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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.2 Rio de Janeiro ago. 2008

 

ARTIGOS

 

A ordem do caos: epistemologia de um tempo e experiências de ruptura na obra a trilogia de Nova York

 

The order of chaos: epistemology of a time and experiences of rupture/discontinuity at the masterpiece the New York trilogy

 

 

Maria Carolina Gomes Barbalho

Graduanda em Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ - Rio de Janeiro, Brasil
Bolsista PIBIC/UERJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Trilogia de Nova York é um romance policial pós-moderno. Obra de seu tempo, traz questões pertinentes à contemporaneidade, como a intensificação das experiências de ruptura. Do encontro com o novo num espaço-tempo cada vez mais comprimido, seguem-se esvaziamentos das categorias que nos remetem a ordens, unidades, certezas. Contudo, imersa na realidade da ficção &– e na nossa &–, escolhi o caminho, não dos que lamentam saudosamente uma modernidade das seguranças, e sim dos que não consideram preencher os inúmeros vazios restantes, mas conservá-los como aberturas que são, como torção própria de paradigma &– que nos lega não outra coisa senão outro paradigma. Desta imanência entre o ser/estar e o conhecer (não esqueçamos o detetive como sujeito de um ato epistêmico), lançarei ao interesse questões em três diferentes frentes: (i) sobre a contemporaneidade, análise da própria obra; (ii) na contemporaneidade, análise do discurso e da autoria; (iii) na e sobre a contemporaneidade.  

Palavras-Chave: A Trilogia de Nova York, Epistemologia, Contemporaneidade, Subjetivação.


ABSTRACT

The New York Trilogy is a post-modern detective fiction and as well comes up with some contemporary issues as the intensification of the experiences of rupture/discontinuity (once begun in Modernity). Once the disconcerting encounters with new are happening in a space-time each time more constricted, the categories related to an order, unities, certainties are being “replaced” by non-spaces, nothingnesses.   However, looking from an inside’s perspective, I chose to take the way not of those who miss modernity (and the “safety” that comes with it), but of those who consider not to fill the innumerable remaining emptinesses in order to conserve them as the true openings that they are, to accept them as the very twist of paradigm &– and the fate of gaining not other thing than another paradigm. From this immanent bond between the being and the knowing, I will launch questionings in three different trails: (i) about the contemporary days, analysis of the novel itself; (i) in the contemporary days, analysis of discourse and authorship; (iii) about and in the contemporary days.

Keywords: The New York Trilogy, Epistemology, Contemporary, Subjectivation.


 

 

O homem contemporâneo vive uma intensificação da experiência de ruptura, ao mesmo tempo em que se encontra em plena transformação o modo como esta experiência o afeta: é a relação do homem com o caos o que está em jogo nesta transição.

SUELI ROLNIK

 

1. Introdução

Este trabalho (tergi)versa sobre uma experiência única. Uma autora, um livro; uma aula, um professor; uma pesquisa, um orientador; outro autor e sua obra; um tempo e um devir e um encontro e um espaço e um possível e um tangível fato, feito a quantas mãos seja plausível (ou seja, desejável) relatar no espaço exíguo de um artigo. Fala, e não mais em entrelinhas, sobre todas (todas não, algumas) essas qualidades que fazem toda (toda sim, toda) experiência, de perto, ser enfim única. À toa?  Creio que não. E cabe guardar a pergunta sobre aonde todos estes particularismos, subjetivismos, psicologismos formalizados na contemporaneidade querem nos levar? A que controle?

Mas antes, do começo: Trilogia de Nova York é um romance policial pós-moderno. Partindo desta asserção, lanço questões em três diferentes, porém nunca independentes, frentes. Para não perder o hábito aristotélico da sistematização, ei-las: (i) sobre a hipermodernidade, análise da própria obra; (ii) na hipermodernidade, análise do discurso e da autoria; (iii) na e sobre a hipermodernidade. Porém, é acreditando no trespassar do texto que me lego o direito de não realizar uma introdução mais diligente. 

