Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
ARTIGOS
Fachadas, botequins e ratos: um olhar pós-moderno sobre a cidade
Facades, bars and rats: a post-modern look over the city
Heloisa Guimarães Peixoto Nogueira *
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
RESUMO
A autora se propõe a discutir não os acontecimentos, porém o reconhecimento da função de produção de sentido dos construtos literários de uma cidade que se desprende de si, como centro, vislumbrados no conto de Rubem Fonseca A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. A metáfora da perda da origem aplica-se tanto à deformação da cidade como corpo arquitetônico, corpo de memórias e mentalidades sociais quanto como corpo de escritura, linguagem simbólica que recria o real da cidade por força do imaginário. São, simultaneamente, a realidade e a ficção que se fundem e se desprendem juntas formando novas sintaxes metafóricas.
Palavras-chave: Cidade, Memórias, Linguagens.
ABSTRACT
The author doesn’t propose to discuss the happenings but the recognition of the production of sense of the literary construct in a city which detaches itself, as a center, glimpsed in Rubem Fonseca’s short story “The art of walking on Rio de Janeiro’s streets”. The metaphor of the origin loss is applied to the deformation of the city as an architectural body, memories and social mentalities’ body, and it is also applied to the writing body, symbolic language which recreates the real of the city through the force of the imaginary. Simultaneously, reality fuses with fiction and detaches from it forming new metaphorical syntaxes.
Keywords: City, Memories, Languages.
As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos,
ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto,
que as suas regras sejam absurdas, as suas
perspectivas enganosas, e que todas as coisas
escondam uma outra coisa.
Ítalo Calvino
Leio, em Rubem Fonseca, A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro, e me pergunto se poderia considerar esta obra datada. Datar é demarcar tempo, é construir uma história que admite, para quem a lê, a presença de uma circunstância, de um modo de dizer e pensar sobre a vida. Poder-se-ia supor, em conseqüência, uma eventual datação nas obras póstumas, que se tornaram históricas porque defasadas pelo tempo, facilmente entendidas como obsoletas em gosto, estilo ou temática. Tal idéia remonta a um modelo de análise literária que se apóia no julgamento da figura daquele que narra a história, do modo como a narra e do tempo em que a história é narrada, o que provavelmente condicionará o alcance de suas dimensões estéticas e de sua valência cultural no tempo. A obra e seu tempo constituem, nesta circunstância, os referenciais básicos para a compreensão de uma estética da produção e da representação.
O conceito de datação parte do tempo cronológico como suposto para a tomada de decisão daquilo que pode ser datado. Proponho novas maneiras de olhar a questão, no sentido da relação dialógica que se pode estabelecer entre literatura e leitor. Os critérios e a qualidade da recepção da obra literária estariam assegurados pela mediação efetivada pelo leitor entre o aspecto estético e histórico, no reatamento da ligação do fenômeno passado à experiência presente. Mesmo que em sua narrativa o autor renuncie ao tempo como objeto de seu relato, a produção de sentido será estabelecida pelo leitor no reconhecimento e na problematização da significação dos contextos históricos “presentificados”. Assim, história e ficção assumem a mesma estatura epistemológica: são discursos que fazem parte da experiência e vivência presentes, e esta se torna a base para reelaborar os conteúdos do passado. Nesta dimensão, o exame da obra literária não é mais o da obra em si, mas do recorte e do limite assumidos na relação da linguagem com o corpo social.
Rubem Fonseca é um autor contemporâneo. No conto em questão, utiliza uma voz onisciente na figura de uma personagem – Augusto - para tematizar sobre as contradições dos tempos atuais. Augusto olha e percorre a cidade com olhos de passado, mas desde o presente; julgados um à luz do outro. Por isso essa fala não é ingênua, deslumbrada. É uma fala irônica, fendida, - fala-mosaico - onde a realidade social só pode ser assumida na condição textual, discursiva, fragmentária; eis seu valor e também sua limitação.
