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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.3 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Intervenção sobre intervenção: sobre a transferência em um trabalho sociali

 

Intervention on intervention: about transfer in a social work

 

 

Fabio AzeredoI; Fernanda CanavêzII

I Pós-doutorando do Instituto de Medicina Social–UERJ. Diretor clínico do MOTE1. Coordenador da linha de pesquisa intitulada “A pobreza como direito à exceção”, desenvolvida pelo MOTE
II Psicóloga, pesquisadora da linha de pesquisa “A pobreza como direito à exceção”, desenvolvida pelo MOTE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho visa a refletir sobre a relação de trabalho estabelecida entre a família assistida pelo Projeto de Reinserção Familiar (PRF), junto à Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), e a equipe técnica de um dispositivo de atenção diária para pessoas com deficiência. Será feita uma exposição da nossa intervenção sobre a intervenção da referida equipe. O PRF destina-se a crianças e adolescentes portadores de necessidades especiais institucionalizados, realizando um acompanhamento psicossocial sistemático aos familiares dos mesmos, mediante visitas domiciliares e contatos de rede, que residem em comunidades carentes do estado do Rio de Janeiro. Um caso será relatado à luz da nossa linha de pesquisa, intitulada A pobreza como direito à exceção. O texto Intervenção sobre a transferência, do psicanalista Jacques Lacan, será utilizado para explicitar as peculiaridades de uma intervenção de orientação psicanalítica em oposição a uma intervenção de cunho assistencialista. Ademais, utilizar-se-á a discussão que o sociólogo francês Serge Paugam propõe no texto A desqualificação social, no intuito de ressaltar as principais diferenças entre a intervenção realizada por uma equipe de trabalhadores sociais e a nossa intervenção, calcada na interpretação psicanalítica, não só junto à família assistida como junto a esta equipe.

Palavras-chave: Intervenção, Pobreza, Caráter, Reinserção familiar, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper focuses on the bond built between the family assisted by the project of reallocation in the family (PRF), which operates under the Foundation of childhood and adolescence of Rio de Janeiro government and technical staff of a day-care institution for people with deficiency. Our intervention on intervention conducted by this staff, composed of psychoanalysts will be the object of our article. PRF attends children and teenagers with deficiency who live or have lived on government shelters. We make a methodic psychosocial attendance to these people’s relatives, who live mostly on Rio de Janeiro`s slums. We will report this case guided by our research, named Poverty as the right to be an exception. The work Intervention on transfer, written by the psychoanalyst Jacques Lacan, will be studied to show differences between a psychoanalytic intervention and an assistencialistic one. Then, we will present the main ideas contented in the book Social disqualification, written by a French sociologist – Serge Paugam – to emphasize how different our intervention was from that one.

Keywords: Intervention, Poverty, Character, Family reintegration, Psychoanalysis.


 

 

A compaixão é sofrimento que nos faz voltar à ação social, pode adquirir um caráter público e unificar os homens em torno de um projeto social. A piedade é a paixão pela compaixão, é sentimento que encontra em si mesmo o seu próprio prazer, aprisionando o homem ao seu próprio sentimento.
(Hanna Arendt, 1988)

Pretendemos tratar neste trabalho das relações que se estabelecem entre trabalhadores sociais e aqueles por eles assistidos. Para isto utilizaremos o conceito psicanalítico de transferência, uma vez que se revela como um antídoto contra as armadilhas da compaixão e da rejeição, muito comuns a este campo.

Vamos trazer à baila um caso, a partir de um projeto que visa à reinserção de crianças e adolescentes com deficiências – via de regra com algum comprometimento de ordem mental ou neurológica – em suas famílias. Estão inseridas no referido projeto famílias pobres, que vivem em sua maioria em favelas cariocas, sendo que boa parte destas é ou foi cliente da assistência social.

