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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.7 n.3 Rio de Janeiro dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Subjetivações, identidades e o linguajar

 

Subjectivities, identities and language

 

 

Ricardo Pimentel Méllo I, *; Angela Flexa Di Paolo II, **

I Departamento de Psicologia Social e Escolar, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará – UFPA
II UFPA

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Em suas mais variadas tendências, a Psicologia, em especial a Psicologia Social, tematiza o que tradicionalmente se convencionou chamar de “identidades”. Neste artigo, pretendemos discutir algumas posições que giram em torno dessa temática, buscando mostrar que o conceito de identidade remete à noção de idêntico. Portanto, ao usar esse termo estamos nos posicionando em torno de uma maneira de conceber o ser humano que herdamos do Iluminismo. Buscamos adotar um outro posicionamento, tomando como referência autores como Foucault, Deleuze, Figueiredo, Rose, que situam o ser humano em uma constante instabilidade criativa, articulado em redes discursivas que possibilitam à experiência de um si e a diversidade de devir.

Palavras-chave: Identidade, Subjetividade, Modos de ser, Linguagem.


ABSTRACT

In its most varied tendencies, the psychology, specially the social psychology, discusses what is traditionally called "identities". In this article, we intend to discuss some positions towards this subject, in order to show that the concept of identity refers to the notion of identical. So, when we use this term we take a position towards a way of conceiving the human being that we inherited from the Iluminism. We are searching for another position, having as reference authors such as Foucault, Deleuze, Figueiredo, Rose who perceive the human being in a constant and creative instability, articulated in discursive nets that they make possible to the experience of one itself and the diversity of devir.

Keywords: Identities, Subjectivity, Ways of being, Language.


 

 

Não sou nada
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...) Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
(...) Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Álvaro de Campos-Tabacaria)

 

Especialmente a partir do século das luzes, o ser humano voltou-se para si mesmo, na tentativa de, mais do que se compreender, ir à busca de sua natureza essencial. Sob esse quadro e com a criação dos Estados Modernos, a Psicologia se originou como uma das ciências que deveriam estudar a população para que fosse exercido o controle sobre esta. Percorreu o caminho das chamadas Ciências Humanas, que se desenvolveram em torno da busca da natureza essencial do ser humano, porém, no caso da Psicologia, com ênfase em uma vertente mais individualista e intimista. Inscrevem-se nessa perspectiva alguns autores, notadamente os de tradição norte-americana (John Watson, Willian James, Gordon Allport, Leon Festinger, Elliot Aronson, Robert Zajonc, G. Lindzey), que classificam o ser humano dividindo-o em duas partes: o conhecido, que se expressa nos conteúdos do “eu” (o que se conhece de si), e o conhecedor do eu (o que conhece o eu), que é cada um de nós que nos conhecemos através do pensamento ou da autoconsciência:

Em primeiro lugar o eu é composto dos nossos pensamentos e crenças de nós mesmos, [...]. Em segundo, o eu é o processador ativo de informações, o “conhecedor”, ou o “eu”. Em termos modernos, referimo-nos ao aspecto conhecido do eu como o conceito de si mesmo ou autoconceito, que são os conteúdos do eu (nosso conhecimento de quem nós somos), e ao aspecto de conhecedor como consciência de si mesmo, ou autoconsciência, que é o ato de pensar sobre nós mesmos. Esses dois aspectos do eu combinam-se para criar um sentido coerente de identidade (ARONSON; WILSON; AKERT, 2002, p. 89).

A ênfase é na cognição, que separa o conhecedor do conhecido. Criamos estruturas de conhecimento organizadas sobre nós mesmos, baseadas em nossas experiências passadas, que nos ajudam a compreender, explicar e prever o nosso comportamento. Em outras palavras, desenvolvemos “auto-esquemas” (ARONSON; WILSON; AKERT, 2002, p. 105) e agimos em função dessas definições, criando uma separação: primeiro eu penso sobre quem sou e depois vou agir conforme penso. Uma busca que se fundamenta em um conjunto de práticas e princípios teóricos que conduzem a uma visão particular de ser humano: unificado, coerente, universal, dotado de capacidades internas que o impulsionam a atuar no mundo. As discussões que seguem vão em outra direção.

