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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008
ARTIGOS
Experiência ética, normatividade e paradoxo ético segundo Jean-Paul Sartre & as conferências de cornell e de Roma
Ethical experience, normativity and ethical paradox according to Jean-Paul Sartre &the conferences of cornell and Rome
Fabio Caprio Leite de Castro
Doutorando em Filosofia na Université de Liège - Liège, Belgique
RESUMO
O artigo propõe uma abordagem sistemática de duas conferências escritas por Sartre, uma para o Colóquio Morale e Società em Roma (1964) e a outra para a Universidade de Cornell, nos Estados Unidos (1965). A primeira foi efetivamente apresentada pelo filósofo, cujos extratos foram publicados em Les Écrits de Sartre. Ele terminou desistindo de apresentar a segunda por razões políticas e foi publicada recentemente em um volume da Revue Les Temps Modernes. O objetivo dessa exposição é articular os conceitos abordados por Sartre nessas conferências, sobretudo a experiência ética, a normatividade e o paradoxo ético. Dessa maneira, pretende-se mostrar de que modo podemos extrair de tal pensamento uma concepção ética fundada ao mesmo tempo numa crítica existencialista e marxista.
Palavras-chave: Existencialismo, Marxismo, Experiência ética, Norma, Paradoxo ético.
ABSTRACT
The article considers a systematic boarding of two conferences written for Sartre, one for the Conference Morale e Società, at Rome (1964) and the other for the University of Cornell, in the United States (1965). The first one, whose extracts had been published in Les Écrits de Sartre, effectively was presented by the philosopher. The second lecture was, for political reasons, never presented and was recently published in a volume of the Revue Les Temps Modernes. The objective of this exposition is to articulate the concepts boarded for Sartre in these conferences. That is: the ethical experience, the normativity and the ethical paradox. In this fashion, one intends to stand that we can extract of such thought an ethical conception, established at the same time in a critical existentialism and marxism.
Keywords: Existentialism, Marxism, Ethical experience, Norm, Ethical paradox.
I) Introdução
No filme Sartre par Lui-Même (1976), dirigido por Alexandre Astruc e Michel Contat, Sartre afirmou que seria possível escrever uma moral depois de terminar L’Idiot de la Famille. Além disso, ele comentou ter escrito duas morais, uma entre 1945 e 1946, a outra em torno de 1965. A primeira é a que conhecemos hoje pelo título Cahiers pour une Morale, publicada em 1983; a segunda corresponde à sua moral de 1964/1965, que podemos dimensionar por meio das conferências de Cornell e de Roma. Enquanto que uma parte desta última fora publicada pelo Instituto Gramsci e posteriormente em Les Écrits de Sartre (uma reunião de textos promovida por Michel Contat e Michel Rybalka em 1970), sob o título Détermination et Liberté, as conferências de Cornell somente foram publicadas em 2005, no volume especial da revista Les Temps Modernes, em homenagem ao centenário do nascimento de Sartre, com o nome Morale et Histoire, sob os cuidados de Juliette Simont e Grégory Cormann. Esses textos ainda são muito pouco comentados, não obstante ofereçam um cabedal conceitual de alto relevo para a pesquisa sobre a moral sartriana posterior ao método progressivo-regressivo e à Critique de la Raison dialectique.
A nossa análise textual começará pelo texto das conferências de Cornell, mesmo que não tenham sido ao final apresentadas por Sartre e sua publicação seja mais recente. Essas conferências seriam apresentadas em 1965, portanto, após a de Roma, escrita e apresentada em 1964. Iniciaremos por Morale et Histoire pelo fato de ser um texto publicado na sua integralidade, cujos argumentos estão mais explicitados em relação à conferência de Roma, que não foi inteiramente publicada e não se apresenta de forma tão desenvolvida. Esse segundo texto será utilizado mais com a finalidade de complementação, comparação e esclarecimento das conferências de Cornell. O objetivo inicial da presente exposição é a definição do conceito de normativo (a partir da experiência ética) e do paradoxo ético. Retomaremos alguns casos examinados e suas conseqüências em nível ético. Em seguida, nós faremos atenção aos conceitos fundamentais abordados por Sartre de uma maneira inédita: normatividade, possibilidade incondicional e porvir puro. Nós tentaremos sobretudo traçar as ligações entre esses conceitos e os de outras obras de Sartre, como a Critique de la Raison dialectique e l’Idiot de la Famille. Concluiremos com a definição de moral elaborada no contexto dessas conferências.
