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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008

 

ARTIGOS

 

Os sentidos de “análise” e “analítica” no pensamento de Heidegger e suas implicações para a psicoterapia

 

The meanings of “analysis” and “analytics” in Heidegger’s thinking and its implications for psychotherapy

 

 

Cristine Monteiro MattarI,1 ; Roberto Novaes de SáII,2

I Psicóloga da Prefeitura Municipal de Niterói
Professora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro
Bolsista CAPES
Doutoranda em Psicologia Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ - Rio de Janeiro, Brasil
II Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense/UFF - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho trata de alguns dos principais conceitos da psicoterapia daseinsanalítica, inspirada no pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger. Para isto, inicia pela explicitação da escolha do termo “analítica” (Analytik) feita por Heidegger em sua obra “Ser e Tempo” (1927) em lugar de “análise” (Analyse). Aponta-se para a diferença de sentido entre ambos, destacando o afastamento moderno do significado originário de “análise”, que o reduz a uma decomposição em elementos, em analogia com a química. No entanto, análise vem do grego analisein, que significa o destecer de uma trama, ou libertar, soltar alguém ou alguma coisa das amarras. O termo analítica, utilizado por Kant e retomado por Heidegger, não conduz a uma desintegração do fenômeno, mas sim ao seu caráter originário, ao seu sentido, sua condição de possibilidade. A analítica tece e destece, para libertar o sentido que possibilita o tecido, para vislumbrar o próprio tecer e re-tecer. Esta é a via pela qual Heidegger irá compreender a analítica. A Daseinsanalyse, análise da existência, é definida por ele em “Seminários de Zollikon” como o exercício ôntico da analítica ontológica empreendida em “Ser e Tempo”. Pode-se, então, pensar a Daseinsanalyse também como o exercício da analítica na clínica, que elabora tematicamente a existência factual do cliente, remetendo-a às suas estruturas existencial-ontológicas constitutivas. Esse destecer, conduzido pela análise, libera o existir para tudo aquilo que o interpela como abertura de sentido, ajudando-o a tornar-se presente para todos os entes, inclusive para si mesmo, através da reflexão. Após apresentar as idéias de dois psiquiatras suíços que estabeleceram relações entre a filosofia de Heidegger e a clínica - Ludwig Binswanger e Medard Boss - o artigo propõe ainda alguns modos pelos quais pode pautar-se a atitude do psicoterapeuta na Daseinsanalyse. Uma vez que as demandas de sofrimento existencial, endereçadas à clínica psicoterápica, cada vez mais estão relacionadas ao nivelamento histórico de sentido que pode ser computado no cálculo global de exploração e consumo, é imprescindível, para que a psicoterapia possa se constituir em um espaço de reflexão propiciador de outros modos de existir, que ela própria não permaneça acriticamente subordinada a esse mesmo horizonte histórico de redução de sentido.

Palavras-chave: Analítica, Análise, Clínica Psicoterápica, Daseinsanalyse.


ABSTRACT

This study deals with some of the main concepts of daseinsanalytical psychotherapy, inspired by the thinking of German philosopher Martin Heidegger. To fulfill this aim, it begins by expliciting the choice of the term “analytics” (Analytik) made by Heidegger in his piece Being and Time (1927) instead of “analysis” (Analyse). It points out the difference in meaning between both terms, highlighting the modern detachment from the original meaning of “analysis”, which reduces it to a decomposition of elements, in an analogy to Chemistry. However, analysis comes from the Greek analisein, which means the unweaving of a web, or freeing, releasing someone or something from his/its ties. The term analytics, used by Kant and resumed by Heidegger, does not lead to a disintegration of the phenomenon, but to its original character, to its meaning, its condition of possibility. Analytics weaves and unweaves to free the meaning that makes fabric possible, to catch a glimpse of the very activity of weaving and unweaving. This is the way through which Heidegger will understand analytics. Daseinsanalyse, the analysis of existence, is defined by him in Zollikon Seminars as the ontic exercise of ontological analysis carried out in Being and Time. It is possible, then, to think of Daseinsanalyse as the exercise of analytics in practice, which elaborates thematically the factual existence of the client, submitting it to its constitutive existential-ontological structures. This unweaving, guided by analysis, frees existing to all that summons it as an opening in meaning, helping it become present to all beings, including itself, through reflection. After presenting the ideas of two Swiss psychiatrists who established a relationship between Heidegger’s philosophy and practice, Ludwig Binswanger and Medard Boss, the article proposes some ways through which the psychotherapist can guide his/her attitudes according to Daseinsanalyse. Once the demands of existential suffering, addressed to psychotherapeutical practice, are more and more related to a historical leveling of meaning which can be accounted in the global figures of exploitation and consume, it is indispensable, so that psychotherapy can be a space for reflection which allows other ways of existing, that psychotherapy itself does not remain acritically subordinate to this same historical horizon of reducing meaning.

