Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
COMUNICAÇÃO DE PESQUISA
A Representação Social da Moradia
The Social Representation of the Housing
Mauro César de Oliveira Santos
Professor Dr. do DPA/PROARQ/FAU/UFRJ, Coordenador do Laboratório de Habitação - LabHab
RESUMO
Este artigo vem apresentar como o grupo de pesquisas LabHab vem utilizando-se de um ferramental multidisciplinar para a realização de pesquisas em conjuntos habitacionais visando a compreensão das relações entre os moradores e suas moradias. As pesquisas do grupo vêm buscando captar as relações subjetivas desenvolvidas nos espaços da moradia através da Teoria das Representações Sociais. As várias representações que os moradores dos conjuntos fazem de sua moradia remetem às idéias de conforto, segurança, tranqüilidade, dentre outras. Pudemos concluir que a representação da moradia é um importante dado subjetivo que conduz à determinadas atitudes, que devem ser levadas em consideração na fase de projeto.
Palavras-chave: Arquitetura, Representações sociais, Habitação popular.
ABSTRACT
This paper intents to show how LabHab uses a multidisciplinary tool for the conduct of joint research in housing lookingthroug the relationship between the residents and their homes. The research group have sought to capture the subjective relationships developed in areas of housing through the Theory of Social Representations. The various representations that the inhabitants of the housings make about their homes refer to the ideas of comfort, security, tranquility, among others. We conclude that the representation of the housing is an important subjective because it leads to certain attitudes, which must be taken into account during the process of project.
Keywords: Architecture, Social representation, Housing for low incoming people
Apresentação
Com o objetivo de estabelecer requisitos e critérios para a avaliação da eficácia de projetos e programas habitacionais de interesse social, o grupo de pesquisa Laboratório de Habitação do Proarq - FAU/UFRJ vem, desde 1995, desenvolvendo pesquisas em diferentes complexos arquitetônicos no Rio de Janeiro, que tenham sido construídos por estes programas.
Utilizando uma abordagem interdisciplinar, ao longo deste período, diversos estudos foram realizados, a partir de diferentes conjuntos residenciais representativos da ação governamental na produção da habitação na cidade do Rio de Janeiro1. O objetivo do estudo é analisar a ocupação e a adaptação sócio-urbana ocorridas nestes conjuntos habitacionais e de discutir criticamente os conceitos de racionalidade e de qualidade psico-ambiental aplicados a estes locais.
Esta pesquisa pauta-se pela necessidade de explorar métodos e técnicas capazes de fornecer informações sobre os aspectos objetivos e subjetivos que moldam ou determinam o comportamento e a relação do morador com a sua moradia. É importante lembrar que a moradia é projetada e construída por profissionais, segundo critérios técnicos que combinam aspectos tão variados e amplos como, por exemplo, programa de necessidades, custo, conforto ambiental, técnicas construtivas e infra-estrutura urbana. Por outro lado, o que se tem observado é que, na fase de uso, esta moradia é apropriada pelos moradores e sofre intervenções - algumas imediatas – para se adaptar às suas necessidades, nem sempre mantendo coerência com os critérios técnicos utilizados pelos profissionais ou com suas projeções.
A utilização da Teoria das Representações Sociais
Com vistas a avançar nessas questões, desenvolvemos estudos baseados na Teoria das Representações Sociais. Com isto pretendemos determinar elementos para uma melhor compreensão da relação do morador com a moradia e das intervenções pós-ocupação operadas, explorando o sentido atribuído à moradia, bem como tentando identificar o sistema de crenças e valores que influenciam preferências, comportamentos e expectativas.
Optamos por trabalhar com a Teoria das Representações Sociais, por seu reconhecimento da legitimidade do saber do senso comum, entendido como o saber prático que mantém a unidade das atitudes e opiniões. De acordo com Serge Moscovici (2003), a representação social é a responsável por manter unidos os itens da atitude. Pesquisador do campo da psicologia social, este autor preocupa-se com o modo como a ciência impacta e modifica a cultura, sendo assimilada ao sistema de crenças das pessoas comuns, e sustenta que a consciência social está assentada sobre a tríade ciência, ideologia e senso comum (MOSCOVICI, 2003).
