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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008

 

ARTIGOS

 

Fenomenologia e existencialismo: articulando nexos, costurando sentidos

 

Phenomenology and Existentialism: sewing senses, articulating connections

 

 

Ariane P. Ewald

Professor Adjunto. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto procura expor historicamente o surgimento do movimento fenomenológico e do existencialismo, explorando alguns dos seus principais expoentes e algumas noções fundamentais. Procura também discutir a dificuldade em definir um termo que dê conta da variedade de concepções criadas a partir de cada autor, tanto na fenomenologia quanto no existencialismo.

Palavras-chave: Fenomenologia, Existencialismo, História da psicologia, Dossiê.


ABSTRACT

This text reviews the emergence of phenomenology and existentialism under the light of history and explores a few of their most remarkable notions and representatives. It also goes into the difficulty defining a term which can account for the variety of conceptions created by each and every writer, whether in phenomenology or in existentialism.

Keywords: Phenomenology, Existentialism, History of psychology, Brief.


 

 

O surgimento do Movimento Fenomenológico: os primeiros momentos

‘Fenomenologia’ – ­designa uma ciência, uma conexão de disciplinas científicas; mas, ao mesmo tempo e acima de tudo, ‘fenomenologia’ designa um método e uma atitude intelectual: a atitude intelectual especificamente filosófica, o método especificamente filosófico.
E. Husserl

O movimento fenomenológico, como a ele se refere Spigelberg, em seu já clássico The Phenomenological Movement (SPIEGELBERG, 1976), nasceu da preocupação de seu mais conhecido precursor, Edmund Husserl (1859-1938), de fundamentar, de forma rigorosa, o conhecimento. É a partir desta primeira diretriz que se forma a Fenomenologia como forma de acesso e conhecimento do mundo para, a seguir, se constituir no movimento fenomenológico, caracterizado por pensadores provenientes de várias áreas que procuram conhecer seus objetos de estudo a partir de uma nova atitude, a “atitude fenomenológica”.

As palavras de Emmanuel Lévinas, no seu livro Descobrindo a Existência com Husserl e Heidegger (1997), indicam de que forma esta “atitude” pode unir pensadores e pesquisadores.

A fenomenologia une filósofos, sem que isso se processe da forma como o kantismo unia os kantianos ou os espinosismo os espinosistas. Os fenomenólogos não se ligam a teses formalmente enunciadas por Husserl, não se consagram exclusivamente à exegese ou à história dos seus escritos. Há uma certa forma de proceder que os aproxima. Mais do que aderir a um certo número de proposições fixas, eles concordam em abordar as questões de uma certa forma (LÉVINAS, 1997, p. 135).

A “atitude fenomenológica” acabou por se constituir um dos princípios fundamentais da prática fenomenológica que une tantos pesquisadores, não somente como modo de acesso ao mundo ou forma de pesquisa para a compreensão do seu objeto, mas fundamentalmente como uma ontologia, como o próprio Husserl declara (HUSSERL, 1966, p.132).

Como salienta Rovighi (1999), é oportuno lembrar que a Fenomenologia não é mera e simples descrição dos fenômenos, é sim

[...] o método que todos os filósofos [e podemos incluir aqui os psicólogos] adotam ou tentam adotar quando se perguntam quais são os dados indubitáveis com base nos quais é possível justificar certa concepção da realidade; quais são as coisas manifestas (os fenômenos), tão claramente manifestas que não podem ser negadas (p.360).

A história da Fenomenologia e do movimento fenomenológico é atravessada pela história de quem a concebeu. Este início está diretamente ligado ao final do século XIX e a três nomes especificamente: Franz Brentano, Karl Stumpf e Edmund Husserl. Mas foi a concepção de fenomenologia de Husserl que, verdadeiramente, inicia o movimento fenomenológico e que, a partir da década de 1910 começa a fazer seguidores em várias partes do mundo.

A origem da vida intelectual de Husserl foi na matemática, movido pelo seu interesse na Astronomia, e através dela acreditava encontrar as repostas de que necessitava para a perguntas sobre sua própria fundamentação. Foi movido por esta preocupação com a fundamentação da matemática, que Husserl se aproxima da Filosofia e assiste durante os anos de 1884 a 1886, os cursos de Franz Brentano. Segundo Fragata (1962), foi este contato com Brentano que marcou nele uma fase nova e decisiva: “Entusiasmado pela Filosofia, resolveu dedicar-se exclusivamente a ela, no impulso veemente de lhe encontrar uma fundamentação, capaz de sustentar também todas as outras ciências” (p.12). É a partir da noção de intencionalidade da consciência de Brentano e também sob a influência das discussões epistemológicas empreendidas por Wilhelm Dilthey, que Husserl iniciará uma contínua busca por aquilo que nomeou mais tarde de “Ciência Eidética”. Sua obra, ainda não completamente publicada até hoje, é reflexo da sua apaixonada busca pela exatidão. Como informa Joaquim de Carvalho no prefácio à primeira edição em português do famoso artigo de Husserl A filosofia como ciência de rigor, originalmente publicado em 1911, a Husserliana é formada por “pelo menos 30 mil páginas (...) [alguns autores falam em 40 mil] na quase totalidade escritas em estenografia (Gabelsberger Stenographie), com um número considerável de sinais próprios criados por Husserl” (CARVALHO, 1965, p. XI).