Keywords: Analytics, Analysis, Psychotherapeutical Practice, Daseinsanalyse.


 

 

Apesar da heterogeneidade dos paradigmas e da diversidade de práticas que encontramos no cenário da Psicologia Clínica contemporânea, permanece, ainda hoje, embora muitas vezes de forma não tematizada, a idéia da psicoterapia como psicologia aplicada, visando à produção de efeitos determinados, dentro de certas margens de controle e previsibilidade. Uma das principais influências responsáveis pela emergência histórica dessa forma de representação das práticas psicológicas clínicas foi o ponto de vista funcionalista, pensamento de grande repercussão desde seu florescimento entre os séculos XIX e XX em solo norte-americano.

A psicologia funcional, embora se opusesse à psicologia de laboratório alemã, mantém os mesmos pressupostos filosóficos: positivismo, mecanicismo, determinismo, materialismo. A partir de sua influência, a validação científica da psicologia passou a depender principalmente do valor pragmático de suas produções. O psiquismo, como capacidade mental, deveria desenvolver-se com a ajuda do psicólogo, cuja missão seria atuar na adaptação bem sucedida ao meio, tornando o homem competitivo e capaz de superar as adversidades. Todo o ideal cientificista da modernidade se faz presente no projeto da psicoterapia como psicologia aplicada com fins pragmáticos.

O psicólogo, nesta ótica, é procurado como aquele que vai analisar e solucionar problemas, especialista em adaptar comportamentos com vistas ao sucesso nas diversas áreas da vida: profissional, escolar, afetiva, social e familiar.

A concepção de “análise”, seja do psiquismo, do comportamento ou das relações, implícita neste modo de compreender a Psicologia, é essencialmente cartesiana: divide a realidade em suas partes, supostamente mais simples, a fim de explicá-la enquanto somatório destas unidades. Em sua “Analítica da Existência”, empreendida na obra “Ser e Tempo” (1927/1989), o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) opõe-se radicalmente a essa idéia de “análise” presente nas ciências modernas, principalmente naquelas que se ocupam do homem, como a medicina e a psicologia. Em conseqüência, a Daseinsanalyse, ou seja, o exercício ôntico da analítica ontológica, propõe um outro modo de compreender o homem, o seu adoecer e a clínica. Esta perspectiva, de inspiração fenomenológica, pautou a realização dos “Seminários de Zollikon”, coordenados pelo próprio Heidegger, durante cerca de dez anos, a convite do psiquiatra suíço M. Boss. Nestes seminários o pensador propôs aos psiquiatras e psicoterapeutas participantes a suspensão do olhar científico-natural, em que foram formados, para que pudessem ter acesso a uma atitude fenomenológica de atenção à realidade.

Em dois seminários de novembro de 1965, Heidegger discute o sentido das expressões “Analítica do Dasein” (Daseinsanalytik) e “Análise do Dasein” (Daseinsanalyse). Dirige-se aos participantes, médicos, psiquiatras e psicoterapeutas, afirmando que sua intenção não era “transformá-los em filósofos, mas somente torná-los atentos ao que diz respeito ao homem, mas que não lhes é imediatamente acessível”, ou seja, não é acessível nem a perspectiva do senso comum, nem àquela do espírito técnico-científico. (HEIDEGGER, 2001, p. 139).

Inicia discutindo as diferenças entre o significado de analítica e análise. Retoma o sentido que Freud dava ao termo análise: uma recondução dos sintomas à sua origem. Por que Freud chama uma recondução de análise? Por uma analogia com análise química que também retrocede aos elementos. Diz Heidegger:

Tratar-se-ia, então, de uma recondução aos elementos no sentido de que os dados, os sintomas são decompostos em elementos na intenção de explicar os sintomas pelos elementos assim obtidos. A análise no sentido freudiano seria, pois, uma recondução no sentido da decomposição a serviço da explicação causal (HEIDEGGER, 2001, p.140).