Acreditamos que a temática por nós proposta é especialmente importante no tocante à relação estabelecida com os trabalhadores sociais, agentes diretamente envolvidos na assistência. O sociólogo francês Serge Paugaum (1987) explicita como aqueles que são assistidos por projetos sociais adentram o que chama de carreira moral do assistido: quanto maior é o tempo em que são assistidos, mais se aprofunda a dependência em relação aos serviços assistenciais. A temática da transferência nos trabalhos sociais pode ser tomada como um recorte específico da mais ampla questão colocada por Paugam, a saber, como é possível prestar assistência sem reforçar a dependência dos que são assistidos? No intuito de buscar elementos para pensar sobre o nosso trabalho a partir deste questionamento, passemos então à discussão do conceito de transferência.

O psicanalista J. Lacan, em Intervenção sobre a transferência, título que suscitou a presente discussão, exalta as conseqüências da presença do analista no tratamento analítico, antes mesmo de qualquer intervenção por parte deste. Isso porque a abstinência do analista faz com que o sujeito evidencie o modo como se remete ao Outro, expondo sua modalidade de gozo ao tomar o analista como objeto. O desvelamento da maneira como o sujeito constitui seus objetos remete-nos à temática da transferência, sendo que na “relação” entre analista e analisante este atualiza suas formas de gozar.

O autor mostra neste ensaio que o tratamento analítico corresponde a uma experiência dialética, sendo a partir desta perspectiva que a questão da transferência se coloca. Couto (2004, p.266) aponta:

Não sendo um diálogo comum, uma psicanálise se inicia com uma proposta inédita: um dos parceiros, o analisante, fala enquanto o outro, o analista, silencia a resposta às demandas ali presentes. O “diálogo” que se estabelece desencadeia uma experiência dialética que gravita em torno do que se pode chamar de verdade do sujeito.

É importante, entretanto, atentar para que a relação imaginária não norteie a situação. Assim sendo, o analista deve desaparecer enquanto eu, fazendo existir o Outro. É desse lugar que ele interpreta. A intervenção do analista deve abrir, portanto, uma brecha no eixo imaginário, ao contrário de reforçá-lo. O tratamento analítico é levado a cabo primando pelo desejo, objetivando a assunção deste. Caso se estabeleça uma relação imaginarizada entre analisando e analista e nela se permaneça estagnado, estaremos no campo da demanda e não do desejo. Fink (1995, p. 113-114) fala das armadilhas nas quais o analista pode cair, caso negligencie essa advertência:

Não se trata de que o analista deva permanecer na posição de sujeito suposto saber a qualquer preço – muito pelo contrário. Ao explicitamente se posicionar como se fosse tal sujeito, o analista tende a evocar relações imaginárias de rivalidade por parte do analisando, as piores relações possíveis entre analista e analisando [...] Pois, ao responder à demanda do analisando, por conselho e interpretação, pela ‘compreensão’ de seus sintomas, o analista dá o que possui (‘saber’), ao invés do que não possui (a falta, em outras palavras, o desejo). E incentiva o analisando a demandar mais do que a desejar, ao permanecer alienado em vez de separado.

O analista, ao contrário, deve tomar o inconsciente do analisando como representante do saber. O inconsciente, e não o analista, é o representante do saber. Só a consideração dessa máxima pode nos proteger contra as armadilhas supraditas, mostrando uma recusa frente às relações imaginárias de rivalidade. O caso em tela neste artigo evidencia justamente as conseqüências de uma intervenção que esperava atender às demandas do sujeito por parte das assistentes sociais.

Este caso foi acompanhado no Projeto de Reinserção Familiar (PRF), que é fruto de um convênio estabelecido em julho de 2001 entre o MOTE1 e a Fundação para a Infância e Adolescência – FIA, vinculada ao Governo do Estado do Rio de Janeiro. Faz parte do Programa de Atenção a Crianças e Adolescentes com Deficiência, destinando-se a crianças e adolescentes com deficiência institucionalizados em abrigos próprios ou conveniados à FIA. O objetivo é a desinstitucionalização de crianças e adolescentes abrigados ou em vias de abrigamento através da reinserção familiar e psicossocial dos mesmos. Acompanhando a família e articulando a rede de serviços de saúde, educação e assistência social, busca-se estreitar os laços afetivos entre familiares e assistidos, assim como inserir o assistido nos dispositivos necessários ao seu tratamento e desenvolvimento. Nossa metodologia inclui a realização sistemática de visitas domiciliares às famílias, a interlocução com as equipes dos abrigos e rede de serviços locais (seja de saúde, educação ou assistência social). Inclui também a realização de reuniões familiares grupais, mensalmente, na sede do MOTE.

