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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.8 n.3 Rio de Janeiro dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Depressão pós-parto: considerações teóricas

 

Post partum depression: theoretical considerations

 

 

Maria da Penha de Lima Coutinho I, *; Evelyn Rúbia de Albuquerque Saraiva II, **

I Docente da Universidade Federal da Paraíba/UFPB - João Pessoa, PB, Brasil
II Docente da Universidade Federal da Paraíba/UFPB - João Pessoa, PB, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta algumas considerações teóricas acerca da depressão pós-parto, de modo a permitir a visibilidade dos profissionais da saúde, notadamente dos psicólogos, para o sofrimento psíquico que alcança as mulheres durante sua fase reprodutiva. Para entender a depressão na etapa puerperal, inicialmente foi enfocado o sofrimento psíquico, enquanto mal-estar moderno, um transtorno reativo amplamente identificado em vários perfis humanos. Em seguida, a depressão feminina foi analisada após o nascimento de um bebê, incluindo seus principais sintomas e fatores associados, a indicação da sua prevalência, além dos instrumentos para o diagnóstico deste transtorno psicoafetivo. Por fim, tratou-se das repercussões da dor psíquica na vida familiar e da importância do conhecimento dos profissionais da saúde acerca da temática abordada para além do olhar biologizante.

Palavras-chave: Depressão reativa, Depressão pós-parto, Puerpério.


ABSTRACT

This article intends to present some theoretical considerations concerning the Post Partum depression in order to show health professionals, notably psychologists, the psychological suffering of women during their reproductive phase. To understand depression in its puerperal stage, psychic suffering was focused on initially, suggesting modern malaise, a reactive disturbance widely identified in various human profiles. Then, the female depression was analyzed after the birth of a baby, including its main symptoms and associated factors, the indication of its prevalence and the instruments for the diagnosis of this psycho-affective malaise. Finally, the repercussion of psychological pain in family life and of the importance of the knowledge of health professionals concerning the present theme beyond the biological boundaries was approached.

Keywords: Reactive depression, Post partum depression, Puerperal.


 

 

1. Introdução

Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise teórica acerca da depressão pós-parto, enquanto manifestação biopsicossocial, de modo a possibilitar ao profissional da saúde uma reflexão sobre este sofrimento psíquico, que acomete uma parcela significativa de mães após o nascimento de um bebê, com importantes implicações psicoafetivas na vida da mulher.

Apesar da ocorrência e da importância desse transtorno, a avaliação de depressão no período puerperal é difícil devido à fronteira imprecisa e, às vezes, arbitrária entre as formas clínicas, as subclínicas e as não-patológicas. Os limites entre o fisiológico e o patológico podem ser estreitos, o que pode gerar dúvidas em obstetras, clínicos ou psiquiatras (CAMACHO et al., 2006).

O nascimento de um bebê tem sido associado a situações de estresse em algumas famílias, diante das mudanças nas rotinas diárias relativas à gravidez, ao parto e ao pós-parto. A ocorrência da depressão materna, após o nascimento de um bebê, de acordo com Sotto-Mayor e Piccinini (2005), pode ser preocupante tanto para a mãe e para a criança, como também para a família, uma vez que esse período tem sido enfatizado como propício para o surgimento de problemas emocionais nas mães, destacando-se os transtornos psicoafetivos.

Por estas razões, os profissionais da saúde que lidam com os perfis humanos afetados pela depressão materna necessitam conhecer e refletir suas práticas a partir de um arcabouço teórico que subsidie sua atuação preventiva voltada ao contexto dos programas de saúde feminina.

Para entender a depressão na etapa puerperal, torna-se necessário enfocar o sofrimento psíquico, enquanto mal-estar moderno, um transtorno reativo amplamente identificado em vários perfis humanos. Particularmente, a depressão feminina estudada neste artigo concentra-se no sofrimento materno após o nascimento de um bebê, incluindo seus principais sintomas e fatores associados, a indicação da sua prevalência, além dos instrumentos para o diagnóstico deste transtorno psicoafetivo, com ênfase nas repercussões da dor psíquica na vida familiar.

