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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.11 no.1 Rio de Janeiro abr. 2011
ARTIGOS
Marcuse e Flusser: para iniciar um diálogo
Marcuse and Flusser: beginning a dialogue
Maria Teresa Cardoso de Campos *
Centro Universitário de Belo Horizonte - UniBH, Belo Horizonte, MG, Brasil
RESUMO
Herbert Marcuse e Vilém Flusser realizam uma aguda crítica da razão prevalecente na sociedade contemporânea, ao identificar os instrumentos que promovem a manipulação e a programação das consciências, isto é, os mecanismos de controle, na visão de Herbert Marcuse, e os aparelhos que portam programas, de acordo com Vilém Flusser. Pretendemos apresentar esses pontos de contato entre as ideias dos dois filósofos e como a comunicação de massa se insere na discussão de cada um deles. Este trabalho é um início de diálogo entre o pensamento de ambos.
Palabras claves: Marcuse, Flusser, Comunicação de massa, Unidimensional, Aparelho.
ABSTRACT
Herbert Marcuse and Vilém Flusser realize an acute critique of the prevalent reason in the contemporary society, identifying the instruments that promote the manipulation and the programming of the consciousness of people, that is, the control mechanisms, in the view of Herbert Marcuse, and the apparatus, according to Vilém Flusser. We intend to expose these contact points between the ideas of both philosophers and how the mass communication inserts itself in the discussion of each of them. This text is a beginning of a dialogue between the thoughts of both.
Keywords: Marcuse, Flusser, Mass communication, Unidimensional, Apparatus.
Herbert Marcuse (1898-1979) e Vilém Flusser (1920-1991) são judeus que emigram para escapar do nazismo, experiência comum que os leva a direções diferentes. Marcuse sai da Alemanha e vai para os Estados Unidos, onde tem oportunidade de observar o funcionamento do mecanismo capitalista de uma sociedade opulenta. Flusser sai da Tchecoslováquia e vem para o Brasil, onde vivencia a realidade de um país subdesenvolvido, fraturado pelo contraste entre a riqueza e a miséria. Apesar de vivências e caminhos teóricos distintos, é possível entrever um diálogo entre eles, tendo em vista a análise que realizam da sociedade contemporânea, buscando desvelar sua estrutura e possibilidades futuras.
Marcuse, principalmente na obra A ideologia da sociedade industrial, de 1964, entende que a sociedade industrial é unidimensional, ou seja, nela há uma harmonização, uma neutralização da oposição, na esfera do pensamento, da linguagem, da arte. Sob uma superfície racional, o que há é irracionalidade, que não é percebida enquanto tal, pois os controles fazem parte da administração que funciona de maneira eficiente e foram devidamente introjetados. Não há como identificar quem exerce a dominação, já que ela é impessoal e quem domina também é dominado. A avaliação dos indivíduos se dá de acordo com o desempenho ou rendimento na esfera econômica e o valor da produtividade acorrenta-os à labuta. No entanto, as realizações materiais alcançadas geram uma sensação de liberdade e de felicidade que acarreta, por sua vez, a defesa do aparato repressivo. Ocorre que o homem "renuncia à sua liberdade sob os ditames da própria razão" (MARCUSE, 1999a, p. 82).
Diversos instrumentos moldam a consciência e a existência humana, como a mais-repressão, ou seja, o excesso de repressão que ultrapassa o nível básico de repressão exigida no processo civilizatório; a liberação controlada da sexualidade; a perpetuação da labuta e da guerra; a produção de mercadorias supérfluas; a criação de falsas necessidades, entre outros. A tecnologia é um meio privilegiado de controle da natureza, do homem e da sociedade, uma vez que o projeto tecnológico é um projeto político estabelecido pela racionalidade tecnológica. Nas palavras de Marcuse,
Hoje, a dominação se perpetua e se estende não apenas através da tecnologia, mas como tecnologia, e esta garante a grande legitimação do crescente poder político que absorve todas as esferas da cultura. [...] Nesse universo, a tecnologia também garante a grande racionalização da não-liberdade do homem e demonstra a impossibilidade "técnica" de a criatura ser autônoma, de determinar a sua própria vida. Isso porque essa não-liberdade não parece irracional nem política, mas antes uma submissão ao aparato técnico que amplia as comodidades da vida e aumenta a produtividade do trabalho (1982, p. 154).
