Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.1 Rio de Janeiro jun. 2007
ARTIGOS
A apropriação do brincar como instrumento de disciplina e controle das crianças
The appropriation of playing as instrument of discipline and control of the children
Flávia Cristina Silveira Lemos*
Doutoranda em História e Sociedade na UNESP. Bolsista FAPESP.
RESUMO
Neste trabalho, problematizamos a sociedade disciplinar e de controle, assinalando alguns de seus mecanismos e apontando a relação destes com a emergência de uma determinada concepção de infância e do brincar como objeto do olhar das ciências humanas. Ressaltamos como a apropriação do brincar ocorreu e como se transformou em dispositivo de promoção do desenvolvimento de crianças e, simultaneamente, de produção de crianças normalizadas e controladas a partir dos imperativos da sociedade capitalista, demandando, cada vez mais cedo iniciativas de estimulação cognitiva, visando inserir as crianças rapidamente na lógica de produtividade e submissão política. Nosso eixo de análise são as contribuições de Michel Foucault.
Palavras-chave: Sociedade disciplinar, Infância, Brincar, Educação, Controle.
ABSTRACT
In this work, we problems the society to discipline and of control, designating some of its mechanisms and pointing the relation of these with the emergency of infancy and playing as object of the look of sciences human beings. We stand out as the appropriation of playing occurred and as if it transformed into device of promotion of the development of children and, simultaneously, production of children normalized and controlled from the imperatives of the capitalist society, demanding, more and more early enterprises of encouragement cognitive, aim at insert the kids rapidly on logic of productivity and submission policy. Our axle of analysis is the contributions of Michel Foucault.
Keywords: Society to discipline, Infancy, To play, Education, Control.
Biopolítica, Disciplinas e Controle: cartografia da sociedade contemporânea
Para Foucault (2001), na segunda metade do século XVIII, iniciou-se um processo de regulação da vida denominado biopolítica, ou seja, a vida tornou-se um direito. Tratavam-se de estratégias objetivando uma gestão calculada da vida pelo Estado. Gerir a vida era estar atento a cada comportamento, cultivar a saúde física e mental, promover, ao máximo, a expansão das forças e das habilidades do ser humano.
Um dos mecanismos de gestão da vida que se expandiu foi o projeto de higienização das populações através das cruzadas médicas, que teve como foco privilegiado a proteção da infância, em uma política claramente preventivista de formação do homem dócil, produtivo e submisso à lógica estatal e capitalista.
Além da biopolítica, outros mecanismos de poder nascem com a sociedade capitalista – os disciplinares: o exame, a sanção normalizadora, a vigilância hierárquica, o controle do tempo e a distribuição dos corpos no espaço, segundo Foucault (1997). A diferença é que as tecnologias disciplinares agem sobre o indivíduo e a biopolítica opera sobre a população como segmento.
Sociedade Disciplinar e Governamentalização ou Biopolítica são os modos de funcionamento da sociedade moderna. Formam um conjunto de tecnologias específicas, cartografadas por Michel Foucault, em suas análises problematizadoras das práticas modernas de objetivação e subjetivação dos homens. Estes mecanismos incidem sobre os corpos, investindo-os politicamente de modo contínuo, ininterrupto. Trata-se de um controle minucioso e detalhado, uma microfísica do poder.
O poder disciplinar funciona distribuindo os indivíduos no espaço, organizando-os, classificando-os, hierarquizando-os. Distribuir no espaço significa poder localizar os corpos, não necessariamente fixando-os em instituições fechadas. É o que Foucault (1997) nomeia como funcionamento das disciplinas independente dos muros, em meio-aberto.
O controle do tempo também é uma estratégia disciplinar. Cada instante das nossas vidas passa a ser regulado, gerido de maneira produtiva. O tempo foi capitalizado e disposto de uma maneira cronológica, linear e contínua. Os corpos devem ser exercitados em intervalos regulares, constantes, devem administrar o tempo de uma forma útil (FOUCAULT, 1997).
Outro mecanismo disciplinar é a vigilância hierárquica. O panoptismo, segundo Foucault (1997), é uma máquina de produção de visibilidade constante. Somos vigiados o tempo todo e nossos comportamentos são valorados de acordo com as normas prescritas pelos especialistas.