 

2. Livro I Cidade de Vidro &– Ficção

 

2.1 Multiplicidades débeis

Nova York era um espaço inesgotável, um labirinto de caminhos intermináveis, e por mais longe que ele andasse, por melhor que conhecesse seus bairros e ruas, a cidade sempre o deixava com a sensação de que estava deixando a si mesmo para trás.[...]. O mundo estava fora dele, em volta, à frente, e a velocidade com que o mundo se modificava sem parar tornava impossível para Quinn deter-se em qualquer coisa por muito tempo.

AUSTER, CIDADE DE VIDRO (p. 10)

Esta primeira parte da reflexão tem como ponto de partida a especial identificação da literatura com a cidade. Desde a tradição literária da Grécia antiga (Platão e sua A República), a literatura encara a cidade como terreno fértil onde ambientar suas reflexões sobre a natureza humana; à medida que a cidade vai crescendo e se modificando, a literatura se esforça, então, para fornecer dela um retrato inteligível ao dar sentido às modificações sociais que contribuem para sua evolução. A cidade é ainda o ambiente supremo da hipermodernidade; o que ainda está por se analisar é o que mais ela pode representar (além de ambiente), que relações pode suscitar para os outros personagens1 da obra2.

O primeiro livro, Cidade de Vidro, traz a estória de Quinn. Dizer quem “Quinn é” é o mesmo que contar a estória do livro, pois este personagem tem sua identidade reestruturada a cada passo da obra. No início, Quinn é um escritor de 35 anos, que escreve romances policiais sob o nome de William Wilson &– adota esta personalidade após a morte de seu filho e de sua esposa. Mais adiante, recebe uma chamada telefônica por engano destinada ao detetive Paul Auster, quando é chamado para investigar o caso Stillman; agora, acaba confundindo-se também com o personagem de seus romances Max Work, o detetive.

A diluição de sua identidade frente às inúmeras experiências de ruptura &– no que configuram o tema das subjetividades cambiantes &– personagens imprecisos e multifacetados são a imagem de homem que a hipermodernidade nos oferece. Se o indivíduo moderno é constituído ao mesmo tempo na abertura para espaços de liberdade individual &– ampliam-se os horizontes &– e na circunscrição de uma identidade soberana &– movimento oposto &– (FIGUEIREDO, 2002), na hipermodernidade, Quinn é o personagem cuja vivência (para não falar em intenção) é perder-se na relação com a cidade, perder-se em meio à sua inesgotabilidade de possibilidades. Tem como hábito dar caminhadas errantes pela cidade; estar no mundo significa estar sozinho &– as ruas das grandes cidades são o espaço de indiferença (CERTEAU apud ABREU, 2004).

Descartes, em seu Discurso do Método, já usou, a seu modo, a cidade como metáfora do próprio pensamento3. Aqui, ironicamente, são as deambulações de nosso personagem pela cidade inesgotável que funcionam como metáforas do processo de pensar4: errantes, incertas, plurais. Mais que isso, anticartesianamente, é rompida a divisão interior-exterior à medida que a interioridade dos personagens ganha corpo de certa forma (AUSTER, 1999, p.10): "O movimento era a chave da questão, o ato de colocar um pé adiante do outro e se abandonar ao fluxo do próprio corpo"; neste processo de materialização5, ao confrontar a realidade, espera-se confrontar a si mesmo: “Suas excursões pela cidade, ensinaram-no a entender a conexão entre dentro e fora” (AUSTER, 1999, p.11).

