Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
COMUNICAÇÃO DE PESQUISA
Cultura e cidade em faixa de risco
Culture and city in risk
Cléia Schiavo Weyrauch *
Professor Adjunto – IFCH/Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Coordenadora do Centro de Referência da Zona Oeste
RESUMO
Neste texto, pretende-se propor um novo eixo de atuação para as políticas públicas de cultura, baseado no conceito de “A CIDADE como um corpo social regional”, com seus desequilíbrios e injustiças sociais. Por outro lado, destaca-se o papel revitalizador da cultura, tanto na perspectiva simbólica como na econômica, ambas muito importantes em áreas urbanas de risco social. Como exemplo, selecionou-se a Área de Planejamento 5 (AP5) do Município do Rio de Janeiro, à margem das políticas oficiais de cultura.
Palavras-chave: Cidade, Políticas públicas de cultura, Áreas urbanas de risco social.
ABSTRACT
This text intends to consider a new axle of performance for the public politics of culture, based on the concept of "CITY as a regional social body", with its social disequilibria and injustices. On the other hand, it detaches the revitalizing role of the culture, as economic and symbolic perspective, both very important in urban areas of social risk. We select to study the Area of Planning 5 (AP5) of the City of Rio de Janeiro as an example of the official politics of culture marginalization.
Keywords: City, Official politics of culture, Urban areas of social risk.
O conceito de política social pressupõe uma intervenção sobre o social, seja ela uma ação impulsionada pela dimensão institucional, seja pela sociedade civil. Na prática, as políticas públicas inspiram-se em temas a partir dos quais se formulam estratégias específicas para cada instância do social. As políticas públicas de cultura vêm mudando de eixo, ora fazendo a opção pela preservação física e/ou revitalizações do Patrimônio Histórico, ora pela defesa da cultura universal e/ou étnica, entre tantos outros temas. Neste texto, pretende-se propor um novo eixo de atuação para as políticas públicas de cultura, baseado no conceito de “A CIDADE como um corpo social regional”, com seus desequilíbrios e injustiças sociais. Por outro lado, é importante destacar o papel revitalizador da cultura, tanto da perspectiva simbólica como da econômica, em áreas urbanas de risco social.
Até agora, a questão que mais chamou atenção das autoridades foi a da relação da cultura com a construção da identidade nacional, aderida a um projeto educacional de cunho cidadão. A criação do Ministério da Educação, em 1932, procurou atender a esse propósito. Do ponto de vista da construção da República, tornou-se primordial a consolidação histórica entre as unidades da federação, quando foi enfatizado o princípio da unidade da diversidade. De fato, a impossibilidade de se criar politicamente a República fez com que se deslocasse, em parte, essa responsabilidade para o campo cultural, na medida em que a República não fez jus ao seu radical de res publica. Assim, da criação do Patrimônio Nacional, na década de 1930, à criação do Ministério da Cultura, na década de 1980, as entidades oficiais responderam de forma prioritária a esse desafio, pelos mais variados caminhos. De Rodrigo de Melo Franco a Gilberto Gil, da Velha à Nova República, temas se sucederam, tais como os discutidos no Seminário Nacional de Política Cultural, proposto pela fundação Astrogildo Pereira e realizado, em novembro de 2005, no Museu da República, na cidade do Rio de Janeiro.
Entre os temas em pauta na academia, o que mais se destaca é o da construção do passado a partir da leitura de monumentos, devido à sua dimensão fundadora, voltada para a construção da identidade nacional. De modo geral, localizados nos centros urbanos das cidades, esses monumentos restringem as leituras da cidade aos limites dos seus centros históricos. Nessa concepção, não só a questão social, como também a memória dos espaços fora do centro, fica à margem da história oficial contada. A fase heróica do patrimônio1 antecipou outras versões da história, como as que levaram em conta os patrimônios vivos, os ambientes culturais, os acervos arqueológicos e ambientais, que ampliaram a agenda de discussão da nossa identidade. Mas é a partir da década de 1930 que se consolida o tema da cidade social.
Em 1933, no quarto encontro do CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), na cidade de Atenas, o assunto escolhido foi “A cidade funcional” que, segundo a Carta de Atenas (documento deliberativo do Congresso), deveria ser organizada para atender às quatro necessidades humanas básicas: habitação, trabalho, lazer e circulação. Mas, por sugestão da delegação italiana, foi ainda introduzido o tema do Patrimônio Histórico das Cidades. Na Carta de Veneza, de 1964, os itens relacionados à preservação e à revitalização das obras monumentais aprofundaram a importância da requalificação histórica dos centros urbanos como fonte de inspiração genética para as políticas patrimoniais. Paralela à discussão da importância da preservação dos centros urbanos, a concepção de cidade como valor de uso ganhou força. Na verdade, introduzia-se a idéia de democracia urbana como bandeira de luta, na qual o acesso à cidadania incluía-se como prioridade. Mesmo assim, na prática, o foco das políticas de preservação ou revitalização incidiu sobre áreas privilegiadas, ignorando-se importantes patrimônios históricos localizados fora dos pontos centrais. O patrimônio arqueológico é um exemplo desse deslocamento.
