Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008
ARTIGOS
Sartre fenomenólogo
Sartre as a phenomenologist
Deise Quintiliano Pereira*
Professora Adjunta de Letras Francesas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ - Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
Este artigo tem por objetivo analisar os conceitos fundamentais da filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre, a partir da influência da fenomenologia husserliana. A constituição da subjetividade é o fio condutor deste trabalho. Pretende-se mostrar a impossibilidade de uma conversão total por parte de Sartre à noção husserliana de um sujeito transcendental. Para o pai do existencialismo, o sujeito encontra-se sempre numa relação com outros sujeitos, estabelecendo, assim, a idéia de intersubjetividade & viga mestra do pensamento sartriano. Outrossim, a assunção da alteridade introduz uma concepção dialética à qual todos os sujeitos encontram-se subordinados. Há, pois, uma dialética da intersubjetividade (exterior) e uma dialética subjetiva (interior), segundo as quais o sujeito torna-se aquilo que é visto e, ao mesmo tempo, afasta-se de uma identificação absoluta consigo mesmo. Por fim, faz-se a análise do conceito de “singular-universal”, que visa impedir a redução do indivíduo a uma mera contextualização temporal, à medida que realça sua relação com o momento que ocupa na sua atualidade histórica, ou seja, sua historicidade.
Palavras-chave: Sartre, Fenomenologia, Existencialismo.
Abstract
This article aims to analyse the basic concepts of the existentialist philosophy of Jean-Paul Sartre, from the influence of the husserlian phenomenology. The constitution of the subjectivity is the connecting thread of this work. There intends to show the impossibility of a total conversion for part of Sartre to the husserlian notion of a transcendental subject. For the father of the existentialism, the subject always meets in a relation with other subjects, establishing, thus, the idea of intersubjectivity & the basis of the sartrian thought frames. Likewise, the assumption of the alterity introduces a dialectic conception to which all the subjects are subordinated. There’s, so, a dialectics of the intersubjectivity (outward) and a subjective dialectics (inward), according to which the subject becomes what is seen and, at the same time, it stands back of an absolute identification with himself. Finally, proceeding the analysis of the concept of "universal-singular”, which seeks obstructing the reduction of the individual to a mere temporal contextualization, while it highlights his relation with the moment that it occupies in his historical present, in other words, his historicity.
Keywords: Sartre, Phenomenology, Existencialism.
O sujeito intersubjetivo
O terceiro capítulo de L’être et le néant, evidencia o que pode ser considerado o cerne do pensamento sartriano, ao desenvolver toda a problemática que define o sujeito intersubjetivo, sob a ótica filosófica existencialista. Ao afirmar: “eu reconheço que sou como o outro me vê [...] o outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo” (SARTRE, 1943, p. 260, grifo do autor), Sartre elege o alter, o outro,como único meio de atingir o autoconhecimento. No plano filosófico, o escritor dedica um capítulo de seu tratado de ontologia fenomenológica, L’être et le néant (SARTRE, 1943, p. 259-471), a essa temática, sob o sugestivo título de “Le pour-autrui”. Podemos abordar a complexidade dessa discussão pela análise de três tópicos específicos, que desenvolveremos a seguir: a existência do outro, a aporia do olhar e o desejo de reconhecimento.
A existência do Outro
Sabe-se que a filosofia sartriana é tributária de uma metodologia fornecida pela fenomenologia husserliana. Embora Sartre encontre seu suporte metodológico em Husserl e sua terminologia em Heidegger, lendo L’être et le néant, percebe-se rapidamente que o vigor de seu pensamento não se limita a mero aprendiz desses pensadores. De modo contrário, muitas vezes L’être et le néant é apontado como uma contestação do pensamento heideggeriano e como uma crítica a certos pressupostos husserlianos. Destes, apenas alguns pontos foram assimilados pela filosofia sartriana.