De Brentano, Husserl guardará além da distinção entre fenômenos psíquicos e fenômenos físicos, os primeiros comportando uma intencionalidade, como muito bem resume André Dartigues (1973, p. 17-18), que estes fenômenos podem ser percebidos e que o modo de percepção original que deles temos constitui o seu conhecimento fundamental. Desta forma, partindo da experiência, é possível atingir o concreto, e o mundo da consciência, até então visto como algo basicamente vago destituído de qualquer positividade, controle e possibilidade de previsão, sem qualquer fundamento empírico, no sentido reinante no período, torna-se acessível através dos atos intencionais da consciência e seus modos de relação com o mundo.

Por indicação de Brentano, Husserl foi para a Universidade de Halle, como assistente do psicólogo e professor de filosofia Karl Stumpf, cuja perspectiva psicológica de estudos seguia as influências de Brentano opondo-se à de Wilhelm Wundt (HOTHERSALL, 2006; BONIN, 1991). É a partir dos estudos e da influência de Stumpf que um novo círculo de pesquisadores, diretamente coordenados por Oswald Külpe, se formará na Universidade de Würzburg e será conhecido como Escola de Würzburg (1901). Este círculo originará, posteriormente, na Universidade de Berlim e sob a influência de Christian Von Ehrenfels e também do próprio Stumpf, que lá assumiu em 1894 a cobiçada cadeira de Filosofia, a conhecida Psicologia da Gestalt (1920), formada por Kurt Lewin (orientando de doutorado de Stumpf), Max Wertheimer, Wolfgang Köler e Kurt Kofka. Com a ascensão do nazismo, estes quatro pesquisadores emigram para os Estados Unidos, cooptados pelo conhecido Comitê de Emergência para Auxílio aos Intelectuais e Cientistas Alemães Banidos.

Spigelberg (1976) chama a atenção sobre o papel que Stumpf exerceu dentro do movimento fenomenológico, pois a partir da influência de Brentano, ele estabeleceu uma distinção entre fenômenos – sons, cores, imagens - e funções mentais, e indicou o estudo destes fenômenos como fenomenologia. Desta forma, Stumpf compõe o movimento fenomenológico entre Brentano e Husserl, apesar deste último dar nova concepção ao termo e só em torno de 1910 a Fenomenologia vem a ser totalmente identificada com Husserl e passa a inspirar o início deste movimento (p.53-54, nota 1).

O primeiro movimento de Husserl é uma crítica do psicologismo, realizada nas Investigações Lógicas, publicada em 1900. Aqui a crítica de Husserl encontra-se com a de Dilthey que faz uma distinção entre a necessidade de explicar a natureza e compreender a vida psíquica. A crítica então é feita ao naturalismo positivista que queria aplicar os métodos das Ciências Naturais, explicação indutiva e experimentação, às Ciências do Espírito o que levaria a uma explicação das atividades humanas em termos de pensamento causal. Dilthey firmava assim a posição de que no domínio da cultura, apenas podia caber a atitude de compreensão. Compartilhando dessas idéias e acreditando ser possível uma filosofia como ciência de rigor, Husserl crê que o ponto de partida deve ser o retorno às coisas mesmas: “Não é das Filosofias que deve partir o impulso da investigação, mas, sim, das coisas e dos problemas” (HUSSERL, 1965, p.72). A questão do conhecimento é o ponto central para Husserl, que pretende esclarecer as origens do pensar e discutir os seus fundamentos separando o pensar do que é pensado, como lembra Vergílio Ferreira (1978, p. 13-14).

O método, portanto, assinala Rovighi (1999), foi expresso pelo lema “vamos até as coisas”, ou seja, vamos ver como as coisas são - ou mais comumente expresso “voltar às coisas mesmas” - e como, etimologicamente, o termo phainomenon indica “o que aparece”, “o aparecer”, ou ainda “aparência”, a recomendação de Husserl é a de que tomemos os fenômenos como ponto de partida, pois se o fenômeno é aquilo que é manifesto, é aquilo que aparece, e a consciência é sempre consciência intencional, isto é, sempre consciência “de” alguma coisa. Aqui temos o “princípio de todos os princípios”, afirma Husserl, “tudo que nos é oferecido originariamente na “intuição” (por assim dizer, em sua efetividade de carne e osso) deve ser simplesmente tomado tal como ele se dá, mas também apenas nos limites dentro dos quais ele se dá” (2006, p.69, grifos do autor). A intenção não é a de construção de um sistema, assevera Rovighi, mas sim observação e exploração dos fundamentos, descrição do que é dado, do que é manifesto.

