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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Segregação urbana e reprodução das desigualdades sociais: um estudo sobre os atuais bairros pobres urbanos e sua influência na trajetória de seus moradores

 

Urban segregation and the reproduction of social inequalities: a study about the actual poor urban neighborhoods and your influence at the resident's life

 

 

André Ricardo Salata

Graduando em Ciências Sociais - Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da década de 1970, o capitalismo sofreu profundas transformações em sua organização produtiva; o Fordismo, baseado na produção em série, deu lugar ao Toyotismo, que preza pela flexibilização produtiva. Concomitantemente, o estado de bem-estar social foi abalado pelo avanço de governos neo-liberais. Como resultado dessas mudanças, o padrão clássico de segregação urbana, que se traduzia na oposição entre centro rico e periferia pobre, vem se modificando, de modo que os tradicionais bairros operários perdem espaço para “novas” localidades da pobreza urbana. O presente artigo tem o objetivo de explorar a maneira como esse tipo contemporâneo de bairro popular influencia o comportamento dos indivíduos e suas trajetórias de vida. Para tanto, constrói-se uma análise, baseada principalmente nos teóricos Bourdieu e Kaztman, além de se utilizar dados empíricos coletados através de um estudo etnográfico.

Palavras–chave: Segregação, Mobilidade, Reprodução, Desigualdades.


ABSTRACT

At the seventies the capitalism suffered deep transformations in your productive organization; the Fordism, based on serial production, was replaced by the Toyotism, that defends the productive flexibility. At the same time, the Well-Far-State was shacked by the advance of neo-liberal governments. As a result of that changes, the classic urban segregation model, were we have the opposition between the rich center and the poor outskirts, come on changing in a way that the traditional workers neighborhoods loose their space to “news” poor urban locations. This article intends to explore the way how this actual kind of popular neighborhoods influences resident` s behavior and yours life trajectories. This analysis was made using, principally, the theory of Bourdieu and Kaztman, as well as empiric information collected through a ethnographic study.

Keywords: Segregation, Mobility, Reproduction, Inequalities.


 

 

A crise no mercado formal de trabalho, iniciada no fim dos anos sessenta, ao lado da diminuição do papel do estado dentro da sociedade, acarretou uma série de conseqüências, dentre elas uma mudança no padrão de segregação urbana em muitas das grandes cidades ao redor do mundo, inclusive na cidade do Rio de Janeiro, que ocupará minhas atenções neste artigo. Se da década de 1930 até meados da década de 1970 tínhamos o clássico modelo de centro rico e periferia pobre, nas últimas décadas, vem se construindo uma nova forma de segregação, onde podemos observar “a difusão da pobreza por todo tecido metropolitano do Rio de Janeiro, através da retomada do crescimento das favelas tanto nas áreas centrais quanto nas periféricas” (LAGO, 2000, p. 15), ao mesmo tempo em que “a periferia se tornou socialmente mais heterogênea ao abrigar novos espaços residenciais e comerciais destinados às camadas médias” (LAGO 2000, p. 15). Faz-se presente, então, uma nova modalidade de segregação, onde há uma maior proximidade espacial entre ricos e pobres; mas, ao mesmo tempo, e como conseqüência dessas mudanças, emerge um processo que torna esses espaços exclusivos a seus moradores, seja por meio dos muros (no caso dos condomínio fechados e shoppings), seja por meio da violência e do medo (no caso das favelas).

O padrão de acumulação fordista, característico do pós-guerra, se dava através da produção em série, onde os trabalhadores tinham contratos duradouros e formais com as empresas nas quais exerciam sua profissão. Quase toda produção ficava concentrada em uma única localidade; da mesma forma, os operários também trabalhavam todos próximos uns dos outros, exercendo atividades extremamente especializadas dentro de uma mesma linha de montagem. O estado, por sua vez, garantia o cumprimento dos contratos e das leis trabalhistas; procurava também intervir economicamente, a fim de manter as taxas de crescimento, seja investindo em infra-estrutura ou na previdência social.

Todo esse padrão de organização da produção levou ao surgimento do operário-massa. Concentrados em um mesmo território, onde ficavam trabalhando por muito tempo, ganhando salários semelhantes, os trabalhadores criavam uma identidade coletiva, um padrão de vida e uma maneira de estar no mundo – ethos -, no qual quase todos se inseriam. Essa identidade coletiva operária se espalhava por diversas áreas, dentre elas: na maneira de se vestir, nos projetos de vida, no gosto musical e artístico em geral, no modo de falar, no vocabulário, e é claro, no local de moradia.

