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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.3 Rio de Janeiro dez. 2008

 

ARTIGOS

 

A educação como dispositivo de proteção às crianças e adolescentes segundo práticas do UNICEF: problematizações foucaultianas

 

The education as device of protection to children and adolescents according to practices of the UNICEF: argumentation by Foucault

 

 

Flávia Cristina Silveira Lemos *

Professora Doutora Adjunta de Psicologia Social da Universidade Federal do Pará/UFPA - Belém, PA, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é parte das análises problematizadoras que realizamos no doutorado em História e Sociedade sobre as políticas dirigidas às crianças e adolescentes, no Brasil, durante a redemocratização, utilizando o método genealógico de Michel Foucault. Levantamos várias categorias de análise, porém, apresentaremos neste texto apenas as que são referentes ao dispositivo educação, de acordo com as práticas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) dirigidas às políticas de proteção às crianças e adolescentes, no Brasil. O UNIEF é uma agência de cooperação internacional ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), atuando em parceria com outras agências da ONU, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Estas agências têm ampla ação nos países considerados em desenvolvimento. Os discursos-acontecimentos do Unicef disparam práticas de normalização, de disciplina e controle, paralelos às estratégias de proteção de crianças e adolescentes no Brasil.

Palavras-chave: UNICEF, Educação, Dispositivo, Normalização, Crianças e adolescentes.


ABSTRACT

This article is part of the analysis done as a result of issues raised during my doctorate in history and society on the policies directed at children and adolescents in Brazil, during the democratization process, by using the genealogical method of Michel Foucault. We have several categories of analysis present in the text, however, only those relating to education, according to the practices of the United Nations Children's Fund (UNICEF), aimed at the policies of protection for children and adolescents in Brazil are highlighted. UNICEF is an agency of international cooperation related to the United Nations, acting in partnership with other UN agencies such as the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. These agencies have extensive action in the developing countries. The speeches events of UNICEF- set in motion practice of standardization, discipline and control, paralleling strategies for the protection of children and adolescents in Brazil.

Keywords: UNICEF, Education, Device, Normalization, Children and adolescents.


 

 

A educação como dispositivo de proteção às crianças e adolescentes segundo práticas do UNICEF: problematizações foucaultianas1

 

Introdução

Este artigo é resultado das interrogações que fizemos em nossa tese de doutoramento em História e Sociedade com relação às práticas dirigidas às crianças e adolescentes, no Brasil, do UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) durante o período de redemocratização. Analisamos diversos relatórios do UNICEF sobre a situação da infância no Brasil, utilizando as contribuições teóricas e metodológicas de Michel Foucault. Nesses relatórios destacamos várias categorias de análise, entre elas a de uma concepção de educação escolarizada. Apresentaremos os discursos do UNICEF referentes à educação no Brasil, de 1990 a 2003. Para construir nosso foco de análise desses documentos, apresentaremos ao leitor conceitos foucaultianos que foram usados ao longo de nossas interrogações dos enunciados desta agência multilateral de ampla atuação no país.

 

1. Categorias foucaultianas de análise

1.1. Sociedade Disciplinar

Um dos conceitos foucaultianos centrais em nossa análise foi o de tecnologias disciplinares, a partir das problematizações realizadas pelo autor, ao pensar a sociedade moderna. Ao final do século XVIII, as relações de poder seriam exercidas através da utilização de diferentes procedimentos e aparelhos, deslocando-se das relações de soberania para o investimento dos corpos, com o objetivo de adestrá-los, torná-los úteis e dóceis (FOUCAULT, 1999).

Até então, na “Sociedade de Soberania” prevaleciam relações de poder centradas na figura do soberano, que poderia punir os corpos com suplícios e torturas. Nessas sociedades, era mais importante decidir sobre a morte do que gerir a vida. A força do soberano inscrevia-se nos corpos dos súditos através dos rituais de penalização. Qualquer ato de transgressão era considerado um crime contra o rei. Porém, os reformadores humanistas passam a questionar a arbitrariedade deste poder, propondo outros modos de punir, com objetivos de ressocialização (FOUCAULT, 1999).

Este é o período em que o Capitalismo está aparecendo e demandando um homem adaptado e submetido às novas exigências de um trabalho mecânico e disciplinado. Tratava-se de produzir cada vez mais, em menos tempo e com qualidade (FONSECA, 2003).

O dispositivo de poder soberano era descontínuo e não alcançava toda a sociedade em um nível microfísico. Já as tecnologias disciplinares nascentes propiciavam uma extensão capilar, de gestão do detalhe, da minúcia, cobrindo todo o corpo social e instaurando uma sociedade de vigilância. Além da vigilância, as tecnologias disciplinares possibilitavam não só punir com correção, mas principalmente se anteciparem aos desvios de comportamentos, pois operavam em instituições sociais nas adjacências da esfera jurídica, como a escola, a família, o exército e a fábrica (FOUCAULT, 1999).