II) As Conferências (não realizadas) na Universidade de Cornell
O texto intitulado Morale et Histoire corresponde às conferências que seriam realizadas por Sartre nos Estados Unidos em 1965, mas que ele renunciou por causa da intensificação do bombardeio americano ao norte do Vietnam. O texto que recebeu esse título na Revista Les Temps Modernes constitui a preparação das conferências de Sartre para a Universidade Cornell e trata de uma importante reflexão sobre a moral, pois nos permite reavaliar a relação conflituosa do pensamento do filósofo francês com os problemas éticos. O argumento de Sartre é dividido em cinco pontos, intitulados: A especificidade da experiência ética; A essência da experiência ética; Da possibilidade como estrutura incondicional da norma; O paradoxo do ethos; Paradoxo ético e estruturalismo marxista. Pelos títulos, podemos entrever as teses fundamentais de Sartre. 1) A experiência ética é específica. 2) A essência da ética é o incondicional normativo. 3) A possibilidade incondicional é um momento da estrutura da ação. 4) O paradoxo ético formula-se da seguinte maneira: os fins variam historicamente enquanto o sentido ético (incondicional) permanece o mesmo. 5) Ao querer reduzir o paradoxo ético, o marxismo apenas o reformulou diferentemente. Nosso objetivo será apresentar sinteticamente cada um desses pontos, mostrando o fio condutor que os unifica, estabelecendo um método de compreensão dos conceitos abordados por Sartre e como eles se relacionam com suas outras obras, a fim de verificar a dialética entre Moral e História.
A especificidade da experiência ética é a conseqüência da sua irredutibilidade à História. Para demonstrá-lo, Sartre descreverá a experiência ética em termos fenomenológicos, seja de fora, quando um agente tem uma conduta moral, seja de dentro quando a temos nós mesmos. A ética se mostra indubitavelmente e imediatamente nas relações quotidianas. A sua especificidade se dá inicialmente como uma determinação da linguagem, numa passagem do fato ao direito e ao dever. Sartre toma dois casos jornalísticos com a finalidade de aportar-lhes uma descrição fenomenológica.1 Um jornal conservador anuncia uma primeira notícia da seguinte maneira: “O fundo dos oceanos não deve servir de lixo público”. Tratava-se de uma dúvida técnica sobre imergir no oceano mil tonéis de um gás extremamente perigoso. Aquilo que era uma notícia sobre um fato desliza a uma dimensão de dever. Em outra matéria, referente à atitude dos liberais em relação ao avanço e às ameaças do partido comunista, Sartre releva a manchete-ordem “Vós deveis votar”. O “dever” aparece em ambos os títulos e resume a especificidade ética da categoricidade e da incondicionalidade. Ele caracteriza o meio do imperativo. Em tais exemplos, fica clara a estrutura de um imperativo hipotético “se queres x, faça y”. Do mesmo modo, deixa-se de mencionar as condições do incondicional, ou seja, trata-se de fórmulas incondicionalmente imperativas. Todavia, o imperativo ético está condicionalmente ligado à materialidade do mundo e aos fatos do qual ele retira o seu sentido. Sobre esse aspecto, citamos uma passagem de um artigo de Juliette Simont sobre as conferências de Sartre:
Assim, ‘Vós deveis votar’ é um imperativo incondicional apenas nas estritas condições em que o voto, em ocorrência, é a defesa de privilégios de fatos; o fato aqui se esconde atrás do imperativo; inversamente, os fatos são freqüentemente imperativos dissimulados, a matéria mesma da vida quotidiana revela estruturas imperativas; um fluxo de carros extravasa univocamente: é um sentido interditado; uma máquina me designa imperativamente pelo seu modo de emprego, etc.2
A mesma dialética mistificada e dissimulada podemos encontrar nas publicidades, como “Mantenha essa tez de jovem moça”,3 ou nas promessas de campanhas políticas. Sartre apresenta como exemplo a campanha de Kennedy e seu apelo puramente ético à tolerância, para salvaguardar os votos dos protestantes do Estado de Wisconsin. A tolerância religiosa coloca-se assim numa fórmula imperativa, em apelo à universalidade incondicional. Dessa maneira, Kennedy mostra-se moral para continuar político e a tolerância torna-se um valor capaz de se afirmar na sua especificidade ética.