O relato do caso tem como pano de fundo a discussão proposta pelo sociólogo Serge Paugam (2003), a partir da análise de famílias francesas tidas como pobres. O autor descreve a carreira moral das famílias, tendo como base as modificações ocorridas desde o momento em que elas se tornam objeto de intervenção dos serviços sociais, conforme pontuamos anteriormente. Durante a carreira de assistido, os sujeitos se vêem cada vez mais distanciados do mercado de trabalho, restando-lhes então acatar sua nova identidade enquanto assistidos. Acabam adotando para si e para os outros um discurso de justificativa de por que devem ser assistidos, até que, já inteiramente dependentes, passam a reivindicar o direito de serem assistidos e não mais buscam sua inserção no mercado de trabalho. Nesse estágio, o último desta “carreira”, a relação com os assistentes sociais atinge também seu nível mais preocupante:

Quando se dirigem aos assistentes sociais, eles sabem que não têm nada a perder e adotam um tom agressivo. Trata-se de um mecanismo de defesa. Sentem-se ameaçados ou observados com a reprovação por esses profissionais do setor social [...] Esses comportamentos não são sempre compreendidos. Eles não facilitam os contatos com a administração e com as pessoas que gostariam de ajudá-los (PAUGAM, 2003, p. 41).

Falamos de pessoas que se encontram em uma situação de fragilidade social tal que faz com que se tornem objetos de intervenções por parte de programas governamentais, bem como de organizações não-governamentais. Não raro podemos ser tomados de sentimentos de compaixão pelas famílias por nós assistidas, onde se pode compreendê-las como vítimas de um processo histórico e social que contribui amplamente para colocá-las no lugar que ocuparão na escala social.

Aqui cabe uma pequena digressão explicativa das diferenças existentes entre o campo de análise do sociólogo francês e a realidade da pobreza em um centro metropolitano de um país em desenvolvimento como o nosso. Paugam (2003) refere-se especialmente à classe operária que se tornou desempregada e aos filhos de classe média cada vez com mais de dificuldade de colocação no mercado de trabalho2. Isso certamente marca uma diferença em relação às pessoas advindas de sucessivas gerações pobres. Sentimentos experimentados por sujeitos que subitamente vêem seu status social modificar-se drasticamente, como a depressão e a vergonha, falam de uma situação distinta daquela que as famílias que acompanhamos revelam. Todavia, a pertinência dos tópicos maiores aqui debatidos se mantém, a saber, os efeitos que a assistência prolongada têm sobre determinados sujeitos, tanto com relação ao grau de dependência quanto de seu correlato, a desistência de buscar sua inserção no mercado de trabalho. Isso se aplica a muitas das situações que acompanhamos, o que fala a favor da tese de que ao “ajudarmos” podemos acabar criando uma situação onde a assistência se naturaliza, o que traz como resultado a dependência do sujeito e o enfraquecimento de sua autonomia. Há casos em que, mesmo diante de uma fragilidade social intensa, é preciso não naturalizar o atendimento às demandas. A contribuição que a psicanálise traz ao campo da assistência se mostra relevante devido à preocupação com a inclusão do sujeito no topo de sua fundamentação ética, como desenvolveremos adiante. Faz-se ainda premente um último tom de cautela: no caso que vamos trazer para a discussão não estávamos lidando com uma família de extrema pobreza, situação em que o questionamento de atendimento às demandas precisaria ser deveras delicado, embora, ainda assim, relevante.

Explicitadas algumas diferenças entre os exemplos da França e a realidade brasileira, já é possível retornarmos à discussão da pesquisa do sociólogo francês. Podemos tentar correlacionar a aumentada agressividade por parte dos assistidos, citada por Paugam, com a representação destes pelos trabalhadores sociais se inscrevendo entre vitimização e culpabilização. Ora, se se trata, como quer Paugam (2003), de um “mecanismo de defesa”, então o próprio olhar destes trabalhadores sociais sobre seus clientes já contém um julgamento implícito que negativiza estes últimos. Quer os tomemos como vítimas de um Estado ausente ou como culpados de sua própria inércia social, poderemos incorrer no risco de deixarmos de lado a questão mais cara à psicanálise: o lugar do sujeito.