Era a existência do indivíduo que passaria a ser ordenada detalhadamente, sendo avaliada constantemente através de instrumentos de controle contínuos, sob forma de punição e recompensa, objetivando modelar e transformar os indivíduos a partir de normas sociais (FOUCAULT, 1996). Segundo o pensamento de Foucault (1999), na Sociedade Disciplinar, novas tecnologias emergiriam, incidindo sobre os corpos, mergulhando-os em um campo político. A partir de então, os indivíduos não seriam mais punidos em função dos seus atos, mas por transgredirem as normas. A vigilância seria exercida mais a partir da norma do que pelas instâncias judiciárias.

A disciplina não se confundiria com uma instituição, mas seria uma técnica que poderia ser apropriada e utilizada pelas instituições sem se reduzir às mesmas. A disciplina operaria sobre o corpo a ser exercitado e treinado de modo contínuo e regular para que suas aptidões fossem aumentadas e suas possibilidades de resistência e subversão fossem diminuídas. Toda uma tecnologia política de observação, registro, exame, comparações, hierarquizações, classificações de normal e anormal, sanções normalizadoras, controle do tempo e dos indivíduos no espaço emergia. O campo de ação dos mecanismos disciplinares é o do controle social dos comportamentos sutis, dos pequenos desvios que não chegam a configurar delitos. A intervenção disciplinar está ligada à intensificação da observância das regras (FOUCAULT, 1999).

Desta forma, gerir o detalhe era a tônica da sociedade disciplinar. Nesta empreitada, intensificou-se uma utilização crescente do manejo de táticas de poder para ordenar as multiplicidades. O que estava em pauta era a retirada da violência dos suplícios, substituída pelas técnicas disciplinares que agiriam muito mais pela incitação de certos comportamentos dirigidos ao aumento da produtividade, imanentes à condição de docilidade e à submissão às práticas de adestramento disparadas pelas instituições disciplinares.

Nesse projeto disciplinar, instituições como a escola desempenhariam um papel central na produção de subjetividades docilizadas e produtivas, segundo Foucault (1999) e Donzelot (1986). A pedagogia moderna era construída e reproduzida nas práticas escolares de controle e disciplina dos corpos, no interior dos muros da escola. As técnicas disciplinares encontravam na educação escolarizada um espaço de visibilidade e dizibilidade ao serem acionadas continuamente. “O sistema escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário. A todo momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor, quem é o pior” (FOUCAULT, 2005, p. 120).

1.2. Biopolítica e processos de normalização

Além das estratégias disciplinares que individualizam os corpos, Foucault (1988; 2002) também problematizou um outro modo de agenciamento das relações de poder imanente ao poder disciplinar, que ele denominou de biopolítica & governo da vida. Esta segunda tecnologia operaria junto às disciplinares, no entanto, produzindo totalizações, ou seja, estabelecendo comparações dos indivíduos frente a um modelo de referência, distribuindo-os de acordo com a proximidade ou o afastamento desses modelos.

Essa outra tecnologia descrita por Foucault (1988) aparece por volta da metade do século XIX, com a emergência do capitalismo e dos Estados modernos. Nesse momento, há um vertiginoso crescimento das cidades; concomitantemente, aparecem novas disciplinas, como a Estatística, a Demografia, a Economia e a Medicina Social, a vida torna-se um valor, devendo ser gerida, ordenada, garantida, governada, administrada. Os corpos tornam-se alvos de intervenção contínua, sendo mergulhados em campos de visibilidade traçados a partir da emergência de novos saberes e de táticas, tais como: a Economia enquanto uma ciência do governo, uma disposição dos problemas através de um cálculo e a Estatística, estabelecendo medições de supostas regularidades presentes na população através de cálculos probabilísticos.

Desta forma, para governar era preciso conhecer, coletar informações, gerar saberes sobre a população, tomar o homem como objeto através de disciplinas como as Ciências Humanas. Enfim, produzir tecnologias para que o Estado operasse eficientemente seu projeto de racionalização política, justificado pela idéia de que a intervenção estatal se dava em função do bem-estar da sociedade, da promoção da felicidade das pessoas, operando através de uma ética utilitária racional (DREYFUS; RABINOW, 1995).

Toda essa regulação utilitária da vida teve os seus dispositivos de atuação baseados em normas. E é segundo normas prescritas por uma moral do dever ser que se fará o exercício do controle, da correção dos corpos, possibilitando classificações, comparações, avaliações. Ampliar os sistemas de proteção é a problemática da gestão técnica da vida, do biopoder. A idéia de vigiar e reformar em nome da saúde e da proteção está na base da biopolítica pautada nas normas e, conseqüentemente, nas anormalidades ou possíveis anormalidades que gerenciam em processos de educação, reabilitação e ressocialização.

Governar passou a ser sinônimo de gerir riscos, através do saber médico-psicológico, operando cálculos de probabilidades, formando banco de dados com as características da população separadas por uma série de variáveis consideradas importantes, a partir de um modelo prévio e com gráficos de comparação de índices (por gênero, por classe social, por etnia, por raça, por faixa etária, por bairro, por cidade, por região, por país), ou seja, por cálculos demográficos.

O século XX seria pródigo na ampliação sem igual dos dispositivos de normalização social. Após a II Guerra Mundial, com a expansão do capitalismo neoliberal, este processo de normalização se acentuaria sem precedentes através do que Deleuze (1992) denominou de “Sociedades de Controle”. A crise das disciplinas teria como efeito a saída da vigilância do campo fechado das instituições, tendo se ramificado por toda a sociedade. Conhecer os detalhes dos acontecimentos e administrá-los, levantando as tendências e administrando-as.