O momento da necessidade (negação da negação) no mundo ameaçador da raridade é precisamente o momento dialético onde a praxis se deixa condicionar pela raridade, tornando-se pratico-inerte, ou ela se constitui recuperando-se pelo seu trabalho. A atividade passiva é um modo de agir por condicionamentos externos, por uma causalidade material, em outros termos, o sujeito é agido. É o caso da atitude fundamental que reaparece sob muitas formas diversas na vida de Flaubert. Do mesmo modo é a atitude do mero observador que visualiza da sua janela, sem ser visto, a obra distinta de dois trabalhadores, o exemplo clássico da Critique de la Raison dialectique. O pratico-inerte resulta do fato que a ação própria torna-se outra. Do ponto de vista dialético, isso significa que a ação torna-se exterior a ela mesma, ela se aliena como se ela fosse uma pura materialidade, ela se fecha numa totalidade como significado da matéria trabalhada.
Nós não podemos esquecer que o imperativo categórico é um julgamento de dever-ser e por conseqüência ele pertence ao domínio da ética. Sartre não desenvolveu esse ponto na Critique de la Raison dialectique, mas nós podemos encontrá-lo em Morale et Histoire. “De resto, si o imperativo é a forma mais rudimentar da ética, nós vivemos no meio do normativo (milieu du normatif)”(Id. ibidem, p. 274). Os imperativos desvelam-se em situação, restando, no entanto, absolutamente categóricos no momento da sua aparição.
Também é categórica a ordem da máquina ao seu servidor, no meio do complexo industrial ao qual ele pertence. Porque não é verdade que nós possamos dizer ao operário: ‘se tu queres ganhar tua vida, então etc.’ Porque ele quer, ele sempre quis ganhá-la: era seu futuro do pretérito, é seu presente, será seu futuro. Nesse conjunto pratico-inerte, à luz do destino que nós fizemos para ele e que ele deve assumir como o seu, as normas do trabalho são ordens. Ele pode detestá-las: a sua estrutura imperativa não constituirá menos uma determinação ética da sua experiência (Id. ibidem, p. 276).
A especificidade da ética, dada imediatamente na experiência quotidiana do mundo pelas evidências fenomenológicas, é o imperativo categórico, não enquanto forma pura da lei kantiana, motivada unicamente pelo puro respeito ao dever, mas como nadificação incondicional do reino dos fatos (SIMONT, op. cit., p. 40).
Mas qual é, afinal, a essência da ética? Para responder a tal questão, é preciso enfocar aquilo que vimos quanto à sua especificidade: o tipo de determinação de linguagem onde ela se insere e o meio onde a experiência ética de desenrola: o imperativo ou a normatividade. Sartre expõe uma nomenclatura das suas diferentes determinações segundo os modos de regulação das relações humanas. Há, por exemplo, uma diferença entre a instituição e os costumes (SARTRE, op. cit., p. 302-303). A instituição se faz respeitar por uma estrutura imperativa de imposição e sanção, instituindo sujeitos de direito que são constritos à sua autoridade. Os costumes se caracterizam pelo fato de que a sanção não é direta ou estritamente definida, ou seja, uma sanção difusa. A primeira é notadamente a lei e suas variações, um protótipo da equivalência entre direito e dever. Um exemplo de uma sanção contra uma falta ao costume é o riso frente a um erro de linguagem. A questão do riso foi retomada por Sartre no Idiot de la Famille, onde ele descreve essa mesma atitude como uma reação serial, uma atividade passiva de defesa.4
Outros tipos de manifestação da normatividade são os valores, os bens, os exemplos e os ideais. Vejamos rapidamente o sentido de cada uma para em seguida procurar a essência mesma da norma. Em Morale et Histoire, o valor é definido por Sartre como uma “exterioridade futura que vem ao homem pela interioridade prática do seu porvir e se mostra a ele como um resultado insuperável e incondicionalmente possível de sua liberdade criadora” (Idem, op. cit., p. 315). Tal definição remete à concepção de valor como um sentido da falta, apresentada em l’Être et Néant, não excluindo a possibilidade de que uma atividade passiva interiorize um valor como prático-inerte, tal como Sartre descreve na Critique de la Raison dialectique. O bem, tanto quanto o valor, não é objeto de imposições ou sanções; o que os difere é que o valor é um fim incondicionado ao infinito, enquanto o bem é o meio incondicionado de atingir os fins (Id. ibidem, p. 316). O bem, diferentemente do valor, é dado de caráter ético ou, se quisermos, um dom. Sartre dá o exemplo da virgindade em sociedades que o exigem como meio para o casamento. O exemplo também não impõe nada de modo constritivo, mas ele se propõe normativamente como “encorajamento” (Id. ibidem, p. 320). Remédio contra o inacabamento perpétuo da ética, o exemplo é a atestação de que a ética pode ser realizada. Enfim, o ideal é o resultado da passagem da conduta exemplar ao homem-ideal. Em outros termos, o ideal é a cristalização da exis moral do agente pelo grupo , através de seu poder carismático (Id. ibidem, p. 321).