Sob essa ótica, o dado, seja ele o sintoma, a queixa, a fala do cliente ou qualquer outra expressão, enfim, o fenômeno é perdido de vista ao ser analisado, pois se decompõe em elementos, é pulverizado e reduzido a partículas, representadas, então, como causas do fenômeno. No entanto, o filósofo argumenta que nem toda recondução à questão sobre “de onde provém o ser de algo” precisa ser uma análise neste sentido. O registro de uso mais antigo da palavra análise remonta à Odisséia de Homero e descreve aquilo que Penélope fazia todas as noites, desfazer a trama que ela tecera durante o dia. Analisein, do grego, significa o desfazer de uma trama em seus componentes, mas também soltar, soltar as algemas de um preso, libertar alguém da prisão, ou ainda desmontar os pedaços de uma construção. Heidegger opta pelo termo “analítica”, ao invés de análise, para evitar a analogia, atualmente comum, com a decomposição operada pela química. Retoma a expressão usada por Kant em “Crítica da razão pura”, de onde a retira para o título “Analítica do Dasein”, embora deixe claro que “Ser e Tempo” não é apenas uma continuação da posição kantiana.

A lógica transcendental de Kant responde à pergunta sobre as condições de possibilidade do pensar, um dos componentes do conhecimento, assim como a estética transcendental responde pela observação sensorial. A lógica transcendental é analítica no sentido de que Kant “reconduz as condições de possibilidade da experiência científica a um todo homogêneo, isto é, à capacidade de compreender” (HEIDEGGER, 2001, p. 141). Entende analítica não como análise, decomposição ou classificação dos conceitos, mas como a decomposição da própria faculdade de entendimento, para examinar a possibilidade dos conceitos a priori, sendo o entendimento seu lugar de origem. Sai dos conceitos para analisar o uso puro do entendimento, que possibilita os conceitos. Esta é a tarefa de uma filosofia transcendental, termo que corresponde a ontológico em Kant. Na analítica de Kant há uma decomposição da faculdade de entendimento, não para reduzi-la a elementos, mas para reconduzi-la à sua condição de possibilidade. A analítica não conduz a uma desintegração do fenômeno, mas sim ao seu caráter originário, ao seu sentido, sua condição de possibilidade. A analítica tece e destece para libertar o sentido que possibilita o tecido, para vislumbrar o próprio tecer e re-tecer. É neste sentido que Heidegger irá compreender a analítica, quando afirma:

O caráter fundamental de uma decomposição não é sua decomposição em elementos, mas a recondução a uma unidade (síntese) da possibilitação ontológica de ser dos entes, no sentido de Kant: da objetidade de objetos da experiência. Por isso também não pode haver aqui questão de uma causalidade que sempre só concerne a uma relação ôntica entre uma causa que é[Seienden] e um efeito que é[seienden]. A finalidade da analítica é, pois, evidenciar a unidade original da função da capacidade de compreensão. A analítica trata de um retroceder a uma ‘conexão em um sistema’. A analítica tem a tarefa de mostrar o todo de uma unidade de condições ontológicas. A analítica como analítica ontológica não é um decompor em elementos, mas a articulação da unidade de uma estrutura. Este é o fator essencial no meu conceito de ‘analítica do Dasein’. No decorrer desta Analítica do Dasein em Ser e Tempo eu também falo de Daseinsanalyse, com o que quero dizer o exercer da analítica (HEIDEGGER, 2001, p. 141, grifo nosso).

Está assim explicitado o sentido dado por Heidegger ao termo analítica e à Daseinsanalyse como o exercício ôntico desta analítica. Na Analítica do Dasein:

Não se retrocede, como fazia Freud, os sintomas aos elementos. Antes pergunta-se (remonta-se pela analítica) por aquelas determinações que caracterizam o ser do Dasein com referência à sua relação com o ser de modo geral. A diferença de Husserl e sua fenomenologia não consiste justamente em que são elaboradas somente estruturas de ser do Dasein. Consiste em colocar expressamente o ser-homem de modo geral como Dasein, diferentemente das determinações do homem como subjetividade e como consciência do eu transcendental (HEIDEGGER, 2001, p. 146).