Para Deleuze (1992), as “Sociedades de Controle” se diferenciariam das disciplinares e de normalização devido a uma intensificação do controle em meio-aberto; da extensão dos processos de comunicação, sobretudo, através da mídia e de seus dispositivos de homogeneização da cultura e dos modos de existência; da ampliação da gestão empresarial, inundando todas as esferas da vida através do “marketing”, inclusive no campo educacional, em que as informações teriam sido mercantilizadas; das tecnologias digitais e expansão das telecomunicações que teriam produzido a ampliação dos mecanismos de controle mais sutis e modulares; das mudanças no capitalismo, em que este passou a funcionar, em sua versão neoliberal, como fluxo de capital instantâneo flexível de cunho especulativo.

Enquanto as disciplinas eram moldes que fixavam os objetos e os modelavam na identidade do indivíduo, os controles seriam modulações contínuas, em que a flexibilidade é requisitada, tudo se torna fluido e líquido, podendo ganhar formas diversas e provisórias. A convocação da mudança permanente é um efeito das “sociedades de controle”. Deleuze (1992) chega a afirmar que nas “sociedades de controle” não se termina nada nunca, viveríamos endividados.

Porém, o controle em meio-aberto tem sido acionado, no Brasil, através de ações preventivas, classificadas por Castel (1981) como gestão de riscos. Gerir riscos seria, sobretudo, vigiar, prevenir por antecipação a ocorrência de um acontecimento. O que permitiria a classificação de certos grupos como estando “em risco” seria um processo de contabilização de fatores, de desvios dos corpos diante das normas estabelecidas socialmente.

A produção da categoria “em risco” seria o efeito de um entrecruzamento de práticas políticas, culturais, econômicas e sociais. Nos processos de gestão de risco, uma das tecnologias utilizadas para computar os fatores de risco foi o cálculo de probabilidades através da estatística. Conforme Ewald (1993), a entrada da estatística nas ciências humanas através do cálculo probabilístico permitiu objetivar os acontecimentos como fatos em si, destituídos de história, onde o número faria sentido por si mesmo. Uma acumulação de fatos de ocorrência repetida de modo regular é o que contaria para a estatística.

Os factos são ordenados por categorias. Possuem nomes: nascimento, morte, acidente, avaliação. Mas de acordo com um uso rigorosamente nominalista da categoria. Porque a categoria se encontra inteiramente dispersa nos factos que agrupa, nas pequenas unidades discretas que vêm dispor-se nela. [...] Uma categoria não designa nenhuma unidade explicativa, é um conjunto, uma colecção indefinidamente aberta de factos que nunca são idênticos a si próprios. Como um substantivo sem substância, uma exterioridade sem interioridade (EWALD, 1993, p. 92).

O quadro estatístico é baseado em uma média e em desvios-padrões da mesma e, ao ser aplicado no estudo das ações humanas, parte da ficção de um homem médio produzido em cada época, como efeito de uma objetivação da sociedade através do cálculo de probabilidades. Este cálculo é efeito de uma sociedade gerida para a promoção da segurança, computando os riscos que cada indivíduo representa para o outro. Portanto, a gestão do risco individualiza, mas a partir de uma individualidade média. É no início do século XX que a normalização passa a ser desejada e programada na sociedade, se tornando uma exigência social. Após a I Guerra Mundial, ela é prevista a partir de uma homogeneização de técnicas, costumes, linguagens, códigos, modos de consumo. A existência da norma traça e potencializa um processo de comunicação dentro de uma rede comum e de unificação de padrões.

Deste modo, normalizar é instituir uma linguagem a partir de uma nova relação entre as palavras e as coisas. E não há instituição de normas sem um processo valorativo dos objetos, situado no tempo (EWALD, 1993). Os riscos seriam avaliados e distribuídos por peritos, por uma burocracia centralizada a partir de pareceres de intelectuais, os peritos da norma. Mas o que efetivamente seria a norma? Como é produzida? Ewald (1993, p. 124) a define como uma medida, uma realidade política, uma regra que vale para toda uma sociedade. Ele esclarece:

[...] A medida comum é uma realidade eminentemente política. É aquilo a partir do qual um grupo se institui como sociedade, aquilo que define os seus códigos, que a pacifica e lhe fornece os instrumentos da sua regulação. [...] Sendo da ordem técnica, as práticas da medida comum são susceptíveis de descrição positiva. Nelas vêm articular-se regimes de saber e dispositivos materiais. Entendida como um estudo das práticas da medida, à filosofia política caberia pensar como é que, através de que lutas e segundo que processos, técnicas de saber e de poder vêm a produzir algo como uma regra ou um conjunto de regras que hão de valer para uma sociedade dada e para um certo período da sua história, como código comum, princípio de federação e de associação.

São essas normas que vão ser parâmetro para a construção de leis, de relações institucionais, de produção de saberes, de planejamento de políticas públicas e educacionais como padrão de comportamento para as crianças, para as famílias e para as mulheres, como podemos acompanhar nos relatórios do UNIEF, no Brasil.