Esta busca conduz Husserl à redução fenomenológica ou epoché, isto é, por entre parênteses os pré-conceitos, os pré-juízos - característicos da “atitude natural” na vida cotidiana -, para chegarmos às coisas mesmas. Isto expressa que não devemos partir de “verdades” estabelecidas, de que não devemos utilizá-las como ponto de partida para um uso filosófico (ROVIGHI, 1999, p.376). A idéia central é colocar “fora de circuito” a “atitude natural” que se caracteriza por considerar a realidade como “anterior e independente da consciência (...), não como uma atitude teórica, mas como uma crença na existência do mundo” (PAISANA, 1997, p.44, grifo do autor). O termo epoché (epokhe), usado pelos antigos céticos e estóicos e que indicava a suspensão de toda e qualquer afirmação (CAUJOLLE-ZASLAWSKI, 1990, V. I, p. 816), é tomado por Husserl como suspensão e não como dúvida (SALANSKIS, 2006, p. 43 e sgts.; DUGUÉ, 1990, V. I, p. 816), como também não pode ser confundido, e muito freqüentemente o é, com neutralidade.

Por entre parênteses a convicção de que debaixo dos meus pés há um assoalho que me sustenta não significa que eu esteja me agarrando desesperadamente às vigas do teto (e deva acabar no manicômio) para não cair; do mesmo modo, pôr entre parênteses as conclusões das ciências não significa rejeitá-las; significa simplesmente que elas pressupõem o mundo da vida cotidiana (ROVIGHI, 1999, p. 376).

A redução fenomenológica faz o mundo aparecer como fenômeno e é a consciência intencional, essa consciência “de” alguma coisa, que apreende o fenômeno nas suas várias possibilidades. É a vivência imediata da consciência, tomada como ato intencional (uma percepção, uma emoção, uma imaginação, uma recordação, por exemplo) que visa um objeto, que Husserl adota como ponto de partida para discutir a questão do conhecimento. “[...] o psíquico não é aparência empírica; é “vivência”, averiguada na reflexão” (HUSSERL, 1965, p.33). A atividade psíquica é atividade intencional, reveladora de objetos; e um mesmo objeto pode ser visado através de uma multiplicidade de vivências distintas: o carvalho na Floresta Negra, conforme o exemplo de J. H. van den Berg (1994), pode ser visado como uma espécie da Botânica, como um objeto da percepção, como uma lembrança da árvore que vi quando estive na Floresta Negra, pode ser visado imaginariamente tomando cores e formas diferenciadas do carvalho “real”, pode ser apreendido como simplesmente uma bela árvore sob a qual faremos um piquenique num belo dia de sol... A consciência, portanto, é condição fundamental (fundamento) do conhecimento. Neste sentido, a relação sujeito-objeto passa a ser tomada de outra perspectiva, não mais como uma dualidade, mas sim como uma relação e a Fenomenologia é a forma de acesso ao fundamento (consciência), que não é nem o homem nem o mundo, mas o acordo entre ambos.

O Movimento Fenomenológico toma dimensão a partir dos círculos de alunos e pesquisadores que foram compostos ao longo da carreira de Husserl como professor universitário. Estes círculos ficaram conhecidos como Círculo de Göttingen e Círculo de Munique. Os anos que passou como “Privatdozent” - literalmente, “professor livre” ou livre-docente que naquela época na Alemanha significava um professor universitário que pode ensinar numa universidade independentemente de supervisão de um outro professor efetivo (GOLDSCHMIDT, 1994, p.73) - na Universidade de Halle (1881-1901), foram cruciais na construção da sua fenomenologia. Quando é nomeado “professor extraordinário” em Göttingen (1901-1916) o verdadeiro nascimento do Movimento Fenomenológico se inicia. O Círculo de Munique inicia-se em torno de 1904, formado por um grupo de estudantes vindos de Munique e que terá nos anos seguintes em Hedwig Conrad-Martius e Max Scheler seus principais idealizadores. Em 1905, a reputação de Husserl atrai alunos de todos os lugares e o círculo se amplia formando o Círculo de Göttingen, que é formado por um grupo de filósofos críticos como dificilmente será visto novamente nas fases posteriores da fenomenologia, segundo Spigelberg (1976, V. 1, p.169). Os principais representantes destes grupos serão aqueles que darão corpo ao Movimento Fenomenológico nas décadas seguintes: Moritz Geiger, Adolf Reinach, Johannes Daubert, Theodor Conrad, Hedwig Conrad-Martius, Dietrich Von Hildebrand, Jean Hering, Edith Stein, Roman Ingarden, Alexander Koyré, Fritz Kaufmann, Max Scheler, Wilhelm Schapp. Certos autores se aproximarão mais tardiamente da fenomenologia, mas nem por isto são menos importantes. Podemos citar o caso, por exemplo, de Emmanuel Lévinas que faz esta aproximação em 1928, Paul Ricoeur e Mikel Dufrene que se utilizam da husserliana em Louvain para seus estudos críticos. A propósito de Lévinas, neste dossiê os leitores poderão encontrar uma discussão sobre suas idéias no artigo de Nelson Coelho Junior, da USP - Da Fenomenologia à Ética como Filosofia Primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas; bem como um debate de André Barata, da Universidade da Beira Interior, Portugal entre três grandes autores - Lévinas, Husserl and Damásio – From Otherness as Experience to Experience as Otherness. No artigo de Alan Flajolet, França, intitulado De l’herméneutique à la phénoménologie de l’œuvre littéraire, o autor realiza uma discussão entre literatura e a hermenêutica de Ricoeur.