O exercício da analítica na Daseinsanalyse não será, portanto, uma decomposição em elementos e forças, fazendo perder de vista o fenômeno, mas sim uma atitude reflexiva que remeta o Dasein à sua unidade ontológica originária, aos caracteres existenciais que constituem seu ser de modo geral: temporalidade, espacialidade, corporeidade, cuidado, angústia, afinação ou humor e ser-para-a-morte. A analítica, em lugar de dividir, re-constitui a constituição originária do único ente que é interpelado pelo ser e a ele deve corresponder: o homem. A Daseinsanalyse busca justamente reconduzir o homem ao seu modo próprio de ser, evitando as objetivações da ciência e do senso comum, recordando-o de sua liberdade para livremente corresponder ao sentido do ser.

Este exercício filosófico foi percebido pelos psiquiatras suíços L. Binswanger e M. Boss como uma possibilidade de atuação clínica para a psiquiatria e a psicoterapia, em lugar do modelo científico-natural de inspiração cartesiana e positivista.

O termo alemão Daseinsanalyse foi mantido mesmo em língua estrangeira, já que as traduções francesa e inglesa como “analyse existentielle” e “existential analysis” acabaram por abranger “as mais divergentes concepções da existência humana e a reagrupar toda uma gama de métodos terapêuticos que, freqüentemente, se encontram em flagrante oposição” (BOSS; CONDRAU, 1976, p. 5). Ainda assim não foi suficiente para trazer a clareza necessária. Afirmam Boss e Condrau:

Um grande número de conceitos psicológicos e psiquiátricos assim como inúmeros métodos terapêuticos continuam se qualificando como daseinsanalíticos apesar de terem muito poucos pontos em comum com a designação original e de, algumas vezes, não se basearem absolutamente na compreensão do homem que, originalmente, deu seu nome à daseinsanalyse (1976, p. 5).

As expressões “Daseinsanalytik” e “Daseinsanalyse” aparecem pela primeira vez em 1927 na obra “Ser e Tempo” (1927/1989) de Heidegger. Denominam a explicitação filosófica dos existenciais, como dissemos acima, as características ontológicas que constituem o existir humano: a abertura original do Dasein ao mundo, a temporalidade e a espacialidade originais, a compreensão e a disposição afetiva, o ser-com-o-outro, o cuidado, a corporeidade, o ser-para-a-morte. À análise de cada um destes existenciais Heidegger denominou Daseinsanalytik, tentativa puramente filosófica para esclarecer a natureza fundamental do ser do homem, embora o intuito principal de “Ser e Tempo” não se restringisse ao esclarecimento da essência do homem, mas sim do sentido do Ser enquanto tal. As explicitações do existir humano compõem uma primeira etapa em seu pensamento, não pretendendo oferecer uma antropologia filosófica sistemática, apenas determinar a natureza fundamental do ser-aí humano, este ente que se coloca a questão sobre o sentido do ser.

L. Binswanger foi o primeiro a descobrir o quanto a concepção heideggeriana da essência do existir humano era capital para a psiquiatria. Utilizou o conceito de daseinsanalyse, que era originalmente de ordem apenas filosófica e ontológica, num outro sentido, ôntico. Distanciava-se, deste modo, do pensamento científico no domínio da psiquiatria e da psicanálise, que estabeleciam como princípio um interesse maior por forças e tendências supostas e ‘escondidas’ por trás do fenômeno do que pelos fenômenos diretamente perceptíveis. Segue, assim, um outro caminho, o fenomenológico: não há nada a procurar atrás dos fenômenos, os significados e relações se mostram imediatamente a partir deles mesmos.