Apesar da relevância da discussão, entendemos que os danos que o assistencialismo pode causar estão para além da problemática acerca do tipo de intervenção e abordagem dos trabalhadores sociais. É importante apontar, embora o aprofundamento desta temática extrapole o alcance do presente artigo, que qualquer trabalhador social pode se ver confrontado com as armadilhas da demanda. Isto inclui não somente aqueles que formalmente pertencem à área do serviço social, como também os psicólogos com formação psicanalítica. Supomos, ainda assim, que a escuta psicanalítica pode fornecer importantes contribuições para o trabalho social, mesmo compreendendo que qualquer questionamento das demandas por benefícios assistenciais e demais subsídios constitui um problema multifacetado, cuja discussão não se esgota facilmente. Objetivamos mostrar as conseqüências do atendimento irrestrito das demandas daqueles que se encontram em situação de pobreza.

Como mostraremos a partir do caso, o subsídio que recebem por causa de sua situação especial muitas vezes traz como efeito uma cristalização dos sujeitos nesse auxílio, subvertendo o caráter especial originário. Uma situação aguda tende a se cronificar a partir do momento em que a própria ajuda passa a agravar o quadro social. Ainda assim, mesmo não sendo suficiente para solucionar a questão da assistência que tende ao assistencialismo, acreditamos que a abordagem é um dos elementos mais importantes do trabalho social, embora raramente seja objeto de uma discussão técnica mais detida. Serge Paugam se ocupou deste tipo de abordagem, trazendo importantes contribuições para este campo.

O autor sistematiza a experiência no que tange à assistência em três tipos: a assistência postergada, a instalada e a reivindicada – cada qual correspondendo a uma fase na carreira do sujeito. Interessa-nos, em especial para discussão do acompanhamento deste caso, o que o sociólogo afirma a respeito da relação estabelecida com os assistentes sociais, embora outros critérios também sejam enumerados no referido estudo para a classificação do tipo de assistência3. A atitude para com estes profissionais pode ser de distanciamento, sedução/cooperação e reivindicação, correspondendo aos tipos de assistência postergada, instalada e reivindicada, respectivamente.

À luz dessa tese pode-se passar à história de Silene, no esforço de refletir sobre a nossa intervenção junto aos serviços de assistência social. É importante dizer que os nomes utilizados são fictícios. A escolha dos mesmos foi baseada em uma famosa peça de teatro de Nelson Rodrigues, intitulada Os sete gatinhos, por considerarmos que o caso conserva pontos de aproximação com a referida tragédia carioca. Nesta, a personagem Silene era a última filha virgem de Noronha, sendo sua virgindade um verdadeiro troféu para a família, que tinha todas as outras filhas trabalhando como prostitutas, atividade que gerava um dinheiro que era investido para comprar o enxoval de Silene, quando esta se casasse. Todos os conflitos surgem em função da suposta virgindade de Silene, que é tomada pelo pai como objeto de pureza, capaz de expurgar os seus pecados e na qual ninguém poderia “encostar” (MAGALDI, 1985).

A assistida que chamaremos, portanto, de Silene tem 18 anos, é cadeirante e, conforme o encaminhamento recebido pelo PRF, possui “retardo mental” (sic). Está inserida na rede escolar, tem matrícula regular em uma escola municipal próxima à sua casa e freqüenta diariamente as atividades de uma instituição de atenção, cujo público-alvo são os adolescentes com deficiência. A adolescente mora com o seu pai, o Sr. Noronha. No ano de 2000, a mãe de Silene faleceu, em função de uma parada respiratória (segundo informações colhidas no prontuário da instituição). Vale ressaltar que a genitora era a principal responsável pelos cuidados da assistida. O Sr. Noronha apresentou quadro de depressão maior após o falecimento, tendo se submetido a tratamento psiquiátrico na ocasião - norteado, sobretudo, por uso de antidepressivos. Ele trabalhava como porteiro há muitos anos, mas, por conta desta situação, foi necessário que ele se afastasse de seu ofício, devido às dificuldades engendradas a partir do falecimento de sua esposa. Além de se apresentar como uma difícil realidade para o Sr. Noronha, este deveria cuidar ou agenciar os cuidados de que sua filha necessita, tarefa que até então não lhe tinha sido designada.