Figueiredo (1991; 2002) é um dos autores que fragiliza os alicerces da concepção de que o ser humano é um sujeito psicológico individualizado, perspectiva que delineou fortemente alguns princípios filosóficos sobre o conhecimento e, conseqüentemente, sobre a experiência subjetiva. Para o autor, o que chamamos de indivíduo, subjetivo, privado, interno, refere-se a modos de se relacionar consigo mesmo, que configuram a experiência subjetiva. Referindo-se a processos de singularização, Figueiredo (2002) propõe compreender os processos de subjetivação como fluxos, movimentos, que permitem a experiência de algo individualizado, rompendo com qualquer possibilidade de que a subjetividade seja uma morada de experiências internas ao “sujeito”. A subjetivação é vista como modos de experienciar um “si”, mas em redes de negociações sociais que produzem efeitos de indivíduos ou sujeitos, ou simplesmente modos de ser. Esta é a concepção adotada aqui, expressa, por exemplo, em escritos de Foucault (1990; 2004), Deleuze (1992; 2000b), Larrosa; Lara (1998), além de Rose (2001a; 2001b).

Nesta mesma linha, Hall (apud GUARESCHI, 2003, p. 82) define três formas de identificarmos o ser humano, e propõe uma crítica à noção de indivíduo: a) Sujeito do Iluminismo: identificado como uno e dotado de razão, sendo por isso autônomo; b) Sujeito sociológico: vai além da centralidade da razão, incluindo as relações sociais como fundamentais para formá-lo, porém, ainda se busca um núcleo fundamental (essência) que o define. c) Sujeito pós-moderno: busca romper com as concepções anteriores, livrando o “sujeito” de sua previsibilidade, identificando o “sujeito” com várias “identidades” até contraditórias. Abandona-se o núcleo ou essência que o define, apostando-se em um ser humano fragmentado. Assim, este autor, em consonância com vários outros (Nikolas Rose, Luis Cláudio Figueiredo, Anita Bernardes, Júlio César Hoenisch, Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-Neto, por exemplo), considera que houve uma mudança substancial na maneira de o ser humano ver a si próprio, especialmente na passagem do séc. XIX para a primeira metade do século XX, quando se questiona a centralidade do ser humano na razão, e aí Freud emerge como um dos principais críticos a essa visão, destituindo o ser humano do controle de si.

Ainda que a divisão proposta por Stuart Hall seja interessante, vemos que ele esbarra em duas noções problemáticas: “pós-moderno” e “sujeito”. Em relação ao pós-moderno, nos alinhamos com aqueles autores que não adotam essa noção e sim a noção de “modernidade reflexiva” – por exemplo, Anthony Giddens, Ulrich Beck e Mary Jane Spink. Discutir a noção de pós-modernidade não é o objetivo deste artigo, porém é importante nos posicionarmos porque é uma noção que vem tendo ampla circulação, atrelada a novas posturas nas considerações sobre o ser humano, como o faz Hall. A crítica em torno da noção de pós-modernidade, de modo breve, se refere à não-superação da “reflexão” sobre si, que o ser humano herdou do Iluminismo. Em relação à adoção da noção de “sujeito”, ao fazê-la, não se rompe com a dicotomia entre o ser humano (sujeito) e o mundo (objeto), uma vez que propõe, de modo explícito, uma separação entre o ser humano e a sociedade, os objetos e a natureza. Uma dicotomização difícil de sustentar, se nos propomos uma perspectiva diferente da herança Iluminista.

Essa dicotomização está muito próxima da separação entre indivíduo e sociedade: quase que só mudamos os termos, mas admitimos a separação. Só poderíamos conceber a possibilidade de existência de um “sujeito” ou “indivíduo” se fosse possível conceber um indivíduo à parte de suas relações sociais, como uma parcela que se opõe ao social; e, do mesmo modo, o “sujeito” seria aquele que se constituiria em oposição aos objetos, à natureza, como se deles não fizesse parte, e como se pudesse se constituir sem suas contribuições. De acordo com as perspectivas expostas até aqui, vemos que tal concepção é impossível de se manter. Afrouxamos os laços com qualquer perspectiva que tente, ainda que implicitamente, sustentar uma dicotomização.