A sanção normalizadora também é um mecanismo disciplinar, funciona através de um regime de micropenalidades. Instauramos pequenos tribunais nas diversas instituições e julgamos os comportamentos a partir de sua aproximação ou distanciamento frente a modelos de normalidade. O que se aproxima do modelo é recompensado e o que se afasta é punido. Foucault (1997) nomeou este processo de contabilidade penal.
A avaliação ou exame é outra tecnologia disciplinar citada por Foucault. O exame nunca finda e pode ser realizado por qualquer um e a qualquer momento. Para sancionar os comportamentos, primeiramente, os avaliamos e os comparamos às normas instituídas como padrões de conduta valorizados em nossa cultura (FOUCAULT, 1997). Entrevistas, aplicação de testes psicológicos, dinâmicas de grupo, ludodiagnóstico são exemplos de exames utilizados com freqüência na atualidade.
Conforme Deleuze (2000), os mecanismos de visibilidade estariam sendo intensificados como nunca; a sociedade contemporânea estaria instaurando uma vigilância generalizada, independente das fixações dos indivíduos aos aparelhos de confinamento. Contudo, a emergência dos processos de controle não exclui as tecnologias disciplinares, as de normalização e os suplícios. Os mapas se entrecruzam como imagens em um caleidoscópio. Logo, o que estamos ressaltando é a predominância de novas estratégias que formam a Sociedade de Controle, na atualidade.
Deleuze destaca que, enquanto nas Sociedades de Normalização os indivíduos eram confinados em instituições, nas Sociedades de Controle, eles são sujeitados a moldes em um processo de modulação contínuo. O controle é exercido em meio aberto, ao invés de um controle em espaço fechado; a educação escolar passa a ser permanente; as fábricas que produziam bens tornam-se empresas que vendem serviços; a mídia destaca-se enquanto produtora de subjetividades homogeneizadas; a informação e o conhecimento tornam-se mercadorias, sendo capitalizados ao extremo; as imagens são efêmeras; os valores e tradições descartados; guetos e favelas multiplicam-se; o tempo e o espaço comprimem-se cada vez mais; o fluxo de informações é instantâneo; as imagens de sucesso e de bem-estar são vendidas, comercializadas.
O imperativo da flexibilização amplia-se: as relações conjugais, os contratos de trabalho, a subjetividade, o capital, as informações, as fronteiras, o mercado diluem-se, se tornam líquidos, voláteis (BAUMAN, 2001). A mídia aparece como um grande agenciador dos fluxos capitalistas, vendendo modelos de vida universalizados; de trabalhadores produtivos passamos a consumidores compulsivos de objetos oferecidos pela mídia como portadores da felicidade (GUATTARI ; ROLNIK, 1986).
A infância como objeto construído no bojo das práticas
A partir do século XVIII, segundo Donzelot (1986), aparece uma abundante literatura, cuja temática era a “conservação das crianças”. Com a emergência dos Estados Modernos e a aliança construída com a Medicina e com as também nascentes Ciências Humanas, uma problemática torna-se central – a do governo das populações, em especial, a gestão das crianças.
À medida que as lentes de determinados especialistas vão se apropriando da infância como objeto de atenção, estes a vão constituindo de uma certa maneira, fixando-a em lugares específicos, ou seja, em espaços considerados ideais para o cuidado e educação dessa população (COSTA, 1989).
Concomitante à apropriação da infância como objeto de um olhar tecnicista, inúmeras práticas a configuram nos contornos de uma preocupação em defini-la enquanto uma fase de desenvolvimento específica, caracterizando este momento em etapas sucessivas que remetem a estágios de evolução cognitiva, emocional e biológica.
A partir de então, a criança é enquadrada como etapa crucial para a formação do homem racional e produtivo, idealizado pelos teóricos da psicologia aplicada à educação e pelos médicos em suas cruzadas higienistas, levando em consideração os parâmetros de uma sociedade capitalista e da ciência moderna (FOUCAULT, 1997; COSTA, 1989; RAGO, 1985; RIBEIRO, 2003).
De acordo com Dozenlot (1986), os médicos entram no campo da educação através da Psiquiatria, em especial, a Psiquiatria Infantil, que passou a visualizar na criança uma pré-síntese das diversas patologias que se manifestavam nos adultos. A escola foi o laboratório de observação das tendências anti-sociais designadas pela Psiquiatria Infantil.