Após essa breve exposição, podemos tentar definir a essência do normativo. Sartre conclui da seguinte forma: “Nessas condições o que há de comum entre essas diferentes normas & que sejam imperativos, valores, bens, exemplos ou ideais? Uma coisa apenas: elas propõem fins determinados a uma conduta humana e dão por incondicional a possibilidade de os atingir” (Id. ibidem, p. 322). Dessa maneira, a essência da ética é a sua incondicionalidade. Porém, Sartre acrescenta que, para avançar em terreno ético, precisamos descrever os atributos principais da possibilidade incondicional, ou seja, o fato de que o incondicional se apresenta no campo dos possíveis. É preciso esclarecer que uma tal possibilidade não é incondicional quando todas as condições são reunidas para que ela se realize, mas que ela seja realizável quaisquer que sejam as condições. Ou seja, a possibilidade é incondicional pelo fato de ser realizável em qualquer condição, o que não significa que ela será necessariamente realizada. Essa distinção é imprescindível para a compreensão da casuística, ou o esforço para condicionar o incondicional. Vejamos melhor como Sartre a define. A casuística é a tentativa de um impossível condicionamento de um incondicional por um outro incondicional. O casuísta é aquele que tenta conservar um imperativo geral como “não mentir” e distingui-lo de casos particulares, onde tal conduta pode ser excepcionalmente preferível (Id. ibidem, p. 323). Dessa maneira, ele não faz outra coisa que viver sob dois regimes éticos distintos. Podemos retomar o exemplo de um casal que coloca a verdade por imperativo e a sinceridade por valor, mas que em razão de uma circunstância exterior é levado a viver na mentira: o marido sabe que sua esposa tem uma doença mortal, que não tem muito tempo de vida, porém resolve não dizer a ela. Todavia, se eles acordaram que a verdade tem um valor impositivo, a dissimulação não é uma adaptação aos fatos, mas um conflito ético, onde a origem da escolha da mentira se compreende tanto a partir da primeira opção ética como do fato histórico. Esse exemplo permite esclarecer que a casuística é uma contradição entre duas éticas, muito mais que a sua adaptação a circunstâncias exteriores. O incondicional é de tal ordem que ele só pode ser exercido livremente ou colocado em questão incondicionalmente. Pierre Verstraeten, no artigo Impératis et valeurs, sintetiza o problema mostrando que a estrutura do imperativo comporta uma vontade que está em jogo e a exigência da matéria, de modo que a radicalidade da incondicionalidade só pode se exercer livremente.5 O incondicional é, por definição, portanto uma possibilidade incondicional. Ou, se quisermos, a possibilidade é a estrutura da norma ela mesma.
Podemos, assim, explicar como o condicional histórico engendra diversos incondicionais éticos sem reduzi-los a um condicionamento: o incondicional é uma estrutura comum não apenas às normas, mas a toda ação, como esclarece Juliette Simont.6 A ação ética tem, no entanto, a especificidade de dar uma amplitude exclusiva ao momento ético, através de um porvir puro, como negação do condicionamento histórico no seio da História. Assim são para Sartre os casos de uma resistência ou a reação de prisioneiros resistentes à tortura. Trata-se de empresas histórias e condicionais, mas que se descobrem especificamente éticas pela ruptura de um fim permanente e universal, assim como pelo desvelamento de um incondicional, fazendo uma tábua rasa do passado. A ética é um momento essencial e provisório da praxis, num jogo dialético onde ela se opõe radicalmente à história.