A racionalidade tecnológica afeta inclusive o conceito marxiano da alienação, uma vez que a identificação dos indivíduos com as mercadorias não é ilusória, é uma realidade. A consciência individual identifica-se mimeticamente com o social, resultando em uma submissão integral ao status quo. A ideologia está no próprio processo de produção, o que significa que na aquisição de mercadorias o consumidor adquire ao mesmo tempo estilos e modelos de comportamento.
Segundo Flusser, vivenciamos a transição de uma sociedade histórica para uma sociedade pós-histórica. A partir do momento em que o homem cria a escrita, tem início a história, e vai ficando para trás a pré-história, marcada pelas imagens pictóricas baseadas em cenas representativas de ocorrências cotidianas. Hoje é a pós-história que se descortina, a partir do resultado da transcodificação de textos escritos em imagens técnicas, as quais são produzidas por aparelhos. Aparelho, na obra flusseriana, especialmente em Pós-história: vinte instantâneos e um modo de usar, de 1983, pode ter um significado amplo, chegando a abranger a cultura, e também um significado restrito - neste caso, diz respeito ao aparelho técnico responsável por transformar textos em imagens, como uma máquina fotográfica ou uma televisão, por exemplo. Porém, todos eles portam um programa. E são os programas que modelam a consciência e o comportamento humanos. Em sua essência, todos os aparelhos são caixas pretas, pois não sabemos o que se passa no seu interior: "Tal qual Auschwitz, caixas pretas que funcionam com engrenagens complexas para realizarem um programa" (FLUSSER, 1983, p. 14). São caixas pretas que reificam, que desumanizam o homem, que despolitizam por "entorpecerem a faculdade crítica da sociedade" (FLUSSER, 1983, p. 140). Assim, Flusser afirma:
A cultura ocidental, como um todo, se revela destarte como projeto que visa transformar-se em aparelho. O que caracteriza o Ocidente é sua capacidade para a transcendência objetivante. Tal transcendência permite transformar todo fenômeno, inclusive o humano, em objeto de conhecimento e manipulação. (1983, p. 14).
O homem torna-se um funcionário das caixas pretas, funcionando segundo as solicitações dos seus programas, sendo que elas são programadas pelos programadores e mesmo por outros aparelhos; e os programadores também são programados para programar. Como não deseja libertar-se dos modelos informativos, por já se sentir liberto dos modelos industriais anteriores, "sente-se bem enquanto escravo" (FLUSSER, 1983, p. 87). Ele não se dá conta de que também é programado pela infinidade de objetos que o cerca, em dois sentidos inclusive. Diz Flusser: "Somos programados a não podermos sobreviver sem eles. E somos programados a não percebermos a estupidez deles" (1983, p. 129)".
Essa situação promove a alienação de toda a sociedade. Trata-se de "Loucura coletiva, inclusive no significado psiquiátrico do termo. É loucura acompanhada de estupidez galopante. Por certo: não podemos 'superar' tal estupidez louca: somos todos vítimas. Mas podemos diagnosticá-la, sobretudo em nós mesmos" (FLUSSER, 1983, p. 167).
De acordo com Abraham Moles, a postura aberta à constestação de Flusser o levou a conhecer a fundo o pensamento da Escola de Frankfurt (MOLES, 1992, p. 112). Assim, não é de se estranhar que encontremos pontos de contato entre ele e os frankfurteanos. A partir de alguns traços bem gerais do pensamento dos dois filósofos que esboçamos acima, é possível observar que ambos realizam uma aguda crítica da razão prevalecente na sociedade contemporânea, ao identificarem os instrumentos nela presentes que promovem a manipulação e a programação das consciências, isto é, os mecanismos de controle, na visão de Herbert Marcuse, e os aparelhos que portam programas, de acordo com Vilém Flusser. Eles percebem nessa sociedade a irracionalidade que se traveste de racionalidade e a não-liberdade de liberdade. Lançam luz sobre o fenômeno da alienação, que se efetiva em especial através da tecnologia e produz um homem funcionário, que não é livre, que não reflete, que cumpre e dá ordens que julga racionais, tendo em vista o funcionamento eficaz dos vários aparelhos com os quais lida.