 

2. Revisão da literatura

Depressão: manifestação biopsicossocial

Enquanto sofrimento psíquico, a depressão nem sempre expressa um estado patológico, pois encontra origem na própria existência humana, na inquietação do homem diante da sua condição de ser temporal, finito e incompleto. O sofrimento e a dor são sentimentos subjetivos, manifestos tanto na esfera afetiva, na dor mental, como na esfera física, nas condições fisiológicas em geral. Concebido como manifestação psicossocial, o sofrimento psíquico expressa um tipo de doença ou síndrome, situada entre a subjetividade e a realidade exterior, sendo a expressão de diferentes formas de experiência de mal-estar, sentimentos reunidos nas condições de exclusão e solidão (NÓBREGA; FONTES; PAULA, 2005).

De acordo com Wilkinson, Moore e Moore (2003), a doença depressiva é um aumento exagerado das sensações diárias que acompanham a tristeza, consistindo numa perturbação do humor, de gravidade e duração variáveis, que é freqüentemente recorrente e acompanhada por uma variedade de sintomas físicos e mentais, que envolvem o pensamento, os impulsos e a capacidade crítica (p. 21).

Além do saber científico, os indivíduos elaboram a sua teoria do senso comum acerca da depressão nas comunicações e interações sociais, representando este transtorno psicoafetivo, segundo Coutinho (2005), como uma forma de expressão do sofrimento e da dor humana.

Os estudos relatados por Coutinho e Saldanha (2005) sobre a representação social da depressão em diversas fases do desenvolvimento humano concluem que o senso comum sofre influência do pensamento erudito coincidente com a nosologia psiquiátrica, sem desconsiderar a preponderância do conhecimento cotidiano e das singularidades culturais. Estes últimos correspondem aos elementos sócio-históricos, sociopolíticos e ancestrais, com ênfase na abordagem multidimensional, focalizando aspectos psicoafetivos, histórico-factuais, socioculturais e físico-orgânicos. Este conjunto de elementos, abordagens e aspectos do senso comum permite a conceituação da depressão, enquanto uma expressão complexa e plural, apresentando uma indissociabilidade entre a depressão, enquanto doença, e o ser depressivo “doente”.

Considerando a população mundial, a doença depressiva, de acordo com Wilkinson, Moore e Moore (2003), é comum nas consultas de clínica geral e é, ao mesmo tempo, insuficientemente diagnosticada e tratada, acometendo cerca de 25% da população mundial num espaço de um ano, sendo que uma pessoa em cada vinte terá um episódio moderado ou grave, embora apenas um quinto dos casos graves procuram o tratamento médico. Cerca de uma em cada cinqüenta pessoas depressivas necessitará de tratamento hospitalar.

No entanto, apesar da literatura referir-se a este amplo alcance da ocorrência de transtornos depressivos na população mundial, as mulheres destacam-se como um segmento mais sensível do que os homens na manifestação da depressão. As mulheres têm merecido atenção dos estudos sobre a depressão, principalmente nos contextos que envolvem exclusivamente o mundo feminino, notadamente nas situações relativas à maternidade, conforme os estudos de Lara, Acevedo e Berenzon (2004).

O nascimento de um bebê tem sido associado a situações de estresse em algumas famílias, diante das mudanças nas rotinas diárias relativas à gravidez, ao parto e ao pós-parto. A ocorrência da depressão materna, após o nascimento de um bebê, de acordo com Sotto-Mayor e Piccinini (2005), pode ser preocupante tanto para a mãe e para a criança, como também para a família uma vez que esse período tem sido enfatizado como propício para o surgimento de problemas emocionais nas mães, destacando-se os transtornos psicoafetivos.

A seguir, serão discutidas as aproximações teóricas concentradas no sofrimento psíquico durante o período puerperal.