 

O linguajar como prática de identidades ou de processos de subjetivação

Através das palavras não se irá à parte alguma?
(Vicente Franz Cecim: Terra da sombra e do não)

Diferentes concepções de linguagem configuram diversas formas de compreender o mundo, atuando nele. Se considerarmos a linguagem um meio através do qual se chegará seguramente aos sentidos verdadeiros e inerentes às coisas, então trabalharemos com a idéia de que há um mundo e um sistema de significações a ele acoplado; natural e invariavelmente, buscaremos desvelar tais sentidos reais e verdadeiros. Se, por outro lado, delinearmos a linguagem como prática, ação, movimento e flutuação de sentidos, acontecimentos, modos de ser, então compreenderemos o mundo como um caleidoscópio de construções, instituições, superfície de inscrições, possibilidades de devir.

Para os estudos desenvolvidos neste trabalho, a segunda concepção apresenta-se como mais profícua. Referimo-nos à linguagem como prática, veiculada no trabalho de autores de campos diversos do saber, entre os quais, Humberto Maturana e Michel Foucault que, sob este aspecto, mantêm uma proximidade teórica. Maturana (2002, p. 59) chega a usar, algumas vezes, o termo “linguajar”, para expor que “a linguagem se constitui quando se incorpora o viver, como modo de viver”. Foucault (1995) adotou o termo “práticas discursivas”, para expressar que discursos ou conjuntos de enunciados não descrevem relações de saberes e poderes, mas são as condições que possibilitam o exercício de tais relações, operando e instituindo acontecimentos em campos estratégicos. Todos eles enfatizam o caráter de atividade, de prática, intrínseco à linguagem humana, caráter este muito bem exposto por Mary Jane Spink no livro que organizou (SPINK, 1999).

Utilizamos a concepção de linguagem que mostra maiores aproximações com a perspectiva de Michel Foucault sobre os processos de subjetivação. Linguagem é, aqui, condição de possibilidade na constituição das subjetivações, entendidas como maneira de experimentar a si mesmo (BERNARDES; HOENISCH, 2003). É uma rede de articulações, um emaranhado povoado de aspectos históricos e culturais (aqui entendidos como materialidades que incluem arquiteturas, hábitos, técnicas de governo...), que se conectam na formação de narrativas, às vezes lineares, contínuas, mas outras vezes descontínuas, fragmentárias, pontos de dispersão de matizes identificatórias1 – que podem produzir efeitos de singularizarão, conforme o local, a época, as circunstâncias de encontro, que levam a coerências e, assim, a uma “cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu” (BRUSCHI, 2003, p. 83) e, nesse caso, temos as tais tentativas de definir o ser humano a partir de uma personalidade, ou identidade; ou, como preferimos neste artigo, temos dispersões que apenas se dobram sem fechar-se completamente em uma caracterização una do ser humano.

Concatenar os processos de subjetivação ao linguajar requer presumir as subjetivações como interpeladas e articuladas por redes discursivas (e não resumidas a elas), que produzem, instituem, inventam, transformam e veiculam modos de agir no mundo, possibilidades de vir a ser. Nenhum matiz identificatório é fixo, sólido e estável, mas fluido, intercambiante, em vias de se fazer, possibilitando às pessoas transitar por formas diversas, construir modos de ser, assumir posições, descartá-las e utilizá-las de novo. Seria como nos carnavais, em que inúmeras máscaras se metamorfozeiam em corpos, se encontram num espetáculo de cores e formas, sem querer restituir a essência de quem as usa (revelando um rosto por trás das máscaras), mas abrindo possibilidades de mudanças, de performances, de flutuações, num movimento que põe em jogo mais os desejos de devir do que possíveis essencializações e classificações, dando continuidade ao processo de constituir-se, subjetivar-se, dobrar-se, constituindo corpos que só têm máscaras (DELEUZE, 1991; 1992; 2000a; 2000b), e estas, definitivamente, não são falsidades ou escudos de um rosto essencial.