A literatura policial precisou da cidade moderna dos fins do século XIX para surgir6. Na verdade, é desta combinação misteriosa entre diversidade7 e imprevisibilidade, e tentando dar conta deste Outro que surpreende, amedronta, excita, que surgem os romances policias. Todavia, se a cidade é organizada, de certo modo, para servir à trama dos romances modernos, no livro de Auster esta depuração esta bem menos presente. Ao lado da personificação da interioridade, há a presença da cidade como personagem. A cidade não atende de forma passiva à necessidade dos atores, ela se insinua e modifica condições de existência. As escolhas (principalmente as duplicatas) se apresentam muito constantemente nas estórias: em meio aos múltiplos, alguns se repetem (como extinção de criatividade), não há o certo, há o escolhido. Uma cena particularmente intrigante é quando Quinn, que tem como tarefa seguir Stillman (o criminoso), avista dois Stillmans idênticos e, conseqüentemente, tem de escolher entre um deles (se convencendo de que este é o certo): “Agora qualquer coisa que fizesse seria um erro. Qualquer escolha que fizesse &– e tinha que fazer uma &– seria arbitrária, uma submissão ao acaso" (AUSTER, 1999, p. 66).

 

2.2. Indeterminação e individuações

No entanto, desde a solidão positiva8 em que vivem estes personagens hipermodernos, esvaziando-se de si (Quinn mora sozinho, Blue9 habita um quarto fechado sempre de olho em Black) que o papel do detetive é vítima de um certo anacronismo, pois se mantém onde nada mais permanece: a identidade diluída procura preencher seu vazio com o outro. Solucionar o mistério é o mesmo que se encontrar; é a legítima tentativa de ordenação e controle sob a fragmentação do eu e do mundo. Torna-se inexorável aceitar o desafio e seguir as pistas.

A investigação é um ato epistêmico: "O detetive é quem olha, quem ouve, quem se movimenta neste atoleiro de objetos e fatos" (AUSTER, 1999, p. 14). Buscar conhecer os fatos, anotá-los compulsivamente em seu caderninho vermelho, analisar os fatos, são tarefas que Quinn realiza para não perder o controle: “vasculhava o caos dos movimentos de Stillman à cata de algum vislumbre de coerência [...] acreditar na arbitrariedade dos movimentos significava negar os fatos, e isto era a pior coisa que um detetive pode fazer”. Manter-se fiel à identidade de detetive é o melhor que pode fazer para tanto.

Entretanto, não é porque Quinn acredita ilusoriamente que pode assumir outra personalidade e não perder a sua, que ele vá de fato voltar à sua constituição identitária no final. Aliás, a novidade está no fato de que ele efetivamente se perde de vez, em meio ao processo investigativo que conduz. Num dado momento, quando seus planos de vigiar o criminoso e de desvendar seus comportamentos falham, Quinn vê como única saída vigiar a vítima, para assim protegê-la de seu pretenso assassino. Assim, passa a viver num beco em frente ao prédio dos Stillman, onde modifica radicalmente seu modo de vida para conseguir uma vigilância máxima. Sem a que se aferrar, Quinn se atém a seu ato vígil.

“Qualquer coisa a menos que uma vigilância constante seria como vigilância nenhuma” (AUSTER, 1999, p. 45) O excesso de liberdade de escolha, na ausência dos vínculos, dos apoios, leva a liberdade nenhuma10. Sem casa, sem identidade. A prisão que Quinn cava para si ao aferrar-se a fragmentos de ordem é um buraco de onde ele não pode observar as mudanças críticas que dissolvem o caso (o suicídio de Stillman; a mudança de domicílio do casal ameaçado Vírginia e Peter). O mistério não é solucionado, as lacunas permanecem vazias, a única coisa concreta é a sucessão de fatos que permanecem sem conclusão, o próprio processo: 

No início, havia apenas o fato e suas conseqüências. Se tudo estava predeterminado desde o princípio não é a questão. A questão é a história em si, e não cabe à história dizer se ela significa alguma coisa (AUSTER, 1999, p. 9).

Assistimos sim à dissolução da fronteira entre o indivíduo e o mundo, e às tentativas de reconstituição deste indivíduo. Quinn, ao não conseguir findar o “caso Stillman”, se dissolve, se esvazia por completo; como está escrito no último parágrafo de Cidade de Vidro (AUSTER, 1999, p. 102): “Quanto a Quinn, é impossível dizer onde andará agora [...]. Ele sempre estará comigo. E onde quer que tenha desaparecido, eu lhe desejo sorte.”