Binswanger fez uma descrição daseinsanalítica de vários casos de esquizofrenia, buscando suprimir a divisão sujeito-objeto corrente no domínio psiquiátrico, a partir de uma análise que reconduzia as restrições do modo de ser doente às suas condições existenciais de possibilidade enquanto modos de ser-no-mundo. Em seus relatos clínicos fenomenológicos, caracteriza esses modos de ser nas diferentes regiões do mundo: o Umwelt, entorno físico, mundo circundante ou “paisagem”; o Mitwelt, o ambiente humano ou ser-com-o-outro; o Eigenwelt, mundo do corpo e dos próprios pensamentos. Em suas análises, Binswanger lança mão de um conceito originalmente ausente na Daseinsanalyse, pois ao lado da noção heideggeriana de “cuidado” (Sorge) ele acrescenta o existencial “amor”. Com este acréscimo, fica claro que sua compreensão do “cuidado” restringia-se ao nível ôntico. Para Heidegger seria inadequado definir o amor como uma estrutura existencial ontológica, já que o existencial “cuidado” remete à condição ontológica de possibilidade dos diversos modos ônticos do cuidado, sejam os amorosos, os de aversão ou de indiferença. A designação do ser do Dasein como “cuidado” é um desenvolvimento integrador da multiplicidade estrutural que a análise fenomenológica do “ser-no-mundo” revela em “Ser e Tempo”. Por não ser nenhuma “substância” ou “ser-simplesmente-dado”, o Dasein se dá sempre “no-mundo”, numa estrutura de significância, num contexto de relações. O modo de ser do homem é ser sempre e primordialmente em relação, repousando aí todas as possibilidades de comportamento concreto, ôntico. O próprio Heidegger (2001) diferenciou sua Analítica do Dasein da Análise do Dasein empreendida por Binswanger, entendendo que este, ainda sob influência da fenomenologia da consciência de Husserl, não sustentava sua análise no âmbito de radicalidade próprio da fenomenologia hermenêutica do Dasein, recaindo ainda eventualmente em objetivações da existência. Binswanger reconheceu publicamente a diferença de sua interpretação, deixando de usar o termo Daseinsanalyse e intitulando sua abordagem de “fenomenologia-antropológica”.

Medard Boss, psiquiatra e psicoterapeuta suíço, possuía formação em psicanálise e fora analisado pelo próprio Freud. Posteriormente, após ler “Ser e Tempo” e influenciado pelas idéias de Binswanger, voltou-se para o pensamento de Heidegger. O interesse de Boss tinha motivações essencialmente clínicas, acreditava que as considerações filosóficas da Analítica do Dasein poderiam ser terapeuticamente úteis, já que todo adoecer remetia a uma constituição fundamental, comum a todos os homens. Muitos anos após seus contatos iniciais, Heidegger confessou a Boss suas grandes expectativas da ligação com um médico que parecia compreender seu pensamento, pois via a possibilidade de que as contribuições de seu pensamento não ficassem limitadas às salas de aula dos filósofos, mas beneficiassem um número maior de pessoas, principalmente aquelas necessitadas de ajuda em situações de sofrimento.

A partir de 1959, Boss organiza os famosos seminários de Zollikon, após contato regular com Heidegger por correspondência desde 1947. Neles a Daseinsanalyse foi apresentada não como uma escola a mais, e sim como “uma nova abordagem do conjunto dos fenômenos chamados normais e patológicos do existir humano”, abordagem que não é mais que um caminho, um meio de acesso, e que não leva a conclusões científicas. Este caminho é de ordem fenomenológica, tem o intuito de ver sem deformações aquilo que se mostra a nós a partir de si mesmo. Embora pareça muito simples, tal atitude tornou-se para nós a mais difícil, já que perdemos “a possibilidade de ver a essência das coisas sob as exigências das inúmeras explicações científicas que nos foram dadas” (BOSS; CONDRAU, 1976, p. 10).

Na concepção daseinsanalítica, a existência humana é uma abertura transparente e estendida, tanto no sentido espacial quanto temporal, para tudo aquilo que vem ao seu encontro no mundo; a essência do existir humano é ser esta “clareira”, que consiste meramente em um poder “ver”, experienciar, o que vem ao seu encontro; o existir humano é, portanto, abertura iluminadora, que pode estar aqui como ali e se encontrar numa livre relação com aquilo que se oferece a ele nesta abertura iluminadora de mundo. O homem pode se relacionar de diferentes modos com os entes que se apresentam a ele, mas não pode não se relacionar, mesmo a indiferença é um modo de relação, entes não dotados do modo de ser da existência, como uma mesa ou uma pedra, não podem ser indiferentes a outro ente, pois não se relacionam com outros entes enquanto entes, não são aberturas de sentido, seu modo essencial de ser não é o “cuidado”. O ser-aí humano sempre coexiste com o outro, nunca é um sujeito individual subsistindo apenas para si mesmo; por coexistirem sempre junto às mesmas coisas de um mesmo mundo, os homens contribuem conjuntamente, cada um segundo seu modo de “ser-no-mundo-com-o-outro”, para manter aberto este horizonte comum de mundo. O homem é capaz de dispor de sua qualidade de abertura iluminante, na qual tudo o que “há para ser” pode aparecer, apropriando-se deste seu poder ser e compreendendo-o de modo mais próprio: a temporalização e a espacialização de sua existência é sempre situada em relação ao que aparece; seu corpo só é compreendido quando considerado como a corporeidade da relação com aquilo que se lhe desvela, e não como um ente simplesmente dado, objetivado e mensurável.