A compreensão do paradoxo ético se dá a partir da relação entre condicional e incondicional. Nós vimos que o incondicional se manifesta como estrutura de toda ação através de uma possibilidade que se admite como incondicional. Uma vez que toda ação é uma integração entre o passado e o campo prático a atingir (como finalidade), questão já presente em L’Être et le Néant, é imprescindível pensar no problema dos fins para poder encerrar a compreensão do paradoxo ético.
Uma sociedade constitui ao mesmo tempo grupos e coletivos, tal como Sartre apresenta na Critique de la Raison dialectique, o que engendra uma ambigüidade de uma comunidade em relação aos fins. A serialidade de um coletivo favorece uma moral inautêntica, para a qual os fins são apenas o meio de manter uma ordem estabelecida. O grupo, ao contrário, enquanto unido pelo objetivo comum através da mediação do terceiro numa realidade fusional, não tem a necessidade de apelar ao ético na liberdade. O paradoxo nasce do fato que os fins são condicionados historicamente enquanto a ética é incondicional: ou seja, a historicidade dos fins e a permanência inerte da ação ética compõem o paradoxo ético, uma colisão do dever-ser e do ser, do direito e do fato. A norma ética é inultrapassável, mas ela passa. Elas são realidades trans-históricas que, no entanto, desaparecem na história. Assim, o paradoxo ético se articula em três tempos: 1) historicidade dos fins, 2) permanência da ação ética e 3) passagem à história do inultrapassável (Id. ibidem, p. 51).
Com a formulação do paradoxo ético, Sartre procura mostrar a dialética entre a Moral e a História, entre dimensão ética do agir e os seus condicionamentos histórico-políticos. A sua posição afasta, portanto, de um lado, um marxismo ortodoxo que reduziria a ética a uma inconsistência supra-estrutural, de outro, um kantismo ortodoxo, que dissociaria sem remédio a pureza ideal do ato ético e o compromisso do ato concreto (Id. ibidem, p. 40).
III) A Conferência de Roma
Um ano antes, ou seja, em maio de 1964, Sartre realizou uma comunicação no Colóquio Morale e Società, organizado pelo Instituto Gramsci, em Roma. O texto do qual dispomos corresponde em verdade a extratos dessa apresentação, publicados nos atos desse colóquio e posteriormente em Les Écrits de Sartre, sob o título Détermination et Liberté. O texto tal como o conhecemos hoje é incompleto e bastante menor do que o da conferência anteriormente analisada. Traçando uma comparação entre ambos, podemos verificar uma proximidade conceitual entre os dois textos, embora o texto da conferência de Cornell (publicado na sua totalidade) nos pareça mais desenvolvido e acabado. No entanto, a conferência de Roma nos trará uma análise de outros conceitos importantes, inclusive com uma tentativa de definição da moral, a nosso juízo coerente com a obra de Sartre.
O filósofo francês propõe novamente que comecemos o exame do problema moral pela estrutura de certos objetos sociais. Essa estrutura ele chama de norma, equivalente à normatividade da conferência de Cornell, ou seja, a essência da ética. E os objetos sociais citados na conferência de Roma correspondem em parte aos daquela conferência: as instituições, os costumes e os valores. Há uma simetria entre as definições de tais objetos, como podemos constatar pela seguinte passagem:
Esses objetos são diversos: as instituições, em particular as leis que prescrevem a conduta e definem a sanção; os costumes, não codificados mas difusos, que se manifestam de maneira objetiva como imperativos sem sanção institucional ou com uma sanção difusa (o escândalo); enfim, os valores, normativos, que se referem à conduta humana ou a seus resultados e que constituem o objeto do julgamento axiológico.7
A definição da instituição se encaixa perfeitamente na conferência de Cornell. O mesmo ocorre com os costumes. O exemplo do escândalo como sanção difusa soma-se ao anteriormente citado, referente à risada. Trata-se de uma reação serial que propaga ao modo difuso e informal uma sanção referente a um ato que passa a ser constituído como o objeto do escândalo. Lembremos que o escândalo já fora descrito na Critique de la Raison dialectique, para mostrar como o Outro se torna a razão de uma série pela reação serial dos vizinhos em uma coletividade.8 Quanto aos valores, não há dúvida que, tanto quanto na outra conferência, eles são constituídos pela normatividade. Porém, naquele primeiro texto, o acento é dado sobre a interiorização de um porvir exterior enquanto resultado incondicional da liberdade. Nessa última definição, o acento parece se deslocar para um julgamento axiológico da própria liberdade referente aos resultados de sua conduta. De todo modo, o ser do valor, tal qual em L’Être et le Néant, advém do sentido atribuído à realidade no projeto da consciência, ou seja, do fato de que ela se encontra lançada a um porvir aberto.