O que aqui se discute é a natureza da relação entre a história e a literatura: uma história revisitada pelo olho de seu personagem e narrada à luz de uma clarabóia que convive, pela diferença, com um presente de relações intransitivas e violentas. História real e ficcional simultaneamente, porque o que está em julgamento, em exame, não são os acontecimentos, porém o reconhecimento da função de produção de sentido presente aos construtos literários. Kelly – a personagem prostituta da história – sinaliza em direção à construção de um novo leitor, um leitor-modelo que deve ser ensinado¬, usando a terminologia de Umberto Eco. Um leitor que procure criar além dos sinais da escritura, preenchendo as lacunas e os espaços vazios do texto, livre e isento de toda contaminação de um olhar datado. Porque, na atualidade, todas as histórias são versões, interpretações, construções de uma narrativa que se quer sem culpa, sem espelho para se reconhecer numa origem. Por isso, é possível estabelecer uma comunicação mediada entre as formas estéticas da obra literária em suas implicações históricas porque, mais do que nunca, o passado só pode ser examinado à luz do presente, num confronto inexorável.
Em xeque as relações do escritor com o mercado, questão esta estrutural e incômoda em toda a história de nossa literatura, preocupação central de Rubem Fonseca neste conto. Em estudo comparativo sobre as obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto, Sevcenko (1989) descreve os artifícios utilizados pelos escritores do início do século XX para assegurar sua produção literária e seu lugar como escritor: ou se engajavam na carreira de funcionário público, na função de jornalista ou tornavam-se políticos. Sustentar-se economicamente por via da literatura era praticamente impossível, razão pela qual muitos de nossos escritores construíram trajetórias ambivalentes, parte dedicada ao Pensar, ao Ser; parte ao Agir, ao Fazer.
Epifânio – outro personagem do conto – encarna o ideal daqueles que pretendem continuar o projeto de ser escritor. Funcionário numa empresa de tratamento de águas e esgotos ganha um prêmio na loteria, abandona o emprego e se propõe a viver para a literatura. Epifânio realiza a catarse, renomeia-se Augusto – o “majestoso”, o “magnífico”-aquele que se pode permitir ser diletante. Com esta parábola, Rubem Fonseca parece nos falar do mito sofredor do artista, que a tudo sacrifica em nome da arte, e da conseqüente perda da aura no momento de a criação literária e do artista tornarem-se mercadorias. Augusto – o andarilho-escritor – é o personagem que assume autonomamente a especificidade de sua existência ao se propor o projeto de escrever um livro sobre A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. O título remete a uma construção narrativa cuja metodologia contempla, no andar peripatético pelas ruas – Solvitur ambulando –, o símbolo de um olhar simultaneamente exterior e perscrutador, não mais enfeitiçado pela cidade, mas por ela seduzido na busca de penetrar em suas intimidades.
Augusto é o personagem que busca a legibilidade da cidade. É o personagem que carrega simultaneamente o espanto e o fascínio de um olhar dividido entre o pós-moderno e o Rio antigo. Augusto é o ingrediente fundamental não só do processo de contar a história como também da própria história. É o personagem-testemunha de uma nostalgia que apalpa as coisas da cidade; repousa sobre elas, viaja no meio delas, sente seus cheiros, mas delas não se apropria. É apenas protagonista.
Augusto sai de si e traz o mundo da cidade para dentro de si, mas dela não toma posse como coisa sua. Anda dias inteiros e, às vezes, noites; olha atentamente as fachadas, os telhados, as portas, janelas, os cartazes e os letreiros; os buracos nas calçadas, a lata de lixo, o bueiro, o chão. Seu olhar, porém, é exterior, olhar-superfície. Vê também os passarinhos, as árvores, as ruas, os veículos que se cruzam, as pessoas. Olha como estrangeiro-andarilho (BRISSAC, 1995, p. 361-365), que tenta adivinhar as espessuras mitológicas, os significados escondidos atrás das fachadas, não como flâneur, que faz do café sua sala de visitas e das bancas de jornal sua biblioteca. Augusto reconstrói os espaços da cidade do Rio de Janeiro em tempos simultaneamente distintos – o passado e o presente – pelo ângulo das diferenças. Outra qualidade deste olhar: peripatético, e também microscópico, devassador. O olho é seu instrumento, a câmara intencional que anda, registra, que pergunta, que narra. Mas não há perspectiva neste olhar; não há distanciamento crítico. É um olho-bisturi que disseca, corta, percorre a cidade como quem procura o núcleo e que, ao percebê-lo esgarçado, paroxístico, caótico, desintegrado, faz-se estático, vazio, indiferente.