Os modos de ser considerados patológicos só podem ser compreendidos a partir da constituição essencial da existência, enquanto aspectos privativos de determinados modos de ser saudáveis, ou seja, uma privação de seu “poder-dispor livremente do conjunto das possibilidades de relação que lhe foi dado manter com o que se lhe apresenta na abertura livre de seu mundo” (BOSS; CONDRAU, 1976, p. 14). Quando, estudando a psicopatologia, nos deparamos com as descrições dos quadros patológicos, sempre tendemos a nos identificar em maior ou menor grau com cada um deles, nada mais natural, já que, enquanto possibilidades humanas de ser, são também possibilidades nossas; o que diferencia um existir diagnosticado como doente de um saudável, não é o fato de possuir algo que este não possui, mas sim o estar restrito apenas àquela possibilidade, que para o ser saudável é uma entre outras possibilidades de ser. A reflexão sobre a clínica psicoterápica deve estar, assim, associada à análise filosófica sobre os modos próprios de ser do homem. Desta forma, nas diversas fobias e quadros ansiosos e depressivos, podemos perceber modos ônticos de realização imprópria da angústia, disposição afetiva ontologicamente constitutiva do existir; nas queixas orgânicas transparece a corporeidade essencial da existência; nos distúrbios do relacionar-se, remetemo-nos ao cuidado, ou ser-com; nas compulsões e na culpa, a liberdade e o débito existenciais.

Além da compreensão dos modos de ser-doente, a perspectiva daseinsanalítica tem conseqüências importantes no próprio exercício da prática terapêutica: propõe o “respeito incondicional ao caráter próprio dos fenômenos do existir humano que se mostram, no aceitar e tomar a sério aquilo que são enquanto tais” (BOSS; CONDRAU, 1976, p. 21). Analisar não significa somente decompor um todo em suas partes, o que pode ser feito apenas operando-se com representações conceituais; no sentido de desfazer uma trama e libertar, analisar implica um modo de atenção, ou lembrança, da própria presença, ou do ser, de si mesmo e do que lhe vem ao encontro. A análise, neste sentido, é um re-cordar de si: a Daseinsanalyse busca lembrar ao homem sobre o que lhe é mais próprio, sua vinculação com o ser, ampliando sua liberdade de livre correspondência na medida em que desidentifica-se das objetivações que o restringem a identidades naturalmente dadas dentro de um mundo também simplesmente dado. Na palavra ‘Dasein’, ou ser-aí, o “aí”[Da] não significa a definição de lugar para um ente, mas indica a abertura na qual o ente pode estar presente para o homem, inclusive ele mesmo para si mesmo. A Daseinsanalyse, como proposta clínica, pretende, através da reflexão, chamada por Heidegger (2000) de pensamento meditante, re-cordar o ser-aí humano de sua possibilidade mais própria, a de estar serenamente atento, presente e disponível para tudo aquilo que se revela no âmbito de abertura que ele é, inclusive no tornar-se tema para si mesmo.

Para pensar como se desdobra clinicamente a atitude fenomenológica, presente na analítica do Dasein, levantamos de forma sucinta algumas indicações de como se dá a atuação do terapeuta . O psicoterapeuta, de acordo com Sá (2002, p. 360-362):

1)Assume uma postura de desapego para a qual nada se encontra a priori supervalorizado nem excluído a partir de uma postulação teórica de fundamentos; atenção serena.

2)Sua conduta e a identidade profissionais jamais se reduzem a uma questão de escolha teórica ou do aprendizado de técnicas, pois implicam sua singularidade existencial como um todo, incluídos aí os seus saberes não conceituais.

3)Não se direciona a partir de uma estratégia voluntaristicamente imposta pelo terapeuta; o caminho se abre, com uma certa autonomia, através do diálogo, já que o processo jamais se reduz à vontade subjetiva dos protagonistas.

4)Deixa-se apropriar por uma fusão de horizontes, onde intérprete e fenômeno interpretado interagem mutuamente um sobre o outro para a produção de um horizonte comum onde a interpretação se dá. Tal processo, implica a auto-compreensão do intérprete no processo de compreensão do outro.