A depressão feminina no puerpério

Para contextualizar o estudo da depressão pós-parto, além da identificação da época de puerpério em que ocorrem os sintomas depressivos, faz-se necessária a apresentação de suas características, seus principais sintomas e fatores associados, a indicação da sua prevalência nas mulheres após o nascimento de um bebê, além dos instrumentos para o diagnóstico deste transtorno psicoafetivo.

Em se tratando especificamente da população feminina, conforme o estudo de Lara, Acevedo e Berenzon (2004), os dados epidemiológicos mostram que a prevalência da depressão ocorre numa razão de duas mulheres para um homem. Especialmente depois do nascimento de um bebê, de acordo com Kaplan e Sadock (1990), entre 20% e 40% das mulheres tem sido evidenciada uma perturbação emocional ou uma disfunção cognitiva no período pós-parto. Nesta perspectiva, a experiência materna focalizada durante o puerpério merece ser compreendida e estudada, para que seja possível apreender o conhecimento oriundo do senso comum acerca da vivência materna mediada pelo adoecimento psíquico (SARAIVA, 2007).

O estudo da depressão da mulher na fase do puerpério pressupõe a compreensão e a definição da intensidade dos sintomas humorais associados ao período após o nascimento do bebê, e que podem variar desde a melancolia da maternidade (baby blues) até as psicoses puerperais, passando pela depressão pós-parto, propriamente dita.

A melancolia da maternidade, também denominada de tristeza pós-parto por Kaplan e Sadock (1990), caracteriza-se por um distúrbio de labilidade transitória de humor, que atinge cerca de 50% das novas mães entre o terceiro e o quinto dia após o parto, tendo, geralmente, remissão espontânea. Muitas mães experimentam um estado normal, consistindo de sentimentos de melancolia, disforia, choros freqüentes, ansiedade, irritabilidade e dependência. Estes sentimentos, que podem durar até vários dias, têm sido atribuídos à rápida mudança nos níveis hormonais, ao stress do parto e à consciência da responsabilidade aumentada, que a maternidade traz consigo. Em casos raros, de 1 a 2 em cada 1.000 nascimentos, a psicose pós-parto pode desenvolver-se na mãe e se caracteriza por ansiedade severa, alucinações e delírios, os quais freqüentemente requerem tratamento intensivo e, por vezes, hospitalização, ocorrendo entre as duas primeiras semanas após o parto.

A fim de caracterizar a depressão pós-parto, foram excluídos desta análise teórica os estudos sobre a melancolia da maternidade e a psicose puerperal e foi focalizado como puerpério o período após o parto que variou entre 15 e seis meses de vida do bebê (SIERRA MANZANO et al., 2002; HOWELL et al., 2006; CRUZ et al., 2005; MORAES et al., 2006; SARAIVA, 2007).

A pesquisa de Schwengber e Piccinini (2003) apresenta uma revisão da literatura, no que diz respeito às características da depressão pós-parto e aos fatores associados à sua ocorrência, indicando que a mesma está se apresentando acompanhada de uma série de fatores biológicos, obstétricos, sociais e psicológicos, que se inter-relacionam. Além disso, o caráter conflituoso da experiência da maternidade como um fator de risco para a depressão da mãe, uma vez que implica mudanças profundas na identidade da mulher e a assunção de novos papéis. Os estudos sugerem também que mães deprimidas tendem a perceber a própria experiência de forma mais negativa do que mães não-deprimidas.

No estudo desenvolvido por Saraiva (op. cit.), com o objetivo de apreender as representações sociais da depressão pós-parto e da experiência materna, com mães de baixa renda da cidade de João Pessoa, Paraíba, submetidas, entre outros instrumentos, responderam o teste de associação livre de palavras. Suas evocações livres relacionaram a depressão à “tristeza”, sendo que as mães com sintomatologia ancoraram a depressão em elementos psico-orgânicos, enquanto as sem sintomatologia depressiva categorizaram-na em manifestações valorativas, histórico-factuais e orgânicas, destacando-se a palavra “aperreio”, expressão lingüística utilizada na Região do Nordeste do Brasil.