A cidade, para Augusto, é espaço geográfico, arquitetônico; é espaço de relações; é tempo que refaz o tempo e, ao fazê-lo, simultaneamente, destrói e coloca em julgamento as representações e mentalidades sociais. A cidade é, para Augusto, utopia, devir, mito e apanágio da modernidade em crise. É entidade matriz recriada pelo discurso, pelo sentido do texto. A cidade é o personagem que se refaz na palavra como escritura e que dá forma aos desejos.
O centro da cidade é o lugar por onde o autor deambula na oscilação contínua entre pertencimento e desenraizamento, entre o passado da cidade e o presente, entre a memória e o esquecimento. O centro da cidade marca a busca da fixação de um olhar de origem, de um olhar radical, datadamente seminal. O centro representa a origem, simbolizada nas memórias do Velho, do projeto de uma cidade que se pensou compartilhada, vista a partir de um sobrado – moradia de Augusto – que ficava em cima de uma chapelaria feminina. O centro foi onde a cidade do Rio de Janeiro começou sua história, guardada por morros, alguns dos quais são apenas memórias. O centro, metonímia desta cidade, outrora pretendida como cartão postal, só pode ser abarcado por partes, com o olhar.
Mas o centro também é o vazio; exige olhar meticuloso auxiliado por lupa para desvendar, em meio aos labirintos, os lugares dessa memória – o centro do centro.
Na deambulação espacial daquele dia, Augusto chega ao Campo de Santana. Olha as árvores imóveis, enfiadas na terra, em silêncio, pensa nelas, passeia entre elas, acaricia-as, tem vontade de se ajoelhar. Como uma árvore subterrânea, penetra nas profundezas da gruta-mãe natureza e fica imóvel como uma pedra a noite inteira, enquanto o parque dorme. A árvore é o lugar da inscrição e o inscrito é a linguagem. Augusto é envolvido pelas árvores à sua volta, beija-as, abraça-as; sente leveza em seu corpo como se fosse voar. A comunhão com o centro, o sentido do pertencimento, a volta ao líquido amniótico em redor daquilo que se quer vida é rompida na manhã de outro dia por Augusto, ao sair do parque de volta ao tempo controlado pelo relógio – relógio “de pulso”, marca “Casio Melody”. Não mais é o espaço que assegura, nas formas e posições assumidas pelos objetos, o significado das relações. É o tempo exterior que regula o ritmo das atividades. O relógio de pulso, símbolo da permanência e da introjeção de um tempo não mais cardíaco, impõe seu ritmo eletrônico-musical e submete a vontade à modernidade funcional.
As lembranças do passado insistem em permanecer no olhar de Augusto: cenas do pai, do avô, de conversas com mulheres nas ruas; as lembranças da história de ruas e praças; cenas em que a realidade e a ficção parecem confundir-se quando olhadas sob uma lente de aumento.
A clarabóia é a lente, o foco por onde a escrita se constrói, filtrada, indireta, inacessível à luz direta do sol ou da lua. Uma escrita que não mais revela o dentro e o fora porque não há interior. Por isso o olho é extático, é excêntrico (HUTCHEON, 1988, p. 88). A clarabóia é proximidade e distância de luz, simultaneamente, e também é transparência; reflete, como num espelho, o vazio das formas geométricas da cidade e o emaranhado convulso das existências humanas.