1.3 Crianças e adolescentes como objeto de conservação e governo

E o que tornaria a infância prioridade nas intervenções preventivistas a partir de uma perspectiva biopolítica? Segundo Castel (1981), a infância foi o alvo principal destas políticas com a apropriação do discurso evolucionista de Darwin, transposto para o campo das ciências humanas de diversos modos, entre eles os das concepções de desenvolvimento da criança e do adolescente nas dimensões biopsicosociais, que tiveram ampla repercussão e foram capturadas por práticas de governo dos corpos, ganhando visibilidade através de projetos e programas voltados para a população infanto-juvenil.

As crianças e adolescentes vão sendo concebidas enquanto pertencentes a uma fase especial e específica, como Áries (1978) e Donzelot (1986) demonstraram, exigindo cuidados especiais e prioridade nas verbas destinadas a todos os setores: educação, saúde e assistência social, para que se tornassem adultos civilizados e produtivos.  “A noção de infância trouxe para o centro do humanismo a idéia de que todos podem ser moldados, que a consciência só pode ser adquirida fora de nós, por meio de agentes especiais, e que não vivemos sem alguém que olhe por nós” (PASSETTI, 2003, p. 149).

A preocupação com crianças e adolescentes sob a forma de políticas dirigidas a esta clientela foi delineada a partir de bases teóricas e técnicas concretas. Sendo que estas políticas foram construídas à medida que objetivaram as crianças e adolescentes como objeto de investigação e de intervenção simultaneamente. Hoje, parece natural tomar a infância enquanto uma fase da vida, como um período de desenvolvimento. No entanto, a criança teria sido infantilizada pelas práticas de pedagogos, de médicos, de psicólogos e trabalhadores sociais, de acordo com Donzelot (1986).

Além de ser vista como um ser em desenvolvimento, a primeira infância seria concebida como a principal fase de investimento e cuidados, de acordo com diversos especialistas. Trata-se de um momento em que estaríamos preparando o adulto, produtivo e submisso, como relatou Foucault (1999). A criança é percebida pelo que ela ainda não é, pela falta, pela carência e pela ausência de razão. Ela é vista em suas possibilidades de desenvolvimento cognitivo, emocional, social e biológico que poderão ser atualizadas quando adentrarem ao mundo das responsabilidades do adulto.

O que denominamos descoberta da infância é uma invenção recente que emergiu com o nascimento de instituições como a escola, com o aparecimento de leis e de saberes que a constituem, a cercam e a tomam como objeto de conhecimento e de intervenção, ao mesmo tempo em que a produzem enquanto uma maneira específica de ser (RAGO, 1985).

Portanto, a criança infantilizada é o produto do poder disciplinar e biopolítico, amparado pelos peritos da norma e pelo surgimento de uma rede de proteção do Estado e por inúmeras instituições caritativas, filantrópicas e organizações governamentais.

1.4 Práticas do UNICEF no Brasil: extratos internacionais na gestão das políticas dirigidas às crianças e adolescentes

O UNICEF é um organismo internacional com ampla atuação no Brasil, tanto em assessorias, como em financiamentos de projetos e mesmo de intervenção direta na assistência à infância, no país. É uma agência ligada às Nações Unidas (ONU), criada durante a II Guerra Mundial, em 1946, para oferecer atenção às famílias dos soldados que participaram desta guerra.

Após o término da guerra, esta atuação amplia-se, de acordo com Rosemberg (2003). Para esta autora, as ações do UNICEF passam a objetivar a saúde materno-infantil e, depois, a promover a proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Porém, Rosemberg (2003) destaca que, fundamentalmente, o UNICEF intensificou práticas de integração das populações excluídas, diminuindo os conflitos sociais através de políticas compensatórias produtoras de consensos de maneira apolítica.

O discurso do UNICEF estava assentado na atuação do serviço social como agente de produção da harmonia social, baseando-se na filosofia positivista e nos movimentos sociais americanos de cunho funcionalista (ARMMANN, 2003). Para tanto, elegeu a primeira infância como principal fase do desenvolvimento do ser humano, que necessitaria de cuidados especiais, em uma perspectiva preventiva.

No Brasil, a pré-escola infantil de massa foi criada por ações do UNICEF e da UNESCO, também uma agência da ONU, como dispositivo de integração social e como uma política de cunho mais assistencial do que do âmbito da educação (ROSEMBERG, 2003):

Durante a década de 60, o UNICEF e outras agências ligadas à ONU, como a UNESCO, ampliavam sua atuação em relação à infância e reconheciam sua atuação em relação à infância e reconheciam, ainda, a importância da “educação como preparação para a vida”. [...] Aumentava a crença na importância de se preparar crianças e jovens para contribuírem mais tarde para o desenvolvimento de seus países (KRAMER, 2003, p. 77).

Segundo Kramer (2003), os documentos do UNICEF ressaltam a importância do cuidado da infância como política de promoção do progresso social. A autora menciona que uma das preocupações do UNICEF é a proteção à criança como o principal vetor de desenvolvimento de uma nação, acionando estratégias de ajustamento social, apaziguando os conflitos sociais. Neste projeto, os especialistas deveriam ser mediadores das práticas de inclusão normalizadora das camadas populares. Os peritos seriam os facilitadores da gestão das populações, concentrando esforços para manter a estabilidade social, integrando os indivíduos dispersos e rebeldes a esta lógica (ARMMANN, 2003).

