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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007

 

RESENHA

 

Mosaico de artigos revela olhar sobre a exclusão social no Brasil

 

Mosaic of articles reveals social exclusion in Brazil

 

 

Stefania Chiarelli

Pesquisadora da FAPERJ na UFF. Autora do ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum (São Paulo: Annablume, 2007). Doutora em Estudos Literários pela PUC-Rio

Endereço para correspondência

 

 

DESERDADOS: DIMENSÕES DAS DESIGUALDADES SOCIAIS (216 páginas)
Silvio de Almeida Carvalho et al.

Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2007

 

 

O livro coletivo Deserdados: dimensões das desigualdades sociais (Rio de Janeiro: Agora da Ilha, 2007) tem a ousadia de botar o dedo na ferida de muitas questões sociais do país. Droga, prisão, favela, o morador de rua, a voz do preso político: tudo é tema e problema neste corajoso livro de ensaios. Não se trata da reunião de artigos ao acaso, mas do resultado de discussões desenvolvidas no Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LEDDES-UERJ). Pesquisadores e professores de História, Ciências Sociais, Literatura e Sociologia, de várias instituições, se reúnem para pensar questões ligadas à desigualdade social no país e ao modo como são representadas na literatura e no cinema. Um dos diferenciais do volume advém do fato de que esse conjunto de profissionais alia a teoria à prática: ao longo dos textos, são referidas inúmeras atividades que denotam o entrelaçamento entre ação e reflexão. Prevalece a idéia de produzir resistências e afirmar outras realidades, como ressalta Cecília Coimbra, autora do prefácio e, não por acaso, diretamente implicada na luta do grupo Tortura Nunca Mais/RJ.

O livro se compõe de três blocos; no primeiro, “Violência, punição e controle social” encontram-se alocados os artigos “Um lugar para os deserdados e deserdadas”, de Marilene Rosa Nogueira da Silva, e “Arbítrio e violência nas prisões da Ilha Grande”, de Myrian Sepúlveda dos Santos. Como tema, o sistema prisional brasileiro, caracterizado por práticas carcerárias marcadas pela herança positivista e escravocrata. Os textos destacam os paradoxos presentes desde as primeiras tentativas de implementação de leis modernas e liberais no sistema penitenciário. Dentre eles, a dificuldade de se coadunar práticas modernas em uma sociedade marcada pela escassez de recursos em áreas como educação, saúde e trabalho, além da má distribuição de renda persistente. Na análise dessa questão, se constata a forte associação entre o crime e a raça negra, demonstrando que negros e mestiços no Brasil receberam - e recebem - intensa repressão por parte das autoridades policiais. A partir de fatos como a inauguração da Casa de Correção no Rio de Janeiro, em 1850, ou as práticas carcerárias nas prisões de Ilha Grande, entre 1894 e 1994, se realiza um percurso pela violência desse tipo de instituição e se debate como e se as legislações estrangeiras se adaptaram ao país.

Ainda dentro dessa temática, problematizando os modos de narrar a violência, a chamada literatura de testemunho e o relato do italiano Primo Levi se fazem presentes em “A memória insone: os testemunhos sobre a ditadura brasileira”, de Joana D’Arc Fernandes Ferraz, que chama a atenção para as intrincadas relações entre história, memória e literatura. O trauma da ditadura militar no Brasil é objeto de estudo a partir de testemunhos da história oral e dos escritos de sobreviventes. A noção de responsabilidade e de ética se destaca, bem como o necessário compromisso com a memória dos que se foram.

O bloco “Vulnerabilidades sociais” inicia-se com “Redes de solidariedades: táticas dos deserdados da Rocinha”, de Silvio de Almeida Carvalho Filho, texto que refere o surgimento, em 1929, da favela da Rocinha e da precariedade com que se organizou e se constituiu aquele espaço. Destaca-se a ausência de políticas públicas e a constância de práticas clientelistas empreendidas pelo poder público, fatos que forçaram os indivíduos dessa e de outras localidades empobrecidas a criar estratégias de sobrevivência e a tecer de forma permanente redes de solidariedade. No ensaio “Conhecer para integrar? Uma discussão sobre a assistência social prestada pela Fundação Leão XIII a localidades faveladas”, de Cíntia Aparecida Almeida dos Santos, a análise da intervenção realizada pela Fundação Leão XIII nas favelas do Rio de Janeiro busca entender as formas de assistência social articuladas pela Igreja e pelo Estado. O controle moral sobre as famílias é analisado com um dos pilares dessa instituição, que buscava criar “indivíduos dóceis e normalizados, que em tese seriam dignos da urbe, sem, no entanto, compartilhar com seus concidadãos da cidade oficial os mesmos direitos sociais” (p.116). Apesar do auxílio material, conclui-se nesse estudo que na atuação da Fundação predominou a tutela aos assistidos e não o estímulo de uma autonomia e da percepção política como direito.