 

Subjetivações: invenções e dobramentos, na experiência de um “si”

Dizer que os movimentos constituintes das subjetivações são interpelados pelo linguajar não significa remeter a questão ao campo lingüístico, somente. Subjetivações se edificam em discursos, em relações de enunciados, mas não se restringem a eles. É necessário compreender que regulamentos de conduta são engendrados nesses discursos; que práticas e técnicas, autoridades, lugares, posições e aparatos constituem regimes de subjetivação e gerência de práticas. Rose (2001b, p. 149) argumenta que “a subjetividade nunca pode ser uma operação puramente lingüística”. Numa alusão ao trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o autor afirma que a subjetivação emerge de um regime de signos imanente a um agenciamento ou organização de poder, e não de propriedades internas à linguagem. Agenciamento é um neologismo do termo adotado por Rose (2001a; 2001b): assemblage, que se refere ao ato ou efeito de reunir diferentes partes para formar um novo objeto. A palavra similar em francês agencement foi utilizada por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, no sentido de montagem, arranjamento, combinação. Para Rose (2001a, p. 51),

por agenciamentos, quero significar a localização e o estabelecimento de conexões entre rotinas, hábitos e técnicas no interior de domínios específicos de ação e valor: bibliotecas e escritórios domésticos, quartos de dormir e casas de banho, tribunais e salas de aula, consultórios e galerias de museu, mercados e lojas de departamento.

Ao se referir à linguagem como agenciamento de práticas discursivas, Rose (2001b) adota a perspectiva de Michel Foucault, elaborada em A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso. Foucault (1995) propõe que, se pudermos descrever, entre um certo número de enunciados, um campo de possibilidades estratégicas, onde se delineariam jogos de aparecimentos e dispersões de conceitos, ora configurando sistemas de dispersão, ora configurando regularidades entre objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas, teríamos, no segundo caso, o que chamou de formações discursivas (FOUCAULT, 1995, p. 43). Estas seriam como domínios de saberes que encontram uma certa regularidade enunciativa e que muitas vezes configuram “ciências”, “teorias”, “ideologias”, de modo que têm nas práticas discursivas suas condições de existência, de coexistência, de manutenção, de modificação ou de desaparecimento.

Foucault (1995; 2001) defende a perspectiva de discursos que não se limitam à comunicação (aos atos de fala) e que não estão ligados por uma ordem interna de natureza ou funcionamento. Em vez disso, discursos são elaborados em regras de formação, em campos políticos estratégicos, em regimes de significação, que podem mantê-los unidos por um certo período, mas que também podem modificá-los, dispersá-los – não sendo nunca coerentes, mas, possivelmente, coexistentes.

Para Rose (2001b), esta concepção possibilita pensar sobre as formas em que a linguagem aparece em espaços e épocas específicos e que regimes governam as enunciações. Há regimes e técnicas que governam, gerenciam, modos de se posicionar e enunciações em diferentes épocas, locais e situações. É uma questão que traz Foucault (1995): quem fala? De que lugares institucionais fala? Que posições ocupa na rede de relações e informações? Sob a perspectiva foucaultiana, Rose (2001b, p. 150) ressalta que é uma questão “dos ‘diversos status, dos diversos lugares, das diversas posições’ que devem ser ocupadas em regimes particulares para que algo se torne dizível, audível, operável”.

Rose (2001b, p. 159) salienta, assim, que a subjetivação não é somente uma operação lingüística, que “a linguagem não é, de forma alguma, primária na produção de pessoas”. O autor enfatiza que “é necessário insistir que nós não somos ‘constituídos pela linguagem’” (ROSE, 2001b, p. 175). A linguagem é considerada um agenciamento de práticas discursivas, ela é agenciada em um regime prático que conecta corpos, hábitos, rituais, forças, a fim de possibilitar a emergência de certas relações que temos com um “si”. O linguajar, incorporado aos modos de viver, faz parte desse agenciamento e não pode ser dele separado. Não se trata de analisar as narrativas e as significações que constituem modos de subjetivação, mas é preciso voltar-se

para a analítica das técnicas, das intensidades, das autoridades, e dos aparatos [...]. Quem fala, de acordo com que critérios de verdade, de quais lugares, em quais relações, agindo sob quais formas, sustentado por quais hábitos e rotinas, autorizado sob quais formas, em quais espaços e lugares, e sob que formas de persuasão, sanção, mentiras e crueldades? (ROSE, 2001b, p. 157-158).