Quando Husserl vai para Freiburg em 1916, e lá fica até se aposentar em 1928, a Fenomenologia já tem um espaço nas discussões filosóficas de então e “novas visões” da Fenomenologia estão em curso. Martin Heidegger, seu assistente, e Hans-Georg Gadamer estão entre seus discípulos. Neste momento, em meio às turbulências sociais das décadas de 1920 e 1930 na Alemanha, o pensamento existencialista aproxima-se da Fenomenologia e vai compor uma visão diferenciada, mas não distanciada, da Fenomenologia husserliana.

 

Existencialismos: o ser e seus múltiplos

A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás e só pode ser vivida olhando-se para frente.
S. A. Kierkegaard

Inquietação com a ação e consciência do problema da escolha na existência humana talvez seja o que mais caracterize os autores que integram o que chamamos Existencialismo. Alguns desses autores negaram fazer parte deste “movimento”, pois não reconheciam neste termo o seu pensamento. O termo, como sabemos, foi apropriado pela mídia no final dos anos de 1940 para designar aspectos sociais da vida francesa na qual intelectuais estavam entrelaçados, especialmente Jean-Paul Sartre. Em A Força das Coisas (1995), Simone de Beauvoir descreve um pouco desta polêmica:

Os inimigos de Sartre alimentavam os equívocos que se haviam criado em torno do existencialismo. Tinham-se alinhado sob esse rótulo todos os nossos livros – mesmo os de antes da guerra – e os de nossos amigos (...) e também uma certa pintura, uma certa música. Anne-Marie Cazalis teve a idéia de se aproveitar desse voga. Ela pertencia, assim como[Boris] Vian e alguns outros, ao mesmo tempo ao Saint-Germain-des-Prés literário e ao mundo subterrâneo do jazz; falando com jornalistas, batizou de existencialistas a cambada que a rodeava e a juventude que flanava entre o Tabou e a Pergola. A imprensa, particularmente o Samedi-Soir, financeiramente interessado em seu sucesso, fez uma enorme publicidade do Tabou. Naquele outono de 1947, não se passava uma semana sem que se falasse de suas badernas, festividades, dos freqüentadores, escritores, jornalistas e políticos. (...)[Sua amiga Toutoune, atriz,] ostentava a nova aparência ‘existencialista’. Os músicos das adegas e seus ‘fãs’ haviam descido no verão para a Côte d’Azur; tinham trazido de volta a moda importada de Capri – ela mesma inspirada pela tradição fascista – suéteres, camisas e calças negras (p.132, grifos nossos).

“Minha filosofia”, declara Sartre no verão de 1945 antes da sua famosa conferência, “é uma filosofia da existência. O existencialismo, eu não sei o que é” (apud Russ, 1984, p.39). Esta discussão em torno do uso dos termos que indicam uma perspectiva ligada ao existencialismo continua ainda hoje. Muitos autores, historiadores do existencialismo, indicam os diferentes termos usados nesta filosofia como designando cada um uma vertente dentro dela. O dicionário Les Notions Philosophique (1990, p. 923), o Dictionnaire Sartre (2004, p.176), Jean Wahl (1964) – outro grande expoente do existencialismo francês, como também Huisman (2001), por exemplo, fazem a distinção entre os termos e o uso dos termos, indicando sempre uma dificuldade para a definição do existencialismo. Diferenças entre ‘existencial’[em francês ‘existential’, do alemão ‘existential’], usado por Heidegger; ‘existencial’ e existência[em francês ‘existentiel e ‘existence’] em Kierkegaard; ou ainda ‘filosofia da existência’, como o próprio Jaspers utilizava, são comumente citados pelos livros sobre existencialismo. Luijpen (1973) também indica o aparecimento dos termos fenomenologia existencial e existencialismo fenomenológico (p. 29) e Régis Jolivet (1957), também em estudo específico sobre o existencialismo, faz diferença entre três grandes grupos de autores existencialistas. Outros autores, como por exemplo Nicola Abbagnano (1962 e 1984) – um dos grandes representantes do existencialismo italiano, T.R. Giles (1975), Jean Beaufret (1976), Norberto Bobbio (1992) – em texto de 1944, antes da onda sartriana - deixam de lado as tentativas de denominações e trabalham um conjunto de proposições provenientes de cada autor.

O que une então estes pensadores tão individualizados nas suas concepções filosóficas? O que os une, e nisso concordam todos os autores, é a concepção de uma filosofia

que seja concebida e se exerça como análise da existência, desde que por ’existência’ se entenda o modo de ser do homem no mundo. O existencialismo é assim caracterizado, em primeiro lugar, pelo fato de questionar o modo de ser do homem; e, dado que entende este modo de ser como modo de ser no mundo, caracteriza-se em segundo lugar pelo fato de questionar o próprio ‘mundo’, sem por isso pressupor o ser como já dado ou constituído. A análise da existência não será então o simples esclarecimento ou interpretação dos modos como o homem se relaciona com o mundo, nas suas possibilidades cognoscitivas, emotivas e práticas, mas também, e simultaneamente, o esclarecimentos e a interpretação dos modos como o mundo se manifesta ao homem e determina ou condiciona as suas possibilidades. A relação homem-mundo constitui assim o tema único de toda filosofia existencialista (Abbagnano, 1984, p. 127 – grifos do autor).