E em torno de sua reticência cresce a insânia generalizada, de modo que esse homem sem qualidades, ou sem particularidades, na sua esquisitice solitária denuncia a loucura circundante (PELBART, 2000).

Ou seja, a obra nos mostra a diluição e a contestação dos limites; ainda, aceita a indeterminação, o acaso e a necessidade de fazer escolhas. É preciso reconhecer que o deslocamento/desconcertar violento, imposto à subjetividade, extrapola incessantemente os limites que seriam interessantes, a partir da lógica da modernidade, ver respeitados, obrigando-o a transmutar-se em hipermodernidade, onde a lógica do “caos”, do movimento é aceita como predominante. É a própria passagem das unidades fortes às multiplicidades débeis. Nas palavras de Latour (1994, p.127):

Quando abandonamos o mundo moderno, não recaímos sobre [...] uma essência, mas sim sobre um processo, sobre um movimento [...]. Partimos de uma existência contínua e arriscada &– e não de uma essência; partimos da colocação em presença e não da permanência. Partimos do vínculo em si, da passagem e da relação.

Portanto, é partindo deste vínculo onde a própria obra literária não só é fruto de um tempo, como também é uma tentativa para dar conta das questões provocadas por este tempo, que seguimos para um segundo enfoque. Entra em cena a figura do autor.

 

3. Livro II- Fantasmas &– Transcendência

“É o Paul Auster? &– perguntou a voz.
Eu queria falar com o senhor Paul Auster.”
Virgínia, CIDADE DE VIDRO
(AUSTER, 1999, p.13)

Por que Auster cria um personagem como si mesmo em sua obra? Talvez para relativizar os conceitos de “realidade extraliterária” e ficção (“realidade intraliterária”) e, nessa lógica, tratar da questão da autoria; o quão íntimo é a relação do autor com sua obra, como é relativa a individualidade da identidade do autor e do personagem. Assim, confundem-se não só as identidades, mas também os dois mundos, transpondo mais limites.

O autor representa a realização do projeto de purificação da modernidade por meio da unicidade do sujeito e da sua obra (FOUCAULT apud ANTÔNIO, 1998), e confere assim um determinado valor e uma ordem particular a um discurso, que comprova sua autenticidade com o propósito de institucionalizá-lo (sob a preocupação quanto a seu papel transgressor)11.

Por outro lado, fazendo uma breve referência ao que diz Isabelle Stengers (2002), as ciências nascem da invenção de um dispositivo (a experimentação) por permitir a seu autor se retirar da cena. A verdade apresenta-se como uma ficção, uma produção peculiar que se define negativamente por não poder ser enunciada senão de acordo com os parâmetros estabelecidos por aquele dispositivo experimental. No entanto, a postulação da invenção das ciências advém da necessidade de enxergar a realidade como construção, devolver os atores à cena e ainda resgatar a unidade (em termos de articulações na prática) do que foi separado em teoria12 necessidade de aceitar os devires e os contatos.

Não há a priori nenhuma garantia acerca das conseqüências do acontecimento experimental; como uma contingência, ele não se justifica por qualquer ordem transcendente, mas sim pelas ordens locais, pelas alianças performativas produzidas a partir de seu advento. O acontecimento experimental levanta o problema político da co-existência da ciência com outros atores que precisam ser mobilizados.

Outro autor interessante de ser citado é Maingeneau (informação verbal). Primeiro, no que diz sobre discurso constitutivo (caso do discurso científico): o texto encerra seus próprios critérios de avaliação e legitimidade. A segunda estória da Trilogia, Fantasmas, fala exatamente da relação de quem observa um objeto e escreve e de como este objeto é constituído pelo que é escrito sobre ele. Black (com o nome de White) contrata Blue, o detetive, para lhe vigiar e mandar relatórios semanais sobre seus atos, para escrever sua própria história enquanto ele permanecia sentado fingindo escrevê-la. Segundo, no que diz ser ‘gerar textos’ a finalidade da ciência, e se refere à prática científica como prática sobretudo discursiva,pela qual entende “essa reversibilidade essencial entre as duas faces, social e textual, do discurso” &– (MAINGUENEAU, 1989). A ilusão criada que lhe confere autoridade (poder da ficção de Stengers) é a ilusão de que o conhecimento gerado é autônomo (existe fora do mundo discursivo ou político).