5)Promove um espaço de tematização de sentido, de desnaturalização dos sentidos previamente dados, de ampliação dos limites dos horizontes de compreensão. O espaço clínico busca acolher e sustentar a vida enquanto questionamento, enquanto produção narrativa de sentido.

6) Corresponde ao outro enquanto abertura as suas mais diversas e próprias possibilidades de ser, tematizando criticamente as demandas de eficácia técnica e resolutividade a partir de um suposto saber especialista.

7) Suporta a situação de desconforto por lidar com uma prática que jamais se esgota no âmbito do saber representacional e que está conectada à experiência singular; uma prática na qual, embora o treinamento persistente e a experiência sejam fundamentais, seu exercício se desenrola a cada vez como se fosse sempre a primeira.

Segundo Feijoo (2004, p.11), o psicoterapeuta de inspiração daseinsanalítica:

1)Ajuda como aquele que trata do modo de existir e não do funcionar do homem.

2)Liberta o homem do aprisionamento por tomar-se como um ente cujo modo de ser é simplesmente dado, esquecendo-se de sua condição de liberdade enquanto existente.

3)Facilita que as experiências se tornem presentes, sem condicioná-las causalmente ao somático ou ao psíquico, deixando ser o que a própria experiência revela;

4)Está atento às indicações, suspende a verdade postulada pelo senso comum, pela ciência e pela psicologia científica, permitindo que o fenômeno seja reconhecido como uma simples relação com o mundo;

5)Busca conduzir o homem a si mesmo, possibilitando a livre relação com aquilo que o encontra, apropriando-se destas relações e deixando-se solicitar por elas.

6)Relaciona-se através do modo de cuidado denominado por Heidegger como “antecipação libertadora”, que devolve o outro a si mesmo, liberando-o para seus modos próprios e singulares de ser.

7)Sustenta sua atenção na serenidade, estranhamento, aceitação e compreensão.

Estas indicações, longe de se constituírem em regras ou prescrições técnicas, buscam apenas mostrar que a atitude clínica daseinsanalítica, ao contrário, jamais se reduz à mera aplicação técnica de uma representação teórico-conceitual acerca do homem. A psicoterapia se configura, aqui, como um exercitar da Analítica do Dasein no encontro terapeuta-cliente, encontro que tece e destece os sentidos previamente dados, que libera para outros sentidos, onde toda queixa, sintoma, fala ou silêncio, remetem à abertura originária que é a existência humana.

Se quisermos pensar o exercício clínico da Daseinsanalyse como um método, seria mais apropriado evocar o sentido etimológico da palavra método como “caminho para...”. Do ponto de vista das ciências naturais, o método é um caminho sistemático que, percorrido a partir de um mesmo ponto de partida, levará obrigatoriamente a um mesmo ponto de chegada. Para pensar a fenomenologia heideggeriana como um método, devemos pensá-lo como um caminho no sentido de uma trilha que se abre ao caminhar. Em um dos Seminários, ele se refere a este “método” como um “envolver-se de modo especial na relação com o aquilo que nos vem ao encontro”, pois “faz parte da fenomenologia o ato de vontade de não se fechar contra este envolver-se” (2001, p. 136-7) e acrescenta, ainda, tratar-se de um caminho até nós mesmos, mas nunca no sentido de um sujeito interior e isolado.

Podemos compreender a dificuldade de tal caminho recorrendo à própria analítica da existência, quando se detém na análise da cotidianidade mediana do Dasein, feita em “Ser e Tempo”. O Dasein tende, de início e na maior parte das vezes, a ser absorvido por seu mundo, tomando a si mesmo por aquilo que ele não é, um ente cujo modo de ser fosse simplesmente-dado. Se, por um lado, a atitude fenomenológica é intuitiva, no sentido de se ater ao imediato dar-se das coisas a partir de si mesmas, por outro, tal possibilidade é sempre mediada por um esforço e um treinamento persistentes na experiência da serenidade, do pensamento meditante que aguarda na abertura ao sentido. Devemos, no entanto, lembrar as seguintes palavras de Heidegger:

[...] qualquer pessoa pode seguir os caminhos da reflexão à sua maneira e dentro dos seus limites. Por que? Porque o homem é o ser (Wesen) que pensa, ou seja, que medita (sinnende). Não precisamos, portanto, de modo algum, de nos elevarmos às ‘regiões superiores’ quando refletimos. Basta demorarmo-nos (verweilen) junto do que está perto e meditarmos sobre o que está mais próximo: aquilo que diz respeito a cada um de nós, aqui e agora... (2000, p. 14).