São agenciamentos que tornam possível estabelecer certas relações que temos conosco mesmos e com os outros em regimes de conduta e tecnologias de subjetivação. Compreender o ser humano nessa perspectiva é, de acordo com Rose (2001a; 2001b), tratá-lo como sendo produzido e agenciado em tecnologias de subjetivação, particulares a determinadas épocas, espaços e circunstâncias. Agenciado no sentido de ser um efeito, uma montagem, bricolagem ou combinação plural e sempre fragmentária dessas práticas/técnicas de subjetivação. Pensar em termos de tecnologia de subjetivação nos remete a verificar que formas de ser são reunidas, arranjadas em certos agenciamentos, sob que regimes de governo. As disciplinas psi, nesse caminho, estão inevitavelmente envolvidas na busca de conhecer e agir sobre os seres humanos, criando condições de emergência de formas de se relacionar com um “si”, de ter uma experiência de “interioridade”, de fabricar e inventar modos de nos relacionar conosco mesmos como personagens, identidades, personalidades, agentes livres de autodesenvolvimento e auto-realização.

O que Nikolas Rose propõe é que nos voltemos para a análise das técnicas pelas quais os humanos têm se reunido e se fabricado em agenciamentos. E, sendo assim, não seria possível estudar o humano como filogeneticamente dotado de agência e produtor de práticas culturais, e nem como produto da cultura, mas como artefato produzido em práticas, em tecnologias de governo de si e da população, em agência – que é “a resultante da ontologia que nós dobramos sobre nós mesmos no curso de nossa história e de nossas práticas” (ROSE, 2001b, p. 181). A ontologia humana é constituída em grande parte pela contribuição da ação de tecnologias psi, que a inventam e que atuam sobre ela (ROSE, 2001b). Ressalte-se, tecnologias psi, que também são constituídas em outros campos do saber, não se restringindo à Psicologia.

Por aspectos que dobramos sobre nós mesmos, dobramentos, Rose (2001a; 2001b) não se refere a uma interioridade prévia de um sistema psicológico, mas a técnicas de governo do corpo, à configuração de práticas que fabricam formas de subjetivação – maquinações de aprendizagem, desejos, inteligências, criatividades, andar, vestir agenciam pessoas à medida que criam a noção de interioridade, internalizando vozes, sentidos, afetos, hábitos, técnicas de pensamento e autocontrole. Fala-se de práticas que fabricam formas de sermos humanos em agenciamentos, em que se montam e entrecruzam saberes, instrumentos e dispositivos técnicos na configuração de subjetividades.

Deleuze (1991; 1992; 2000a; 2000b) elaborou a noção de dobra para se referir aos processos de subjetivação. Às relações que temos conosco mesmos (as relações com um si) se interconectam aspectos das relações que temos com os outros, como se estes aspectos se dobrassem para formar um forro e constituir uma relação consigo. Uma relação regulada por saberes e poderes, que é coextensiva a uma relação com um Fora. Para Levy (2003), o conceito de Fora foi articulado por Michel Foucault a partir da sua leitura de Maurice Blanchot. Se Foucault buscou em Blanchot sua inspiração, seu pensamento o atravessou sem nele se fixar, chegando a afirmar que esse espaço vazio seria atualmente a “ficção ocidental”. Sua leitura se direciona à fragmentação da unidade subjetiva, mostrando como a noção de “Homem” e a noção de uma essência do “eu” se enfraqueceram nos séculos XIX e XX. Levy (2003) considera que os dois pontos centrais da leitura de Foucault sobre o conceito de Fora se referem ao apagamento do sujeito e ao conseqüente (res)surgimento do ser da linguagem. A autora ressalta que, se pudermos definir um encontro entre Blanchot, Foucault e Deleuze, este seria o de “estarem sempre fora dos modelos tradicionais da literatura, da filosofia e da história, o de estarem sempre deslizando pelas verdades já constituídas, a fim de abalar tudo o que já é apresentado como pronto” (LEVY, 2003, p. 52).