O tempo e o espaço são categorias teleológicas, bases da utopia, da fé no progresso, do mito de origem e da harmonia metafísica entre meios e fins presentes à modernidade que se esvai. O vazio resultante é fruto do deslocamento da noção de centralidade para pura exterioridade, para as margens.
O olhar e a audição são elementos perceptivos que podem ser examinados sob o mesmo aspecto. O prazer no ouvir, segundo Chauí (1995), cumpre um papel preciso: traz o invisível – os pensamentos – ao visível. O século XX experimenta uma qualidade de olhar que os séculos anteriores desconheciam: o olhar do corpo transportado em velocidade, no automóvel, e o desaparecimento rápido das coisas do alcance visual. McFarlane e Bradbury (1989) comenta que “fixar os olhos é dar toda a atenção a cada coisa em separado e deixar de lado o que está em volta, é captar o mundo como uma soma de coisas avulsas, é diferenciar demais [...]” (p.70). Nunca as pessoas tanto precisaram desenvolver sua capacidade de olhar porque no simples olhar do presente o que se patenteia é a separação, a falta de elo entre o olhar e o ver, o ver e o ser visto, o ver a parte e compreender o todo. As pessoas olham como quem procura e não acham... os referenciais perdidos.
A orelha mutilada de Augusto, neste conto, representa o deslocamento da percepção auditiva que se desloca para a visual, representada pela predominância de um sentido que tudo apreende, tudo registra, mas nada fixa como memória significativa. Não é que o ouvido tenha deixado de ouvir; a onipresença das situações de choque introduziu na sensibilidade humana uma alteração qualitativa, que a obriga a desenvolver outra percepção, em detrimento da lembrança. A aptidão do olhar, conforme Simmel, coloca-se como o primeiro sentido de que nos valemos para o conhecimento; é o que nos faz descobrir mais diferenças, distinguir os movimentos, as ações, as figuras. O órgão da vivência passa a ser a percepção por excelência, capaz de interpretar choques, enquanto o órgão da experiência é a memória. No mundo moderno, afirma Rouanet (1993, p. 64), todas as energias psíquicas têm que se concentrar na consciência imediata para interceptar os choques da vida quotidiana, o que envolve o empobrecimento de outras instâncias como a memória, e com isso perde-se todo contato com a tradição, transformando-a em vítima da amnésia. O império do olhar assume a exigência panóptica da modernidade e seu centro fractaliza-se como exteriorização, diferença e dispersão.
O reconhecimento desta realidade histórica e existencial de um passado é ironicamente metaforizado em tudo aquilo que se comporta como tal. Não há paisagens no relato de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. Somente fachadas, exterioridades, cenários que compõem uma história que se foi e que resiste tenazmente em alguns sobrados “vazios”. O sobrado onde mora Augusto, antigo depósito de mercadorias – chapéus que entraram em desuso – tem mais de 90 anos. O sobrado é o salão vazio, os quartos, o banheiro de louça inglesa, os ratos e uma clarabóia. O sobrado é o lugar das memórias que projetam a infância: o pai fumando cigarro de palha e rindo para as mulheres; a fachada destruída que deu lugar a uma imensa placa luminosa de acrílico; a lâmpada de teto que, próxima do olho através da lente de aumento, transformará suas pestanas em garras... o lugar do imaginário. O sobrado lembra outro sobrado onde morava o avô feiticeiro, a avó, as tias, primas... E sobrados para todo uso: onde o governo fabricava dinheiro, a nova biblioteca, o arquivo, a velha faculdade, o antigo quartel-general do exército, a estrada de ferro, o cinema Ideal de onde se podiam ver as estrelas no céu, uma Rua do Mercado que não tem mais mercado algum...
Anômalas são também as relações em A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro entre Augusto e Kelly, a prostituta; Augusto e Raimundo, o pastor-camelô; Augusto e os mendigos, como a família Gonçalves, que mora em uma casa de papelão e se recusa a abandonar o centro da cidade. Mendigos, marginais e prostitutas, elementos sociais que povoam o centro da cidade numa expressão de resistência à dissolução social. Resistem, mas não se unificam; não se intercomunicam nas dificuldades, não constroem a solidariedade oposta à solidão, não somam esforços no sentido da agregação comunitária, da sobrevivência.