Diante do quadro de crescimento econômico que se fazia presente naquelas décadas do pós-guerra até os anos setenta, milhares de migrantes vinham do campo ou de regiões menos desenvolvidas até o Rio de Janeiro, atraídos pela demanda de empregos nos grandes centros. Segundo Lago (2000), somente na década de cinqüenta, o município do Rio de Janeiro recebeu 714.750 migrantes, em sua maioria vindos de outros estados, principalmente do nordeste brasileiro. Esses migrantes vinham morar em localidades que contavam com uma considerável coesão interna – devido à semelhança entre os moradores -, uma ética do trabalho, e um projeto de vida coletivo mais presentes do que nos atuais bairros populares.

Mas, em meados dos anos setenta, esse quadro começou a mudar. O fordismo foi substituído, principalmente, pelo toyotismo, uma nova forma de organização da produção que se baseia na flexibilidade. O toyotismo nasceu na fábrica da Toyota, no Japão, após a Segunda Guerra Mundial, e se diferencia do fordismo pelos seguintes traços: é uma produção mais vinculada à demanda, se tornando por isso mais individualizada e heterogênea; se estrutura de forma mais flexível, o que possibilita a um mesmo operário trabalhar em diversas máquinas ao mesmo tempo, assim como fabricar produtos distintos dentro de uma mesma linha de montagem; suas empresas adotam uma estrutura horizontalizada, de maneira que cada empresa seja responsável apenas por uma etapa dentro da linha de montagem; por fim, o toyotismo utiliza em suas matrizes mão-de-obra qualificada, ao mesmo tempo que quanto mais nos afastamos do núcleo, mais precarizado se torna o trabalho, sendo realizado por meio de mão-de-obra terceirizada, temporária e sub-empregada (ANTUNES, 1999, p.54-57). O estado, por sua vez, antes ativo tanto socialmente quanto economicamente, perde força e entrega ao mercado grande parte de suas antigas funções; o controle da economia e a previdência social passam a obedecer à lógica do mercado.

Diante desse novo quadro, a classe trabalhadora, se é que ainda podemos utilizar este termo1, perde sua identidade comum. Sub-empregada, autônoma, terceirizada, sem contratos de trabalho fixos, a classe que vive do trabalho, principalmente nos países subdesenvolvidos, se torna uma massa disforme, irregular e heterogênea. Em função de sua nova forma de se inserir dentro da estrutura produtiva, mesmo em contextos de crescimento econômico, os trabalhadores não são beneficiados. Assim, os antigos bairros operários vão pouco a pouco desaparecendo e, no lugar deles, se fortalecem as localidades dessa nova pobreza urbana, a principal delas – no caso da cidade do Rio de Janeiro - sendo as favelas. Habitadas por indivíduos que exercem profissões completamente heterogêneas - em sua grande maioria sub-empregados ou autônomos -, e sofrendo com profunda carência de serviços básicos que deveriam ser providenciados pelo estado, essas localidades não oferecem os mesmos benefícios que os antigos bairros de trabalhadores ofereciam, como mostrarei adiante.

Pretendo mostrar neste artigo como esse novo padrão qualitativo de segregação influi na reprodução das desigualdades sociais. Para tanto, primeiramente, é preciso entender a pobreza não apenas como a carência de recursos matérias, mas também como a deficiência de ativos que permitirão aos indivíduos se manter ou ascender socialmente. Segundo a definição de Kaztman (1999, p.18), ativos são

todos os recursos que um lugar possui, tangíveis ou intangíveis, cuja mobilização permite o aproveitamento das estruturas de oportunidades existentes em um momento, seja para elevar o nível de bem-estar ou para mantê-lo diante de situações que o ameacem.

Esses ativos não estão distribuídos igualmente dentro da sociedade; cada localidade proporcionará aos seus moradores determinados tipos e quantidade de ativos que poderão não ser encontrados em outros locais. Analisarei, baseando-me principalmente nos sociólogos Kaztman e Bourdieu, as diferenças entre os antigos bairros operários e os “novos” bairros pobres urbanos em relação à posse ou não desses recursos, e a maneira como isso vai influenciar na capacidade de seus moradores de ascender socialmente.