A fala do risco social, nas grandes metrópoles, traz à tona a discussão tanto da violência quanto da crise urbana propriamente dita. Essa crise, presente em toda a cidade, é fractal2, embora mostre traços singulares em regiões que, anteriormente, tiveram intensa e produtiva atividade agrícola, como a Área de Planejamento 5, inserida na Zona Oeste da cidade. Do ponto de vista político3, essa área sempre teve um comportamento de relativa autonomia. De fato, isso pode ser comprovado pelo localismo existente até hoje na região. Em 2004, nessa zona, os homicídios subiram em 10,4%, conforme pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC), da Universidade Cândido Mendes. Segundo essa instituição, os grupos de extermínio multiplicaram-se naquela região, organizados, a maioria deles, pelo tráfico de drogas.
É importante, neste momento, que os poderes públicos contenham a degradação social dessas áreas, nas quais é visível um padrão sub-cidadão de vida, com rituais cotidianos de violência urbana e assustadores bolsões de pobreza, como os que cercam, por exemplo, o bairro de Bangu. Devem-se propor políticas públicas de cultura, que não se restrinjam apenas ao plano do divertimento, mas políticas pensadas em consonância com as demandas sociais existentes e com a capacidade de reversão sociocultural, diante do potencial de patrimônio turístico e simbólico a ser explorado. Nota-se a ausência de destaque a importantes acervos históricos tombados pelo Patrimônio Histórico na Zona Oeste da cidade.
O que as políticas públicas fizeram até agora? Estabeleceram um muro, uma porta fechada, como diria Argan (1992), entre o espaço nobre e o desprezado da cidade4. Ou seja, de um lado, está a cidade formal, celebrada pelas elites; de outro, um lócus de assentamento de um grande número de excluídos. Em um desses espaços desprezados, no bairro chamado Paciência, no Rio de Janeiro, pretende-se, inclusive, instalar um Aterro Sanitário. No fundo, o lócus de capital federal, que a cidade do Rio de Janeiro ocupou, reforçou a valorização de um perímetro da cidade em detrimento do outro. E, em curto prazo, as regiões periféricas, muitas já em processo de degradação, ficaram sujeitas a graves riscos sociais.
De modo geral, o tema da cidade social ainda não conquistou seu merecido lugar. Os temas da preservação/requalificação dos centros históricos ainda ocupam um espaço central nos debates atuais. Não se pretende aqui desqualificar essa linha de intervenção que, na esteira do fomento ao turismo cultural, promove a requalificação social das áreas degradadas no entorno de importantes monumentos históricos das áreas centrais. Contudo, não se devem congelar as políticas públicas de cultura apenas nessa esfera!
Em tempos de globalização, é preciso estar atento às possibilidades de ação local de certas áreas, onde novos atores, novas vozes, têm propostas a fazer. Na região denominada de AP5, essas vozes lutam para construir uma história com apoio de disciplinas pouco valorizadas pelo Patrimônio Histórico, tais como a Arqueologia e a Geografia. É necessário desenterrar a herança dos índios, dos jesuítas, da história em torno da Estrada Real de Santa Cruz. É preciso contar que, naquela área agora pouco valorizada, se escreveu uma parte importante da História do Brasil.
Por que não tornar esse patrimônio instrumento de recuperação econômica e sociocultural da região? Essa área, se objeto de adequadas políticas públicas de cultura, poderá contribuir, tanto para o crescimento econômico, quanto para o cultural/educacional da região. No âmbito cultural, incluem-se programas de recuperação do acervo histórico, arqueológico, geológico e ambiental, associados aos programas de reforço educacional e com base na vinculação da população estudantil ao patrimônio da sua região. Sugere-se também que se incentive o turismo ecológico cultural dessa área. Esse turismo poderá, além de absorver mão-de-obra local, estimular a venda de produtos agrícolas e artesanais. O tratamento do patrimônio arqueológico, ali existente, requer a atuação de novas províncias disciplinares, a fim de torná-lo um objeto, tanto de desfrute cultural humanístico, quanto de consumo turístico.
Os dados a seguir, sobre a AP5, evidenciam o nível de precariedade social dessa região. Com uma população total de 1.556.505 habitantes, 122.247 pessoas são analfabetas, 53.943 são responsáveis por domicílio, cuja renda gira em torno de meio a um salário mínimo ao mês. É preciso registrar ainda que, entre os indivíduos alfabetizados, existe grande número de analfabetos funcionais, que apenas escrevem seus próprios nomes. Acrescente-se a isso um número assustador de desempregados em uma região que, em tempos de pujança agrícola, atraía trabalhadores para a colheita da laranja.
Os tempos atuais exibem uma cidade perversa, com áreas de risco e de grande pobreza, onde a identidade humana corre perigo. E isso exige novas formas de intervenção e de tratamento dessas regiões.