A exemplo de Husserl, Sartre insurge-se contra o equívoco teórico de separação cartesiana radical da consciência (res cogitans) e do mundo (res extensa), para vislumbrar nessas entidades uma certa homogeneidade. Também como Husserl, Sartre ataca o materialismo e o idealismo por considerar que o ser humano vive numa unidade indissociável da mente, do corpo e do mundo.
Ainda como Husserl, Sartre propõe um retorno ao eidos, isto é, ao estudo das coisas nelas e por elas mesmas, na sua manifestação concreta, tais quais se apresentam no mundo, suprimindo todos os conceitos estabelecidos “a priori” sobre as coisas. Nessa perspectiva, a introdução do “outro” é condição indispensável para a constituição do mundo e para escapar ao solipsismo, uma vez que não há nada mais real e concreto do que a existência do outro.
Para Sartre, cada homem existe no mundo com os outros homens. Mesmo que fosse possível isolarmos a consciência para analisá-la em profundidade, exauri-la em sua inteligibilidade, tal procedimento seria inócuo no processo de compreensão da existência humana, pois, segundo o filósofo existencialista, o homem é uma consciência ilhada, cerceada por outras consciências. É nesse sentido que Edmund Husserl afirma que nosso mundo é constituído pela subjetividade de todos & é uma “intersubjetividade”1. Visando tornar mais pragmática essa discussão, Sartre lança mão do exemplo da vergonha, através do qual esclarece de que modo a presença do outro permite que a subjetividade do indivíduo seja apreendida no mundo: “a vergonha estabelece uma relação íntima de mim comigo mesmo” (SARTRE, 1943, p. 259).
É pela vergonha que se ilumina um novo aspecto, uma nova faceta do indivíduo. Se alguém faz um gesto vulgar, obsceno ou comete algum tipo de gafe, esse gesto cola-se à própria pessoa que o cometeu. Esta, por sua vez, não o critica ou censura, apenas o realiza. Porém, se ao erguer a cabeça apercebe-se da presença de um outro, concretiza, imediatamente, toda a vulgaridade de seu gesto e sente vergonha. Sartre reconhece, então, que “eu sou como o outro me vê” (SARTRE, 1943, p. 260).
O outro não revela apenas o que o indivíduo é, mas o constitui a partir de novas qualificações de seu ser. Esse novo ser revelado no sujeito envergonhado não existia potencialmente antes da aparição do outro, que o desvela na situação “envergonhante”. É por essa razão que a vergonha é “vergonha de si diante do outro”, sendo essas duas estruturas inseparáveis para Sartre. O indivíduo que cada um é necessita do outro para apreender plenamente todas as estruturas de seu ser.
O “eu” e o “outro” não podem, então, ser compreendidos como duas substâncias isoladas, o que implicaria uma reclusão absoluta ao solipsismo. O recurso ao outro apresenta-se, deste modo, como uma condição indispensável para a constituição do mundo. Mesmo isolado no seu quarto, o homem nunca está completamente só, pois os traços da exterioridade do mundo & um livro, um pensamento sobre alguém, uma carta, o telefone que toca, uma expectativa sobre algum fato & sempre remeterão ao alter, ao outro.
O outro existe originariamente em cada indivíduo. Ele é o que esse indivíduo não é, uma pura negatividade, portanto. Ao mesmo tempo, esse outro reflete a única possibilidade de apreensão do indivíduo, visto que é impossível a uma consciência ser consciência dela mesma.
O outro é a consciência do que o sujeito não é. Por isso, conclui Paulo Perdigão (1995, p. 138), “não fosse essa consciência originária, eu jamais poderia me certificar, através do conhecimento que viesse a ter do outro, que este é um sujeito e não um objeto”.
O desejo de reconhecimento
Estar no mundo denota uma negatividade fundamental para Sartre, pois se o indivíduo tem em si o outro como consciência do que não é, considera-o, conseqüentemente, como um tipo de ser equivalente a si, logo como um ser para quem é ele quem é o outro.
O outro caracteriza-se como um ser “que vê”. É a dimensão do ser visto que distingue o “eu” do “outro”, uma vez que o indivíduo só pode negar ser o outro porque sabe que é visto por ele. Nessa perspectiva, todos sofrem a experiência perpétua de ser eternamente o “objeto de um olhar” e essa condição define o modo original e originário de o homem existir “sob e a partir do olhar do outro”.