Para essa empreitada, os articulistas das agências multilaterais apregoam a necessidade de ruptura com tradições, modos de vida, crenças e atitudes através de uma educação que apresente novos valores, como os de “colaboração” e os de “responsabilidade”, de acordo com Pareschi (2002). Esta autora ressalta que os organismos multilaterais passaram a contratar o trabalho de cientistas sociais que operassem o lugar de facilitadores da ruptura das expressões culturais e sociabilidades destes grupos que impediam o projeto de modernização e desenvolvimento capitalista proposto pela ONU e suas agências. A idéia era assegurar o controle social através de uma educação para a paz e do convite à participação social de maneira apolítica.

Podemos perceber a extensão das ações do UNICEF nos países da América Latina, entre outras nações concebidas como atrasadas e pobres, imputando este atraso à falta de recursos e projetos de assistência às crianças e à juventude. Desta forma, o UNICEF inicia uma cruzada pela proteção à infância como estratégia de redução da pobreza destes países, na tentativa de modernizá-los com fins políticos e econômicos claros (ROSEMBERG, 2003).

Para executar tal objetivo, o UNICEF cria escritórios sediados nas principais capitais dos estados de seus países sede. Passa a desenvolver estudos detalhados sobre a situação da infância e condições de vida e assistência das crianças e adolescentes pobres pertencentes aos países considerados em desenvolvimento, publicando relatórios, organizando seminários e eventos de grande porte para discutir e divulgar seus pressupostos de proteção e integração social das populações empobrecidas, focando, em especial, a primeira infância e, por fim, disponibilizando a assessoria de seus técnicos para o planejamento e implementação de projetos voltados para as crianças e os adolescentes das camadas populares (ROSEMBERG, 2003).

A partir destas considerações, passamos a apresentar a análise de alguns relatórios publicados pelo UNICEF a respeito da situação da infância brasileira referentes à educação escolarizada.

1.5. O Unicef e uma concepção de educação escolarizada como dispositivo de gestão de crianças e adolescentes

Os relatórios do UNICEF apresentam a escola como uma instituição fundamental na promoção do desenvolvimento da criança. Para os técnicos deste organismo internacional, a educação escolarizada deveria ser iniciada na primeira infância.

O UNICEF publica relatórios sobre a situação da infância brasileira com uma avalanche de dados estatísticos e uma análise minuciosa de indicadores ligados à educação escolarizada; também financia e incentiva publicações de livros juntamente com a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, também ligado à ONU, com escritórios no Brasil e forte intervenção na educação brasileira). Podemos encontrar nestes livros uma preocupação em tornar a escolarização, na primeira infância, fundamental para a promoção do desenvolvimento, como podemos observar no texto abaixo:

A expansão e o aprimoramento da educação e cuidado na primeira infância constituem uma das seis metas fixadas no Marco de Dacar, cujos compromissos foram assumidos por 189 países, incluindo o Brasil, reunidos no fórum Mundial de Educação para Todos, realizado em Senegal, em 2000. O destaque dado à educação nessa faixa etária, tornando-o objeto de uma meta específica, decorre do reconhecimento da importância das experiências vividas nos primeiros anos para o desenvolvimento e a aprendizagem ao longo de toda a vida (WERTHEIN, 2005, p. 07).

Para Werthein (2005), em prefácio a um livro publicado pela UNESCO, a ciência produziria evidências, entre elas, a de que a educação infantil é imprescindível para a promoção do desenvolvimento de crianças de classes desfavorecidas. No entanto, nos perguntamos por que a educação infantil é recomendada de modo especial para as crianças das camadas populares. Trata-se de educação, de proteção, assistencialismo e/ou controle precoce e preventivo desta população tomada por estes organismos como carente e necessitada de estímulos complementares aos oferecidos pelas suas famílias de origem?

Para os consultores da UNESCO e do UNICEF, educar e cuidar são termos inseparáveis, por isto, eles prescrevem a utilização da definição de “Desenvolvimento da Primeira Infância”, propondo que haja, na educação infantil, a promoção do desenvolvimento físico, emocional, social e cognitivo da criança, denominado pelos especialistas como paradigma holístico, pautado na preocupação de desenvolvimento integral da primeira infância.

Percebemos o delineamento de uma política de controle social cada vez mais cedo através da educação infantil de 0 a 6 anos. Foucault (2002) já havia nos alertado para a constituição, na sociedade contemporânea, de um primado de práticas voltadas para a primeira infância, a partir do dispositivo pedagógico e disciplinar, produzindo subjetividades a partir de padrões ideais. As proposições foucaultianas são confirmadas ao analisamos as práticas disparadas pelos discursos do Relatório Jacques Delors (UNESCO, 2004), que concebe a educação como um tesouro a descobrir. Ainda não estaríamos utilizando todo potencial da educação enquanto dispositivo de produção de valores homogêneos, de redução de conflitos sociais, de produtividade e de justiça. O fragmento discursivo, abaixo, extraído do Relatório Jacques Delors (UNESCO, 2004, p. 31) nos dá um exemplo concreto desta prática:

Fundamentalmente, a UNESCO estará servindo a paz e a compreensão entre os homens, ao valorizar a educação como espírito de concórdia, de emergência de um querer viver juntos como militantes da nossa aldeia global que há que pensar e organizar, para bem das gerações futuras. Deste modo, estará contribuindo para uma cultura de paz.