Para Patto (2005), o pensamento educacional brasileiro buscou nas contribuições dos teóricos europeus e americanos do século XIX, que afirmavam a importância dos fatores individuais na produção do chamado sucesso ou fracasso escolar. Tendo em vista este modelo individualista, o ensino tradicional vai cedendo lugar às concepções da Escola Nova, fundamentada nas teorias que privilegiavam as especificidades do desenvolvimento infantil. Conseqüentemente, a educação passa a se preocupar em utilizar testes psicométricos para avaliar as diferenças entre as potencialidades dos alunos.
Conforme Scoz (2005), a educação brasileira, sob a égide da concepção meritocrática e individualista do capitalismo americano, enfatizou cada vez mais o indivíduo, subsidiando-se em conhecimentos da Psicologia sobre os aspectos afetivos e emocionais relacionados à aprendizagem.
Já no campo médico, Ribeiro (2003) aponta que, nas primeiras décadas do século XX, no Brasil, os médicos higienistas vão atuar em várias frentes, visando formar o adulto ideal através de intervenções preventivas, voltadas para a primeira infância, utilizando diversas estratégias em diferentes instituições, entre elas a escola.
Passamos a definir o que é ser criança, o que uma criança em tal e tal idade faz, o que pensa e como pensa, o que deve sentir, como deve se alimentar e se vestir, quais são os cuidados necessários para a promoção de seu desenvolvimento integral, enfim, produzimos uma cartilha detalhada a ser seguida por todos os responsáveis pelo desenvolvimento das crianças.
Ao problema “das crianças” (quer dizer de seu número no nascimento e da relação natalidade - mortalidade) se acrescenta o da 'infância' (isto é, da sobrevivência até a idade adulta, das condições físicas e econômicas desta sobrevivência, dos investimentos necessários e suficientes para que o período de desenvolvimento se torne útil, em suma, da organização desta 'fase' que é entendida como específica e finalizada). Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de crianças, mas o de gerir convenientemente esta época da vida. (FOUCAULT, 2003, p. 198).
A infância tornou-se uma natureza, uma essência que apresentaria modos específicos de se expressar, por exemplo, o brincar. Temos observado uma preocupação crescente não só de especialistas, mas também de pais e de diversas instituições com os modos de brincar das crianças e com os brinquedos que elas manipulam. Poderíamos até afirmar que houve uma apropriação do brincar como fonte de produção de saberes-poderes.
Tendo em vista estes acontecimentos, no próximo item, passaremos a explorar os modos de apropriação do que designamos tecnologia do brincar, ressaltando como o lúdico foi transformado em um dispositivo de governo das crianças. Foucault (1997) define tecnologia como um mecanismo, uma técnica, uma estratégia, uma prática, um fazer com objetivo de normalizar, disciplinar e controlar os corpos para torná-los produtivos e dóceis politicamente.
O brincar como natureza e expressão da infância sendo constituídos por práticas concretas
Conforme Kishimoto (1998), os jogos, a brincadeira e os brinquedos tornaram-se objetos de pesquisa de historiadores, de antropólogos, de pedagogos e de psicólogos. Desde a Antigüidade, filósofos já teciam considerações a respeito do brincar, no entanto, é recente a preocupação das Ciências Humanas com o brincar enquanto uma particularidade da “infância”.A psicologia infantil, constituindo-se sob suas diversas formas, tendo origem no pensamento romântico e na biologia ao mesmo tempo, apossou-se do jogo, (...), construindo uma ciência do jogo que torna totalmente natural esse fenômeno, ocultando sua dimensão social para fazer dele o lugar de uma expressão espontânea da criança [...] (BROUGÈRE, 1998, p. 98).
Para alguns teóricos, sobretudo para os psicanalistas, é moderna a construção do brincar como atividade natural e própria da criança, pois, para os representantes do construtivismo sócio-histórico, o brincar é uma linguagem e toda linguagem é uma expressão histórico-cultural. Vygotsky já afirmava a dimensão histórico-cultural da linguagem, vista como processo em construção, sendo o brincar um veículo de mediação da interação do ser humano com o mundo (OLIVEIRA, 2004; BROUGÉRE, 1990).