A análise filosófica do olhar possui também uma dimensão ontológica, pois a consciência do “sentir-se olhado” antecede ao ato concreto do “ser olhado”. Essa dimensão é virtual e em fluxo contínuo porque é possível, a qualquer momento, que o olhar do outro apreenda as ações humanas nas suas mais variadas manifestações & a moça que caminha apressadamente, o rapaz que cospe no chão, o casal que se beija, o camelô que boceja, o senhor sentado na pracinha & todos são vítimas potenciais de um olhar capaz de, a todo instante, violar aquilo que consideram, equivocadamente, sua intimidade, seu raio individual de ação. Todos estão submetidos à possibilidade de existência de uma consciência anônima na multidão que, com seus olhos, esteja efetuando um enquadramento fotográfico de suas ações.
Ao sentir-se capturado por um olhar, o indivíduo sente-se como que lançado bruscamente no mundo, isto é, abandona o estrito limite de sua subjetividade e sente-se “objeto do olhar do outro”, um ser invadido e reificado. Ao referir-se ao momento em que o olhar do outro fixa-se sobre o indivíduo, Sartre diz ocorrer uma espécie de hemorragia, através da qual o indivíduo esvai-se, dilui-se, sendo absorvido “para fora”: “poderíamos chamar hemorragia interna o deslizamento do meu mundo em direção ao outro-objeto” (SARTRE, 1943, p. 300).
Todavia, o desconforto ocasionado pelo “outro que olha” designa o único modo de o sujeito sentir-se um objeto, ou seja, apesar da violência inscrita na dimensão do “ser olhado”, para obter um pensamento objetivo sobre si mesmo, o indivíduo sempre necessitará da mediação desse olhar para efetuar seu autoconhecimento. Para Sartre:
O outro só tem interesse por mim à medida que ele é um outro Eu, um Eu-objeto para mim e inversamente, à medida que ele reflete meu Eu, isto é, enquanto sou objeto para ele. Por essa necessidade na qual me encontro de não ser objeto para mim senão nele, no outro, devo obter do outro o reconhecimento de meu ser [...] Sou tal qual apareço ao outro. Além disso, visto que o outro é tal qual aparece para mim e que meu ser depende do outro, o modo como eu apareço para mim depende do modo como ele me aparece. O valor do reconhecimento de mim pelo outro depende daquele do outro por mim (SARTRE, 1943, p. 245, grifo do autor).
A aporia do olhar
O choque de subjetividades cria uma aporia e reedita a dialética hegeliana do senhor e do escravo, que é agora reinterpretada pela filosofia sartriana. Para Sartre, o outro “é o escravo e eu sou o senhor; para ele sou eu quem sou a essência” (SARTRE, 1943, p. 276, grifos do autor).
Cumpre observar que o escravo representa a verdade do senhor, mas esse reconhecimento unilateral é insuficiente, pois para que o verdadeiro reconhecimento seja alcançado, segundo Hegel, será necessário “um momento no qual o senhor faça com relação a si próprio, o que ele faz com relação ao outro e no qual o escravo faça com relação ao Senhor o que ele faz com relação a si mesmo” (HEGEL, s/d., p. 163).
Segundo Sartre, a intuição genial de Hegel consiste em fazer o indivíduo depender do outro na constituição fundamental do seu ser: “é então no meu coração que o outro me penetra” (SARTRE, 1943, p. 276).
A análise de Paulo Perdigão (1995, p. 146) sobre o conflito das liberdades em Sartre esclarece a função de mal necessário atribuível ao outro: “Diante do outro já não somos ‘donos da situação’. Não estamos seguros frente à liberdade alheia, que faz de mim o que quer”.