Segundo os resultados da investigação de Schwengber e Piccinini (2003), há a evidência de uma associação entre a ocorrência da depressão pós-parto e o pouco suporte oferecido pelo parceiro ou por outras pessoas com quem a mãe mantém relacionamento. O não-planejamento da gestação, o nascimento prematuro, a dificuldade de amamentar, as dificuldades no parto e as vezes a morte do bebê,  também consistem em fatores associados ao aparecimento da depressão materna. Além destes fatores, a pesquisa dos autores citados apresenta alguns estudos que mostram uma associação entre a depressão da mãe e eventos de vida estressantes, como: problemas de saúde da criança, dificuldades relacionadas ao retorno ao trabalho e adversidades socioeconômicas. Variáveis sociodemográficas, como idade, nível educacional e estado civil da mãe não têm apresentado uma associação consistente com a ocorrência da depressão pós-parto. Contudo, entre esses fatores, o estado civil tem aparecido em alguns estudos, como mais associado a esse quadro, especialmente entre mães solteiras sem apoio social.

Segundo Cruz, Simões e Faissal-Cury (2005), a partir de evidências identificadas no seu estudo com uma amostra de 70 puérperas usuárias de um serviço público de saúde, na cidade de São Paulo, quanto maior a percepção de suporte social do parceiro menor a prevalência da depressão pós-parto. Estes resultados corroboram com Saraiva (2007), no qual as  mães puérperas deprimidas ancoraram as representações sociais da depressão puerperal nos seus fatores desencadeantes, objetivados nas conflituosas relações sociais familiares e amorosas. A evidência da relação entre a qualidade do relacionamento conjugal e a depressão materna é também confirmada com o resultado de um levantamento de estudos teóricos e empíricos realizado por Sotto-Mayor e Piccinini (2005).

A respeito das condições socioeconômicas, as pesquisas de Da-Silva et al. (1998), Sierra-Manzano et al. (2002), Moraes et al. (2006) e Saraiva (2007) apontam para a identificação do sofrimento materno relacionado à situação de pobreza em que viviam as participantes investigadas. De acordo com Inandi et al. (2002), a baixa educação, a pobreza e uma conflituosa relação familiar concorrem fortemente com o aparecimento da depressão pós-parto. A baixa auto-estima, os fatores socioeconômicos e a gravidez indesejada ou não-planejada estão associados à depressão puerperal (BECK, 2001; SARAIVA, 2007).

Várias investigações, no Brasil e em outros países, abordam a prevalência deste transtorno nas mulheres após o parto. Dentre as pesquisas brasileiras, Saraiva (2007) e Da-Silva et al. (1998) relataram um predomínio entre 32% e 38% de depressão puerperal em mulheres brasileiras de baixa renda. Destacam-se, ainda, os estudos de Santos, Martins e Pasquali (1999) e Cantilino et al. (2003), cujos achados apontaram, respectivamente, para a incidência da depressão materna em 13,4% e 13,3% das amostras pesquisadas. A prevalência de depressão pós-parto, encontrada no trabalho de Faisal-Cury et al. (2004), foi de 15,9% e no estudo de Cruz, Simões e Faisal-Cury (2005), foi de 19,1%. Moraes et al. (2006) identificaram a prevalência da depressão pós-parto em torno de 19,1% das mulheres pesquisadas.