Mesmo diagnosticando condições tão adversas, ambos acreditam que a liberdade é uma possibilidade real, que se constitui a partir de uma base concreta. Para Marcuse, existem condições objetivas, tanto materiais quanto intelectuais, de se alcançar a liberdade. Nas suas palavras, "A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade, tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição do trabalho árduo" (MARCUSE, 1999a, p. 74). Isto quer dizer que a tecnologia que organiza o aparato técnico pode tomar outro rumo, realizando concretamente possibilidades que têm sido represadas por interesses de dominação.
Por sua vez, Flusser acredita ser possível um jogo consciente e criativo contra o aparelho, capaz de subverter sua programação. A criatividade, originalidade e o diálogo, que se relacionam com a capacidade de geração de informação nova, são conceitos fundamentais para se pensar a liberdade. Diz o filósofo: "Mas há sempre a esperança para aqueles que pensam que o homem é um ser criativo e aberto aos outros. Há sempre a possibilidade para verdadeiros diálogos" 1 (FLUSSER, 2008, p. 4, tradução nossa).
Comunicação de Massa
Flusser escreveu uma série de trabalhos nos quais refletiu sobre os meios de comunicação, mais especificamente sobre a imagem técnica, sendo inclusive suas teorias a esse respeito mais conhecidas e difundidas do que aquelas desenvolvidas anteriormente, que giravam em torno da língua. Já Herbert Marcuse não apresentou um estudo sistemático sobre a comunicação de massa, mas isso foi discutido em vários momentos da sua obra, sendo ela compreendida como um dos instrumentos de dominação na sociedade industrial.
A comunicação na sociedade unidimensional
Herbert Marcuse2 no texto "Sobre o caráter afirmativo da cultura" (1997), de 1937, apresenta a dicotomia civilização e cultura. Civilização corresponderia à esfera das necessidades, do trabalho e da produção material; cultura (burguesa), a um reduto dos ideais de felicidade, beleza, justiça, liberdade, solidariedade, enfim, a um refúgio das aspirações e valores da alma, ideais que se efetivavam na arte. Convertendo-se em ideologia, essa cultura tornou-se autônoma em relação à civilização, exercendo um controle sobre a maioria, entregue ao sacrifício cotidiano da luta pela existência. Apesar disso, ao se despreocupar em relação à realização das ideias difundidas de liberdade e igualdade e se alienar das exigências da reprodução material, essa cultura continha elementos que transcendiam a ordem existente, que acenava para uma "promessa de felicidade".
Já no texto de 1965, "Comentários para uma redefinição de cultura", Marcuse reconhece uma transformação substancial na relação existente entre cultura e civilização. Trata-se do processo de incorporação da cultura pela civilização, ou seja, o desaparecimento da posição antagônica que a esfera espiritual ocupava frente à esfera material. Se, antes, ele denunciava a alienação da cultura, nesse momento se ressente da sua absorção pelo mundo da produção material e dos negócios. De acordo com o pensador, "as obras que antes se destacavam escandalosamente da realidade existente e estavam contra ela foram neutralizadas como clássicas; e com isso já não conservam sua alienação da sociedade alienada" (MARCUSE, 1998, p. 161).
Em A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, no capítulo "A conquista da consciência infeliz: dessublimação repressiva", esta questão também é discutida por Marcuse. Ele sublinha que no processo de absorção da cultura pela esfera material, ou seja, na transformação dos bens culturais em mercadorias, o que ocorre "não é a deterioração da cultura superior numa cultura de massa" (MARCUSE, 1982, p. 69) e sim uma assimilação dos valores ideais pela realidade. O progresso tecnológico torna possível a materialização de ideais (MARCUSE, 1982, p. 81) graças às realizações da sociedade industrial desenvolvida, que cumpre com eficiência o seu projeto de subjugação da natureza, aliviando a escassez e oferecendo uma quantidade impressionante de mercadorias.