Assim, o indivíduo torna-se escravo do outro, que se erige como seu juiz e senhor. A exemplo do inferno simbólico imaginado por Sartre em Huis clos, o outro estará sempre presente, mesmo na solidão mais absoluta, na qual o indivíduo tenta subtrair-se à sua presença obsedante, ao seu olhar asfixiante. Tal fato ocorre, segundo Perdigão, “porque o Outro está encravado no meu próprio miolo”.
Na tentativa de libertar-se dessa aporia, o homem tenta tomar posse da liberdade alheia, utilizando-se de duas estratégias básicas e excludentes: tratando o outro como sujeito ou tratando o outro como objeto.
No primeiro caso, que pode ser exemplificado pelo projeto da relação amorosa, o indivíduo tenta apossar-se da liberdade do outro enquanto sujeito livre. Como bem assinala Perdigão (1995, p. 149), “que o Outro seja eu sem deixar de ser o outro”. Nesse projeto, o sujeito amante nega a contingência humana, pois não aceita que qualquer outra pessoa possa substituí-lo no coração do(a) amado(a). A relação amorosa traduz, outrossim, uma tentativa desesperada de furtar-se ao crivo da reificação, ocasionada pelo “olhar do outro”, através da fusão Eu-Outro. É a busca da união de subjetividades, elevada a uma esfera localizada além do conflito do mundo intersubjetivo.
Tal projeto, contudo, é frustrado à medida que também o outro (o indivíduo amado) identifica nele sua proposta. Ora, se ambos os amantes, para escapar à objetivação do olhar, vislumbram na relação amorosa o outro como sujeito livre para fundamentar seu próprio ser, caem num impasse conflitante de projetos. Para Perdigão (1995, p. 149), “o projeto falha, pois já não encontro, no amor, uma subjetividade livre à qual quero me integrar e sim também uma consciência que quer perder-se como tal para integrar-se à minha”.
A segunda tentativa de escapar a essa aporia define-se pela estratégia do contra-ataque. Como é impossível suprimir a existência do outro, o indivíduo busca também objetivá-lo pelo olhar. Simbolizado pelo mito da medusa, cujo olhar petrifica o outro (o sujeito que olha), esvaziando o seu julgamento, nesse circuito “procuro ver apenas olhos, um corpo, um outro objetivado. Quero assim esvaziar o outro de todo julgamento sobre mim, fazendo sua subjetividade perder a eficácia, já que não posso suprimi-la” (PERDIGÃO, 1995, p. 150).
Também essa tentativa é malograda, uma vez que o indivíduo continua sendo objeto para o outro, mesmo que se esforce para ignorar esse fato. O outro só poderá ser apreendido como objeto. Ele será sempre sujeito livre para si, objeto capturado para o outro.
A frustração decorrente da impossibilidade de possuir a liberdade do outro é suscetível de conduzir, numa última manobra desesperada, ao desejo de morte do outro. Mas, também essa tentativa redunda em fracasso, pois com a supressão absoluta do outro, dada pela morte, congela-se com ele a imagem que formara do indivíduo em vida e essa imagem cristalizada jamais poderá ser modificada. É nesse sentido que a morte do outro constitui o indivíduo num objeto irremediável.
Desse impasse, que se faz aporia, restam os subterfúgios pragmáticos que representam tentativas de diluir um fato inexorável & o de que os limites que definem a liberdade do sujeito estão sempre condicionados à existência do outro no mundo: “meu pecado original é a existência do outro” (SARTRE, 1943, p. 302).
Supomos que a resposta à problemática fundamental do sujeito intersubjetivo não seja alcançada por intermédio de uma elaboração abstrata de conceitos, mas por uma articulação fenomenológica do pensamento mediante a qual a aporia da conflituosa relação intersubjetiva poderá ser redimensionada.
O método de Montaigne
A emblemática frase de Montaigne “a matéria de meu livro sou eu mesmo”, retratando a subjetividade que fundamenta a investigação do pensador francês do séc. XVI, é recuperada pela metodologia implementada por Sartre, na elaboração de seu sistema filosófico e literário. Como Sartre afirma: “Montaigne quis compreender-se como uma mistura incomparável de particular e de universal” (SARTRE, 1964, p. 265).