Veja-se, por exemplo, os Gonçalves – família de negros e casal agregado branco, com filha, no total somam doze – vivem sob a marquise do Banco Mercantil do Brasil. A casinhola – feita de tábua abandonada por obras do metrô, folhas de papelão, embalagem de geladeira grande – a casinhola é simulacro. As “paredes” da casa não apenas se montam e desmontam em função da atividade exercida no local durante a semana, como a própria idéia de casa é simulada; finge ter o que não tem; finge ser o que não é. A representação do avesso ocorre desde a negativa a aceitarem-se como mendigos. O avesso perpassa os hábitos, os comportamentos, o estilo de vida; aparece até mesmo no tratamento dada à criança, Marcelinha, filha de Ana Paula e Marcelo.
Ana Paula dá banho de sol na menina nua; troca suas fraldas, lava as sujas, pendura-as num varal de arame onde se lê TurisRio, junto com bermudas, camisetas e calças jeans. São movimentos, representações de uma mentalidade social que se pretende legitimamente instituída, como se houvesse casa e área de serviço, e playground... até mesmo a imagem de Nossa Senhora do Carmo, no torreão da igreja próxima, “finge”, como o demais, “ter uma auréola sobre a cabeça”...
Augusto levou Kelly consigo para visitar os Gonçalves, mas Kelly não gosta de mendigos, diferencia-os pelos andrajos – Mendigo seminu é miserável; em São Paulo, os mendigos têm um ar mais decente. (FONSECA,1992, p.35). A comunicação entre os grupos de mendigos é inexistente, além disso, diferenciam-se no reconhecimento daquilo que pretendem ser o que os identifica. A família Gonçalves, por exemplo, simula uma qualidade de vida e um conforto que não tem de fato. Vive uma vida de empréstimo. Já o grupo de Zé Galinha, que prefere ser chamado de Zumbi do Jogo da Bola, pretende formar a União dos Desabrigados e Descamisados – a UDD. – “Queremos ser vistos, queremos que olhem a nossa feiúra, nossa sujeira, que sintam o bodum em toda parte; que nos observem fazendo nossa comida, dormindo, fodendo, cagando...”. (FONSECA, 1992, p. 46) A denúncia proposta está em exibir radicalmente os efeitos da pobreza, frutos de desvalimento social; mostrar as feridas, expor seus excrementos.
Kelly - a prostituta – e Augusto compõem relações de outra natureza. O projeto de Augusto de escrever a cidade envolve o desejo de ensinar as prostitutas a ler e a falar corretamente. Segundo ele, desaprendemos a ler com a mídia. Por isso, afirma Augusto, o aprendizado é uma ‘tortura’- a mídia ensinou-nos a ser passivos; por isso Augusto paga, como se mercadoria fosse, para que a prostituta – o leitor – aprenda a ler.
O universo mental de cada um destes dois personagens, no processo de intercomunicação, é excludente. Poucos são os momentos em que partilham algum nível de comunicação. Enquanto Augusto quer mostrar as árvores, expor as memórias da cidade à Kelly, comungar com estas memórias, esta só se interessa pelas quinquilharias expostas pelos camelôs. O mundo de significações de Kelly restinge-se às relações de mercado; ela própria é uma mercadoria, que vende seu corpo em troca de dinheiro, um corpo sem memórias, sem história, um corpo vazio.
Kelly não entende a recusa de Augusto por seu corpo; é incompreensível para ela, como o foi para todas as vinte e oito prostitutas a quem ele ensinou a ler. Na verdade, Kelly não é uma personagem singular: sua condição, seus comportamentos, sua obviedade, sua falta de ideal metaforicamente confirmam a perda da aura ao momento em que se torna objeto erótico, mercadoria. A vida, para ela, é um continuum... Comer e ser comida! Para Augusto, entretanto, o corpo que lhe seduz é o corpo da cidade.