Estudos estrangeiros também identificaram o percentual de ocorrência da depressão pós-parto entre as mulheres no período do puerpério. Nos Estados Unidos da América, esse percentual ficou em torno de 13% no estudo de Beck (2001) e 39%, no estudo de Howell, Mora e Leventhal (2006). Num estudo com mulheres dos Emirados Árabes, foi registrada a prevalência de 18% de depressão pós-parto (Abou-Saleh; Ghubash, 1997). Boyce et al. (2000) encontraram a incidência entre 10% a 15% de depressão puerperal em mulheres australianas. Na Índia, os estudos de Chandran et al. (2002) estabelecem uma prevalência que varia de 16% a 19,8% . Na Turquia, a pesquisa de Inandi et al. (2002) identificou o predomínio de 27,2% de mulheres com depressão pós-parto. Na Espanha, a pesquisa de Sierra Manzano et al. (2002) registrou a ocorrência de depressão em 15,7% das mulheres puérperas. No Reino Unido, Howard (2005) registrou a ocorrência entre 12% e 13% de depressão puerperal na amostra estudada.

Segundo Camacho et al. (2006), para além da avaliação e do diagnóstico clínico realizado por profissional especialista em saúde mental, o rastreamento da depressão pós-parto, para fins de pesquisa, tem-se beneficiado com o uso de escalas de avaliação psicológica que contêm questões específicas sobre o humor deprimido em mulheres na fase do puerpério. Pensando nessa praticidade, foram criadas duas escalas desenhadas especificamente para o rastreamento de depressão pós-parto: a Escala de Edinburgh (Edinburgh Postpartum Depression Scale - EPDS), em 1987, e a Postpartum Depression Screening Scale - PDSS, em 2000.

A Escala de Edinburgh, desenvolvida na Grã-Bretanha por Cox, Holden e Sagovsky (1987), é o primeiro instrumento, encontrado na literatura, proposto para rastrear especificamente a depressão pós-parto. A EPDS é um instrumento de auto-registro, que contém dez questões de sintomas comuns de depressão e utiliza um formato de respostas do tipo Likert. A mãe escolhe as respostas que melhor descrevem o modo como tem se sentido na última semana. Esta escala possui tradução para onze idiomas e foi submetida a estudos de validade em vários países, inclusive no Brasil, por Santos, Martins e Pasquali (1999), com amostra de mulheres residentes em Brasília-DF e por Cantilino et al. (2003), com amostra de puérperas em Recife-PE. Na literatura científica sobre a depressão materna, registra-se a utilização da Escala de Edinburgh nos estudos de Da-Silva et al. (1998); Abou-Saleh e Ghubash (1997); Webster et al. (2000); Johnstone et al. (2001); Inandi et al. (2002); Sierra Manzano et al. (2002); Tam et al. (2002); Edhborg et al. (2003); Cruz, Simões e Faissal-Cury (2005); Azevedo e Arrais (2006); e Saraiva (2007).

A segunda escala de rastreamento da depressão pós-parto, a PDSS, é uma escala de auto-avaliação do tipo Likert, que contém 35 itens que avaliam sete dimensões: distúrbios do sono/apetite, ansiedade/insegurança, labilidade emocional, prejuízo cognitivo, perda do eu, culpa/vergonha e intenção de causar dano a si. Cada dimensão é composta de cinco itens, que descrevem como uma mãe pode estar se sentindo, após o nascimento de seu bebê (BECK; GABLE, 2000).

Após contextualizar o estudo da depressão pós-parto, a seguir apresentaremos as aproximações teóricas sobre a temática, relacionando-a com a experiência materna.

Implicações da depressão pós-parto na vida da mulher

Segundo Maushart (2006), criar filhos é uma das tarefas mais difíceis que as pessoas realizam na vida e, apesar disto, a sociedade oferece a essa tarefa menos preparo do que a qualquer outra. Poucas mães mencionam a crise psíquica que acompanha o nascimento de um filho, o despertar de sentimentos enterrados há muito tempo a respeito da própria mãe, a mistura de poder e impotência, a sensação de, por um lado, ser levada e, por outro, de tocar novas potencialidades físicas e psíquicas.