Porém, a visão da conservação das crianças e da potencialização de sua produtividade e da fabricação de uma subjetividade homogeneizada através do dispositivo educacional já estava sendo prescrita e difundida, desde a segunda metade do século XIX, por médicos higienistas, por educadores e psicólogos ambientalistas. Estes especialistas subsidiavam suas práticas versando sobre a importância da educação na teoria de evolução darwinista, transposta para as ciências humanas e nas visões de crianças e adolescentes como objetos de modelagem de comportamentos através de técnicas de condicionamento.

De acordo com Foucault (2005, p. 104), “a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer”. Deste modo, podemos observar que as ações disciplinares se voltam para a potencialização de um modo de vida que deverá ser estimulado, tal como prescreve o Relatório Jacques Delors (UNESCO, 2004, p. 20): “não deixar de explorar nenhum dos talentos que constituem como que tesouros a descobrir no interior de cada ser humano”.

Também, há um objetivo disciplinar de agir sobre o devir, sobre o vir a ser dos corpos, operando, desta forma, sobre os modos de vida futuros, que deveriam se tornar compatíveis com as normas sociais e não desviantes das mesmas. Esta afirmação foucaultiana fica explícita no discurso a seguir: “é o futuro que está em causa e a educação pode, precisamente, contribuir para a melhoria do destino de todos e de cada um de nós” (UNESCO, 2004, p. 28). E, “a educação deve, pois, adaptar-se constantemente a estas transformações da sociedade, sem deixar de transmitir as aquisições, os saberes básicos frutos da experiência humana” (UNESCO, 2004, p. 21).

Em vários momentos, no Relatório Jacques Delors (UNESCO, 2004), faz-se menção à necessidade da educação funcionar como um dispositivo importante no capitalismo neoliberal, se tornando um mecanismo modelador de “espíritos”, formados a partir das novas demandas de uma sociedade que os especialistas que redigiram este relatório nomearam de “aldeia global”.

Guattari (1996, p.16) já havia destacado, em seus escritos e análises sobre cultura e subjetividade, como o processo de produção de subjetividades homogeneizadas é agenciado a partir de equivalentes culturais e como “o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o capital ocupa-se da sujeição econômica, e a cultura, da sujeição subjetiva”, em uma sociedade organizada nos moldes do que ele nomeou “Capitalismo Mundial Integrado” e que outros autores, como Bauman (1999) denominam “globalização”.

Com este fim de subjetivação e modelação dos corpos para a obediência e a produtividade, acompanhamos uma ampliação de toda uma “expertise” dirigida às crianças e aos adolescentes, na educação escolarizada com objetivos de tornar os corpos de crianças e adolescentes adaptados à ordem social:

A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), percebendo a urgência de aproximar os povos na tentativa de minimizar os conflitos, elegeu a educação como eixo articulador do desenvolvimento e decidiu assumir como prioridade propiciar discussões sobre a necessidade de universalização da educação básica e criar uma política de educação para a paz (ABENHAIM, 2005, P. 39).

Reduzir conflitos implica gerir riscos e ampliar estratégias de controle social, como afirmaram Castel (1981) e Deleuze (1992), principalmente quando estes conflitos são ameaças futuras e não acontecimentos do presente. No Relatório Jacques Delors (UNESCO, 2004) é constante a afirmação da importância de avaliar e gerir os riscos como modo de afastar as ameaças que pesam sobre a “sociedade global” no futuro.

As tensões sociais, como a pobreza, a degradação ambiental, o crescimento populacional e as desigualdades entre os países, no processo de desenvolvimento econômico, são concebidos como riscos e ameaças graves à existência que devem ser geridos e eliminados. A educação seria o tesouro ainda não usado com toda a eficácia, segundo os redatores do relatório, para efetuar este projeto de gestão do risco.

A produção de um consenso a partir da gestão de conflitos também foi analisada por Rancière (1996), em suas interrogações da democracia atual como produtora de consenso através dos peritos, que seriam atores privilegiados na gestão de conflitos juntamente aos operadores do Direito, em um processo de judicialização crescente dos conflitos.

Rancière (1996) também afirma que as políticas atuais operariam de modo compensatório das desigualdades sociais, o que poderia ser confirmado pelas pesquisas de Kramer (2003) a respeito da educação infantil no Brasil. Para ela, a educação infantil oferecida às crianças pobres foi constituída como uma política compensatória, que deveria suprir supostas privações destas crianças em função de sua cultura, vista como carente frente a um modelo de cultura letrada.

Machado (1997, p. 75) também ressalta como determinadas práticas produziram o lugar de carente para as crianças desfavorecidas e de incompetente para suas famílias:

Começou a se formular a teoria da carência cultural na segunda metade do século XX, mais especificamente na década de 1960, no EUA. Para esta teoria, “a pobreza nas classes populares”, “os problemas emocionais”, “a família desestruturada”, “a falta de interesse dos pais pela escolarização dos filhos”, “os alunos desinteressados”, “desnutridos”, “pouco estimulados” e com “linguagem pobre” eram as justificativas predominantes para o fracasso escolar.