Bourdieu (1997) utiliza o conceito de habitus para explorar a relação entre a estrutura social e os indivíduos, permitindo adotar uma postura que leve em conta, ao mesmo tempo, o livre-arbítrio e o papel das estruturas supra-individuais. O habitus diz respeito àquilo que é subconsciente no comportamento individual, tudo que fazemos e pensamos sem refletir, que já está tão internalizado em nossas mentes e corpos que nem pensamos a respeito; ele está na maneira de falar, de andar, nos valores, nas opiniões, na maneira de se comportar etc; ele é o modo como os indivíduos internalizam a posição que ocupam dentro da estrutura social – é a subjetivação da objetividade. Por isso, o habitus geralmente diz respeito a uma classe ou a um grupo. Poderíamos, por exemplo, falar de um habitus burguês, operário, de moradores de favela, de habitantes de bairros de elite e etc. Segundo Bourdieu (1997, p. 165), “se o habitat contribui para fazer o hábito, o hábito contribui também para fazer o habitat através dos costumes sociais mais ou menos adequados que ele estimula a fazer”. Ou seja, o habitus, ao mesmo tempo em que é influenciado pelo espaço de moradia, também influencia esse espaço, formando um ciclo vicioso.

Kaztman e Filgueira (2001) elaboram interessantes tipos ideais de bairros latino-americanos; dentre eles estão os antigos bairros operários (presentes nas décadas de crescimento econômico do pós-guerra) e os atuais bairros pobres urbanos (típicos das duas últimas décadas). Mesmo que em alguns pontos a presente descrição não seja exatamente fiel à realidade brasileira, ela pode nos ajudar, e muito, a entender as transformações urbanas ocorridas nos últimos anos.

Dentro dos antigos bairros de trabalhadores, circulava um habitus bastante distinto da favela. Neles os indivíduos viam o trabalho como algo dignificante, e principal meio de ascensão social. Valorizavam também um projeto de vida, tanto a nível individual quanto coletivo; e prezavam pela participação política como meio de atingir as metas coletivas. Agora, nas favelas, a ética do trabalho não se faz mais presente, de modo que a atividade do labor não é mais reconhecida como capaz de proporcionar grandes mudanças nas trajetórias individuais; da mesma forma, a idéia de projeto de vida é descartada por não fazer mais sentido dentro de um mercado de trabalho tão fluido. Devido à descrença em relação à capacidade e à vontade do estado e dos políticos em resolver os graves problemas desses locais, seus moradores adotam uma postura bastante indiferente em relação à política; como não se reconhecem mais como uma classe, e por isso perdem sua identidade comum, a idéia de objetivos coletivos também cai em descrédito.

Essas transformações de valores – habitus – dentro dos antigos e dos novos locais de moradia dos trabalhadores urbanos só fez dificultar a mobilidade social dos mesmos, funcionando como um verdadeiro “cimento das desigualdades” (KAZTMAN; FILGUEIRA, 2001, p.22). Mas não são apenas as mudanças de habitus responsáveis por isso; a distribuição de capitais sociais, culturais e materiais – conceitos que são trabalhados tanto por Kaztman quanto por Bourdieu - também se alterou profundamente.

Os tradicionais bairros de trabalhadores eram espaços habitados predominantemente por operários, pessoas que tinham um trabalho, que possuíam contatos nesse trabalho, e que tinham algum nível de escolaridade e conhecimento necessário para alcançar seus postos. Inseridos numa economia desenvolvimentista, de produção em massa, com taxas de crescimento consideráveis, e protegidos por contratos de trabalho sólidos, aqueles operários tinham condições de sustentarem suas famílias de forma razoável. Ao mesmo tempo, em função dos serviços estatais presentes naquele momento, essas famílias podiam contar com a escola pública para instruir seus filhos de maneira adequada. Um filho de operário, então, podia estudar em uma escola de qualidade e contava com um local de moradia que o possibilitava estudar em casa também. Em seu bairro, contava com exemplos exitosos de indivíduos que conseguiram conquistar parte de seus objetivos por meio do trabalho, o que levava à assimilação de uma ética do trabalho, enxergando esta atividade como aquela capaz de realizar seus desejos. Como todos exerciam profissões bastante semelhantes, havia uma coerção interna considerável dentro daquelas localidades, o que inibia condutas desviantes. As famílias também eram compostas por operários com algum grau de formação, gerando um clima cultural dentro das suas casas que valorizava um projeto de vida baseado nos estudos e no trabalho. Enfim, como a grande maioria dos adultos estava empregada, podiam fornecer contatos pessoais importantes para a carreira dos mais jovens, facilitando sua entrada no mercado de trabalho.