De acordo com Beaufret (1976, p. 57), ao falarmos existencialismo, o que primeiro acentuamos é a palavra existência e esta palavra implica numa antiga contraposição expressa na palavra essência. Essentia, diz este autor, é a transposição direta, no plano nominal, do verbo esse: ser. A palavra existência está ligada ao termo existere, que significa sair, sair de um domínio, de uma casa, de um esconderijo; é, portanto, movimento para fora e por extensão, mostrar-se. O sentido de ek-stase, dado por Aristóteles, ainda segundo Beaufret, procura evidenciar que a mudança é existência, isto é, saída de um estado para outro.

Este sentido de existência aponta para o sentido próprio da filosofia como existência que se constitui enquanto um problema: “o problema que o homem põe a si em torno de si, é o ser próprio do homem como problema de si próprio”, afirma Abbagnano (1962, p. 49). O que há de estranho no homem é que ele existe e é esta estranheza que mobiliza os existencialistas na sua reflexão sobre a existência.

É desta tensão com a estranheza da existência que surge o pensamento de Søren A. Kierkegaard, pastor protestante dinamarquês que marcará o primeiro momento da história do Existencialismo. Assim como a Fenomenologia está para Husserl, o Existencialismo está para Kierkegaard. Seu tributo foi reconhecido por um grande número de filósofos que em 1963 em Paris, a UNESCO reuniu para comemoração dos cento e cinqüenta anos de seu nascimento, apesar das contrastantes apresentações e do paradoxo criado (KIERKEGAARD Vivo (Colóquio), 2003; AMORÓS, 1987, p. 16). Estes pensadores, entre eles Jean-Paul Sartre, Martin Heidegger, Gabriel Marcel, Karl Jarpers, Enzo Paci, Emmanuel Lévinas, Jacques Derrida, Miguel García-Baró, Jean Hyppolite, entre outros, proferiram palestras apontando não só a importância do seu pensamento nos desdobramentos da filosofia no século XX, mas também assinalaram a direta relação entre os escritos de Kierkegaard e sua própria produção intelectual. “Kierkegaard Vivo significa[...] ‘Kierkegaard morto’. E somente isto. Significa que existe para nós, que é objeto de nossos pensamentos, que foi instrumentos do nosso pensar” (SARTRE, 2003, p. 11, tradução livre). A exceção é feita a Gabriel Marcel que disse não ter tido real influência de seu pensamento e que leu alguns escritos de Kierkegaard aqui e ali, antes da publicação de seu Journal Métaphysique em 1927, e que o fez por conselho de Jean Wahl que em torno de 1935 preparava seus ‘estudos kierkegaardianos’. Também a Martin Heidegger que, nas palavras de Célia Amorós (1987), “Heidegger enviou um texto em que não se fala explicitamente nada de Kierkegaard nem de seu pensamento, considerando – ao menos na opinião de Beaufret – que nesta elipse consistia precisamente a homenagem que se poderia tributar a Kierkegaard em seu sentido mais autêntico (p.16, tradução livre).

Han J. Störing, historiador da filosofia, afirma que

Na filosofia de nosso século, tudo o que circula sob o nome de filosofia da existência e ontologia fundamental não é pensável sem Kierkegaard[...]. A própria denominação ‘filosofia da existência’ envolve explicitamente o ‘pensador existente’ de Kierkegaard, tanto na palavra como no assunto. A solidão, ‘o estado-de-ânimo’, o absurdo, o medo como fato constitutivo originário do ser humano: tudo isso se encontra em Kierkegaard, e volta a ser encontrado desde Gabriel Marcel até Albert Camus[...] no clima espiritual do presente;[...] depois de Kierkegaard, o mundo tem um aspecto irreversivelmente diferente do que tinha antes dele. Isto só pode dizer-se com justiça de uns pouquíssimos grandes, como Sócrates ou Kant (1997, p. 581-582, tradução livre).

O ponto de partida de Kierkegaard está ligado à sua crítica ao pensamento dominante na Filosofia de então, a hegeliana. Coloca-se frontalmente contra o domínio totalitário da Razão, no qual a vida humana é dissolvida em puros conceitos racionais e subordinada à vida própria das idéias. “O que opõe Kierkegaard a Hegel”, diz Sartre, “é que, para o último, o trágico de uma vida é sempre superado. O vivido se dissolve no saber” (1987, p. 115, nota 3, grifo do autor). Desta forma, o esquema de conceitos, qualquer que seja, é apenas uma possibilidade entre outras; sua concretização depende inteiramente dos sujeitos e não dos conceitos em si. O homem existente, portanto, não pode ser assimilado por um sistema de idéias, afirma ainda Sartre, “por mais que se possa dizer e pensar sobre o sofrimento, ele escapa ao saber, na medida em que é sofrido em si mesmo, para si mesmo, onde o saber permanece incapaz de transformá-lo” (1987, p. 116). Não interessa falar sobre o sofrimento e sim sobre o sofrimento de alguém em particular. Em Kierkegaard, o Existencialismo é a expressão de uma experiência singular, individual, pois existência é uma tensão entre o que o homem é e o que ele não é. É na relação com o divino e através da fé, que Kierkegaard acredita que compreEnderemos melhor o peso desta falta do homem, falta perante um Deus para com o qual temos uma dívida. Para Kierkegaard o existir apenas tem algum sentido enquanto nele está a presença divina; esse enigma não pode ser resolvido pela reflexão, segundo ele.