Poderíamos dizer que as prescrições a respeito do brincar e seu uso nas instituições de educação e proteção das crianças emerge simultaneamente com a invenção da infância, na modernidade.
Ariès (1978) relata que, no Antigo Regime, do século XIII ao XVI, as crianças participavam intensamente da vida comunitária. Não havia a prática de separar os corpos em função de faixa etária ou classe social em espaços diferenciados. As festas e os jogos eram atividades compartilhadas entre crianças e adultos de diferentes classes sociais.
O sentimento de cultivar a infância é recente na história, segundo Áries (1978). No período medieval, a infância não era vista como uma fase específica pela qual deveria se nutrir um sentimento especial. Não havia uma preocupação em distinguir a criança do adulto como hoje, tanto que, nas mais diferentes atividades sociais, era comum observar as crianças participando, juntamente com os adultos, de festas, do trabalho, de brincadeiras e de jogos.
Predominava a concepção teológica da vida, onde o desenvolvimento era visto sob uma perspectiva mais quantitativa do que qualitativa. Deste modo, a criança transitava para a vida adulta rapidamente.
O sentimento ligado à infância surgiria, basicamente, a partir do nascimento dos Estados Modernos; do aparecimento do Capitalismo e da Industrialização; da emergência da medicina moderna e suas preocupações em cultivar a vida e torná-la saudável, buscando diminuir os altos índices de mortalidade infantil; do desenvolvimento da Educação Escolarizada e da reconfiguração das famílias, que passariam a funcionar centralizadas nos filhos e na sua educação (ARIÈS, 1978; DONZELOT, 1986).
A noção de cuidado da infância com objetivos moralizantes e preparadores desta para uma sociedade industrializada vai surgindo e a família, assim como a escola, se tornaram as duas instituições pilares na educação da criança para uma vida adulta sadia e produtiva (ARIÈS, 1978; DONZELOT, 1986).
Com o nascimento da sociedade industrial, os adultos foram concebidos como trabalhadores, devendo produzir mercadorias, sendo, desta forma, afastados da atividade lúdica. A brincadeira tornou-se uma prática restrita às crianças. Opera-se uma separação entre a criança e o adulto, entre a família e a comunidade e entre as classes sociais.
Uma outra transformação remete aos brinquedos, que de produções artesanais tornaram-se mercadorias produzidas em grande escala e distribuídos em uma rede de comércio (BROUGÈRE, 2000). Esse processo de mudança de produção, de uma escala artesanal para uma industrial, é um fenômeno que na época se generaliza, à medida que os modos de produção se tornaram mecanizados, sendo resultado de um investimento de capital privado em máquinas, em mão-de-obra e em instalações, funcionando em um sistema capitalista produtivo e industrial.
Com o desenvolvimento dos veículos midiáticos, na sociedade contemporânea, as imagens de ícones de desenhos animados, de programas e músicas “infantis” são utilizadas para intensificar a venda de brinquedos, vendendo aos consumidores modelos de subjetividade, ou melhor, alguns modelos, pois o capitalismo operaria através da restrição e homogeneização dos processos de subjetivação (GUATTARI; ROLNIK, 1986).
Nesse projeto de homogeneização dos modos de existência desde a primeira infância, a família e a escola foram eleitas as principais instituições de cuidado e educação, em um primeiro momento, pelos médicos higienistas (COSTA, 1999), o que prevalece até hoje. Na atualidade, poderíamos acrescentar o aparecimento da mídia (leia-se televisão e computadores) como agentes de constituição de subjetividades universalizadas (GUATTARI ; ROLNIK, 1986).
À família é atribuída a responsabilidade de zelar pelo brincar de sua prole. É ela que deve observar as regras prescritas pelos especialistas da pedagogia e da psicologia a respeito dessa ação, considerada essencial para a estimulação do desenvolvimento afetivo, cognitivo e físico da criança. Os pais são convocados a estimular o desenvolvimento dos filhos, utilizando um arsenal de brincadeiras, cantigas de roda, fábulas, passeios com vistas ao entretenimento e adquirindo uma lista interminável de brinquedos, a partir de uma determinada faixa etária e da fase de desenvolvimento em que se encontrariam as crianças.