Como já mencionei, estou me baseando em tipos ideais,2 construídos por esses dois autores - Kaztman e Filgueira (2001) -, já que o quadro descrito anteriormente não poderia ser encontrado de forma tão exata na nossa realidade. Trata-se de um recurso heurístico, que possibilita uma melhor comparação entre esses dois casos: os antigos bairros operários e as favelas3. Por isso, devemos relativizar as descrições expostas e tratá-las como recursos que nos ajudam a entender diferentes realidades, e não como a própria realidade em si mesma.

Habitadas por desempregados, sub-empregados e autônomos, as favelas apresentam uma realidade muito distinta daquela. Ela não fornece os ativos materiais necessários a um projeto de vida exitoso: suas casas não são adequadas para a prática do estudo e os serviços sociais básicos – dentre eles, a escola – são precários. Quanto ao capital cultural, também há muitas deficiências; as famílias não são mais compostas por trabalhadores que valorizam o estudo e o trabalho como principais meios de ascensão social e suas casas não contam mais com um clima cultural adequado. Os exemplos exitosos agora provêm de pessoas que se utilizam de meios ilícitos para alcançar seus objetivos; a coesão interna é fraca e pouco pode fazer a fim de inibir esses comportamentos ilegais. Como não têm um trabalho fixo, os adultos não contam com redes de contato amplas e capazes de facilitar a entrada dos jovens no mercado de trabalho.

Toda essa série de diferenças descritas vai contribuir para dificultar a ascensão social dos novos pobres urbanos. Como nos faz lembrar (KAZTMAN; FILGUEIRA, 2002, p.40) a deficiência de ativos em uma etapa da vida vai prejudicar a capacidade do indivíduo acumular outros ativos futuramente. Um indivíduo nascido dentro de uma família de desempregados, morando em uma localidade como a descrita no segundo caso, vai ter uma série de deficiências de recursos desde a sua primeira infância, o que vai impossibilitá-lo de conseguir outros ativos quando for mais velho e assim por diante, formando um processo cumulativo que culminará na reprodução das desigualdades sociais. Por exemplo, ao não contar com um clima cultural adequado em seu local de moradia, a criança poderá ter sérias dificuldades em aproveitar os ativos fornecidos pelas escolas, o que por sua vez irá dificultar a sua entrada no mercado de trabalho formal. Cria-se assim um ciclo vicioso, do qual dificilmente os indivíduos nascidos nessas localidades conseguirão se livrar: filhos de ricos provavelmente serão ricos, e crianças nascidas nesse contexto de pobreza provavelmente continuarão pobres.

Com o objetivo de ilustrar melhor tudo que foi dito até aqui, falarei sobre o trabalho de campo que realizei durante os últimos meses para uma pesquisa do IPPUR – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional -, com a qual se pretende explorar justamente as conexões entre segregação urbana e a reprodução das desigualdades sociais4. Em setembro de 2006, comecei um estudo etnográfico em uma escola municipal localizada no Leblon – RJ. Trata-se de uma escola modelo, com uma excelente infra-estrutura e condições físicas muito boas, que chegam a chamar a atenção de quem passa pelo local. Pelo que pude perceber, é um colégio disputado pelas famílias de crianças que moram nas favelas próximas, principalmente Rocinha e Vidigal. Alguns alunos moram em bairros como Ipanema, Gávea, ou no próprio Leblon, mas a maioria esmagadora é proveniente daquelas duas localidades.