Os escritos de Kierkegaard permaneceram durante décadas completamente ignorados. A língua dinamarquesa, claro, criava um problema de acesso. Mas a divulgação de seu pensamento na Alemanha e na França, bem como a tradução de seus textos, revelaram a possibilidade de uma aliança fundamental: a do existencialismo com a fenomenologia. Foi Karl Barth, considerado um dos maiores representantes da teologia protestante, um dos primeiros a estudar os textos de Kierkegaard (STÖRING, 1997; FERREIRA, 2003). Isto se deve ao impacto que teve, em 1905 na Basiléia, Suíça – terra natal de Barth, a tradução e publicação de um volume com alguns de seus textos, especialmente as páginas de seu Diário. A divulgação e tradução de seus textos para o alemão já vinha lentamente acontecendo, mas acessível a poucos (JASPERS, 2005).

Paralelamente, na Rússia, dois outros autores buscavam, através dos escritos de Kierkegaard, criar novas possibilidades de pensar a existência: Léon Chestov (pseudônimo para Schwartzman) e Nicolai Alexándrovich Berdyáyev (ou Berdiaev). Chestov antecede Berdyáyev, que é por ele influenciado, mas ambos são contemporâneos e do mesmo país o que permitiu a interlocução intelectual. Em 1937, Chestov proferiu uma série de palestras sobre Kierkegaard na Rádio-France, proporcionando uma divulgação maior do pensamento deste autor. Como Kierkegaard, ele criticava os sistemas fechados e definitivos cuja verdade é tranqüilizadora, mas ilusória. Primordial, segundo ele, é a experiência irredutível do absurdo e do trágico da existência humana. Berdyáyev tinha formação religiosa ortodoxa e recusava a filosofia especulativa pois esta privilegiava o ato de conhecer em detrimento do ato de existir. Para ele, o homem está imerso na existência antes de toda atividade de conhecimento e a reintegração no vivido só se dará na sua relação com Deus (NIVAT, 1984; HUISMAN, 2001). Tanto Berdyáyev quanto Chestov usavam o romancista Dostoievski nas suas reflexões sobre a existência. Ambos formam, junto com Barth, Gabriel Marcel e Emmanuel Mounier, um pensamento existencial com raiz cristã.

Marcando um momento específico da relação entre Fenomenologia e Existencialismo, situa-se o pensamento de Martin Heidegger que explorará, através da fenomenologia, o que é o Ser. É esta a questão fundamental da filosofia para ele, a questão do ser, que ele explora em seu principal texto deste período, Ser e Tempo, publicado em 1927. Sua diferença com os autores existencialistas que surgiram durante a Segunda Guerra, é que ele não está colocando em questão a existência humana, preocupação fundamental para os existencialistas franceses.

A relação com a Fenomenologia para Heidegger aparece quand, através de Franz Brentano, ele chega a Husserl (1911-1913), e posteriormente torna-se Privatdozent e assistente do próprio Husserl em Freiburg (1918-1923). O trabalho de Husserl, o primeiro com o qual Heidegger teve contato – Investigações Lógicas (publicado em 1901) – foi tão impactante para ele que, como relata Safrannski (2000), “tornou-se um livro de culto pessoal”.

Fica com ele em seu quarto durante dois anos, emprestado pela biblioteca da universidade, onde nesse tempo ninguém o solicita, o que lhe desperta uma paixão solitária e ao mesmo tempo marcante. Cinqüenta anos mais tarde ainda devaneia quando pensa nesse livro: (Eu) fui tão marcado pela obra de Husserl que nos anos seguintes sempre voltava a ela... o fascínio que emanava dessa obra estendia-se para a página de rosto e o frontispício... (p.53).

Neste período Heidegger está no internato preparando-se para seguir a carreira eclesiástica e se dedica aos estudos de teologia que viabilizam, através de bolsas de estudo pagas pela igreja católica, a finalização de seu doutorado e a preparação para um possível concurso de professor universitário. Apesar das dificuldades, seu pai não tem dinheiro para bancar seus estudos, e de ser considerado a “grande esperança filosófica para os católicos alemães”, ele interrompe seus estudos de teologia pois “Heidegger sabe que o que o prende na teologia não é o teológico e sim o filosófico” (SAFRANSKI, 2000, p. 72 e 70 respectivamente). É por este caminho que Heidegger chega a Freiburg e em 1913, aos 24 anos, defende sua tese de doutorado com a tese A doutrina do juízo no psicologismo. Neste ano também, Heidegger havia solicitado e recebido (1913-1916, o pedido será refeito e renovado anualmente) uma bolsa de estudos à Fundação em Honra de Santo Tomás de Aquino, o que o obrigava a trabalhar com a escolástica: “Na confiança de que o senhor permanecerá fiel ao espírito da filosofia tomista, concedemos...” (p. 76) foi a resposta de concessão da bolsa. Para sobreviver e seguir seus estudos, ele recorreu ao que estava à mão.

