de que nelas estão as doenças, os perigos, as ameaças, a violência ou os incapazes. Coimbra (2001) destaca que as discriminações a respeito da periferia surgem a partir das concepções de que, na vila, não há regras, não há leis, não há pavimentação, água, esgoto, asfalto, calçada, portanto, não existem também famílias corretas e saudáveis. Logo, na vila, não há controle. Se não há controle, há perigo.
Os jovens fazem referência a discursos que os colocam como desprezados e discriminados. “Tudo é a vila! Assalto? É na vila! Mataram? Foi na vila! Roubaram? Foi na vila...”. Por vezes, sentem-se prejudicados, como quando se referem à possibilidade de conseguir um emprego. Nesse momento, remetem ao outro/diferente: “Ele não trabalha porque é filhinho de papai. Eu não trabalho porque não tenho oportunidade” (comparando-se com um rapaz dito rico). “Se tu falas que mora em vila, já estão te olhando assim... Quando vou falar onde eu moro, já nem digo na vila, digo no bairro”.
O trabalho é uma das mais nobres virtudes enaltecidas pelo capitalismo; por esse motivo, dão-se ênfase e prestígio para quem tem a oportunidade de tê-lo. Tudo gira em torno do mercado profissional. Desde o ensino médio e fundamental até o ensino superior, a educação dos jovens é voltada para o mundo do trabalho, a busca por controle, disciplina e produtividade – “o trabalho dignifica o homem”. Dessa forma, denota produção e consumo, carregando em seu significado o sinônimo de honestidade. Conseqüentemente, também o reconhecimento da cidadania.
O jovem morador da vila tem dificuldade para conseguir emprego. Passa por situações constrangedoras quando sai à procura. “Quando vou fazer uma entrevista de emprego, eles sempre perguntam onde eu moro”. Com pouca possibilidade de ingresso no ensino superior, torna-se cada vez mais complicado estabelecer-se em algum tipo de afazer reconhecido pela sociedade vigente. “Esses dias, fui procurar emprego, e era difícil achar algum que não precisasse de 2º grau”. “Uma vez, eu fui trabalhar na casa de uma mulher. Sabe o que ela me falou? (…) ‘Sabe, essas tuas roupas que tu usas pra trabalhar na minha casa? É roupa de vagabunda (…), de gente que deve trabalhar na rua, mas não em casa de família. Essas roupas não são adequadas, tem que comprar uniforme (…)”.
Sendo assim, se, por um lado, falamos que através desses programas de políticas públicas podemos produzir jovens com identidades trabalhadoras, tidas como corretas e aceitas pela sociedade, por outro, afirmamos que alguns não se produzem assim e, portanto, são tidos como possuidores de identidades consideradas desviantes, de risco ou vulneráveis e não aceitas pela sociedade. Tanto as identidades tidas como corretas quanto as tidas como desviantes passam a ser naturalizadas, a constituir segmentos de populações da sociedade que são tomados ora como marginalizados, ora como prósperos.
Aqui podemos entender que as identidades são constituídas em redes discursivas, e não em essências. Isto é, não se trata de algo do sujeito, mas algo construído a partir das diferenças. Assim, a identidade se expressa na forma como nos tornamos alguém, em determinada composição de grupo, etnia, raça, gênero, família ou profissão. Produz diferentes modos de os sujeitos se posicionarem diante desses discursos. Portanto, entendemos que a identidade é fluída, intercambiante, inscrevendo-se em zonas de fronteiras, nas quais os encontros com a diferença fazem com que se constituam, permanentemente, novas combinações. Em virtude disso, interessa-nos saber como essas identidades são construídas, os efeitos produzidos por essas construções sobre os modos de vida e as formas de se reconhecer e se posicionar enquanto sujeitos em redes discursivas (ZIZEK; BUTLER; LACLAU, 2000).
Ao entendermos as identidades como um modo de inscrição em uma rede discursiva, torna-se importante ressaltar que essas redes criam aparatos técnicos para capturar as diferenças, não para apagá-las, mas justamente para experimentá-las como uma diferença problemática que deve ser regulada, controlada e administrada como um modo de reforma política dos corpos e das almas, a fim de buscar o que Zizek, Butler e Laclau (2000, p. 12) sugerem como “uma estrutura do sujeito universal moderno”.
Destarte, quando jovens são inscritos como vulneráveis por programas de Políticas Públicas, aceitam essa inscrição devido às marcas identitárias. Conseqüentemente, a partir delas os programas buscam capturar os jovens, passando a instituir como devem conduzir ou pensar suas vidas e a melhor maneira de viverem. Os objetivos desses programas são, portanto, legitimados por campos de saber “especializados” que se apóiam em categorizações e classificações responsáveis por ordenar e regular a vida social (GUARESCHI, 2003).