A afirmação de Machado (1997) nos auxilia a pensar que as práticas do UNICEF referendam a teoria da “privação cultural”, pois, para este organismo internacional, o desenvolvimento “saudável” das crianças depende das informações e estímulos que os pais oferecem aos filhos.

A falta ou suposta carência de informações dos pais das classes populares sobre estimulação precoce e a promoção do desenvolvimento chamado biopsicossocial da criança seria a principal causa de situações de violação dos direitos das crianças para o UNICEF. A idéia de “privação cultural” que rotularia as crianças pobres como defasadas, carentes, deficientes e imaturas sustentaria esta lógica. A partir desta concepção importada pelos especialistas brasileiros de concepções dos Estados Unidos, na década de 60, há uma culpabilização da criança e de sua família pela produção do fracasso escolar, desviando a atenção de outras práticas produtoras deste fenômeno:

Para as famílias mais pobres, o espaço de educação infantil representa a mais rica fonte de estímulos sociais e cognitivos da criança, onde ela terá contato com brinquedos e jogos, material para pintar e desenhar, livros. Portanto, é preciso estender o serviço de educação infantil às crianças mais novas (de 0 a 3 anos), de famílias mais pobres e das zonas rurais ou periferias das cidades (UNICEF, 2001, p. 38).

A partir desta premissa, as práticas do UNICEF voltam-se para o financiamento e suporte técnico dos projetos de capacitação das famílias através de agentes comunitários e da produção de cartilhas, ensinando minuciosamente às famílias como cuidar dos filhos, nos primeiros anos de vida. Segundo Aquino (2000), é a idéia de infância feliz e o mito da criança como a esperança de um futuro melhor que está na base das práticas dirigidas às crianças e adolescentes. Há uma promessa de felicidade social constituída pelo aumento dos mecanismos de controle e de prevenção, dentro de um projeto salvacionista da criança pobre pautado nos cânones da ciência de moldes positivistas.

Para Aquino (2000), a vertente desenvolvimentista da psicologia teria contribuído muito para a formulação de um olhar para o desenvolvimento da criança como um processo natural e linear, composto de seqüências divididas por faixas etárias, separadas por comportamentos, capacidades e habilidades específicas em direção a um progresso de modo utilitarista e determinista. Esta concepção estaria baseada em um modelo de ciência preocupado com a previsibilidade dos fenômenos.

Pensando a escola para além de um espaço de aquisição de conhecimento, o UNICEF também a concebe como lugar de socialização do adolescente, sendo uma instituição estruturante da personalidade, potencializando-a rumo às etapas de desenvolvimento supostamente mais evoluídas à medida que os assessores do UNICEF falam de amadurecimento da mesma:

Nessa fase importante da formação da personalidade, a escola constitui referencial estruturante. Em seu projeto pedagógico, a escola deve promover atividades que estimulem o amadurecimento do adolescente. Portanto, cabe à escola, além das ações específicas da escolarização, assumir um papel de instância formadora para exercício da cidadania em todas as suas dimensões (UNICEF, 2002, p. 25).

Outro ponto assinalado no relatório é o alto índice de evasão escolar e o baixo percentual de anos de estudo das crianças e adolescentes brasileiros. Tanto os anos de escolaridade quanto as oportunidades de entrar e permanecer na escola são avaliados. Simultaneamente à apresentação de inúmeras tabelas com índices estatísticos detalhados sobre as condições do aparato educacional brasileiro, são propostas intervenções, como a capacitação dos professores, a importância da realização de levantamentos para descobrir quem efetivamente está ou não na escola e com qual idade, em qual série e por quê:

Apenas 59% das crianças que iniciam o Ensino Fundamental (1a. a 8a. séries) completam os 8 anos de estudo, e apenas 27,3% dos adolescentes de 14 anos cursam a série que corresponde à sua idade (UNICEF, sem data).

Estatísticas mostram que freqüentar a pré-escola por um ano leva a um aumento de 2% no poder de compra da criança quando adulto. Quando se trata de uma criança pobre, esse aumento é de 4%. Sendo que, na média brasileira, uma vez matriculada, a criança cursa pelo menos dois anos de pré-escola, pode-se projetar um ganho de 8% no poder de compra das crianças com acesso à pré-escola no país, somado a 10% de incremento indireto no poder de compra pelo acesso à educação. Assim, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), uma criança pobre que freqüenta dois anos de educação infantil pode esperar um aumento de 18% em seu poder de compra quando adulto (UNICEF, 2001, p. 19).

Para garantir a universalização da educação, o primeiro passo é identificar as crianças que estão fora da escola e esclarecer quais são as causas dessa exclusão: se elas trabalham, são portadoras de algum tipo de necessidade especial, estão doentes ou moram distante da escola (UNICEF, sem data).