Em seu livro A criança e seus jogos, a psicóloga, pedagoga e psicanalista argentina Arminda Aberastury (1992) relata, na introdução, que seu texto é fruto de um pedido de seu filho, Pichon Rivière que queria “algo não muito técnico”, pois ele
devia preparar um programa de televisão sobre o significado do brinquedo em cada idade e achava que seria interessante transmitir aos pais experiências quotidianas ou algo que lhes fosse útil para compreender os filhos. É normal aos quatro anos determinado modo de brincar? Corresponde à idade cronológica? Qual o presente adequado para um bebê de oito meses? Será conveniente dar o mesmo presente ao filho de dois anos e ao de quatro, para evitar ciúmes? Por que algumas crianças não brincam? Por que brincam somente com determinado brinquedo e de uma só maneira com monotonia que entristece? Por que há outras crianças cuja atividade é puramente motora e que se movimentam durante todo o dia, mas cujo movimento não é um verdadeiro brinquedo? (ABERASTURY, 1992, p. 11).
Segundo Aberastury (1992), parece natural e até uma responsabilidade dos pais ter conhecimentos técnicos a respeito do brincar e do desenvolvimento infantil para cuidarem de seus filhos. Essa extensão da psicanálise por todo corpo social é apontada por Castel (1978), que critica o excesso de psicologização do cotidiano.
Um outro ponto a ser interrogado é o fato de que os pais tenham tamanha responsabilidade pelos filhos, uma vez que o mundo não começa em papai-mamãe, não é derivado deles; o que fazem é abrir e fechar portas, ou seja, ser pontes que conectam a criança com o mundo (DELEUZE, 2004).
É necessário ressaltar a dimensão que a mãe ganhou nessa tarefa de educação e cuidado da criança. Fica explícito um atravessamento da categoria gênero na responsabilidade imputada à mãe quanto ao desenvolvimento integral dos filhos. De acordo com Bujes (2000; p. 212):
“(...) as famílias e muito especialmente as mães (...) não escapam de certas exigências que lhes são impostas, a partir de um discurso de responsabilização que coloca na figura materna o peso pelo sucesso ou fracasso nas trajetórias escolares de seus filhos/filhas”.
Os pais, nas famílias de classe média também, foram praticamente obrigados a matricular os filhos em pré-escolas, com o objetivo de estimular a socialização das crianças. Quanto mais cedo ingressassem na escola e recebessem estímulos dirigidos, maiores seriam as chances de sucesso profissional futuramente, de acordo com os adeptos das pedagogias tecnicistas modernas. Segundo Bujes (2000), seriam as mães de classe média as principais leitoras dos manuais pedagógicos e as consumidoras dos serviços de educação infantil.
Já para as famílias populares, a educação infantil se tornou uma política compensatória, principalmente nos países considerados em desenvolvimento, de acordo com Rosemberg (1994; 2003), pois o Estado passaria a oferecer, para as mulheres representantes das classes populares, vagas para seus filhos nas creches enquanto elas trabalhassem, em uma concepção mais de assistência social do que de uma política educacional, como aconteceu na segunda metade do século XX, no Brasil. A pré-escola infantil de massa, no Brasil, é criada justamente por iniciativa do UNICEF e da UNESCO, outro organismo ligado à ONU, como veículo de integração social e como uma política de cunho mais assistencial do que do âmbito da educação (ROSEMBERG, 2003).
Porém, é importante lembrar que existem propostas de educação infantil e de utilização do lúdico que subvertem as demandas capitalistas e que rompem com os modelos médico-psicológicos que pretendem normalizar os corpos. O brincar, à medida que possibilita a experimentação, pode ser um dispositivo de resistência ao controle social e até mesmo um mecanismo de produção de si, que amplia a criação de novos mundos, novas formas de pensar, sentir e agir. No entanto, neste artigo, objetivamos problematizar a apropriação do brincar como instrumento de disciplina, normalização e controle em uma sociedade capitalista que mercantilizou a educação.