“A vida nas dobras” (DELEUZE, 1991, p. 130) é uma forma de constituir, incessantemente, modos de subjetivação; constituir uma concepção de interioridade nada mais é que promover dobraduras, plissados, dobrar sobre nós mesmos forças, técnicas de governo do corpo, matizes identificatórias. Dobramentos que produzem efeitos de subjetivação.

as linhas dessas dobras não correm através de um domínio que coincida com os limites carnais da epiderme humana. O ser humano é posicionado, instituído, por meio de um regime de dispositivos, olhares, técnicas que se estendem para além dos limites da carne [...]. O ser dobrado não é uma questão de corpos, mas de locais fabricados (ROSE, 2001a, p. 50).

Como falamos de processos de subjetivação que não param de se efetuar, então as dobras, as relações consigo, estão sempre em vias de se fazer, não delimitam ou aprisionam as pessoas em identidades, mas, em vez disso, lhes permitem deslizar por formas e posicionamentos que flutuam em rizomas, em cenários que apresentam a possibilidade de colocar um jogo de cores, arquitetura, performances e atores em cena.

Vale uma breve digressão para esclarecer melhor a relação que fizemos entre processos de subjetivação e “rizoma”. Rizoma é um termo utilizado por Deleuze (1991; 1992; 2000a; 2000b) para expressar um plano de possibilidades de variações infinitas, de devires, de acontecimentos, que ultrapassam tempos e lugares, não são fixados por datas ou pessoas. Deleuze e Guattari (1995, p. 15) enfatizam que o rizoma se distingue das raízes e radículas pela sua “extensão superficial ramificada em todos os sentidos”. Dentre os princípios do sistema rizomático destacamos três que são diretamente ligados aos processos de subjetivação: Conexão, Heterogeneidade e Multiplicidade. Qualquer ponto de um rizoma, afirmam os autores, pode ser conectado a qualquer outro diferentemente de uma raiz que se fixa a um ponto, uma ordem. E, ao mesmo tempo, um rizoma pode conectar-se com cadeias ou redes as mais diversas. Assim, relacionando com modos de subjetivação, nós podemos operar agenciamentos os mais diversos ao nos experimentarmos. Esses agenciamentos, afirmam Deleuze e Guattari (1999, p. 17), constituem-se em multiplicidades que mudam “de natureza à medida que aumentam suas conexões”. É importante notar que este terceiro princípio, não pode ser compreendido como apenas um valor numérico, (a quantidade conexões), mas os autores se referem à potencialidade, a produção de algum efeito. Apenas uma conexão pode ser múltipla por potencializar diversos efeitos. Não há limitação para os modos de subjetivação, mesmo que possa parecer “pouco rico” ou “repetitivo”.

Peter Pelbart (1998, p. XX) assim descreve o funcionamento de um rizoma:

Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro; ele é feito de direções móveis, sem início ou fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda; um rizoma não remete a uma unidade nem dela deriva; não tem sujeito nem objeto.

O uso do termo “rizoma” se refere a um emaranhado de filamentos como as raízes de uma samambaia, que perde sua origem e estabelecem redes incintáveis.

Em outras palavras: os “sujeitos” são efeitos de modos de subjetivação; somos um arranjamento, uma combinação de modos de ser; não temos uma subjetividade prévia pertencente a um mundo interno, mas inventamos (e atuamos de acordo com) nossos modos de ser. Trata-se de abrir espaços não só para ver que formas humanas estão sendo inventadas, mas para questioná-las, e inventar formas outras, sempre novas, de atuar no mundo.