A Marca da Diferença, a Diferença de uma Marca ou Vulnerabilidade Social?
Os discursos que circulam em diferentes instâncias sociais referentes ao cotidiano dos jovens moradores da vila, como a vila vista como um lugar perigoso, a criminalização do adolescente morador de vila e a moralização do sujeito através do trabalho, muitas vezes passam a ser tomados como verdades inquestionáveis, produzindo marcadores identitários únicos ou centrais desses sujeitos, o que pode limitar as possibilidades de que ocupem diferentes posições sociais e culturais. É nesse sentido que entendemos ser necessária a problematização dos programas empreendidos pelas políticas públicas de atendimento às populações vulneráveis.
Temos acompanhado e participado de uma série de debates e reflexões que tomam como mote a discussão acerca de determinadas condições nas quais se inscrevem crianças, adolescentes e famílias constituintes de categorias de sujeitos em situação de risco social ou, como recentemente denominou-se, indivíduos em condição de vulnerabilidade social. Neste trabalho, evidenciamos os modos pelos quais conceitos como o de vulnerabilidade social têm ganhado repercussão e legitimidade na medida em que se tornam, como sugere Hacking (2001) acerca do abuso infantil, metáforas contempladoras de uma série de outras enunciações. Pulverizado em discursos de especialistas e no senso comum ao mesmo tempo, o conceito de vulnerabilidade social adquiriu relevância e objetividade a ponto de constituir uma categoria de pessoas, tornando a objetividade dispensável: o que mesmo está sendo contemplado ao enunciar-se uma situação de vulnerabilidade social? O que define um adolescente em condição de vulnerabilidade social? Quais as implicações de se nomearem sujeitos como em condição de vulnerabilidade?
No caso da condição de vulnerabilidade, o cerne de sua produção vincula-se à situação de pobreza, que seria responsável pela condução desses sujeitos à marginalidade. Mais além, congregados a isso, colam-se modos de comportamento, territórios de circulação e moradia, práticas cotidianas distintas das consideradas ideais, saberes (sim, esses sujeitos sabem/podem, e é por isso que se torna necessário governá-los) que diferem e afrontam os manuais dos especialistas. Esses são alguns dos elementos sobre os quais ainda se constrói a tarja “condição de vulnerabilidade” ou marca da diferença.
Em virtude disso, para que haja efetividade dos programas na produção de alternativas de vida e “superação” das condições de vulnerabilidade (entendidas aqui como condições de desigualdade desses sujeitos frente à sociedade, e não como mera produção de sujeitos padrões), é necessário que se questionem constantemente os conceitos acabados que definem e engessam pessoas em determinadas posições sociais. Mesmo com a importância da objetivação em termos conceituais do que se está dizendo ao falar em vulnerabilidade, é importante que se analisem os efeitos produzidos por essa enunciação, o fato de a cada tempo e lugar produzirmos novas populações vulneráveis e de, muitas vezes, com a intenção de ajudá-las, impedirmos que deixem de sê-lo. Questionar os conceitos e buscar seus efeitos junto aos que por esses são definidos pode ser uma importante ferramenta de intervenção potencializadora das políticas públicas voltadas aos adolescentes ditos em condição de vulnerabilidade.
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Endereço para corrrespondência
E-mail: nmguares@pucrs.br.
Recebido em: 29/03/2006
Aceito para publicação em: 14/03/2007
Notas
* Psicóloga, Doutora em Educação pela Universidade de Wisconsin, Madison, U.W., Estados Unidos.
** Bolsista de Iniciação Científica (FAPERGS) do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do PPGP da PUCRS.
*** Doutoranda (CNPq) do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do PPGP da PUCRS.
**** Bolsista de Iniciação Científica (Edital 05/2004 CNPq) do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Teorias Contemporâneas do PPGP da PUCRS.
1 Dentro da linha de pesquisa Vulnerabilidade Social, Políticas Públicas e Processos de Subjetivação.
2 Segundo dados da Prefeitura de Porto Alegre e da própria FASC, o Trabalho Educativo é uma proposta que visa a atender adolescentes em situação de vulnerabilidade, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
3 O SASE atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social e pessoal de acordo com o ECA e a LOAS.
4 Portanto, nossa intenção aqui não é discutir questões sobre grupos de/em risco como fundamentado nos trabalhos de Spink (2001, 2004, 2005), os quais apontam para as populações em risco por meio de características sociais ou individuais, nem populações que podem ser de risco para a sociedade, tampouco os grupos de pessoas ligados ao risco aventura, relacionado principalmente à prática de determinados esportes.
5 O exemplo dos mapas utilizados como roteiro que foi aplicado como ferramenta metodológica está em anexo.
6 As frases destacadas em itálico foram retiradas das anotações dos diários de campo após os grupos de discussão realizados com os jovens.