Assim como o método de Montaigne partia do fato de um indivíduo-subjetivo considerar-se objetivamente para compreender e interpretar as condutas humanas, também Sartre lança-se como objeto de investigação na tentativa de apreender, pelo seu próprio comportamento, a existência humana e suas implicações.
Os dois pressupostos fundamentais, por meio dos quais Sartre anuncia-se um “ser-a-ser-estudado”, serão explicitados sob os títulos: a dialética no sujeito e o singular universal.
A dialética no sujeito
A já tornada célebre expressão panta rei, “tudo flui”, nada é estático, na acepção de que “tudo está em processo de mutação eterna”, preconizada pelos gregos Heráclito e Aristóteles, fornece-nos uma baliza conceptual da dialética clássica.
De acordo com a noção tradicional de dialética, as partes só adquirem sentido se interligadas a um todo. É tão somente pela visão do conjunto que cada elemento que o compõe adquire sentido. O alto só se define com relação ao baixo, o pequeno com relação ao grande, o concreto com relação ao abstrato e, assim, sucessivamente.
Essa premissa conduz a outra & a de que tudo é contraditório. É justamente na contradição que se sustenta a base do movimento dialético. De fato, o alto define-se pelo não-baixo, o pequeno pelo não-grande, o concreto pelo não-abstrato. Na contradição reside, então, a mola-mestra que impulsiona o movimento dialético.
O choque de forças contrárias determina a origem de todo o processo dialético. A existência de um fenômeno (tese) é corolário de sua negação enquanto outro fenômeno (antítese), o que sinaliza para uma síntese final que ultrapassa as duas realidades descritas anteriormente.
Em tal processo, o elemento que é transcendido ou superado não desaparece completamente. O surgimento do novo fenômeno comporta em si os traços do fenômeno ultrapassado no movimento dialético, porém, já em um nível superior. Assim, a borboleta contém em si as propriedades físico-químicas da larva que fora outrora, embora, como borboleta, situe-se num estágio diferente daquele de larva. A síntese espelha a superação de um elemento ultrapassado, permitindo, contudo, a permanência deste elemento, pelo acúmulo de funções que exerce.
Ao afirmar que “só o vir a ser é real”, Hegel foi o primeiro a sistematizar as bases do movimento dialético. Mesmo o materialismo histórico de Marx ou o materialismo dialético de Engels fundamentam-se nas estruturas descritas pelo movimento dialético.
Entretanto, Sartre sustenta que só a história humana é dialética, insurgindo-se contra a perspectiva de Engels & que concebia a existência de uma dialética da Natureza & e de Marx & que, segundo Sartre, limitava-se a verificar o processo dialético na História. Para Sartre, a dialética só pode ser concebida como “totalização-em-curso”, porquanto não é nunca um produto acabado, é antes um pro-jeto em eterno processamento.
Nesta via, Sartre acusa Engels de ter matado a dialética ao transferi-la para a natureza, considerando que o lugar no qual a realidade dialética deva ser investigada é o interior da própria história humana. O método dialético, para Sartre:
Não se revela senão a um observador situado em interioridade, isto é, [a] um investigador que viva sua investigação ao mesmo tempo como uma contribuição possível a uma ideologia da época inteira, como a práxis particular de um indivíduo definido por sua aventura histórica e pessoal, no seio de uma história mais ampla que a condiciona (SARTRE, 1960, T. I, p. 156, grifo do autor).
O ponto de partida para uma investigação que se pretende científica deve originar-se, então, daquilo que é tido por mais evidente e próximo ao homem. Uma dialética da natureza é inconcebível dentro da visão sartriana porque substitui o que é claro pelo que é escuro, o que é concreto pelo que é abstrato, o que se mostra pelo que se esconde, logo, o que tem dignidade de ser problematizado pelo que não tem: “a Razão dialética deve ser buscada [...] lá onde ela se faça ver, ao invés de se sonhar com ela onde ainda não temos meios de alcançá-la” (SARTRE, 1960, T. I, p. 152, grifo do autor).