Meu foco estava na turma de quarta série, na qual fiz diversas observações ao longo desse tempo. Através dessas observações, pude perceber quais alunos se destacavam, tanto positivamente quanto negativamente, dentro da sala. Meu objetivo era selecionar alguns destes para fazer estudos de caso, visitando suas casas e entrevistando seus responsáveis. Nesse processo de seleção, também contei com a ajuda da professora, que me indicava os alunos com melhores e piores desempenhos acadêmicos. Neste artigo vou concentrar minha atenção sobre o estudo de caso daquele que era considerado pela professora como o aluno mais “problemático” da turma. Seu nome, constantemente lembrado durante as aulas, é Francisco. Estava quase sempre sentado no fundo da sala e muitas vezes não fazia o dever de casa nem os exercícios em aula. Certa vez a professora, nervosa por seu desleixo, gritou: “Francisco, você é um caso perdido!”. Portanto, eu não poderia deixar de conhecer a realidade familiar daquela criança.

Combinei com a sua família de pegar o aluno na saída da escola e ir com ele até sua casa, na Rocinha. Francisco estava acostumado a ir e voltar sozinho da escola; ele foi me guiando até o ponto de ônibus e, durante o percurso, tivemos a oportunidade de conversar um pouco, quando me falou a respeito do que mais lhe incomoda no local onde mora: os tiroteios. A viagem de ônibus demorou uns vinte minutos, até que saltamos no alto da estrada da Gávea. A criança, então, foi me guiando pelas ruelas cada vez mais estreitas em direção à parte mais alta da favela. Em certo momento, Francisco parou, apontou para frente e falou: “Aposto que ali tem bandido”, demonstrando certo medo. Tivemos que seguir em frente e realmente cruzamos com alguns adolescentes armados em nosso caminho. Andamos mais um pouco, por terrenos cada vez mais irregulares, até que passamos por mais um grupo de meninos do tráfico; um deles, ao vê-lo passar, gritou: “vem aqui gordinho!”; ele continuou andando e falou: “não posso, tenho que fazer um negócio aí”. Andamos mais e Francisco, ao passar por um menino armado, o chamou pelo nome e cumprimentou.

Chegamos então à casa dele, que ficava bem próxima a um local onde rapazes armados estavam reunidos. A casa, por fora, toda feita de tijolos, tinha um aspecto de bastante pobreza e desorganização. Francisco abriu a porta de madeira e logo pude ver sua mãe. Ela parecia que estava dormindo no colchão, enquanto seu pai descansava deitado no sofá; a televisão estava ligada. Entrei na casa, cumprimentei a ela e a seu marido. A casa era bem pequena; a sala tinha, além da TV, sofá, armário e um colchão; ao lado, separado apenas por um pouco de parede, havia um quarto pequeno, com apenas uma cama; do outro lado, também com uma separação pouco definida, havia a cozinha. Do meio da sala, eu podia observar a casa toda. Na casa também estava Luziana, cunhada de Francisco, e seu filho de um mês de idade. Naquele pequeno espaço moravam sete pessoas.

Nesse dia, tive a oportunidade de conversar com os pais do aluno. Os dois vieram do Ceará – onde trabalhavam na roça - há vinte anos, atrás de melhores condições de vida. Nenhum dos moradores da casa possuía um emprego formal, e tinham níveis de instrução bem baixos: a mãe estava desempregada há três meses e havia chegado à sétima série; o pai vivia de serviços gerais – como pedreiro, pintor, encanador etc – há um ano e não chegou a freqüentar a escola; seu irmão completou a segunda série do segundo grau e agora trabalhava sem carteira assinada como moto-táxi há um mês; seu outro irmão completou a oitava série e estava exercendo os mesmos serviços que o pai há um mês; sua cunhada também concluiu a oitava série e estava desempregada há quatro meses. Como disse a mãe de Francisco durante a entrevista: “passamos a maior parte do tempo dentro de casa, olhando um para cara do outro, já que ninguém tem um emprego” (informação verbal). Quando perguntada sobre as suas expectativas em relação ao futuro de Francisco, sua mãe em nenhum momento se referiu a escolas, faculdades ou profissões, dizendo apenas que estimulava muito o menino a praticar esportes, o que poderia levá-lo adiante em sua trajetória de vida. Além disso, um outro fato me chamou a atenção na entrevista: os pais da criança falaram que preferiam se manter distante do resto dos moradores do local, pois não queriam ter problemas com ninguém.