Sendo assim, na hipermodernidade, o autor não sai de cena, é incorporado ao texto.

O projeto da modernidade consistia na operação de separar o “sujeito do conhecimento” do “objeto a ser conhecido”; a teoria, como espaço purificado do conhecimento e a prática, como local da ação. Latour (1994) sustenta, no entanto, que jamais fomos modernos, pois, na prática, o sistema moderno de representação do mundo nunca funcionou de acordo com as separações que instituiu. As distinções radicais entre ciência e técnica, natureza e cultura, funcionam apenas como campos de abstrações, mas na prática os híbridos não deixaram de ser criados. Seguindo este rumo, cabe-se criticar não só a separação autor-obra, mas as próprias fronteiras entre as esferas de conhecimento, principalmente ciência e arte13.

Sem pretender, ao fundo, discutir a questão, parto tangentemente do ponto de mais uma indeterminação em que: A obra de arte é uma obra aberta, ou seja, pode receber quantas interpretações forem de desejo de quem a contempla ou comenta. A morte do autor significa a autonomia que adquire esta obra uma vez concluída &– flechas lançadas para o futuro. Enquanto o texto científico, por outro lado, tem a preocupação em fazer justiça ao autor, às referências consultadas, à medida que se busca objetividade. A autoria e as citações têm a função de permitir que seja traçada a genealogia do próprio texto e de seus autores, ou seja, permitem a verificação e a validação dos métodos empregados e dos resultados alcançados (FOUCAULT, 1992).

Antiteticamente, o autor-artista é um fraco, ainda que nobre, pois sua obra o transcende; o autor-cientista, por sua vez, é figura forte, já que luta ferozmente para controlar sua interferência no conteúdo da obra em nome da objetividade, porém, em nome da mesma, é comumente desresponsabilizado. 

A questão que procuro levantar é: há mesmo esta diferença entre os autores e os discursos ou será que nós, cientistas, não temos que levar em consideração o papel do leitor como também enunciador14, como contingência crítica desta articulação?

Ou seja ao lado da pergunta “quanto de nós vai na obra?”, i.e. Blue, ao olhar pela janela do quarto para Black do outro lado da rua, além de ter a cidade (caos) como interposição, acaba se mirando no reflexo da janela e só enxerga a si próprio, preso no quarto; cabe também a pergunta de “quanto nossas postulações não serão utilizadas de forma independente (criativa), por mais que tentemos amarrá-las?” Melhor, a que fins servem nossas verdades?

 

4. Livro III - O Quarto fechado &– Imanência

“A história inteira vem a ser o que acontece ao final.”
Narrador, O QUARTO FECHADO
(AUSTER, 1999, p.219)

O progresso mais fascinante no Quarto Fechado é o conhecimento que o protagonista mostra ter de seu próprio estado. Quinn, Blue e o narrador/protagonista da terceira estória são os personagens principais que são pegos pelo romance, uma cidade de vidro ou um quarto fechado que os apreende, constrangidos pelo controle dos outros.“A história inteira vem a ser o que acontece ao final”, ele diz. Assim menciona e mostra ter consciência de “Cidade de Vidro” e de “Fantasmas”, dizendo que “estas três estórias são finalmente a mesma estória, mas cada uma representa um diferente estágio de meu conhecimento sobre tudo isso”. Esta versão autobiográfica nos mostra sua autognosia.

Esta autognosia só é possibilitada pela imanência, e é aí que pretendo chegar articulando uma fala sobre a hipermodernidade na hipermodernidade. As condições de existência do homem no mundo são as mesmas que preenchem a existência do mundo no homem.