Os paradoxos presentes na realidade deste corpo físico e social não são apenas manifestos na estrutura física da cidade ou no comportamento segregacionista de seus grupos marginais. As tradições culturais da cidade, cantadas por Noel Rosa e lembradas por Augusto – “seu garçom faça o favor de me trazer depressa uma boa média que não seja requentada, um pão bem quente com manteiga à beça” (FONSECA, 1992, p.31) - situam hábitos, costumes que se fizeram esquecidos pelos relacionamentos impostos pelas novas casas de refeições ligeiras. Os botequins oferecem todo um espaço de relações entre pessoas e objetos, expressas numa mesa de mármore, nas cadeiras postas à volta, numa toalha branca, um guardanapo, nos cheiros da comida. A ida ao botequim pode propiciar a realização de muitos rituais: o desenho na toalha à espera de ser atendido, a conversa com o amigo, sentados um frente ao outro, numa proximidade direta, numa intimidade significativa.
A proxemia funcional das casas de suco impõe distâncias; coloca as pessoas de pé, não as fixa em um lugar; é uma relação apressada, descartável, pronta a ser feita e desfeita instantaneamente. A troca interpessoal é indireta, artificial: é preciso virar o pescoço para ver o outro. O alimento é pasteurizado, tão artificial quanto as trocas interpessoais, o mesmo acontece com os banheiros destes lugares.
McDonald’s é uma lanchonete fastfood que oferece banheiros limpos, ascéticos, desinfetados, lugares para urinar; o espaço não guarda cheiros, os vasos são de inox. A preocupação central do ambiente é não deixar marcas, ao inverso do que ocorre com os banheiros dos botequins: mais do que sujos são imundos, de difícil acesso, da dificuldade em pedir a chave, que não pode ser extraviada – razão pela qual é amarrada a um pedaço de tábua – quanto ao local em se situa. Para se chegar ao banheiro, em geral percorre-se uma boa parte do interior do botequim, ocasião em que se tem acesso às intimidades ali guardadas. É essa noção de interior, de dentro, lugar de memórias de cheiros, pessoas, sensações, que novamente se vêem perdidas.
Ao início do conto, Augusto entra, por acaso, num cinema-templo e resolve aprender a música cantada pelos fiéis, um ritmo entre rock e samba-enredo. Combinação esdrúxula que une o sagrado e o profano: o cinema que, pela manhã é Igreja de Jesus Salvador das Almas e, à tarde, projeta filmes pornográficos. Porém, o importante na caracterização da figura do pastor Raimundo é a evidência do uso de uma estratégia mercadológica, seja para vender quinquilharias nas barracas da Geremário Dantas, em Jacarepaguá, ou para conquistar fiéis, na Igreja de Jesus Salvador das Almas. A relação entre simulação e dissimulação aqui se destaca.
A transformação do cinema em templo é figurada: uma vela posta à frente da tela – “lâmpada elétrica num pedestal que imita um lírio” (FONSECA, 1992, p. 13). Não apenas a figuração do objeto é rudimentar – finge que é uma vela, mas é uma lâmpada elétrica -; o caráter dissimulado corre por conta da transmutação de signos igualmente sacralizados: o cinema como projeção do imaginário da modernidade e a igreja, reduto da fé, asseguradora da vida pós-mortem.
Os paradoxos contidos neste espaço contraditório se explicitam na história de Raimundo, o pastor-camelô: com a mesma proficiência vendia bugingangas, agora vende crenças. O segredo de sua performance: “saber falar uma palavra depois da outra com a velocidade correta” (FONSECA, 1992, p. 14). Com o tempo adquiriu a fala neutra de muito dos cariocas – “quase se livrou do sotaque nordestino – a perda das raízes, e tornou sua fala tão imparcial e universal quanto deve ser a palavra de Deus” (FONSECA, 1992, p.14). O mercado das trocas se realiza – não importa se são idéias, crenças ou objetos. Tudo é sujeito à comercialização, tudo pode ser trocado, como o artista, a literatura...