Nessa perspectiva, nos “apropriamos” (dobramos sobre nós mesmos) de certas formas de atuar, de narrar-se, de instituir-se em redes de sentidos, que estão sempre sendo tecidas, em construção, jamais acabadas e fechadas. Bernardes e Hoenisch (2003) ressaltam que nossos movimentos de agenciamentos de si (por eles definidos como identidades, sempre no plural) são o resultado de um processo de identificações que possibilitam a emergência de posicionamentos em redes discursivas, que por sua vez fornecem os modos de subjetivação:

ao entender que as identidades são um modo de inscrição em uma rede discursiva, é importante, também, problematizar que esse termo ‘exterior’ (a construção das identidades) torna-se um princípio do ‘interior’. Ou seja, não basta o “sujeito” se inscrever em uma rede discursiva, é necessário tornar essa inscrição uma maneira de constituição de um ‘si’, de um ‘dentro’, pelo qual o “sujeito” se observa e se reconhece como tal. Melhor dito, não é suficiente ser interpelado e se identificar com determinadas marcas identitárias, é preciso dobrar isso sobre si mesmo; em outras palavras, subjetivar-se. Nesse caso, assim como as identidades são o ‘outro’ no exterior, a subjetivação é esse outro ser experimentado como um ‘outro em si mesmo’, um estranhamento, uma perturbação e uma transformação de determinados modos de ser (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 122-123).

Entendendo os modos de sermos humanos como inscrições, dobras, invenções que ocorrem em agenciamentos, é possível estudar e compreender que aparatos, maquinações, linguagens e tecnologias de governo configuram a maneira pela qual nos subjetivamos, nos relacionamos com um si. Seria o caso de atentarmos para dispositivos presentes em nosso contexto histórico-cultural. Figuras, imagens, vocabulários disponíveis através de meios diversos: textos, televisões, museus, universidades... Bruschi (2003) ressalta a importância da mídia na constituição de modelos identificatórios, propondo que poderíamos considerar nossos processos de subjetivação uma construção possível entre modos de ser disponíveis na cultura midiática, articulando também modos ainda não existentes nesta cultura, na medida em que cada um pode constituir-se, a partir de fragmentos, num processo criativo. Assim, de acordo com as perspectivas expostas até aqui, logo perceberemos quão difícil é manter uma coerência. Subjetivar-se está mais relacionado a um campo de estratégias e posições do que a possíveis essências de um “sujeito” (VEIGA-NETO, 2000; SILVA, 1997; ROSE, 2001a; 2001b). O “si” vai sendo construído à medida que vai sendo praticado em agenciamentos: quartos de dormir, prisões, supermercados, empresas, lojas de departamento etc. são alguns “espaços” que operam, administram determinadas formas de se relacionar consigo mesmo. Se algumas vezes essas relações tendem a estabilizar-se, sugerindo a impressão de que se tem “identidades”, ao nos voltarmos para a análise das práticas que estão operando no sentido de inventar e atuar sobre as formas humanas de ser em questão, a noção de interioridade se dispersa em estratégias de regularização de condutas, em dobramentos que produzem certas formas de se relacionar com um “si”.

Silva (1997) considera que, partindo da análise das concepções que sustentam perspectivas de “normalidade”, será possível compreender modos de ser “diferentes”, considerados “problemas”, quando relacionados a uma política e epistemologia do corpo normalizado. Em outros termos, o “problema” só é constituído em relação à normalidade. Só quando são instituídos padrões de condutas, modos de ser ditos “normais”, é possível pensar também no que deles se diferem, no que se cria no exterior das normas e das verdades instituídas.

Entramos, assim, numa perspectiva de formas de sermos humanos, engendradas em tecnologias de subjetivação, práticas que fazem circular e inventar modos de ser, posições. Um plano que oferece (frágeis) possibilidades de solidificar-se, limitar-se a (busca de) “identidades”, mas que também permite performances e posicionamentos diversos, fabricáveis e descartáveis, intercambiantes, móveis. Clarice Lispector bem caracteriza o ser humano na sua forma de ser: “uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo. [...] Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro” (LISPECTOR, 1998, p. 31).

 

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Endereço para correspondência
Ricardo Pimentel
E-mail: ricardo_pm@uol.com.br;
Angela Flexa
E-mail: angela_flexa@yahoo.com.br.

Recebido em: 19/10/2006
Aceito para publicação em:28/08/2007

 

 

Notas

* Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP.
** Psicóloga (UFPA).
1 Matizes identificatórias, numa alusão à possibilidade de diferentes cores e tons arranjarem-se e desarranjarem-se no delineamento de figuras, formas, que se dobram na tentativa sempre de nos configurarmos em singularidades, termos um contorno, margens.

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