Arrais (2005) realizou um estudo de caso com quatro mães portadoras de diagnóstico da depressão pós-parto e atendidas num serviço de psicologia vinculado à Universidade Católica de Brasília, com o objetivo de identificar as configurações subjetivas deste transtorno psicoafetivo. A investigação teve como pressuposto que compreender a maternidade como fenômeno cultural e não natural e biológico é o primeiro passo para tornar possível conhecer as implicações da experiência materna na constituição subjetiva da mulher, imersa que ela é em um momento histórico e social. Para esta autora, o exercício da maternidade está articulado com os discursos ideológicos dominantes, ligados à ciência, aos preceitos religiosos e à economia social, para além, portanto, do fenômeno instintivo, associado à estrutura biológica feminina e independente das circunstâncias histórico-espaciais que o determinam.

Em um estudo qualitativo realizado por Stasevskas (1999), foram entrevistadas quinze jovens mães, indagando-se sobre o sentido de “ser mãe” e sobre o contexto ideológico da maternidade, de modo a se interpenetrarem o ser e o fazer no cotidiano das participantes. Os resultados das narrativas sugerem que: 

diante das transformações da sociedade, da família e dos papéis femininos, coloca-se para a mulher uma dupla responsabilidade em prover o seu sustento e cuidar dos filhos. No entanto, é nessa luta que parece residir a percepção de um amadurecimento enquanto pessoa, um aval de “adultice” e de maturidade que é revelado na ponta de orgulho existente na narrativas destas batalhas do cotidiano. Mas é importante ressaltar que essas mulheres consideram grande a sobrecarga que representa esta vida de dupla jornada, sem companheiro e pertencendo a uma camada pobre da população (p. 132).

O estudo de Stasevskas (1999) sugere que tanto o desejo quanto a maneira de ser mãe sofrem influências muito antigas e ainda muito atuais, mesmo diante das mudanças de transição de papéis sociais, levando-se a evidências de um descompasso entre a antiga e a atual condição da mulher e o modo de ser mãe. As mudanças da organização e da dinâmica familiar também foram acompanhadas pelas mudanças do “ideal de amor bem sucedido”, expressão usada por Costa (1999) para ilustrar as práticas amorosas na contemporaneidade e as suas repercussões na clínica psicanalítica. Segundo este autor, a realidade afetiva do homem moderno não se fundamenta, na atualidade, no amor romântico do pensamento de Rousseau1 mas vem sofrendo sucessivas transformações, fato que vem repercutindo nas aspirações do sujeito à felicidade e ao prazer.

De acordo com Costa (1999), o romantismo amoroso veio favorecer a formação da família, o cuidado com as crianças, a conversão das mulheres em mães, coroando as injunções cristãs, sobretudo as de origem puritana. Na época atual, no entanto, a família, o pudor, a vergonha, a repressão sexual, o respeito pela intimidade, a sacralidade do matrimônio, o objetivo da reprodução biológica, a dissemetria entre homens e mulheres no que concerne à liberdade sexual, todos esses elementos que aureolavam o amor romântico, estão definhando em uma velocidade vertiginosa. No lugar, a sociedade de consumo entronizou o culto ao corpo, aos prazeres físicos, à liberdade de procriar fora das relações conjugais, à ingestão de drogas extáticas, à liberação sexual e, principalmente, à repulsa ao sofrimento.

No entanto, nem mesmo as transformações que ocorreram na vida das mulheres, nas últimas décadas, modificaram, segundo Saldanha (2003), “o cerne moral e a intensidade passional do amor. O amor e o casamento ainda são mantidos como ideal de felicidade e orientadores de conduta, repercutindo no modo de agir e atuando no processo de formação de identidade” (p. 201).