Ao final do conto, Augusto reencontra Raimundo: ao saber que Augusto é escritor, Raimundo – o pastor-camelô – percebe haver encontrado o “diabo”, alguém que pode também construir histórias e influenciar leitores – tal como a palavra de Deus – palavras que ele vende aos seus fiéis em troca de dízimos. E Raimundo, ao sabê-lo, cai desmaiado em meio à chuva e à lama, uma espuma branca escorre do canto de sua boca... A chuva e a lama trazem os ratos e os ratos, são presenças marcantes na vida de Augusto.
Ao contrário das reações costumeiras de nojo à presença de ratos, Augusto considera-os seus companheiros, presença obrigatória do sobrado. Alimenta-os com a memória revisitada da cidade; avisa-os quando entra em casa, acompanhado de alguém para que se escondam e se preservem. Os ratos são os personagens responsáveis pelo esforço de metabolização da cidade no sentido de compatibilizar o pertencimento ao esquecimento.
O Velho também gostava dos ratos; representavam dias mais amenos em que se podiam ter esperanças. Os ratos consignam uma memória subterrânea, memória de origens. Por isso Augusto diz que os ratos são seletivos naquilo que comem – “Os ratos nunca vomitam” (FONSECA, 1992, p. 17). Os ratos habitam os ralos, os túneis, os labirintos dos sobrados; compartilham com os morcegos os segredos das grutas e os substratos das memórias mais profundas da cidade. Os ratos preservam, no corpo do discurso, as ruínas da experiência. São devoradores sobreviventes de uma cidade, que se desfez como imagem projetada em cartão-postal, cidade utopia de uma civilização sul-americana. Os rastros de sua passagem deixam pegadas, sinais grafitados na rua cinzenta de a Arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro.
Não tem importância se “cabaço é com ce-cedilha, vencidos não é com s, e falta um i nos grafiteiros” (FONSECA, 1992, p.19) - declara o jovem que grafita. As comunicações se tecem por pequenos traços, muitas vezes indeléveis, em pequenos goles, como bebem os ratos. Rabiscar paredes do teatro, colar manifestos ecológicos em pára-brisas de carros, utilizar jornais como cartilha são formas comunicacionais pouco ortodoxas, mas nem por isso menos importante. Na verdade, o que a grafite enfatiza é o aspecto fragmentário e icônico da linguagem, mensagens cifradas, cujos significados restringem-se muitas vezes à compreensão apenas daquele que a enuncia. A grafite não é uma fala construída. É muito mais um grito na parede, um protesto simbólico contra todas as formas regulares e tradicionais de expressão utilizados pela modernidade, inclusive aquelas envolvidas com os princípios da ordem, do progresso, da limpeza.
A corrosão dos processos de construção lingüística aponta na direção de uma nova estética da produção e da representação dos fenômenos sociais. Numa situação em que as categorias conceituais que explicam o mundo e a ciência mudam a uma velocidade diferente das categorias lingüísticas, em que o mundo gira mais depressa do que a idéia que se tem sobre ele, o sistema requerido para verbalizar a nova situação precisa superar a inércia embutida dentro de si.
Rubem Fonseca efetua a revisão fundamental em A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro através de uma voz narrativa construída a partir da idéia de um centro de se desprende. A metáfora da perda da origem aplica-se tanto à deformação da cidade como corpo arquitetônico, corpo de memórias e mentalidades sociais quanto como corpo de escritura, linguagem simbólica que recria o real da cidade por força do imaginário. São, simultaneamente, a realidade e a ficção que se fundem e se desprendem juntas formando novas sintaxes metafóricas.