Detetive, escritor, cientista, todos se dobram à necessidade de racionalizar de certa forma, pela representação, o caos que os afeta, mesmo que não seja mais pelos processos de purificação idealizados pela modernidade. Pois, como afirma Pelbart (2000), o próprio capitalismo (um dos pés da modernidade) não é uma forma transcendente, ele é imanente, e como dizem Deleuze e Guatarri (apud PELBART, 2000) “ele define o campo de imanência, e não cessa de preencher esse campo. Mas este campo desterritorializado encontra-se determinado por uma axiomática” . Sendo a axiomática a estrutura que torna homogêneos ou homólogos os eventos variáveis aos quais ela se aplica. O capitalismo, nesta concepção, aproxima-nos desse “limiar esquizofrênico da fluidez absoluta, mesmo se ele é obrigado a multiplicar os axiomas a fim de manter garantida a conjugação dos fluxos que nos escapam” (p. 38)

No entanto, mesmo essa circularidade, perde o domínio em determinados momentos. A lógica do movimento, também é a lógica da indeterminação; e é por ela que se escapa. A própria vivência da indeterminação faz com que admitamos em nossos discursos a existência da mesma, sua inexorabilidade; sendo, contraditoriamente, o ato discursivo uma tentativa de controle, de formular ordenadamente essa desordem, como se déssemos um passo à frente do caos.

Aliás, toda essa narrativa até aqui trata das subjetividades, dos sujeitos, e a idéia da Dobra do Fora15 de Deleuze me agrada pois torna muito imanente essa relação da subjetividade que produz e é produzida pelo ato de conhecer. Voltando a Pelbart, o tema da subjetividade contemporânea recebe as seguintes “determinações”: a forma-homem historicamente esculpida (identidade), as múltiplas forças que batem à porta e põem em cheque esta forma-homem (pluralidade), e a idéia do experimentador de si mesmo (resistência). De certo modo, é delas que procuramos tratar, dando dimensões a sua relação circular. A subjetividade, e não mais o sujeito, é coextensiva ao seu coeficiente de indeterminação e às metamorfoses daí advindas.

 

4.1 O homem não é nada mais do que o que ele acumula e transforma ao longo do tempo.

A própria escolha de uma obra de arte para falar de um tema da ciência demonstra esta possibilidade metatextual, das vontades do autor (eu) se imprimindo no texto no desejo de se servir de todas as possibilidades. A divisão em três partes fazendo referência à própria obra tem este mesmo caráter, de comunicar além. A estória é a ficção que fala do tempo; as teorias científicas e a obra literária são a transcendência, reflexo da necessidade de dar conta de seu tempo; e a imanência é a autoconsciência. 

A autoconsciência, portanto, tem de ponderar sobre as questões. Já que nada é certo, tudo é questão de crenças, de posicionamento e de escolhas, há de se fazer a escolha certa, i.e., a escolha ética.

Não adianta falar de questões meta-éticas, quando o prefixo “meta” (junto com ao transcendente) já havia sido criticado.

Suprimida a busca da libertação, desfeitas as amarras, resta a inexorável condição de ser(d)es livres. Ou não. Entender por sua vez os limites, impostos pelo indeterminação, do quarto que se fecha entorno de nós (ou onde nos trancamos16?), da cidade de vidro que nos reflete, dos fantasmas que nos perseguem. Colocar-se neste quadro, é aceitar a posição de ator que lhe é devida; e perceber que a hipermodernidade, ao invés de ser o lugar onde não mais haveria limitações, o futuro torna-se o que limita (VAZ, 2003).

Especificamente, ou admitimos o caráter deliberado de nossas teorizações, a não-existência suprema do texto como objeto não-autônomo ou obra autônoma (a possibilidade de múltiplas interpretações), e com eles, portanto, a necessidade de tomarmos a frente combativa, não só construir eticamente (presente) mas garantir seu aproveitamento (futuro), ou não fizemos a escolha certa.