E o que uma criança, nos primeiros anos de vida, fará em uma escola pautada em uma razão instrumental capitalista? Ela brincará, porém este brincar só será espontâneo em alguns momentos de recreação. Nas pré-escolas, de modo geral, o brincar foi transformado em um dispositivo didático instrumental, de acordo com pesquisa realizada por Wajskop (1999): a música; as cantigas de roda; os desenhos; os contos; o folclore (lendas); os brinquedos de montar; os jogos de regras foram transformados em instrumentos de promoção do desenvolvimento integral das crianças pequenas, inseridas cada vez mais precocemente nos códigos de uma sociedade disciplinar e capitalista, na atualidade. O relato de Guattari (1985, p. 52) ilustra nossa afirmação:
[...] as crianças, diante da televisão, “trabalham”, assim como “trabalham” na creche, com técnicas de jogo que são concebidas para melhorar seus desempenhos perceptivos. [...] Não seria concebível, na sociedade atual, que se pudesse formar um trabalhador sem esta preparação que se faz na família, na creche, antes mesmo da entrada na escola primária. [...] A criança não aprende somente a falar uma língua materna, aprende também os códigos da circulação na rua, um certo tipo de relações complexas com as máquinas, com a eletricidade, etc [...] e estes diferentes códigos devem integrar-se aos códigos sociais do poder. Esta homogeneização das competências semióticas é essencial ao sistema da economia capitalista.
Trata-se de uma intensificação dos processos de gestão calculada dos atos mais cotidianos e capilares das crianças. O brincar teria sido esquadrinhado pelos olhares vigilantes e avaliadores, entrando em um regime de visibilidade contínua. Como as crianças brincam, quando, com quem, com quais instrumentos, em que idade passou a ser matéria de interesse dos pais, dos educadores, de psicólogos, de médicos, de agentes de organismos de proteção social, entre outros. O brincar foi ordenado no tempo e no espaço, organizado e dirigido com fins bem delimitados, objetivando e subjetivando pequenos corpos nas semióticas capitalistas.
Um olhar examinador observa incessantemente as crianças em suas brincadeiras. Os menores desvios frente ao esperado como normal, em cada fase do desenvolvimento, pode acionar mecanismos de atendimentos vários: com neurologistas, psiquiatras, psicólogos, professores de educação física e psicopedagogos.
O jogo se torna um local crucial para a observação e normalização e é introduzido como dispositivo pedagógico. [...] É a observação, o monitoramento e, acima de tudo, a normalização da seqüência e dos efeitos do desenvolvimento que se tornam o dispositivo pedagógico central (WALKERDINE, 1999, p. 181).
A prescrição de tratamento também remete ao brincar e à utilização de jogos como estratégias de intervenção para promover saúde mental e física. O ludodiagnóstico e a ludoterapia são exemplos desse modo de apropriação, além da indicação da prática esportiva. Para alguns teóricos, a realização de atividades físicas, como os esportes, permitiriam a “internalização” de regras, a promoção da sociabilidade e a cooperação, principalmente no caso dos esportes coletivos. Há profissionais que acreditam que esportes de luta, por exemplo, podem ser importantes para a expressão da “agressividade” de um modo aceito; outros indicam exercícios físicos para crianças diagnosticadas como “hiperativas”.
As brincadeiras e os jogos permitiriam a elaboração de supostos conflitos inconscientes. O brincar foi enquadrado pela perspectiva psicanalítica aplicada no campo pedagógico e nas psicoterapias dirigidas às crianças.
O brincar foi constituído por algumas práticas concretas de especialistas representantes de algumas teorias como dispositivo disciplinar, sendo capturado por tais teorias, que o distribuem em função de classe, raça e gênero, em espaços específicos, tais como: os playgrounds, as brinquedotecas, as escolas, os clubes, as colônias de férias, as creches e as pré-escolas, os programas da ação social em shoppings e hotéis com recreacionistas e em consultórios de psicólogos, de psicopedagogos e de psicanalistas que instrumentalizaram o brincar acriticamente.
O brincar também foi inserido em uma temporalidade produtiva, afinal o tempo e local das brincadeiras deve obedecer à lógica da utilidade constante, das práticas regulares de formação do suposto ser em desenvolvimento. Não se pode brincar a qualquer momento; mesmo o brincar considerado “livre” ou espontâneo deve ter um horário definido, pois, do contrário, tanto o excesso como a falta poderia afetar negativamente o desenvolvimento, de acordo com os adeptos das prespectivas tecnicistas.