Não é hora de abdicarmos da utopia da cidade valor de uso, espaço pleno de conquistas cidadãs, onde todos possam ter acesso indiscriminado às instituições democráticas. Nessa direção, deve ser dada ênfase ao acesso às instituições culturais e educacionais, porque espaço privilegiado de construção da cidadania.
A delimitação da Zona Oeste do Município do Rio de Janeiro pelo Centro de Referência da zona Oeste , corresponde à Área de Planejamento 5, instituída pela Prefeitura com o objetivo de desenvolver, na referida região, projetos e programas diversos.
A utilização dos limites dessa área vai facilitar, principalmente, a obtenção dos dados e ainda o cotejamento dos mesmos, uma vez que estaremos utilizando o mesmo recorte territorial dos órgãos públicos.
A Área de Planejamento 5, localizada na Zona Oeste, compreende 20 bairros e 5 regiões administrativas (XVII – Bangu, XVIII – Campo Grande, XIX – Santa Cruz, XXVI – Guaratiba e XXXIII – Realengo), com uma superfície aproximada de 664,43 km², apresentando uma população residente de 1.556.505 (IBGE-Censo 2000).
No mapa a seguir, apresentamos as referidas Áreas de Planejamento, onde se pode comparar o tamanho da AP5 com as outras áreas do Município do Rio de Janeiro.
Áreas de Planejamento do Município do Rio de Janeiro
Mostramos, adiante, uma Tabela com as populações dos vários bairros da AP5, e seus respectivos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), nos anos de 1991 e 20005. Acrescentamos uma coluna para mostrar o percentual comparativo do crescimento do IDH entre os anos considerados.
População e IDHi da Área (Por Bairro)
Fonte: Dados básicos: IBGE-microdados dos Censos Demográficos 1991 e 2000.
Os bairros mais populosos são Campo Grande, Bangu, Santa Cruz e Realengo, nessa ordem.
Como se pode ver, houve sensível melhoria em todos os segmentos da AP5, confrontando-se os índices dos anos 2000 com os de 1991. Percentualmente, os ganhos foram mais significativos na Região Administrativa de Guaratiba, em decorrência, entre outros fatores de uma nova frente urbana. Nos anos considerados, o bairro de Santa Cruz, a despeito do grande desenvolvimento industrial, apresenta, relativamente, menor crescimento percentual de desenvolvimento humano, juntamente com Realengo e, em seguida, Bangu.
De acordo com o IBGE, em 1991, o IDH de todo o Estado do Rio de Janeiro era 0,750, subindo para 0,802, em 2000 – um crescimento percentual de 6,9, entre os dois anos considerados, menor do que o de todos os segmentos apresentados na Tabela da Área de Planejamento 5.
Finalizamos com um mapa que destaca acidentes geográficos e alguns pontos turísticos do nosso Município do Rio de Janeiro. Ele é composto por 126 bairros ou conjuntos deles. Em 1991, 14 bairros cariocas apresentavam IDH superior a 0,9. Em 2000, o número de bairros com semelhante IDH subiu para 29 (dados do IBGE).
Mapa de Pontos Turísticos do Município do Rio de Janeiro
Escala 1:200.000 – 2002 –IPP
Concluímos, salientando a existência de um enorme potencial para promover o desenvolvimento cultural e turístico na AP5, que merece a atenção das autoridades públicas.
Referências Bibliográficas
FREIRE, A. Rio de Janeiro: uma capital para a República. Rio de Janeiro: ALERJ/FGV, 1998. [ Links ]
ARGAN, G. C. A história da arte como história da cidade. Rio de Janeiro: Ed. Martins Fontes, 1992. [ Links ]
RIBEIRO, L. C. de Q.; SANTOS JUNIOR, O. dos (Org.). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail:cleiaschiavo@terra.com.br
Recebido em: 05/03/2007
Aceito para publicação em: 26/08/2007
Notas
* Pós-Doutorado Uiversita Di Roma Tor Vergata, Roma, Itália.
1 A fase heróica do Patrimônio Histórico, no Brasil, corresponde à gestão de Rodrigo de Melo Franco quando se enfatizou não só o culto aos heróis da Pátria, mas também a defesa do patrimônio arquitetônico construído.
2 Afirmam Luiz César de Queiroz Ribeiro e Orlando dos Santos Júnior (1994) que a pobreza na cidade não se distribui mais segundo a classificação de centro/periferia, mas de forma fractal, ou seja, ela se derrama na cidade como um todo.
3 Na República Velha, o grupo político denominado Triângulo instituiu-se como um grupo regional, atuava na área correspondente à atual AP5, diante da pressão exercida pelo poder central do antigo território do Distrito Federal. Para maiores detalhes ver livro de Américo Freire, “Rio de Janeiro:uma capital para a república” (ALERJ/FGV), publicado em 1998.
4 O Atlas Escolar do Município do Rio de Janeiro registra os investimentos culturais na cidade do Rio de Janeiro indicando a precariedade deles na Zona Oeste da cidade, em particular na Área de Planejamento V.
5 Como se sabe, o IDH calcula as condições de vida da população a partir das estatísticas sobre educação, saúde e renda.