O caso chegou ao projeto em outubro de 2001, permanecendo até maio de 2002. Sua inclusão se deu em caráter extraordinário, uma vez que Silene não era institucionalizada. Naquela ocasião, o projeto só contemplava assistidos residentes em abrigos próprios ou conveniados à FIA, critério que não era atendido por Silene. O encaminhamento foi realizado pela gerência do Programa de Atenção a Crianças e Adolescentes com Deficiência da FIA, na medida em que a família passava por dificuldades financeiras severas. É importante atentar para o aspecto de exceção que o caso apresentou desde o momento em que foi encaminhado para o projeto, conforme discutiremos adiante.

O plano de trabalho era dar suporte à família enquanto o genitor passava pelo período de luto, para que este se reestruturasse e pudesse voltar ao mercado de trabalho. Para isso foi estabelecido de antemão que a família receberia o subsídio financeiro4 por seis meses. Desde o início o Sr. Noronha demonstrou atitude reivindicatória e, apesar de advertido sobre a provisoriedade do recurso, não ensaiou nenhuma modificação, no sentido de assegurar uma atividade que lhe proporcionasse alguma renda mensal. Quando o assunto do subsídio estava em pauta, o Sr. Noronha defendia o seu suposto direito de recebê-lo ininterruptamente. A equipe esclarecia que não se tratava de um direito assegurado, mas sim de um suporte oferecido pelo projeto para que melhorias pudessem ser feitas, primando pela reestruturação da família, após o falecimento da genitora.

Chegada a época de suspensão do subsídio, o pai de Silene tentou articular inúmeras instâncias de assistência social para reverter a situação. Ainda assim o recurso foi suspenso, conforme previamente acordado entre a nossa equipe e o genitor. O caso continuou a ser acompanhado e o Sr. Noronha, por sua vez, continuou atendendo prontamente às nossas convocações. Segundo Paugam (2003), trata-se de uma atitude de cooperação/sedução, como uma tentativa de “apropriação” do profissional. Ele se esforçava para atender a todos os chamados. Durante as visitas domiciliares, afirmava repetidas vezes o quão difícil era administrar a casa sem qualquer ajuda. É digno de nota, entretanto, que o Sr. Noronha tivesse como vizinhos membros de sua família. Quando questionado sobre a possibilidade de recorrer aos mesmos para obter auxílio, o pai criava inúmeros entraves, isolando-se de todos que poderiam fazer parte de um entorno familiar salutar para o acompanhamento de Silene. Embora não se empenhasse em levar adiante nenhuma de nossas propostas, o genitor apresentava-se como um caso especial: um pai sozinho, disposto a contribuir com o desenvolvimento de sua filha, supostamente seguindo as nossas orientações sem medir esforços.

Coube à equipe não aceitar o convite para o “jogo da sedução”, isto é, ter um olhar de estranhamento diante de tanto marketing em torno de sua imagem. Principalmente durante as reuniões familiares – espaço em que as famílias por nós acompanhadas discutem sobre assuntos em comum – ele objetivava enaltecer sua imagem, enfatizando suas dificuldades e seu esforço para continuar cuidando de Silene, sustentando um discurso que se pretendia heróico. Discurso este que parecia não permitir nenhum atravessamento de outras opiniões, o que se revelava quando o Sr. Noronha demonstrava ficar bastante nervoso quando outros familiares pediam a palavra, embora já estivesse fazendo suas colocações por um considerável período de tempo.