Uma primeira comparação das duas conferências nos serve para visualizar a correspondência entre as definições desses “objetos”, por meio dos quais evidenciamos a experiência normativa e cuja estrutura é a norma. Assinalamos que o ponto fundamental desses textos é a experiência normativa, o fato de que a normatividade se dá fenomenologicamente em situação, e não tanto a sua categorização. Ora, o modo como classificamos ou nomeamos certos tipos de experiências e certos objetos parece-nos secundário quando compreendemos que todas essas experiências possuem a raiz eidética da normatividade. Assim, a importância dessas conferências de Sartre, levando em consideração o todo da sua obra, está em localizar finalmente a experiência ética na temporalidade, desvelando o sentido do paradoxo ético. Détermination et liberté fortalece essa conclusão.
Logo no início da comunicação, antes mesmo de Sartre propor o exame dos objetos sociais acima destacados, ele renuncia expressamente a abordagem de toda e qualquer moral imperativa, incluindo nesse conceito as morais de Kant, de Nietzsche e de outros autores. Essa eliminação precisa ser bem compreendida. Trata-se de afastar da ética as filosofias morais que tentam de algum modo explicar a experiência moral e a unificar as prescrições empíricas do seu tempo numa espécie de “tábua de valores”.9 A tarefa da filosofia moral não é, portanto, apresentar uma tábua de valores a priori, pronta e acabada para uma época, tampouco a de explicar o fenômeno moral. Uma tábua de valores tomada em si seria apenas um conjunto abstrato de prescrições de uma determinada sociedade, mas não permitiria compreender a normatividade ela mesma. De outro lado, qualquer explicação do fenômeno moral apenas serviria para sustentar a imperatividade, sem, no entanto, descrever tal fenômeno. É o caso da eudaimonia, do hedonismo, do estoicismo, do utilitarismo, ou do normativismo kantiano.
A moral define-se pelo homem social, no seu trabalho, na rua, em casa, através do normativo. Por meio das suas manifestações em situação é que a moral pode ser efetivamente compreendida. Desse modo deve ser pensada a seguinte definição de moral: “Nós chamaremos moral o conjunto de imperativos, de valores e de julgamentos axiológicos que constituem os lugares comuns de uma classe, de um meio social ou de uma sociedade inteira” (Id. ibidem, p. 736). Ou seja, a tarefa da filosofia moral é justamente a de descrever fenomenologicamente o modo de aparição de tais objetos sociais (pela normatividade) frente ao livre projeto da consciência em situação. A imperatividade caracteriza-se pela possibilidade incondicionada, outrossim, já havíamos visto pelo texto da conferência de Cornell.
Na conferência de Roma, Sartre acentua outras duas questões fundamentais. A primeira é que o imperativo possui sempre um porvir puro (nem cognoscível nem previsível), que ao limite significa porvir a fazer. Ele é capaz de determinar o presente pelo simples fato de que ele se dá como possibilidade incondicionada (Id. ibidem, p.739). Enquanto tal, ele está para além do sistema normativo. Trata-se de uma determinação em interioridade, um futuro possível qualquer que seja o passado do sujeito. A segunda questão é que dentro de um sistema positivista a norma torna-se um fato de repetição, ou seja ela se inscreve no porvir incondicionado como um passado de repetição (Id. ibidem, p. 740). Ao mesmo tempo que o destino fixado pela norma é assumido por meus atos, ele já o fora assumido por gerações precedentes. Esses novos conceitos permitem a Sartre criticar o neopositivismo pelo fato de suprimir o agente humano do qual se serve o sistema, ou mesmo alguns marxistas que, tentados pelo estruturalismo, esforçam-se para desconfigurar o motor da história, que é a luta de classes:
Quando Marx escreve que o proletariado porta consigo a morte da classe burguesa, ele quer dizer que o proletariado é o porvir puro, além do sistema, através da negação prática do porvir repetitivo do ser do destino que o sistema lhe impõe”. (Id. ibidem, p. 744).