A Teoria das Representações Sociais vem sendo desenvolvida nas últimas décadas, abandonando a dicotomia sujeito-objeto, ou seja, a idéia da existência de uma realidade interna e outra externa ao indivíduo. A representação possibilita a integração do objeto às experiências prévias do indivíduo, constituindo um saber funcional que articula e dá sentido aos comportamentos, saberes e comunicação de indivíduos e grupos, podendo ser definida como um conhecimento elaborado e partilhado por um grupo social, e que tem como função a orientação das práticas e a construção de uma realidade comum desse grupo (JODELET, 1989).
Segundo Nóbrega (2001), as funções das representações sociais são definidas como: função de saber, pois elas permitem compreender e explicar a realidade estando intimamente ligada à comunicação social; função identitária, pois definem a identidade e protegem as características do grupo; função de orientação, já que orientam comportamentos de práticas; função justificadora, pois permitem compreender, a posteriori, decisões e comportamentos.
Uma abordagem da Teoria que vem sendo explorada nos estudos do LabHab é a abordagem estrutural, proposta pela primeira vez na tese de doutorado de Jean-Claude Abric, em 1976, cuja hipótese sugeria que a representação é organizada em torno de um núcleo central (SÁ, 1996). A estrutura de uma representação é composta então, por um sistema central e outro periférico. Ao primeiro, estão associados os elementos inseridos no contexto histórico do grupo, sendo abordados de forma coletiva. É o sistema central que assegura a estabilidade e a coerência da representação, e sua mudança ocasiona a mudança da própria representação (ABRIC, 2003).
O sistema central possui, então, duas funções: função geradora, visto que é ele que cria ou transforma o significado de uma dada representação, e função organizadora, uma vez que une os elementos de representação. Já os elementos do sistema periférico estão ligados ao cotidiano dos indivíduos do grupo. Eles protegem o sistema central, pois têm a propriedade de adaptação ao contexto imediato. Assim, o sistema periférico possui as funções de: concretização, pois é através deles que a representação é formulada, compreendida e transmitida; regulação, já que adaptam as representações às modificações do contexto ao qual o grupo se insere, e função de defesa, pois o sistema periférico se transforma através da mudança de ponderação, novas interpretações ou integração de elementos contraditórios, para que se mantenha a estabilidade da representação (FLAMENT, 1994).
Com base nestas propriedades e funções é que se pretende identificar, através da abordagem estrutural, como os moradores dos conjuntos estudados representam sua moradia, para, então, delimitar o conjunto de práticas que este grupo exerce em relação à mesma.
Procedimentos Metodológicos
Os estudos empregam técnicas tais como levantamento da memória do projeto e da construção, através de levantamentos em campo e em arquivos; medições das condições ambientais; levantamentos físicos; inspeção e observação; entrevistas com os moradores; entrevistas com técnicos e informantes-chave.
Há a aplicação de questionários dirigidos ao conhecimento sócio-econômico, bem como ao levantamento físico das intervenções dos moradores, incluindo o mapeamento de como se dá a apropriação do espaço da moradia. Também é contemplado nos questionários um conjunto de informações acerca das impressões e aspirações dos moradores com relação à moradia. Dentre as informações recolhidas nos questionários, há o teste de associação de palavras2, tendo como indutora a palavra moradia. Os resultados das pesquisas são compilados e analisados pelos pesquisadores e por softwares desenvolvidos para a aplicação da Teoria das Representações Sociais, como o EVOC e o Epinfo, constituindo as bases para o estudo.
Os dados coletados, compilados e analisados são a base da discussão formulada a seguir, acerca da relação entre o morador e sua moradia.
A Representação Social da Moradia em Conjuntos Habitacionais
• Conjunto Pedro I:
Localizado no bairro de Realengo, na Zona Oeste da cidade, este conjunto é formado por prédios de cinco pavimentos, com apartamentos de um ou dois quartos, sala, banheiro, cozinha e área de serviço. Foram selecionadas 201 moradias aleatoriamente para a aplicação dos questionários.
O teste de associação de palavras mostrou que “moradia” é representada socialmente como “casa”, ou seja, tipologia arquitetônica casa. Podemos ressaltar dois grupos de idéias evocadas que, associadas à “casa”, modulam o seu significado. O primeiro, de caráter subjetivo, contém as palavras “lar”, “saúde” e “conforto”. O outro grupo, de caráter objetivo, está ligado aos elementos físicos da habitação, sendo formado por “terrenos”, “móveis” e “espaço”.