Heidegger solicitara essa bolsa a 2 de agosto de 1913 junto ao cabido da Catedral de Freiburg com as seguintes palavras: O submissamente abaixo assinado permite-se apresentar [...] ao reverendíssimo cabido da Catedral [...] o mais humilde pedido de que lhe seja concedida uma bolsa [...]. O submisso abaixo assinado deseja dedicar-se ao estudo da filosofia cristã e ingressar na carreira acadêmica. Como o mesmo se encontra em situação financeira muito modesta, ficaria profundamente agradecido ao reverendíssimo cabido da Catedral [...]. e assim por diante. Cartas tão humilhantes deixam um espinho em quem as escreveu ou teve de escrever. Dificilmente se perdoa àqueles a quem se teve de mendigar (Safrannski, 2000, p. 76).

Em 1916 Heidegger é aprovado como livre-docente (título de Privatdozent) na Universidade de Freiburg, mas suas decepções com o meio acadêmico já estão em andamento. Em 1917 Edith Stein, proveniente do circulo de fenomenologia de Göttingen, desistiu de seu trabalho como assistente pessoal de Husserl e ele vê em Heidegger alguém com quem pudesse filosofar. Da aproximação com Husserl, desencadeou-se também uma fraterna amizade com Karl Jaspers - seis anos mais velho que ele e que em 1921 assumirá a cátedra de filosofia da Universidade de Heidelberg - em 1920. A busca por um novo começo da filosofia os une e estabelece laços de amizade que durarão até o momento em que Heidegger se aproxima do nazismo (HEIDEGGER e JASPERS, 2003). Neste período, em sua correspondência com Jaspers, as pequenas desavenças com Husserl, e com o meio acadêmico em geral, já aparecem. Em carta a Jaspers, datada de 14 de julho de 1923, Heidegger escreve:

Você sabe que foi proposto para Berlin; se comporta pior que um Privatdozent que mudaria sua felicidade eterna por um posto de titular. O que ocorre está envolto em penumbra: diante disso se vê que o praeceptor Germaniae – Husserl está totalmente fora dos eixos (se é que alguma vez esteve, o que é cada vez mais discutível nos últimos tempos) – vai daqui para ali dizendo trivialidades, o que dá muita pena. Vive de sua missão de ‘fundador da fenomenologia’, não sabe o que é (HEIDEGGER e JASPERS, 2003, p. 35).

Mesmo com as diferenças, quando Husserl se aposenta em 1928, de acordo com Arion Kelkel e René Schérer (1982), “é a Heidegger que deixa a sua cátedra, julgando-o o único filósofo digno de lhe suceder” (p. 17). Apesar de Heidegger ter lhe dedicado o livro Ser e Tempo, esta interpretação da fenomenologia não agradou a Husserl e ele se sente bastante decepcionado. A ascensão do nazismo e a posição que Heidegger assume em relação ao mesmo a partir dos anos de 1930 colocam-no, ao final da Guerra, num grande isolamento. Proibido de dar aulas, Heidegger ministrará cursos isolados e criará discípulos que trabalharão com sua versão de uma fenomenologia existencial. Dela teremos autores que levarão, como já havia feito Jaspers, estas reflexões para o campo da psiquiatria e da psicologia gerando novas possibilidades de apreensão da fenomenologia existencial com autores como Eugéne Minkowski, Ludwig Binswanger e Medard Boss.

A divulgação do existencialismo atinge seu ápice com Jean-Paul Sartre, no pós-guerra na França. Após a publicação de O Ser e o Nada em 1943, que gerou críticas da direita católica e da esquerda comunista, Sartre acreditou que podia, em uma conferência, defender-se das críticas que lhe foram lançadas e, ao mesmo tempo, esclarecer sua filosofia que, no momento desta sua conferência, outubro de 1945, ele acaba por acatar o rótulo de existencialismo.

Jean-Paul Sartre foi um intelectual singular. Mergulhava nos vários campos de saber com a sede de quem se encontra no deserto, buscando respostas cujas perguntas sempre estiveram presentes durante toda sua carreira intelectual. Filósofo, romancista, autor de inúmeras peças de teatro, ensaísta, crítico, ativista político, esteve completamente engajado no seu século e dele encarnou a consciência e as contradições. O Século de Sartre, assim se refere a ele Bernard-Henry Lévy (2001), que inicia seu livro destacando esse “não sei o quê” deste pequeno homem, cuja voz é seca e metálica, que consegue, mesmo na sua total ausência, mobilizar uma multidão. Foi assim no dia de sua morte, quando uma multidão tomou conta do boulevard Edgard Quinet em frente ao prédio onde ele morava.