Só pela subjetividade, pelo entendimento de sua própria vida, o investigador estará apto a determinar o movimento dialético que a caracteriza. A natureza, por sua vez, não é capaz de pensar, nem de investigar a si própria. É por isso que
se a dialética existe, devemos sofrer em nós mesmos a experiência dela, encontrar em nós mesmos, perfeitamente clara, a evidência dialética, a partir do simples fato de que somos ação prática, atividade totalizadora (PERDIGÃO, 1995, p. 166).
Na esteira desse pensamento, Sartre conclui que toda dialética histórica repousa sobre a práxis individual, visto que esta é já dialética (SARTRE, 1960, T. I, p. 194). Dito de outro modo, acolhida como “totalização-em-curso”, a dialética só poderá ser avaliada a partir da práxis humana, isto é, da experiência individual que torna qualquer dialética possível.
A noção de práxis & o conjunto de atividades no qual cada homem lança-se visando produzir a sua vida & é, desse modo, fator básico capaz de determinar as ações dos grupos humanos. Para a constituição da práxis humana, insiste Sartre, o investigador deve buscar a compreensão dialética na aventura humana, partindo do particular para o geral, do singular para o universal, da vida individual para a História.
A grande crítica que Sartre lança contra o marxismo é de ter invertido a relação dialética do homem e sua história. “Sem homens vivos, não há história”, afirmou o filósofo, que defende o exame da ação prática individual na busca do desvelamento da pluralidade da ação prática de todos os homens. Nesse sentido, Sartre convida-nos a proceder à investigação do conceito que elabora através da expressão singular universal.
O “singular universal”
Os estudos de Gerd Bornheim (1998) e de Jean-François Louette2 ocupam-se em desvelar a significativa expressão singular universal,que perpassa e organiza o conjunto da produção (auto)biográfica sartriana. Mas, o que representa o paradoxo contido em tal expressão? Referindo-se a Flaubert, em L’idiot de la famille (1971-72, T.I, p. 7), é Sartre quem precisa: “totalizado e, por essa mesma razão universalizado por sua época, ele a re-totaliza, reproduzindo-se nela como singularidade”.
A enigmática expressão suscita inúmeras hipóteses interpretativas. Em termos de história literária, Louette (CONTAT, 1996, p. 374) aventa a possibilidade de o singular universal sugerir a última metamorfose de devaneio narcísico, que brota em torno do tema romântico do “homem do século”, de tendência hugoliana. Essa leitura, todavia, não deslinda a origem filosófica do conceito que, do mesmo modo, é envolta em obscuridades.
A exemplo de Louette, podemos interrogar ainda: trata-se da “conscience malheureuse” hegeliana que Sartre descreve no texto Aller et retour3, como uma oscilação entre o singular e o universal, onde ocorre o sacrifício do primeiro termo em detrimento do segundo? ou trata-se da tradição hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, sendo este último mencionado por Sartre em Cahiers pour une morale?
A hipótese de Louette diz respeito à distinção entre os termos conceito e noção, o que faria a balança pender para o lado de Hegel. Também Bornheim (1998, p. 18) busca o esclarecimento da distinção entre esses termos. Segundo Bornheim, para Hegel, o conceito é científico, caracterizado por uma definição intemporal e exterior, ao passo que a noção encerra um tipo de rigor filosófico, assim explicitado por Sartre: “Por noção entendo essa compreensão global, mas estruturada de uma realidade humana que faz entrar a temporalização [...] na apercepção sintética que ela quer ter de seu objeto e simultaneamente de si própria” (SARTRE, 1976, p. 103).
Em A cerimônia do adeus, Simone de Beauvoir (1981, p. 17) recorda que, em maio de 1971, numa entrevista concedida a Michel Contat e Michel Rybalka, referindo-se a L’idiot de la famille, Sartre especifica que a biografia sobre Flaubert não concernia à obra científica, porque não utilizava conceitos, mas noções, sendo a noção um pensamento que nela introduz o tempo, como a noção de passividade, por exemplo.