As dificuldades no exame das condições de datação desta obra literária advêm precisamente do fato de estarem em cheque as relações entre literatura e história, entre ficção e realidade. Não por acaso a cidade é o cenário onde os atores operam sua magia distintiva; a cidade de A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro é o lugar em que o fato e a imaginação têm de se fundir porque a cidade é, confirma-nos Certeau (1984, p. 95), simultaneamente o maquinário e o herói da humanidade. A cidade assume a personalidade do homem que a habita e este homem, na ficção de Rubem Fonseca, carrega dentro de si o sentido enfraquecido de uma cidade “desgeografizada” (HARVEY,1993). No entanto, trata-se desta específica cidade, São Sebastião do Rio de Janeiro – nas primeiras e últimas décadas do século XX – em momentos datados claramente pela história, momentos de rompimento com uma sociedade colonial do ponto de vista arquitetônico para a irrupção, desenvolvimento e crise de uma modernidade paradoxal desde sua origem.
No rigor do termo pode-se afirmar que o Rio de Janeiro sempre foi uma cidade constituída por diferenças não apenas sociais; os contrastes geográficos nela contidos revelam-lhe a alma. Deste modo, é possível inferir que o lugar de onde o autor fala é um lugar datado. Nestes termos, a ficção construída finca-se solidamente no terreno do histórico, reforçada inclusive pela abordagem de questões estruturais da cultura aqui discutida: o lugar do escritor no contexto profissional, a dificuldade da posição do intelectual na conjugação entre o ser e o fazer, a literatura como mercadoria, etc.
No entanto, a virtualidade no tratamento e mescla dos tempos cronológicos – presente e passado – o metafórico utilizado como base para a construção dos personagens conduzem à desconsideração do predomínio da história sobre a narrativa ficcional. Será esta uma condição para tratá-la como obra não-datada?
Qualquer que seja o argumento, no plano da linguagem ou da narrativa, torna-se cada vez mais difícil essa leitura elementar, que vê no texto literário o mero reflexo da prática social de um tempo. Se, conforme Barthes (1987), a linguagem é o ser da literatura e a escritura realiza a linguagem em sua totalidade, é o leitor que “atualiza” os sentidos da obra. Sendo assim, a contemporaneidade presente ao texto de Rubem Fonseca facilita o sentido da comunicação sob o ângulo da estética da recepção. É um texto atual, que fala sobre questões que são simultaneamente atuais e antigas, com um discurso atual. A implicação estética da discussão situa o nível de recepção primária desta obra pelo leitor na comparação com outras obras já lidas. A implicação histórica localiza a continuidade e o enriquecimento da compreensão e do significado histórico desta obra tornando visível sua qualidade estética.
Porém, não podemos configurar antecipadamente quais os níveis de recepção futuros da obra. O que parece importante investigar, no momento, é se, de fato, a determinação dos limites e dos recortes impostos pelo discurso abriga a discussão sobre a idéia de datação, caso contrário confirmar-se-ia a utilização de uma metodologia incorreta para tratar o tema em questão.
Em meio à perplexidade da ciência em todos os níveis do conhecimento para lidar com este tipo de problema, conjectura-se se, na atualidade, não seria lícito falar simultaneamente de datação e não-datação da mesma obra literária; digamos, datada quanto ao contexto físico e geográfico, porém vívida, atual porquanto universal.
Os argumentos podem ser vários. Seja porque a obra realiza uma interface importante com o seu leitor no plano da linguagem, seja pelo fato de a obra trazer à cena temas que a sociedade evitou enfrentar anteriormente.
Se o leitor atua como colaborador do texto, que lê de forma a se portar como ingrediente fundamental não só do processo de contar a história como também da própria história, desaparece a figura do autor e a obrigatoriedade em atribuir categorias classificatórias a cada obra literária. Sendo assim, não há mais origem senão mediação entre formas estéticas em suas implicações históricas porque o leitor sabe, mais do que nunca, que o passado só pode ser examinado à luz do presente, num confronto inexorável entre um e outro.
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Endereço para correspondência
E-mail: hgpn@terra.com.br
Recebido em: 11/06 2007
Aceito para publicação em: 08/10/2007
Notas
* Doutora em Letras pela PUC-RIO.