Reproduções literárias e filosóficas em bancas de jornal, a informalidade do público que assiste a uma peça de teatro ou ópera, discos ao invés de concertos, tudo isso contribui para a democratização da cultura. O que era privilégio de poucos está agora à disposição da maioria. No entanto, essa democratização redunda em dominação, pois destrói o caráter negativo da cultura tradicional. Esta perde a verdade do seu conteúdo, que residia na recriação alienada do existente, em seu caráter não operacional, no distanciamento do mundo dos negócios e dos desempenhos socialmente úteis. Os elementos de oposição ao instituído, antes presentes na literatura, música, filosofia e religião, se enfraquecem com a sua reprodução e consumo massivos.
Para Marcuse, a integração da cultura à civilização seria uma forma de dessublimação, ou seja, transformação da satisfação mediata da sublimação por satisfação imediata. Isso porque a alienação da cultura superior era considerada, por ele, sublimação, uma vez que as imagens e valores que transmitia conservavam um espaço de negação do princípio de realidade, remetendo à necessidade de liberação, à possibilidade de uma sociedade futura baseada na gratificação. Mas a incorporação daquelas imagens "à cozinha, ao escritório, à loja; sua liberação para os negócios e a distração é, sob certo aspecto, dessublimação...", diz Marcuse (1982, p. 82). Trata-se de um processo de dessublimação repressiva e institucionalizada.
Nesse contexto, qual seria o papel desempenhado pela comunicação de massa? Marcuse atribui a ela a responsabilidade pela transformação da cultura superior em mercadoria, ao colocar, lado a lado, anúncios, filosofia, artes e religião. No universo da cultura de massa, que é dominado pelos veículos de comunicação de massa e pela propaganda, tudo adquire o mesmo valor - o valor de troca, e tudo tem a função de divertir. Nas palavras do pensador: "Se as comunicações em massa misturam harmoniosamente e, com frequência, imperceptivelmente, arte, política, religião e filosofia com anúncios, levam essas esferas da cultura ao seu denominador comum - a forma de mercadoria" (MARCUSE, 1982, p. 70). E ainda: "No domínio da cultura, o novo totalitarismo se manifesta precisamente num pluralismo harmonizador, no qual as obras e as verdades mais contraditórias coexistem pacificamente com indiferença" (MARCUSE, 1982, p. 73). As obras de arte, integradas na cultura de massa, além de mercadorias, são também anúncios. Como diz o filósofo: "As obras de alienação são, elas próprias, incorporadas nessa sociedade e circulam como parte e parcela do equipamento que adorna e psicanalisa o estado de coisas predominante. Tornam-se, assim, anúncios - vendem, reconfortam, excitam" (MARCUSE, 1982, p. 75).
Um tema que também se relaciona com a comunicação de massa é o da despersonalização do superego, tratado por Marcuse na obra Eros e civilização. Freud ensina que o superego é a instância repressiva e punitiva do aparelho mental que, a princípio, internaliza a autoridade paterna e, depois, os seus modelos substitutos, tornando-se o representante da moralidade, isto é, a consciência que pressiona e censura o ego. Mas Marcuse observa que, à medida que os controles externos se intensificam, a constituição do superego se modifica. No sistema administrado, há uma despersonalização do superego, ou seja, as imagens do pai, do professor, do chefe, do patrão, desaparecem, não sendo mais possível identificar quem exerce o domínio. A família perde sua função socializadora para agências extrafamiliares e a normatividade é exercida pelo todo. A comunicação de massa é apontada como exemplo de uma dessas instâncias socializadoras substitutas, como se pode perceber por esse trecho de Marcuse (apud ROUANET, 1989, p. 238):
Desde o nível pré-escolar, as histórias em quadrinho, o rádio e a televisão fixam o modelo do conformismo e da rebelião... Os especialistas dos mass media transmitem os valores exigidos: oferecem a perfeita educação da eficácia, da tenacidade, da personalidade, do devaneio e do sentimentalismo. Contra uma tal educação, a família não é mais capaz de lutar
A questão da linguagem unidimensional, em A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, é outro ponto discutido por Marcuse, que diz respeito à comunicação de massa, já que o pensador aproxima a linguagem da sociedade industrial avançada à comunicação publicitária. Para ele, o estilo do discurso publicitário, que está no âmbito comercial, se amplia para outras esferas da linguagem, inclusive a política, produzindo um efeito semelhante no receptor.