O discurso do Sr. Noronha é paradigmático no que se refere à população assistida pelo PRF. A partir dessa experiência, foi desenvolvida a pesquisa intitulada A pobreza como direito à exceção5. Nossa hipótese tem como norteador o texto de Freud (1916), Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. O autor vienense assinala neste texto que as resistências encontradas no tratamento analítico parecem estar relacionadas à parte do caráter do paciente. A partir dessa observação, descreve três tipos de caráter: as exceções, os arruinados pelo êxito e os criminosos pelo sentimento de culpa. O tipo das exceções não aceita se submeter a qualquer necessidade desagradável, por se sentirem lesados. Os dois tipos restantes são carregados de culpa, sentida com pesar pelo sujeito, ao contrário do tipo das exceções, que aponta para uma culpa que não tem no sujeito a sua origem. Trata-se de uma culpa do destino, de um mal congênito ou da natureza, nos diz Freud. Podemos interpretar, à luz da orientação lacaniana, que se trata de uma culpa do Outro, Outro este que lhe deve, para quem exigências podem ser dirigidas e devem ser atendidas.

Azeredo (2003) sustenta a tese de que, na contemporaneidade, o tipo das exceções expressa um desenvolvimento considerável, devido ao declínio da função paterna. Este é traduzido, segundo o autor, a partir do “declínio do modelo piramidal, seja no trabalho ou na vida familiar” (p. 163), radicalmente observado e muito discutido nos dias atuais. Com o declínio do pai, com os sinais de falência da autoridade, o sujeito tem passe livre para reivindicar, para se julgar uma exceção. As cobranças dirigidas ao Outro são irrestritas, sem que isso acarrete, no entanto, em culpa ou mal-estar.

Com a população assistida pelo PRF não é diferente: esta sustenta um discurso que exalta a condição de pobre, de menos favorecido, como brevê de direito à exceção. É mister salientar a posição de exceção que o caso de Silene ocupou desde o início, uma vez que foi incluído no projeto em caráter extraordinário, dada a inadequação com relação aos critérios de encaminhamento na ocasião. O Sr. Noronha, por sua vez, demonstrou ao longo do acompanhamento que não aceitava estar sujeito à lógica da coletividade, submeter-se às mesmas regras ou condições colocadas pelo projeto.

O pai da jovem se coloca na posição de exceção, o que gera uma conseqüência direta dessa postura: seus supostos direitos devem ser assegurados. Silene é tomada como justificativa, assegurando seu lugar de exceção. Como em Nelson Rodrigues, onde o personagem “seu” Noronha declara que sua filha é pura por ele, para velar suas impurezas, também o pai da assistida a utiliza para sustentar uma posição, de onde ele faz exigências aos trabalhadores sociais. Nesta categoria incluímos os assistentes sociais, a nossa própria equipe ou qualquer outra que tenha acompanhado a família. É importante salientar que qualquer profissional, independente de sua formação de base, pode se ver refém de uma situação como esta, tão comum na nossa realidade social. Muitos são os relatos daqueles que se ocupam de trabalhos sociais que apontam para a sensação de impotência e penalização diante de muita miséria e abandono. Acreditamos, entretanto, que é preciso ir além desta postura de compaixão ou piedade, trabalhando com a perspectiva de autonomização dos assistidos. Em contrapartida, neste caso fica evidente uma relação de tutela, reproduzida em diversas situações nas quais o pai de Silene é abordado pela equipe técnica da instituição onde a jovem está inserida.

As assistentes sociais inicialmente tentaram dar conta de todas as demandas levantadas pelo Sr. Noronha. Com efeito, com o decorrer do acompanhamento, não foi mais possível atendê-las integralmente, o que acabou dando origem a inúmeros conflitos entre a equipe e o genitor. A relação com as assistentes sociais e com a nossa equipe, para além de expressar um elevado grau de dependência, indica uma postura reivindicatória, corroborando a tese de que “uma redução do estatuto do Outro na contemporaneidade” (AZEREDO, 2003, p. 197) permite que o sujeito goze sem limitações. O Outro deve ser cobrado para garantia dos direitos do sujeito.