IV) Conclusão
Com base nas conferências de Sartre, de Cornell e de Roma, podemos determinar aquilo que o filósofo compreendia como moral nos anos sessenta. Serve-nos primeiramente, portanto, para afastar a posição segundo a qual a Critique de la Raison dialectique é incompatível com a sustentação de uma moral. Além disso, de modo mais amplo, essa concepção moral nos reforça a idéia unidade do pensamento sartriano, absolutamente coerente com o todo da sua obra. Dentro dessa perspectiva, é verdade, a moral não se constitui a priori ou por uma unificação de prescrições empíricas. Trata-se de um fenômeno que se descreve pela própria experiência. A normatividade ou a imperatividade é a estrutura de objetos sociais que o sujeito assume na sua interioridade tendo em vista uma possibilidade incondicionada de um porvir puro. O grande paradoxo ético se forma pela tensão entre norma e fato, incondicional e condicional, Moral e História. O cerne do problema moral está no desvelamento de que imperativos e valores não são limitados por eles mesmos no porvir puro da interioridade do sujeito, mas que a inércia lhes é imposta de fora. A negação desse destino imposto pelo sistema é o que conduz à libertação do homem.
Referências Bibliográficas
SARTRE, J. P. Critique de la Raison Dialectique, Tome I & Théorie des Ensembles Pratiques. Paris: Gallimard, 1960. [ Links ]
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SIMONT, J. Autour des Conférences de Sartre à Cornell. In: VERSTRAETEN, P. (Org.). Sur les écrits posthumes de Sartre. Bruxelles : Editions de l’Université de Bruxelles, 1987.
VERSTRAETEN, P. Impératifs et valeurs. In: VERSTRAETEN, P. (Org.). Sur les écrits posthumes de Sartre. Bruxelles : Editions de l’Université de Bruxelles, 1987.
Endereço para correspondência
Fabio Caprio Leite de Castro
E-mail: facaprio@hotmail.com
Recebido em: 24/12/2007
Aceito para publicação em: 10/01/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald
Notas
1 SARTRE, Jean-Paul. Morale et Histoire in Les Temps Modernes. Julho-Outubro de 2005, p. 269-271.
2 SIMONT, Juliette. Autour des Conférences de Sartre à Cornell. VERSTRAETEN, Pierre (Org.). Sur les écrits posthumes de Sartre. Bruxelles : Editions de l’Université de Bruxelles, 1987, p. 37.
3 SARTRE, Jean-Paul. Morale et Histoire in Les Temps Modernes. Julho-Outubro de 2005, p. 276.
4 Idem. Idiot de la Famille & Gustave Flaubert, de 1821 à 1857.Vol I. Paris : Gallimard, 1971, p. 812-813.
5 VERSTRAETEN, Pierre. Impératifs et valeurs. (Org.) VERSTRAETEN, Pierre. Sur les écrits posthumes de Sartre. Bruxelles : Editions de l’Université de Bruxelles, 1987, p. 57.
6 SIMONT, Juliette. Autour des Conférences de Sartre à Cornell. (Org.) VERSTRAETEN, Pierre. Sur les écrits posthumes de Sartre. Bruxelles : Editions de l’Université de Bruxelles, 1987, p. 45.
7 SARTRE, Jean-Paul. Détermination et Liberté. (Org.) CONTAT, Michel. RYBALKA, Michel. Les Écrits de Sartre & Chronologie, bibliographie commentée. Paris : Gallimard, 1970. p. 735.
8 Idem. Critique de la Raison Dialectique, Tome I & Théorie des Ensembles Pratiques. Paris: Gallimard, 1960, p. 382.
9 Idem. Détermination et Liberté. (Org.) CONTAT, Michel. RYBALKA, Michel. Les Écrits de Sartre & Chronologie, bibliographie commentée. Paris : Gallimard, 1970, p. 735.