A mensagem publicitária é elaborada para que o consumidor não reflita, e sim que reaja ao seu comando, comprando o produto anunciado. Da mesma maneira, a linguagem da sociedade unidimensional manipula o destinatário, impondo-lhe comandos, que não são percebidos como tais. Segundo Marcuse, a linguagem "torna-se, ela própria, um instrumento de controle até mesmo onde não transmite ordens, mas informação; onde não exige obediência, mas escolha, onde não exige submissão, mas liberdade." E acrescenta: "O novo toque da linguagem mágico-ritual é, antes, o de as pessoas não acreditarem nela, ou não se importarem com ela, mas não obstante, agirem em concordância com ela" (1982, p. 107).
Análoga à comunicação publicitária, a linguagem unidimensional é abreviada, hipnótica e autoritária. No discurso da publicidade, a estrutura das sentenças é simples e condensada; há abuso das repetições, unificação de opostos e criação de imagens que devem se associar sempre a um produto determinado. Além disso, objetivando a identificação do destinatário com o que lhe é proposto, usa bastante a técnica da personalização da mensagem, como por exemplo, "... o 'seu' parlamentar, a 'sua' rodovia, a 'sua' farmácia, (...) 'você' está convidado..." (MARCUSE, 1982, p. 99). Essas técnicas, próprias da mensagem publicitária, são utilizadas também na construção da linguagem unidimensional, que se torna fechada, não favorecendo o desenvolvimento dos conceitos e enfraquecendo o protesto e a recusa.
Outra questão que devemos focalizar é a do consumo alienado e das falsas necessidades. O nível tecnológico alcançado tem disponibilizado uma quantidade crescente de mercadorias, que proporcionam conforto e preenchem a vida dos indivíduos. Eles se identificam com os produtos, o que conduz também à identificação com os produtores e com o todo. Essas mercadorias controlam suas vidas, trazendo consigo estilos, formas de reação e de comportamento e obriga-os a trabalhar mais, para viabilizar o consumo. Eles não percebem que a maioria desses produtos atende a falsas necessidades, isto é, que são fabricadas sob o imperativo do lucro, e são repressivas, por mais que sejam consideradas agradáveis e benéficas. Acreditam que essas necessidades são deles próprios, e não foram criadas por interesses de dominação. O consumo dos meios de comunicação de massa é incluído, por Marcuse, na categoria das necessidades supérfluas. Para ele, ter necessidade de comprar um aparelho de televisão maior e mais sofisticado, passar uma quantidade excessiva de tempo diante dele (MARCUSE, 1999b, p. 113), ter "dúzias de jornais e revistas que esposam os mesmos ideais" (MARCUSE, [198-], p. 99) e "comportar-se e consumir de acordo com os anúncios" (MARCUSE, 1982, p. 26) são exemplos de falsas necessidades.
O filósofo aponta a “redefinição das necessidades” como uma das condições essenciais para a conquista da autonomia. Nesse sentido, atribui uma força extraordinária aos veículos de comunicação, no que se refere à doutrinação e manipulação das consciências. A falta da televisão e de outros media afetaria não somente a esfera individual, pois se as pessoas fossem privadas da comunicação de massa, isso conseguiria minar as bases do sistema, levando-o ao colapso. São essas as suas palavras:
Vejamos um exemplo (infelizmente fantástico): a mera ausência de toda propaganda e de todos os meios doutrinários de informação e diversão lançaria o indivíduo num vazio traumático no qual ele teria oportunidade de cogitar e pensar, de conhecer a si mesmo (ou antes o negativo de si mesmo) e a sua sociedade (MARCUSE, 1982, p. 226).