Alguns pontos desse relato de campo devem ser destacados, quando pensamos na influência do local de moradia sobre o desempenho escolar de Francisco e, posteriormente, sobre sua capacidade de ascender socialmente. Em primeiro lugar, o aluno parece morar em um local pouco valorizado em relação ao universo da Rocinha. Sua mãe diz que, se pudesse se mudar dali, iria para um lugar mais perto do asfalto, mais “lá em baixo”. Para chegar em sua casa, o menino precisa passar por alguns locais onde traficantes armados se reúnem e, pelo que presenciei, tentam aliciá-lo àquela atividade, como no momento em que um deles o chama para conversar. Francisco diz que os tiroteios o incomodam e pareceu temeroso quanto aos “bandidos” – expressão usada por ele mesmo -, o que indica um certo desconforto, que pode prejudicá-lo psicologicamente, afetando seu desempenho acadêmico.

Sua casa não lhe proporciona as condições materiais adequadas ao estudo; mesmo que queira estudar, o aluno encontrará muita dificuldade em fazê-lo, devido à falta de espaço e ao excesso de pessoas morando ali. O clima cultural da família é muito baixo, pois, como já mencionei, nenhum dos integrantes do núcleo familiar havia completado o segundo grau; seu pai, inclusive, nunca freqüentou a escola. Da mesma maneira, ninguém possui emprego fixo e Francisco não conta, em sua família – e provavelmente no local onde mora –, com exemplos de trajetórias exitosas construídas através do trabalho, o que pode enfraquecer a visão daquele como um meio de alcançar seus objetivos. Nem mesmo sua mãe parece esperar que o filho siga este caminho, demonstrando muito mais esperança em seu talento dentro de atividades esportivas. Por fim, podemos perceber, quando a mãe de Francisco diz que procura se manter distante dos outros moradores da favela, a falta de redes de sociabilidade/solidariedade dentro daquela localidade. Isso pode ocasionar conseqüências deletérias para os habitantes do local - já que terão mais dificuldades para contar com a ajuda de vizinhos em casos de necessidade - e a coesão interna que poderia inibir condutas ilegais é enfraquecida.

Não podemos afirmar que o futuro de Francisco já esteja traçado e que, inevitavelmente, ele seguirá o caminho de seus pais. Mas, diante das imensas dificuldades impostas pela realidade do local onde vive, esta criança terá sérias dificuldades para conseguir ascender socialmente. A deficiência de capitais, sejam eles materiais, culturais ou sociais, somados à construção de uma determinada subjetividade – “habitus” -, já parecem estar prejudicando seu desempenho escolar; e as conseqüências desse fato provavelmente dificultarão sua entrada em um mercado de trabalho cada vez mais competitivo. Diante desse quadro, pouco podemos esperar do futuro de crianças criadas nesse tipo de localidades urbanas.

 

 

Referências Bibliográficas

ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 1999.        [ Links ]

BOURDIEU, P (1997). Efeitos de Lugar. In: _____ (Org). A miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes. p. 159–166.        [ Links ]

KAZTMAN, R. Marco conceptual sobre activos, vulnerabilidad y estrutura de oportunidades. In: _____. Apoyo a la implementación del Programa de Acción de la Cumbre Mundial sobre Desarrollo Social. Montevideo: CEPAL, 1999. p. 7–23.        [ Links ]

KAZTMAN, R; FILGUEIRA, F. Seducidos y abandonados: el aislamento social de los pobres urbanos. Revista do CEPAL, n. 75, p. 25-57, 2001.         [ Links ]

_____. Panorama de la infância y la família en Uruguay. Montevidéu: Universidade Católica do Uruguay, 2002.        [ Links ]

LAGO, L. C. Desigualdades e segregação na metrópole: o Rio de Janeiro em tempo de crise. Rio de Janeiro: Revan, 2000.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: andre.salata@bol.com.br

Recebido em: 08/03/2007
Aceito para publicação em: 23/07/2007

 

 

Notas

1 Antunes, em “Sentidos do Trabalho” utiliza o termo “classe que vive do trabalho”, o qual considero mais adequado nos dias atuais.
2 Utilizo essa expressão em seu sentido weberiano, onde tento enfatizar as principais características daquela localidade, descrevendo um quadro que não se encontra na realidade, mas que é de extrema importância heurística.
3 Quando falo em favelas, me refiro a um recorte específico que se refere a estas localidades a partir dos anos oitenta.
4 Trata-se de uma pesquisa mais ampla, realizada em parceria com professores da UERJ e da UFRJ, além do Observatório das Metrópoles.

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