Azevedo e Arrais (2006) acreditam que a maternidade, tal como vem sendo concebida na atualidade, tem influência direta no aparecimento da depressão pós-parto. Estas autoras realizaram um estudo de caso com uma mãe puérpera diagnosticada como portadora de depressão puerperal e atendida no serviço de psicologia de uma universidade particular em Brasília, no Distrito Federal. Por meio da aplicação de uma técnica de completação de frases, da Escala de Edinburgh para rastreamento da depressão puerperal, de técnicas projetivas e de entrevistas individuais e grupais, as pesquisadoras abordaram a vivência da depressão pós-parto e seu conceito. Neste estudo, foram também investigados o bebê imaginário comparando com o bebê real, a transição para a maternidade, os novos vínculos formados pela díade mãe-bebê e pela tríade mãe-pai-bebê, fatos e mitos relacionados à maternidade, a importância da rede social de apoio, as alterações na vida do casal, influências de outros familiares, entre outros aspectos psicossociais. Os achados desta investigação apontaram para a identificação de pressões culturais sob as quais as mulheres invariavelmente exercem a maternidade, associadas ao sentimento de incapacidade em adequar-se a uma visão romanceada dessa fase, situações que acabam por deixá-las ansiosas e culpadas, suscitando, dessa maneira, conflitos que predispõem à depressão puerperal.

O estudo psicossocial de Saraiva (2007) confirmou a pesquisa das autoras anteriormente citadas, uma vez que registrou a experiência materna manifestada por puérperas deprimidas, que representaram socialmente a maternidade em elementos negativos voltados para uma desadaptação frente à inexperiência com a função maternal.

Portanto, os estudos longitudinais, psicossociais e clínicos relatados na literatura científica sobre a problemática da mulher, e especificamente no contexto da maternidade, demonstram a importância da adoção de um olhar investigativo para além da patologia depressiva. Como afirma Kimura (1997), este olhar aponta para a necessidade de um enfoque amplo e sistêmico deste tema, com uma visão da mulher enquanto um ser em metamorfose, que vive em constante mudança, que imprime e expressa criatividade e singularidade em sua atividade e em suas vivências, num processo contínuo de construção de identidade, que redunda, no caso das puérperas, na identidade de mãe.

Neste contexto, o puerpério se apresenta como uma etapa de profundas alterações no âmbito social, psicológico e físico da mulher, caracterizando-se como um período instável, que demanda a necessidade de um profundo conhecimento desta etapa na vida feminina, um fator essencial na determinação do limiar entre a saúde e a doença (SILVA; BOTTI, 2005; SARAIVA, 2007).

A ocorrência de depressão pós-parto alerta sobre a importância da intervenção dos profissionais da saúde não só no âmbito da saúde da puérpera, mas, em geral, na saúde da mulher, principalmente, durante a sua gestação. Para Moreira e Lopes (2006) e Saraiva (2007), as discussões sobre a saúde da mulher, principalmente durante o ciclo gravídico-puerperal, pressupõem uma compreensão sobre a sexualidade e a reprodução humana num contexto socioeconômico e cultural, destacando-se o papel social da mulher frente às necessidades de novas adaptações e reajustamentos intrapsíquicos, interpessoais e de mudança de identidade feminina.

 

3. Método

A análise teórica sobre a depressão pós-parto resultou de uma consulta a artigos, teses e dissertações publicados no período de 2000 a 2007, a partir da base de dados Periódicos CAPES e Scielo e dos Bancos de Teses. Foram utilizados como discritores para as bases de dados internacionais as palavras: post partum depression; postnatal depression; maternal depressive mood e depresión feminina. Para a base de dado nacional foram utilizados os termos: depressão pós-parto, depressão puerperal, depressão materna. Para complementar a compreensão sobre o tema, ainda foram incluídos nessa revisão livros sobre a depressão que acomete diversos perfis humanos.

No presente estudo, o enfoque da depressão materna excluiu a melancolia da maternidade, assim como a psicose puerperal, concentrando-se na depressão pós-parto enquanto transtorno reativo ou distúrbio do humor.