Quando se pergunta aos moradores como seria a moradia ideal, cerca da metade do grupo entrevistado diz que ela deveria ter mais espaços ou mais cômodos, sejam eles: “quintal”, “varanda”, “quarto”, “sala”, “cozinha” e “área de serviço”.“Morar bem” para este grupo significa ter mais área, e assim, alcançar um estado de “bem-estar”, “paz”, “tranqüilidade”, “sossego” e “saúde”. Assim, encontramos entre os aspectos subjetivos e objetivos as motivações para as intervenções na moradia. A busca pelo quintal, ou por mais espaço na cozinha e na área de serviço, evidenciam as necessidades cotidianas familiares como lazer, descanso, guardar o carro, ter espaço para eletrodomésticos de uso diário, secar roupas, criar animais e cultivar plantas.
• Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes (comumente denominado por Pedregulho):
Este conjunto está situado nos bairros de Benfica e São Cristóvão, na Zona Norte da cidade. É composto por edificações de serviços e moradia. Os blocos destinados à moradia são três. Dois deles são idênticos e apresentam dois pavimentos com apartamentos duplex, de dois, três ou quatro quartos, sala, cozinha, banheiro e varanda. O outro é curvo, situado no alto de uma colina, com dois pavimentos de apartamentos conjugados, um pavimento de uso comum e mais dois pavimentos de apartamentos duplex, apresentando de um a quatro quartos, totalizando sete pavimentos. Foram aplicados 101 questionários aos moradores dos três blocos residenciais.
Nesse conjunto, o núcleo central foi representado pela palavra “conforto”. Ao analisarmos a questão das intervenções realizadas nos apartamentos, percebemos claramente que são estas que acabam por assegurar o “conforto” da moradia, o que se evidencia nos elementos do sistema periférico “obra” e “dinheiro”. Quando questionados sobre as modificações que realizaram em seus apartamentos, os moradores afirmam que as fizeram em maior número para aumentar espaços que consideravam pequenos para suas atividades cotidianas (incorporando o hall à cozinha) ou então para facilitar estas atividades, como é o caso da limpeza, que se torna mais fácil com a troca do revestimento de piso em taco pelo revestimento cerâmico.
• Conjunto Residencial da Penha (IAPI):
O Conjunto Residencial da Penha está localizado no bairro de mesmo nome, pertencente à Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Esse conjunto é formado por prédios de três e quatro andares, todos com apartamentos de três quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. Neste conjunto, o número de moradias onde foram aplicados questionários foi de 156.
O núcleo central nesse conjunto é representado por “conforto” e “segurança”. Nesse caso, a segurança aparece como aspiração crescente dos moradores. Para eles, o fator segurança está ligado à falta de policiamento e à integração com o restante do bairro, como o acesso de linhas de ônibus ao interior do conjunto, que resultam na circulação de “pessoas de fora”, que podem vir a interferir na “tranqüilidade” do conjunto. Atualizando e protegendo3 o conteúdo do núcleo central, encontramos os elementos “comércio”, “despesas”, “espaço”, “família”, “feliz”, “harmonia”, “jardim”, “limpeza”, “organização” e “vizinhos”. Identificamos, então, que “conforto” e “segurança” estão ligados a aspectos subjetivos e objetivos, sendo estes a relação física cotidiana com a moradia, retratada seja através de atividades como organizar, limpar, fazer compras, ou até mesmo com o ter mais espaço para a realização dessas atividades. Nesse conjunto, a maioria das intervenções encontra-se na ampliação da cozinha (aspiração por espaço) e no cercamento dos prédios, delimitando seus espaços para uma maior segurança e controle.
• Conjunto Residencial Realengo (IAPI):
No conjunto de Realengo, bairro de mesmo nome da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, onde foram entrevistados 100 moradores. Este é o único dos conjuntos estudados que combina diversas soluções tipológicas de edifício. É composto por casas e prédios de dois, três e quatro pavimentos.
Neste conjunto emergiram como elementos do núcleo central as palavras “casa” e “conforto”. Este conjunto tem como diferencial em relação aos demais a predominância da tipologia casa como solução de moradia. A palavra “conforto” está relacionada ao espaço físico que, no caso dos moradores de apartamentos, é citado como mal distribuído. A maior parte das intervenções, no entanto, não está relacionada à representação da moradia, mas sim à baixa qualidade dos materiais empregados na construção, opção construtiva que tinha o propósito do barateamento da construção. Os materiais foram sendo substituídos, em parte pelo desgaste, mas também pelas modificações na distribuição dos cômodos ou até mesmo por serem de difícil assimilação cultural.