A comunicação na sociedade histórica
Segundo Vilém Flusser, a comunicação humana se baseia na criação de símbolos e na organização desses símbolos em códigos. Trata-se de um processo artificial, proposital e contranatural, já que se orienta em direção contrária à tendência entrópica da natureza, ao encontrar maneiras de acumular informação. A produção, acumulação e distribuição de informação é uma maneira de o homem se esquecer de que é um ser solitário, vivendo uma vida sem sentido que um dia se extinguirá com a morte. Entretanto, há uma contradição em tal situação, uma vez que “O mais solitário dos animais é capaz da mais rica comunicação”3 (FLUSSER, 1978, p. 28, tradução nossa). Nesse sentido, o homem participa criativamente da comunicação com o objetivo de se tornar imortal (FLUSSER, 1978, p. 32). A capacidade de criar códigos para se comunicar revela-se, assim, como uma forma de resistência e de rebelião contra a morte.
Tal capacidade acabou gestando códigos que se tornaram paradigmáticos, uma vez que inauguram uma forma determinada de pensamento e de consciência. São eles: o código das primeiras imagens, que funda a pré-história; o código linear da escrita, que marca o advento da história e norteia nosso pensamento e vivência; e o código das imagens técnicas, que conduz ao aparecimento da pós-história.
O homem acabou por criar aparelhos capazes de transcodar ou transcodificar o código textual da história em outro tipo de código, o tecno-imaginário, cujos elementos são bits, fótons e elétrons. Esses aparelhos são os veículos da comunicação de massa. Conforme o filósofo:
Os aparelhos da comunicação de massa são caixas pretas que transcodam as mensagens provindas das árvores da ciência, da técnica, da arte, da politologia, para códigos extremamente simples e pobres. Assim transcodadas, as mensagens são irradiadas rumo ao espaço, e quem flutuar em tal espaço e estiver sincronizado, sintonizado, programado para tanto, captará as mensagens irradiadas. A “cultura de massa” é o resultado deste método de comunicação discursiva (FLUSSER, 1983, p. 61).
A comunicação discursiva caracteriza-se pela transmissão de informações e, juntamente com a comunicação dialógica, que é a produção de informações novas, constitui o tecido comunicativo. Na sociedade atual predomina o discurso ao invés do diálogo, o que resulta na “solidão na massa” (FLUSSER, 1983, p. 59), fruto não da carência de informação, uma vez que esta é abundante, nem do mau funcionamento dos canais comunicativos que funcionam com eficiência, mas da incapacidade de geração de informação nova, o que é possível em uma relação dialogante. A comunicação de massa é um discurso do tipo anfiteatral, ou seja, a informação é irradiada a partir de um centro rumo ao espaço, para ser captada por receptores isolados. (FLUSSER, 2002, p. 46) Ser fonte criativa de novas informações caracteriza o diálogo, diz Flusser, assim como a possibilidade da resposta imediata e a responsabilidade envolvida na troca das informações; porém, o predominante é a massificação totalitária, estéril e despolitizada. Mesmo se levarmos em consideração o texto, que é o código predominante, observa-se a vigência de uma “indústria de anestesiação automática” (FLUSSER, 2010, p. 56), composta por funcionários que produzem e distribuem uma “floresta de folhas”, isto é, livros e outros impressos em abundância, com o fito de anestesiar os leitores.
Rainer Guldin lembra que Flusser tem uma preocupação antropológica, qual seja, "a maneira pela qual os media modificam o nosso estar no mundo" (2008, p. 99). E esta é inclusive uma das teses flusserianas fundamentais, uma vez que ao dividir os períodos da civilização em Pré-história, História e Pós-história, ele explica que os códigos que caracterizam cada uma dessas fases influenciam decisivamente o pensamento e a vivência do homem.