O fato de ter suas demandas iniciais atendidas não impediu que o Sr. Noronha engendrasse outras demandas, uma vez que o atendimento da demanda incentiva o sujeito a demandar mais em vez de desejar. Em contrapartida, o não atendimento da demanda permite que o desejo do sujeito possa advir. Não negligenciamos o fato de trabalharmos com uma população deveras desfavorecida, sendo que em inúmeras ocasiões os assistidos nos demandam cuidados básicos dos quais não dispõem, de forma que nem todas as solicitações podem ser tomadas negativamente. É fundamental, entretanto, lançar um olhar crítico sobre tantas demandas, atentando para que este movimento não seja reforçado e que nossa escuta diferenciada dê lugar também para um questionamento do próprio sujeito sobre as demandas que engendra. Do contrário, corre-se o risco de se levar a cabo uma relação imaginarizada, o que julgamos ter acontecido no caso das assistentes sociais.

É notável que se estabeleceu uma relação de rivalidade entre os dois pólos desse conflito, que foi “sugerido” pelo Sr. Noronha e aceito pelas assistentes sociais. Na atitude de atender às demandas daquele pai sem estranhamento, mais demanda se engendrou, evidenciando um limite do serviço de assistência que, certamente, não poderia dar conta de tantas exigências. O pai chegou ao limite de exigir que nenhum homem (profissional ou usuário) se aproximasse de Silene, cobrando que apenas mulheres da equipe se ocupassem de seu caso. Do mesmo modo, irritou-se por não conseguir que a instituição levasse Silene à escola, serviço que não era prestado a nenhum usuário do dispositivo. Nossa intervenção, ao contrário, consistiu em estranhar tantas exigências e em não atender às demandas do pai sem questioná-las. Certa vez o genitor ensaiou fazer queixas do nosso projeto, já que não poderíamos disponibilizar uma casa onde ele pudesse residir, o que nunca foi colocado como possibilidade para nenhuma família por nós acompanhada. Frente a esta exigência insensata, tendo em vista as colocações que tinham sido feitas desde sua entrada no projeto, buscamos criar um espaço para escuta e não agendar mais reuniões que objetivassem resolver suas deficiências e dar conta de todas as suas solicitações, o que pode justificar a diferença de seu posicionamento frente a nossa equipe. Lançando mão das teorizações de Paugam, classificamos a relação entre o Sr. Noronha e a nossa equipe como do tipo de assistência instalada, diferente de seu posicionamento em relação à equipe de assistentes sociais, calcada exclusivamente em reivindicações, inserida no tipo de assistência reivindicada.

A nossa intervenção sobre a intervenção diz respeito justamente à operação sobre o rastro imaginário deixado pela intervenção da equipe de assistentes sociais. Esta permitiu o recrudescimento da resistência, expresso na transferência negativa e no caráter reivindicatório. Estes componentes se opõem à elaboração, a qual nosso trabalho visava. Delinear a peculiaridade de nossa intervenção nos fornece uma saída frente ao discurso exclusivamente reivindicatório daqueles que se julgam lesados, tão corriqueiro na população por nós atendida.

Foi fundamental deixar explícito para a equipe de assistentes sociais o movimento do Sr. Noronha de criar novas demandas e destituir a equipe em seguida, isto é, de mostrar a aparente ineficácia dos serviços, continuando na posição de exceção e reivindicando cada vez mais. Nossa intervenção sobre a intervenção objetivou marcar justamente que não havia um problema que pudesse ser solucionado, mas o movimento do pai de mostrar as possíveis falhas do Outro.

Consideramos a intervenção sobre esse aspecto a principal peculiaridade do trabalho neste caso. A operação sobre a relação imaginarizada estabelecida entre as assistentes sociais e o Sr. Noronha almejava produzir algum tipo de estranhamento, tanto para aquelas, em vista das dificuldades que enumeravam freqüentemente nos encontros com a equipe do PRF, como para este, diante de suas freqüentes reclamações e postura reivindicatória.