“O estilo de vida urbano moderno-contemporâneo leva ao paroxismo os mecanismos universais de diferenciação, base da vida social (pela interação intensa e permanente entre atores variados) (PELBART, 2000)” . Por sua vez, o enfraquecimento da dimensão holista e hierarquizante da sociedade acompanha o forte desenvolvimento das ideologias individualistas. São dois pontos que me fazem pensar sobre o poder da autoridade, que se dissolve, desaparece, mas não se extingue. Isto é, se parte da própria ciência este tipo de reflexão sobre, por exemplo, a necessidade do pensamento crítico, que certeza podemos ter de que estas palavras não são reticentes? Creio que nenhuma.

 

5. Conclusão

 

Circularidade

Sobre a realidade do próprio trabalho, sou levada a pensar que hipermodernidade não extingue a existência de pensamentos hegemônicos: aceita-se a diferença até onde ela parte do mesmo princípio de aceitação da diferença que você. O modo contemporâneo postula a passagem das unidades fortes para as multiplicidades débeis, mas isso continua sendo uma postulação. A despeito disso, persiste uma tangente, no final dos romances, os personagens escapam à tirania do autor. Quando este se coloca em cena, traz sua realidade para o baile da ficção, acaba por possibilitar seu questionamento. A crítica é estimulada pelas descentrações produzidas no processo; os reveses, a resistência. Mas ainda assim, a necessidade de dar conta deste caos &– seja aceitando ser detetive, seja criando um texto (literário ou científico) &– é premente. O que modifica dos primeiros protagonistas para o último é que este tem consciência, e esta é uma consciência que não o leva necessariamente a resistir por resistir, mas a fazer escolhas, ao emprego consciente de sua liberdade.

Caminhei até a beira dos trilhos muitos minutos antes da hora [...] Uma a uma, rasguei as páginas do caderno, amassei-as na mão e joguei em uma lata de lixo na plataforma. Cheguei à última página bem na hora em que o trem ia partir (AUSTER, 1999, p.337).

A propósito, a própria forma de ordenação/controle é posta em questão quando Auster supera a fronteira obra-autor, colocando-se como personagem de sua estória ou problematizando a questão autoral ou ainda produzindo intertextualidades (do mesmo tipo personagens-autores-obras) diversas.

Destroçam-se as normas, assume-se a diferença; mas o que será dos que não destroçarem as normas ou assumirem as diferenças? Será que na nossa posição de esclarecidos somos capazes de aceitar estas escolhas? 

Em nossa lógica ascensionista (tornar-nos referenciais de referenciais, de referenciais ad eternum), a busca pelo real, seja em si mesmo, seja em sua complexidade, nunca deixa de receber uma explicação. A sentença de Bacon - “saber é poder” - parece imprescritível. O maior crime da modernidade enquanto produção de conhecimento foi a decapitação do ser: divisão entre as esferas do ser e do dever ser.

Com a mesma face que afirmo a necessidade de levarmos a sério as considerações éticas em nossos discursos, digo que nunca realmente esta será uma máxima verdadeira. A questão de “quem guardará os guardadores e controlará os controladores” não deve mais obedecer a tal lógica ascensionista; não deve nunca mais deixar de ser formulada.  

Voltando ao início... destroçam-se as normas, assume-se a diferença. A diferença vira norma; mas o que será dos que não destroçarem as normas ou assumirem as diferenças? Será que, em nossa posição de esclarecidos, somos capazes ou mesmo devemos aceitar tais escolhas? 

Se, Latour (1994) constrói sabiamente a idéia de que nós nunca fomos modernos, tão pouco deixamos de sê-lo. As paredes da cidade são de vidro: vidro frágil, transparente, especular, fabricado; nem por isso, menos real. Faço minhas admoestações sem nunca deixar de percebê-las como recomendações. Os fantasmas modernos (verdade, liberdade,) nos perseguem. Estamos presos à nossa solidão, no quarto fechado. Nada passa do movimento obstinado do próprio pensamento (próprio) que se põe a girar como um pião enlouquecido tentando apreender a si mesmo.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Maria Carolina Gomes Barbalho
E-mail: maria.nystal@gmail.com

Recebido em: 11/06/2007
Aceito para publicação em: 07/07/2008
Acompanhamento do processo editorial: Ariane P. Ewald