Os moradores mostram-se satisfeitos com a moradia apenas quando nela executam intervenções. Nas entrevistas realizadas fica evidente que o aspecto das moradias antes de tais intervenções era ruim. Os itens “família” e “lazer” complementam a noção de conforto, que traz uma idéia de satisfação dentro da própria moradia para toda a família. Já a palavra “localização”, complementada por “despesas” e “condução”, é citada provavelmente pelo fato de o Conjunto estar inserido em um local afastado do centro da cidade. No Conjunto IAPI de Realengo, temos que a moradia agradável é a que dá conforto e lazer à sua família, contando com uma boa localização e espaço suficientes.
• Conjunto Habitacional Mirante da Taquara (Conjunto Cafundá)
O conjunto localiza-se no bairro de Jacarepaguá, e possui 11 blocos que possuem altura variando entre 7 e 13 andares, totalizando 1.443 apartamentos de 1, 2 ou 3 quartos, sala, cozinha, podendo ter 1 ou 2 banheiros. Foram aplicados 161 questionários nesse conjunto.
Para os moradores do Conjunto Cafundá entrevistados, a representação da moradia está vinculada à imagem da casa, intimamente ligada às questões de conforto e segurança. O conforto na moradia seria um lugar tranqüilo e espaçoso (de preferência uma “casa”), onde se teria o “mínimo necessário”, eletrodomésticos e mobiliário básico. A questão do conforto ambiental raramente é citada por eles. Muitas vezes encontramos nas modificações operadas pelos moradores contradições entre esse “conforto” e o conforto ambiental. São verificadas ampliações que, na tentativa de se obter um maior “conforto”, muitas vezes geram problemas do ponto de vista ambiental, mas são realizados na busca de uma satisfação e adequação às necessidades da família. As questões ligadas ao espaço e aos bens de consumo estão na frente em ordem de prioridades quando se trata de “morar com conforto”.
Considerações Finais
Pudemos constatar que a metodologia adotada nas pesquisas trouxe a dimensão subjetiva da relação entre o morador e sua moradia. Essa dimensão é importante na discussão dos conceitos de racionalização aplicados à produção habitacional.
A representação que o sujeito faz de seu ambiente de morar implica no conjunto de atitudes que ele empreende sobre ela. As alterações realizadas nos imóveis, por questões de ampliação de espaço ou obtenção de segurança estão presentes nas aspirações subjetivas dos moradores, atribuindo os significados à moradia. Desta forma, a concepção da edificação destinada à moradia, deve trazer conceitos que excedam os limites do espaço físico, indo ao encontro dos verdadeiros anseios da população atingida.
Esses estudos vêm sendo importantes na discussão acerca da produção da moradia de interesse social, resultando desde artigos publicados em congressos, até desenvolvimento de dissertações e teses, com base na Teoria das Representações Sociais como eixo teórico.
Referências Bibliográficas
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_____. A abordagem estrutural das representações sociais. In: MOREIRA, A. S. P.; OLIVEIRA, D. C. (Org.), Estudos Interdisciplinares de Representação Social. Goiânia: AB, 1998. p. 27-38. [ Links ]
FLAMENT, C. Aspects périphériques des répresentations sociales. In: GUIMELLI, C.(org.). Structures et transformations des représentations sociales. Lausanne: Delachaux et Niestlé, 1994. p. 85-118. [ Links ]
JODELET, D. (org.). Les représentations Sociales. Paris: Press Universitary de France, 1989. [ Links ]
MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003. [ Links ]
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SÁ, C. P. Núcleo central das representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1996. [ Links ]
SANTOS, M.C. Arquitetura, Urbanização e Tecnologia. Revista do IAB-RJ, n. 79, IAB-RJ, p.10-17, 1997. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail:labhab@proarq.ufrj.br
Recebido em: 02/04/2007
Aceito para publicação em:
Notas
1 Estão aqui representados conjuntos habitacionais construídos pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPI’s), Departamento de Habitação Popular (DHP) e pelo Banco Nacional de Habitação (BNH).
2 O teste de evocação de palavras consiste em perguntar ao morador quais as quatro palavras que ele lembra imediatamente ao escutar a palavra moradia. Esta palavra é o termo indutor da pesquisa.
3 Por ser mais flexível, permite a integração de novos elementos à representação, favorecendo adequações sem que essas atinjam o núcleo central, exercendo, assim, a função de protegê-lo.