A maneira como o Sr. Noronha se remetia à equipe de assistentes sociais e à nossa equipe evidencia um modo específico de se remeter ao Outro. A abstinência do analista, no caso a nossa escuta diferenciada, faz emergir o modo como o sujeito constitui seus objetos. O pai de Silene reivindica por julgar ter sido lesado. Como exceção, faz inúmeras exigências que devem ser atendidas de imediato. É preciso tomar então o caráter como gozo, este tomado enquanto direito, do qual o sujeito tem dificuldade em ceder. O Sr Noronha julgava ter direitos que deveriam ser assegurados a qualquer custo, sem exaltar em nenhum momento os seus deveres. Ao contrário, o próprio fato de se ocupar dos cuidados de sua filha eram tomados como exceção, de maneira que um pai sozinho parecia não ter que se responsabilizar pelos cuidados de seus filhos – fala pregnante no discurso do Sr. Noronha. Este afirmava que a tarefa de cuidar de Silene deveria ficar a cargo das assistentes sociais, da nossa equipe e, em última instância, do Estado. Coube a nossa equipe não cair nas armadilhas da compaixão, enfatizando sem cessar as responsabilidades do Sr. Noronha como pai. Nossa escuta analítica caminhou no sentido de estranhar as exigências, questionando-as antes de atendê-las e nos ausentando deste lugar de responsabilidade irrestrita por Silene, no qual seu pai demonstrava querer nos colocar. Dessa maneira, almejávamos intervir para a produção de outro discurso, para um outro desenvolvimento da verdade, parafraseando Lacan (1951), que primasse pela tomada de responsabilidade do Sr. Noronha por sua filha.

Couto nos fala da retificação como elemento central do trabalho de um analista: “A retificação pode ser considerada, portanto, como ‘subjetiva’, pois conduz o paciente a mudar a sua posição de sujeito frente aos modos permanentes pelos quais ele constitui os seus objetos” (2004, p. 277). Partindo deste pressuposto, acreditamos oferecer um outro modo de intervenção, diferente daquele que acaba acentuando a dependência dos assistidos, primando pela assunção do sujeito. Se não é possível chegarmos a falar em termos de uma retificação subjetiva no caso do Sr. Noronha, podemos conservar esta noção como pano de fundo de nossa discussão. Com efeito, é possível afirmar que o não atendimento das demandas abre espaço para que um lampejo desejante possa figurar ao longo de nosso acompanhamento. Dessa maneira, dá-se um passo ao lado das inúmeras demandas que são dirigidas aos dispositivos de assistência social, que acabam acentuando as suas deficiências, para adentrarmos o campo do desejo mediante a responsabilização do sujeito.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Fábio Azeredo
E-mail: fabioazeredo@yahoo.com
Fernanda Canavêz
E-mail: canavez@click21.com.br

Recebido em: 11/10/2006
Aceito para: 21/11/2007

 

 

Notas

i Este trabalho foi desenvolvido durante o meu percurso de estágio junto ao PRF. Além disso, vale ressaltar que se trata de uma versão modificada do que apresentei no Simpósio Nacional de Psicanálise e Psicoterapia no Campo da Saúde Mental (CEPUERJ).
1 MOTE - Movimento Terapêutico. Instituição de Psicologia Clínica, especializada em atendimentos domiciliares e hospitalares, tanto no campo da Saúde Mental, como da Medicina Física. Na área social vem desenvolvendo o projeto de desinstitucionalização de crianças e adolescentes com deficiência em situação de abrigamento.
2 Outros autores se dedicaram à referida investigação. Para uma pesquisa mais detalhada consultar Donzelot (1977;1986) e Castel (1995;1998).
3 Serge Paugam também faz uma análise calcando-se nas seguintes categorias: motivação para o trabalho, dependência em relação aos serviços sociais e racionalização acerca da assistência. Para maiores detalhes, consultar PAUGAM, S. (1987). Desqualificação social: ensaio sobre a nova pobreza. São Paulo: Cortez; EDUC, 2003.
4 As famílias inseridas no projeto contam com um auxílio provisório, o subsídio financeiro, no valor de R$ 343,00. O recurso é disponibilizado quando se julga necessário, objetivando melhorias em suas residências, custeio de transporte para visitação dos assistidos que ainda se encontram abrigados, incentivo aos projetos de geração de renda, dentre outras necessidades. É importante pontuar o caráter provisório desse recurso, não se configurando, portanto, como recurso permanente de subsistência. A disponibilização ou a suspensão do subsídio são vistas como intervenções das quais também nos servimos no manejo clínico.
5 A pesquisa é coordenada pelo Dr. Fabio Azeredo, a partir de sua tese de doutorado intitulada Caráter e contemporaneidade, defendida em 2003, no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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