Foram selecionados textos que envolviam o estudo da depressão pós-parto sob a ótica psicossocial, seu período de abrangência, destacando o conceito de puerpério, dados epidemiológicos no Brasil e em outros países, definição dos sintomas, fatores associados a sua ocorrência e escalas de rastreamento da depressão pós-parto. Ainda foram selecionados os estudos longitudinais, psicossociais e clínicos relatados na literatura científica sobre a problemática da mulher e especificamente no contexto da maternidade.

 

4. Considerações finais

Buscando compreender a depressão puerperal, observa-se que dados epidemiológicos, apontados pela literatura, indicam a importância da avaliação precoce da depressão durante a gestação. Uma vez diagnosticado o quadro depressivo da gestante e/ou puérpera, viabiliza-se a realização de intervenções, sendo um dos objetivos principais o de apoiá-las neste momento importante de transição. Da mesma forma, o conhecimento sobre os aspectos multifacetados dos transtornos psicoafetivos da mãe, após o nascimento do bebê, representa a possibilidade da realização de intervenções multidisciplinares tão logo os sintomas sejam detectados (SARAIVA, 2007; SARAIVA; COUTINHO, 2007; SARAIVA; VIEIRA; COUTINHO, 2007).

De acordo com a literatura consultada, fica evidente que a depressão, enquanto expressão do sofrimento e da dor humana, acomete as mulheres no período puerperal, acompanhada de sintomas biopsicossociais associados à ocorrência de eventos estressantes, numa prevalência que varia entre 10% e 42% das mulheres estudadas. Neste contexto, a depressão puerperal consiste num adoecimento que afeta a saúde da mulher, com repercussões na interação social da mãe com o seu bebê e com toda a sua família. Esta situação demanda a necessidade de abordá-la no bojo de programas de saúde pública, voltados não só para a função reprodutiva da população feminina, mas também para a saúde integral da mulher. Portanto, as alterações humorais no puerpério necessitam ser estudadas no âmbito das configurações subjetivas da depressão pós-parto, na direção da compreensão global das mulheres, distanciando-se da padronização e da patologização deste tipo de depressão (ARRAIS, 2005).

Neste sentido, espera-se que os distúrbios psicológicos da maternidade sejam referenciados pelos profissionais da saúde mental, para além da repetição de um modelo médico de atendimento psicoterápico individual, em ambientes distantes dos serviços de saúde em que circulam as prováveis usuárias necessitadas de tratamento. A atuação preventiva das equipes multidisciplinares, nesse período, pode proporcionar à nova mãe o apoio de que necessita para enfrentar os eventuais episódios de depressão. Mais do que isso, o atendimento precoce à mãe deprimida representa a possibilidade da prevenção do estabelecimento de um padrão negativo de interação com o bebê, o qual pode trazer importantes repercussões para o seu desenvolvimento posterior.

Enquanto um estado afetivo ou uma doença, a depressão caracteriza-se como um transtorno que afeta biológica e psicologicamente os seres humanos, suscitando, portanto, o interesse pela elaboração de teorias científicas e do senso comum que auxiliem na busca da sua compreensão e explicação.

 

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Endereço para correspondência
Maria da Penha de Lima Coutinho
E-mail: penhalcoutinho@yahoo.com.br
Evelyn Rúbia de Albuquerque Saraiva
E-mail: evelynsaraiva@hotmail.com

Recebido em: 26/03/2008
Aceito para publicação em: 04/11/2008
Acompanhamento do processo editorial: Eleonôra T. Prestrelo

 

 

Notas

* Pós-doutora pela Universidade Aberta de Lisboa, Portugal e Doutora em Psicologia pela USP.
** Mestre e Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba.
1 Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo suíço, escritor e teórico político. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do romantismo. O Romantismo foi um movimento artístico e filosófico surgido nas últimas décadas do século XVIII na Europa, que perdurou por grande parte do século XIX. O espírito romântico passa a designar toda uma visão de mundo centrada no indivíduo. Os autores românticos voltaram-se cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e desejos de fuga da realidade. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean-Jacques_Rousseau. Acesso em 20 de junho de 2007.

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