Ora, um pensamento que se aplica a um objeto temporal implica um movimento temporal (dialético) e não pode ser aceito senão dialeticamente, seja no plano filosófico ou estético. Muito antes da publicação de L’idiot de la famille, Sartre propusera uma análise hegeliana da idéia de noção. A ciência, afirmava Sartre, é feita de conceitos, mas “a noção, para Hegel, organiza e fundamenta, ao mesmo tempo, os conceitos na unidade orgânica e viva da realidade concreta” (SARTRE, 1949, p. 153). De acordo com Louette (1996, p. 374), é a essa mesma unidade móvel que visa o pensamento do singular universal.
A junção dos termos singular e universal, implementada por Sartre, parece remontar à Conferência de abril de 1964, sobre Kierkegaard, mas a idéia desta formulação é objeto de uma mais antiga elaboração. Entre 1939 e 1940, a guerra leva Sartre a questionar os limites de sua existência, que oscila “entre a singularidade de cada consciência e a generalidade da condição humana” (SARTRE, 1995, p. 128).
É verdade que nem a idéia de dialética, nem o sintagma singular universal aparecem, ainda, expressos literalmente. É necessário aguardarmos a publicação dos Cahiers pour une morale (SARTRE, 1983, p. 51) para que seja tematizada a dialética e observado o fato de que a História é “universal no singular; singular no universal”.
A formulação da expressão, em Sartre, rejeita a “singularidade irracional do indivíduo” (SARTRE, 1967, p. 108), defendida por Kierkegaard, visto que Sartre a considera como “a subjetividade vazia de uma pequena burguesia puritana e mistificada” (SARTRE, 1967 p. 21).
A característica da singularidade não é definível somente pela irredutibilidade da contingência, o que reduziria o homem a um puro átomo e a um valor individual. É preciso, acrescenta Sartre, opor a singularidade irracional de Kierkegaard à singularidade não ultrapassável da aventura humana, porquanto a aventura é pro-jeto e não retração.
Tal constitui o bom uso da singularidade, na acepção de uma dinâmica fundadora, capaz de operar a ultrapassagem de si. Em Les mots, Sartretentará fazer um trabalho análogo. Segundo Louette (CONTAT, 1996, p. 378), “pensar contra si, quebrar os ossos do seu próprio crânio”.
A singularidade dá-se, assim, no momento em que Sartre convencionou chamar de constituição e que Bornheim (1998, p. 22) apresenta como a proto-história do indivíduo, isto é, a história familiar e tudo que ela comporta. A concepção de universalidade, em contrapartida, é tributária de lições provenientes do marxismo, já que para Marx “o homem não é apenas um animal que se associa, mas literalmente um animal político, que só pode tornar-se indivíduo isolado dentro da sociedade” (MARX, 1967, p. 12, grifos do autor).
A conjunção dessas duas expressões visa impedir a redução do indivíduo a uma mera contextualização temporal, à medida que realça sua relação com o momento que ocupa na sua atualidade histórica, ou seja, sua historicidade. Através da análise dos esforços que visam responder à fundamentação dialética da associação dos termos singular e universal, torna-se, destarte, igualmente possível aceder aos princípios que norteiam a estrutura de compreensão da intersubjetividade tal qual é proposta nos escritos sartrianos, isto é, com forte apoio na formação de Sartre enquanto fenomenólogo.
Referências Bibliográficas
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Endereço para correspondência
Deise Quintiliano Pereira
E-mail: deisequintiliano@uol.com.br
Recebido em: 21/05/2007
Aceito em: 04/09/2007
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald
Notas
* Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ/EHESS-Paris. Representante do GES (Grupo de Estudos Sartrianos) no Brasil.
1 Cf. HUSSERL, E. “Cinquième méditation cartésienne”, § 49, in Méditations cartésiennes.
2 Cf. LOUETTE, J-F. “Écrire l’universel singulier” in CONTAT, M. Pourquoi et comment Sartre a écrit Les Mots. p. 373-416.
3 Texto de 1944, compilado em Situations I, 1947.