 

 

Notas

1 Aqui, tanto ‘personagens’ como ‘obra’ querem referir a um sentido especificamente generalizado. Uso personagem, mas a intenção é dizer atores; no caso: personagens do livro, autores, leitores, comentadores.
2 Entendo obra como ato, além de livro (objeto de valor) e texto. Durante o resto do trabalho, desdobrarei análises tendo mesmo em vista e seguindo estas outras vertentes.
3 Construção ordenada segundo a razão universal e solitária de um único e esclarecido arquiteto-filósofo, o eu do cogito, que rejeita a contingência do acaso, do tempo da história.
4 O ato de caminhar vai além das representações gráficas, pois CERTEAU (2000) encontra em tal ato a primeira definição de espaço de enunciação. Cabe ao caminhante atualizar, mudar, legitimar, desconsiderar, transformar, escolher, criar caminhos, de acordo com sua necessidade e sua vontade.
5 Para mais informações ver RHEINDORF, 2006.
6 O surgimento de uma civilização preponderantemente urbana após a Revolução Industrial é, de fato, comumente considerado uma das circunstâncias que possibilitaram o surgimento da literatura policial (ABREU, 2004). O homem na multidão de Edgar Allan Poe (1850) é considerado o primeiro romance do gênero.  O folhetim, precursor do romance policial, põe em cena personagens saídos das camadas populares da sociedade; os dilemas e tragédias por ele retratados são os do homem comum. Junto com a representação do homem comum, fornece uma representação inovadora do ambiente onde este vive e se movimenta, a grande cidade. A cidade surge como um emaranhado de ruas onde o homem se perde e ao qual ele busca dar sentido. A cidade não mais se dá a ver com facilidade; ela se torna mistério, enigma, labirinto.
7 Ao mesmo tempo em que multiplica as possibilidades de contato e associação entre indivíduos, a grande cidade também torna esses contatos e associações mais transitórios e menos estáveis.
8 Subjetividade mais resistente aos inúmeros aparelhos de captura. PELBART, 2000 cita Katz CHAIM, 1996.
9 Protagonista da segunda estória, Fantasmas.
10 Poderia ser feito um paralelo com a transição da sociedade de disciplina para a sociedade de controle. Em vez de disciplinar os cidadãos com identidades sociais fixas (primeiro), o novo regime social (segundo) busca o controle do cidadão como um qualquer, ou como um suporte flexível para infinitas identidades.
11 “Os conceitos de autoria e dos instrumentos que regem os seus direitos fundamentam-se na idéia da individualidade e na identidade formalizada do autor e na sua (suposta) objetividade, assim como na concepção de que a obra ou a produção intelectual e artística é única, original, íntegra e permanente; na separação entre autor e obra (sujeito versus objeto); na institucionalização das relações com o Estado e com o mercado; na aceitação e na obediência aos contratos éticos, sociais e jurídicos pertinentes.”
12 Para maiores esclarecimentos: LATOUR. Jamais fomos modernos, 1994.
13 Atento para relação com o abismo maior e mais severo entre natureza e cultura.
14 Qualquer comunicação escrita é frágil, pois o receptor não partilha a situação de enunciação do locutor. O leitor tem papel determinante, à medida que é através dele que o ato discursivo entra em movimento. Como Eco sublinha, existe uma reticência essencial nos textos literários, a leitura deve fazer surgir todo um universo imaginário a partir de índices lacunares e poucos determinados. fenômeno de decifração intrinsecamente instável. A leitura constrói caminhos sempre inéditos a partir da disposição de índices; não permite ter acesso a uma voz primordial, mas apenas a uma instância de enunciação que é uma modalidade do funcionamento do texto.
15 O Fora pode ser concebido como um campo onde as forças existem em plena velocidade e intensidade, a Dobra seria um encurvamento desacelerado do campo que forma assim um interior. (PELBART, 2000)
16 O título em inglês é Locked Room e a decisão em se trancar no quarto é do personagem.

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