A questão do trabalho e da subjetividade do sujeito trabalhador dá o tom ao ensaio seguinte, “Na lógica da inserção: trabalho, favela e o novo perfil do agente comunitário”, de Rogério Ferreira de Souza, que examina as reduzidas condições materiais e simbólicas às quais estão submetidos os indivíduos de regiões favelizadas. A atuação de ONGs é examinada na medida em que se percebe um processo de despolitização de ações desvinculadas dos direitos sociais. O resultado direto dessa tendência é a predominância de interesses particulares dos indivíduos, sem maior engajamento em causas coletivas.

O último bloco, “Representação das desigualdades”, trabalha com figurações desses sujeitos excluídos na produção cultural contemporânea. Em “Dos modos de narrar o ódio presente”, Victor Hugo Adler opera com representações estéticas da desigualdade social, analisando as narrativas de Fernando Vallejo, Diogo Mainardi, Marçal Aquino e Ferréz. O ensaísta busca na teorização de Susan Sontag sobre o fenômeno “camp” certas linhas de aproximação com exemplos da produção ficcional contemporânea. Nas formas de expressão de conflitos urbanos, o autor destaca, por um lado, o “modo irônico ou fatalista de esboçar uma tentativa de explicar a desordem social e de justificar uma reação violenta diante dela” (p. 168), e, por outro, certo apelo a se embarcar em uma orgia de violência.

Nessa mesma trilha, Paulo Roberto Tonani, em “Instinto de marginalidade, notícia da atual literatura brasileira”, investiga como os diversos espaços periféricos são utilizados na qualidade de núcleos políticos e estéticos na avaliação da chamada Literatura Marginal. Assim, localiza a presença de certas marcas do discurso marginal, a saber, um vocabulário típico da margem, assim como a insistência por uma temática que aborde o tráfico de drogas e a criação de um ambiente marginal para os romances. O autor estabelece uma distinção entre narrativas que mercadologicamente repisam esses aspectos de outras que se apresentam política e/ou esteticamente de forma diversa nesse panorama. Diferentemente do tom de denúncia de Cidade de Deus, de Paulo Lins, e Capão Pecado, de Ferréz, Tonani situa Contos negreiros, de Marcelino Freire, narrativa que instaura uma “dimensão de um pensar negro movido primordialmente pela oralidade e pela musicalidade” (p. 188).

Mais do que nunca necessária, a denúncia da miséria e da violência corre o risco de uma abordagem reducionista da exclusão social, adquirindo contornos de mera curiosidade. Esse tênue limite também ronda a produção audiovisual contemporânea, cada vez mais empenhada em suspender a invisibilidade de determinados grupos sociais. Fechando o último bloco, “Imagem e identidades à margem: a representação dos excluídos no documentário de Evaldo Mocarzel” analisa o referido filme, discutindo o tema da expropriação da imagem alheia, sobretudo quando esta é uma manifestação da pobreza e da exclusão social. Aline Cristine Xavier afirma que os filmes de Mocarzel caminham “na contramão da vampirização da miséria, funcionando como um espaço de resistência contra a banalização de temas excessivamente recortados da realidade e redundantes em representações massificadas e demagógicas das classes populares” (p. 201).

Vale notar que determinados tópicos percorrem todos os ensaios, dando-lhes força e sustentação teórica. Michel de Certeau, Robert Castel, Michel Foucault, entre outros, surgem como referenciais teóricos comuns a muitos dos ensaístas, que também se valem do pensamento de Machado de Assis, Roberto DaMatta, Gilberto Freyre e Silviano Santiago, além das pesquisas da antropóloga Alba Zaluar.

O interesse dos artigos parte de nossas raízes, a exemplo da implantação do sistema carcerário no país e de como se tratou a questão penitenciária, passando pela violência da ditadura e dos modos possíveis de dizer essa dor, chegando aos territórios marcados pela exclusão social, como a favela da Rocinha e os modos de intervenção da sociedade sobre essa localidade. Nesse sentido, a questão do trabalho e do desemprego surge como debate imprescindível para se refletir sobre o processo de cidadania e inclusão social. Para tratar da violência simbólica, os textos finais do volume buscam avaliar as estratégias narrativas utilizadas por escritores para representar espaços de exclusão e de como esses relatos se relacionam com uma literatura dita hegemônica. A preocupação com a responsabilidade ética de falar pelos outros ou de explorar a imagem da pobreza alheia se faz presente em quase todos os textos com menor ou maior intensidade. Essa questão atravessa as reflexões, que, lidas em conjunto, propiciam um olhar consistente sobre os espaços esquecidos da nação.

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: stefania.techima@uol.com.br

Recebido em: 21/08/2007
Aceito para publicação em: 30/08/2007

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