O brincar também pode ser operado como recompensa e punição. Foucault (1997) já afirmou que toda punição, na sociedade disciplinar, deve ser terapêutica. Quantas oficinas de esportes em instituições repressoras têm este objetivo? Um exemplo é a abertura de vagas em concursos para os professores de educação física nas FEBEM´S no estado de São Paulo. Os exercícios devem reabilitar, reeducar os adolescentes, normalizando-os, tornando-os submissos e produtivos. Zaluar (1994), em estudo referente às pedagogias utilizadas nos projetos ligados às políticas sociais com adolescentes de periferia, relatou a importância dos esportes nesses projetos, enquanto instrumentos de ressocialização desta clientela.
Guattari (1985, p. 52) compartilha do modo foucaultiano de pensar, afirmando o seguinte “[...] a precocidade do adestramento da criança implica uma mudança de método. Este tende a recorrer, cada vez menos, a sistemas de coerção materiais – pode-se dispensar a palmatória, o castigo [...]”. Para Guattari (1985), há uma substituição de mães e professoras pela televisão, nesta tarefa de iniciação aos códigos sociais.
O imaginário da criança atualmente escapa, por exemplo, ao sistema de conto de fadas, e mesmo a um certo tipo de devaneio. A educação televisual modela o imaginário, injeta personagens, cenários, fantasmas, atitudes, ideais; ela impõe toda uma micropolítica das relações entre os homens e as mulheres, os adultos e as crianças, as raças, etc [...] Ela ocupa o lugar de um certo tipo de conversa, de leitura, etc (GUATTARI, 1985, p. 53).
Certas crianças, hoje, têm na televisão, nos videogames e nos computadores os companheiros prediletos. Não se trata de ser maniqueísta e achar que as máquinas são prejudiciais à saúde mental ou algo do gênero, porém, o que consideramos preocupante é o fato das relações ficarem restritas ao contato com as máquinas, o que é muito comum atualmente.
Dornelles (2005) relata que muitos especialistas investiram na infância moderna como um objeto natural e, pautados nessa referência, consideram as brincadeiras com tecnologias mais avançadas por um grupo de crianças como prejudicial, da mesma forma que descrevem as maneiras de viver de crianças da periferia como desviantes do modelo ideal de infância, uma vez que muitas delas não vão à escola, trabalham ao invés de brincar, vivem nas ruas etc.
Segundo Dornelles (2005), para os técnicos da norma, toda ação das crianças que escapa aos modelos prescritos como ideais é percebida como potenciais perigos e devem ser submetidas aos dispositivos de controle. Construímos a “infância” como um bibelô e muitos missionários protetores da “infância” a cultivam como uma peça rara, digna de se tornar monumento, congelada no tempo, esquecendo que os objetos não são naturais e que também não têm uma substância ou uma unidade, mas são pura multiplicidade.
Podemos perceber como as relações de poder têm uma positividade, como afirmou Foucault (1997). Elas produzem realidade, saberes, bem como modos de existência e o que relatamos acima exemplifica esse processo em seu engendrar de modo contundente. O poder é relacional, trata-se de exercícios de sujeição e resistência, em nível micro, não somente um efeito da esfera macro-política em suas manobras de dominação, mas operando também através de práticas cotidianas minúsculas. Sempre imaginamos as relações de poder como coerção e repressão, porém, para Foucault (1997), elas incitam, investem os corpos, tornando-os hábeis e dóceis; fabricam modos de pensar, de sentir e de viver.
Concluindo, o que pretendemos apontar neste texto é como práticas específicas de especialistas de algumas áreas construíram o brincar como dispositivo de controle da infância na modernidade. Interrogamos o processo de instrumentalização do brincar pelas práticas de especialistas vários, que sujeitaram as crianças a certos modos de viver, pensar e agir, tendo como parâmetro uma produção de corpos infantilizados, obedientes e capacitados para servir aos imperativos capitalistas.
Pensamos que, com estas considerações, podemos abrir brechas para outros modos e perspectivas de apropriação do brincar, que rompam com os universos fixos e normalizados, permitindo a emergência de novas maneiras de experimentação da vida através do brincar, as quais não estejam aprisionadas nas semióticas capitalistas e/ou em uma racionalidade instrumental.
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Endereço para correspondência
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Recebido em: 05/09/2006
Aceito para publicação em: 22/01/2007
Notas
* Psicóloga e Mestre em Psicologia e Sociedade pela UNESP.