O mais importante aqui não é a fenomenologia enquanto corrente ou abordagem filosófica ou psicológica instituída, mas enquanto possibilidade humana de experiência. Não se trata de utilizar novos jargões, ou afirmar a superioridade de uma corrente de pensamento, mas de dar à experiência clínica uma fonte de estranhamento e renovação, colocando a atenção em suspensão e desidentificando-se do mundo da técnica e do sujeito da produção para, assim, nos aproximarmos um pouco mais do mundo, enquanto morada, e do homem, enquanto mortal. Para concluir, devemos reforçar ainda que a relação da fenomenologia hermenêutica com a clínica não pode ser aquela de um novo método que venha substituir os antigos. O “deixar-ser” fenomenológico refere-se ao ser do Dasein, é ontológico, mas cada fenômeno que vem à luz no diálogo clínico deve ser compreendido a partir do contexto factual concreto em que surge e nunca reduzido genericamente a uma estrutura existencial. O que caracteriza o exercício clínico da Daseinsanalyse não é, portanto, o método que ela emprega, enquanto disciplina antropológica ou psicológica, mas o fato de que seja qual for o método utilizado, caso algum o seja, ele deve estar sempre subordinado a uma compreensão fenomenológico hermenêutica da existência. A atenção serena, que guia esse modo de compreensão, caracteriza-se como uma disposição de abertura que não exclui por princípio possibilidade alguma, nem mesmo aquela da intervenção técnico-científica, embora aqui já subtraída de sua pretensa hegemonia e superioridade.

Seria um equívoco tomar como conseqüência da diferença, evocada por Heidegger (2001b, p. 151 e p. 234-7), entre a analítica do Dasein e a Daseinsanalyse clínica, a necessidade de uma disciplina científica formal, uma psicologia no caso, como condição de possibilidade desse exercício clínico. Ao contrário, a distinção enfatiza o fato de que, mesmo aceitando, isto é, dizendo sim, ao modo histórico de organização institucional das ciências e das profissões técnicas do mundo moderno, podemos dizer não à pretensão moderna, quase irresistível, de que um saber ôntico possa dar conta daquilo que se passa com o existir humano e que estejamos assim restritos ao cálculo e dispensados do exercício do pensamento.

Para além das preocupações de Husserl e Dilthey de estabelecer um modelo de cientificidade apropriado às ciências do espírito, a fenomenologia de Heidegger, no caminho de uma superação da metafísica, aponta a necessidade de ultrapassamento do pensamento científico calculante, seja ele das ciências naturais ou humanas, para uma compreensão própria daquilo que diz respeito essencialmente ao existir humano (HOELLER, 1988, p. 147-175). Se a partir da fenomenologia husserliana e mesmo de certas interpretações da fenomenologia hermenêutica de “Ser e Tempo”, ainda se poderia pensar em uma psicologia fenomenológica enquanto disciplina científica com características mais adequadas ao seu objeto de estudo, a partir das obras do chamado “segundo” Heidegger, isto é, aquelas posteriores à década de 30, podemos pensar na contribuição essencial da fenomenologia à psicologia, não mais como uma mera adequação do modelo de cientificidade próprio da psicologia, mas como um convite para que a psicologia não se limite às preocupações de cientificidade e eficiência técnica, buscando um estatuto de saber menos ingênuo e mais rigoroso do que aquele das ciências modernas, onde rigor não signifique submissão por princípio ao método, mas exercício permanente de atenção ao sentido da experiência vivida.

Na época contemporânea, em que as demandas de sofrimento existencial, endereçadas à clínica psicoterápica, cada vez estão mais relacionadas ao nivelamento histórico do sentido ao que pode ser computado no cálculo global de exploração e consumo, é imprescindível, para que a psicoterapia possa se constituir em um espaço de reflexão crítica propiciador de outros modos de existir, que ela própria não permaneça acriticamente subordinada a esse mesmo horizonte histórico de redução de sentido.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Cristine Monteiro Mattar
E-mail: cristinemattar@ig.com.br
Roberto Novaes de Sá
E-mail: robertonovaes@psicologia.uff.br

Recebido em: 28/03/2007
Aceito para publicação em: 15/10/2007
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.
2 Professor Doutor do Departamento de Psicologia e do mestrado em Psicologia da UFF.

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