Sartre também despertou os mais variados tipos de emoções e, como outros filósofos, atraiu para si um raro ódio furioso, para não dizer escatológico, capaz de fazer o diretor do Jornal Le Figaro escrever que já era tempo “de se exorcizá-lo, cobri-lo de enxofre e atear-lhe fogo diante da catedral de Notre-Dame, o que seria o meio mais caridoso de lhe salvar a alma”. Acabou, é claro, entrando para a lista negra dos livros proibidos do Vaticano e provocou a ira cega do então diretor do jornal France-Soir que, não contente em tirar a roupa do existencialismo, disse que iria “arrancar a sua pele” (LÉVY, 2001, p. 42-43). Ele esteve sempre, como afirma sua biógrafa Annie Cohen-Solal (1986), entre o elogio e o ódio (p.335).

A querela com os comunistas deixou de ser novidade e tema de debates acalorados, como o foi no pós-guerra Sua trilogia Os Caminhos da Liberdade, despertou o interesse de muitos intelectuais que, “educadamente”, se manifestaram nos jornais sobre a obra, chamando-a de “um livro nojento” que exalava “um imundo fedor de latrinas” (Le Monde, Émile Henriot apud COHEN-SOLAL, 1986, p.335). Outro afirmou que “Se os livros tivessem cheiro, seria preciso tapar o nariz para ler os últimos romances de Sartre[pois] colocar o problema da vida exclusivamente em função dos próprios excrementos, rebaixar a existência ao nível da sarjeta e do depósito de lixo é, sem tirar nem pôr, a intenção de Sartre” (Louis Beirnaert, em Études apud COHEN-SOLAL, p. 335). Portanto, creio que podemos finalizar estes comentários com a recomendação de Louis Althusser para este autor: para Sartre, só a chibatada.

Bem, em meio a uma convulsão de sentimentos, falso escritor e falso profeta para uns - o existencialismo é “literatura de coveiros” e “patologia metafísica”, conforme Roger Garaudy (COHEN-SOLAL, p.381), filósofo de araque para outros, fomos incessantemente tomados, durante o século XX, por esse intelectual que era avesso a enquadramentos e que colocava à disposição sua pena e seu intelecto na luta contra toda forma de injustiça. É esta face de Sartre, claramente social, que desperta em mim interesse e me motiva a buscar compreender melhor isto que nós temos criado: este ser humano pleno de contradições, capaz de criações que tocam intensamente nossa sensibilidade e, ao mesmo tempo, de atrocidades aniquiladoras surpreendentes. Falo isto a partir do próprio princípio existencialista, como procurou esclarecer Sartre em 1944, no jornal Combat, ao responder as críticas e reprovações após a publicação de O Ser e o Nada:

O que é que vocês reprovam em nós? Primeiramente, o fato de nos inspirarmos em Heidegger, filósofo alemão e nazista[?] Depois de pregarmos, sob o nome existencialismo, a passividade da angústia[?][...][Vocês nem] se deram ao menos o trabalho de definir[existencialismo] aos seus leitores. E no entanto é tão simples[...] O homem deve criar sua própria essência; é jogando-se no mundo, sofrendo, lutando, que aos poucos se define[...]. a angústia, longe de oferecer obstáculo à ação, é a própria condição dela[...]. O homem só pode agir se compreender que conta exclusivamente consigo mesmo, que está sozinho e abandonado no mundo, no meio de responsabilidades infinitas, sem auxílio nem socorro, sem outro objetivo além do que der a si próprio, sem outro destino além do que forjar para si mesmo aqui na terra (CONTAT e RYBALKA, 1970, p.653-58).

O Existencialismo realmente “ganhou o mundo” com Sartre, mas outros grandes pensadores caminharam paralelamente a ele e construíram reflexões extremamente vigorosas a partir do próprio Existencialismo e da Fenomenologia. Maurice Merleau-Ponty é, sem sombra de dúvida um dos maiores representantes da fenomenologia francesa. Seu pensamento tem continuamente atraído o interesse daqueles que buscam compreender, de forma mais próxima, a fenomenologia.

A proposta de unir pensadores e pesquisadores de várias áreas que trabalham com a Fenomenologia e o Existencialismo partiu do debate sobre a relevância e extensão destas duas perspectivas dentro da Psicologia. Temos acompanhado as publicações, sejam elas em formas de artigos ou livros, e percebido o crescimento do volume de textos nesta área. Esperamos que apreciem os artigos aqui publicados e que a leitura seja uma viagem, na forma como a recomendou Nietszche àqueles que decidem se aventurar no campo da filosofia: que sua educação filosófica seja feita através de viagens, mas sem esquecer que o resultado final dessa educação depende do modo como escolhemos viajar. E para ele havia cinco tipos de viajantes: Os que querem ser mais vistos do que ver nas viagens; Os que realmente vêem algo no mundo; Os que vivenciam alguma coisa em função do que é visto; Os que incorporam e carregam consigo as vivências da viagem; E finalmente os de maior força, aqueles que colocam as experiências incorporadas de novo para fora, através de ações e de obras tão logo retornam às suas casas.

O segredo, portanto, de qualquer boa viagem está na capacidade de deixar-se atravessar por aquilo que encontramos pelo caminho.

 

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Endereço para correspondência
Ariane P. Ewald
E-mail: aewald@terra.com.br

Recebido em: 02/06/2008
Aceito em: 28/07/2008
Acompanhamento do processo editorial: Deise Mancebo

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