Os dados estatísticos utilizados intensivamente nos relatórios do UNICEF transformam os objetos em fatos sociais em si, tal qual postulou Ewald (1993), ao mencionar os processos de normalização social, efetuados a partir da contribuição da estatística no governo das populações, chamado por Foucault (1988) de biopolítica. Para medir a eficiência e a cobertura da rede educacional do país, o UNICEF lança mão de estratégias biopolíticas, pois entende que a educação não é só um espaço de aquisição de conhecimento, mas de potencialização da vida, à medida que estimula o desenvolvimento da criança em todas as dimensões.

Há nos relatórios do UNICEF a apresentação de inúmeros indicadores estatísticos ligados à categoria de governo da vida, tais como: as taxas de mortalidade infantil, as taxas de natalidade, os números de nascimento em parto normal ou cesariana, as taxas referentes ao aleitamento materno, as taxas ligadas ao peso do bebê no nascimento, as taxas de realização de pré-natal pelas gestantes, os índices de imunização e de registro civil, os índices de desnutrição em bebês e crianças pequenas, enfim, uma variedade de medidas ligadas a uma preocupação biopolítica, ou seja, de gestão da vida:

A cada dia, o desenvolvimento da criança vem sendo mais bem compreendido. Tornou-se claro que os primeiros anos de vida formam a base para a boa saúde física nos anos futuros e são críticos para o crescimento emocional saudável, para o desenvolvimento intelectual e das aptidões sociais. Pesquisas demonstram a forte relação entre o bem-estar da criança nos primeiros anos e seu impacto nas condições de saúde, no desenvolvimento e no comportamento do jovem nos anos seguintes (UNICEF, 2001, p. 15).

O UNICEF tem tido um papel importante nas políticas educacionais brasileiras, ao lado da UNESCO, pelo fato de pressionar o governo do país para que amplie a oferta de ensino pré-escolar e fundamental. Além de apresentar dados estatísticos da situação da educação, medindo as taxas de crianças e adolescentes matriculados, com cobertura de todo o país, na zona urbana e rural, também tem atuado pressionando os governantes a adotarem medidas de transformação da realidade escolar, no que tange à qualidade da educação prestada, à distorção idade-série, à diminuição dos índices de reprovação, de evasão e eliminação de todas as modalidades de exclusão dos alunos dentro dos muros escolares.

Os assessores do UNICEF lembram que o Brasil ratificou vários documentos, em que se comprometeu a cumprir metas referentes à educação e aprovou leis em que considerou a educação um direito, propugnando a obrigatoriedade da oferta do ensino fundamental, na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990. Porém, o UNICEF assinala que o país, apesar de ter ampliado vagas e reduzido as taxas de analfabetismo, ainda está distante do cumprimento das metas estabelecidas em diversas reuniões e tratados internacionais assinados pelo país.

As críticas mais contundentes do UNICEF se referem à qualidade e à eficiência do sistema educacional brasileiro e também às desigualdades regionais e entre a zona urbana e rural em todos os indicadores referentes à educação. Os técnicos sugerem a importância de programas urgentes de ampliação da cobertura às faixas da população nas regiões norte, nordeste e centro-oeste e na zona rural; também prescrevem a urgência em implementar projetos de capacitação dos professores e de gestão escolar, pautada em uma concepção democrática como forma de reduzir os processos de exclusão presentes nas escolas brasileiras que contribuem para a manutenção dos altos índices de repetência e de evasão escolar. Também é recomenda a adoção, pelo país, de programas de renda mínima como forma de retirar, sobretudo, os meninos do trabalho infantil para que eles retornem à escola.

As práticas do UNICEF e de outros organismos ligados à ONU parecem ser fundamentais na extensão de direitos básicos às crianças e adolescentes brasileiros, à medida que operam intensa pressão política sobre o Brasil para que o país se responsabilize pela implementação de um sistema educacional previsto em leis nacionais, promulgadas após a abertura política e pelo cumprimento de metas de tratados internacionais que foram ratificados pelo país (LEMOS, 2007).

Deste modo, conforme Lemos (2007), as práticas de organismos internacionais, como as acionadas pelas agências da Organização das Nações Unidas, funcionam como linhas de forças que pressionam o Brasil, exigindo a universalização das políticas educacionais como instrumentos de proteção às crianças e aos adolescentes de classes desfavorecidas. Pois, ampliar os anos de escolaridade deste segmento excluído dos bancos escolares é possibilitar outra condição de vida a esta categoria da população.

No entanto, melhorar as condições de vida implica geri-la e governá-la. Logo, trata-se do que Foucault (1988) definiu como biopolítica. Sendo assim, paralelamente à proteção e gestão de riscos, há proteção e escolarização. As práticas de gestão de riscos não têm como objetivo, apenas, proteger e oferecer oportunidades, mas, simultaneamente, disciplinar os corpos, produzir indivíduos submissos com capacidades e habilidades adaptadas às exigências de uma sociedade neoliberal, como vimos nas análises acima.

 

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Endereço para correspondência
Flávia Cristina Silveira Lemos
E-mail: flaviacris@ucb.br; flavialemos@ufpa.br

Recebido em: 19/06/2007
Aceito para publicação em: 26/10/2007
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra T. Prestrelo

 

 

Notas

*Psicóloga/UNESP, Mestre em Psicologia e Sociedade/UNESP e Doutora em História e Sociedade/UNESP.
1Parte das análises de tese de doutorado em História e Sociedade, financiada pela FAPESP.

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