Em relação às novas imagens, as técnicas, Flusser diz que não é seu significado interno que importa e sim o sentido para o qual apontam. Ao contrário das imagens tradicionais, que eram cenas representando circunstâncias concretas e neste sentido eram espelhos, as novas são projeções, são imperativos, "pontas de dedos" que apontam um caminho a ser seguido, ou seja, vivências, gestos, valores, comportamentos. Elas significam programas (FLUSSER, 2008, p. 53). Diante dos aparelhos e das imagens, há o medo de que permaneça a situação atual, na qual os homens são funcionários que se divertem com os gadgets, criando uma rede onde o diálogo é apenas conversa fiada4. Há o medo de que o homem se isole, vivendo uma vida solitária, sem contato direto com os demais, enquanto se comunica com eles através da tela do computador (FLUSSER, 2008, p. 85-87). Porém Flusser detecta duas tendências no mundo dos aparelhos: uma é a sociedade totalitária da centralização da informação, dos receptores e dos funcionários constituindo uma massa amorfa; a outra é a sociedade dialógica dos imaginadores, os criadores das imagens técnicas, e dos colecionadores das imagens (FLUSSER, 2008, p. 14). É o predomínio do diálogo que romperá com a estrutura discursiva da comunicação de massa. E tal modificação se dará tecnologicamente, ciberneticamente, através dos próprios aparelhos de comunicação. É possível para aquelas pessoas, que hoje apenas se divertem com os aparelhos e suas imagens, também participar do diálogo autêntico, desde que conservem uma distância crítica e invertam o curso dos aparelhos em direção à liberdade (FLUSSER, 2008, p. 89-90).
Se o que existem, atualmente, são alguns poucos modelos de percepção dirigindo nossa experiência, como acontece, por exemplo, com o modelo amoroso hollywoodiano; é a introdução de canais comunicantes que pode romper com esse imperialismo. Com uma visão otimista, ele percebe na obra A escrita: há futuro para a escrita?, de 1987, que já estava em curso uma mudança nesse sentido:
E, por isso, inúmeros modelos de percepção até então reprimidos já urgem agora nos canais que nos alimentam. Nós já percebemos agora de uma maneira muito mais complexa do que as gerações anteriores. Não só nossa vida amorosa, como também nossa experiência de cores, sons e sabores tornam-se cada vez mais complexas (FLUSSER, 2010, p. 88).
No entender de Flusser, não é “uma revolução histórica (uma revolta dos fracos contra os fortes)” (2010, p. 87) que pode alterar a maneira de se perceber o mundo. Uma nova forma social que substitua a anterior é uma questão técnica, ou esclarecendo melhor, a questão técnica é a questão política que interessa: “As questões que os novos engajados devem formular são, pois, necessariamente técnicas, por exemplo: como é possível se alterarem os feixes que irradiam imagens e dispersam a sociedade em indivíduos solitários e programados?” (FLUSSER, 2008, p. 67). Ao invés de concentrarmos o foco na massa de indivíduos isolados, devemos transferi-lo para os aparelhos, para as imagens. “Todo engajamento político futuro, se quiser ser ‘humano’, deve deixar de ser antropocêntrico e ‘humanista’, no sentido antigo do termo” (FLUSSER, 2008, p. 67-68), afirma o filósofo. Os novos revolucionários são aqueles que dominam o novo código, os imaginadores, como fotógrafos, cineastas, criadores de software, e também os que colaboram com eles (FLUSSER, 2010, p. 71).
Mesmo no universo do código alfabético, há aqueles que rompem com a anestesia reinante, ao escreverem textos que são um "cerrar de punhos" (FLUSSER, 2010, p. 58), isto é, que entusiasmam e provocam o leitor a partir de contradições internas. Neles reside a esperança de que o texto consiga sobreviver ao universo das imagens pós-históricas. Porém, a tendência é de os media que produzem tecno-imagens tornarem-se hegemônicos, encerrando o período de dominância da escrita e, um dia, acabando mesmo por decretar o seu fim.
Algumas considerações
Se compararmos a estrutura da comunicação de massa, em Herbert Marcuse e Vilém Flusser, encontramos características essenciais comuns. É uma comunicação que aliena, ao garantir uma recepção passiva e não reflexiva; impõe modelos de comportamento e pensamento e utiliza uma linguagem empobrecida.
Nessa linha, os dois filósofos têm como uma de suas referências a tese defendida por Adorno e Horkheimer relativa à indústria cultural. Ao apontar, por exemplo, o processo da dessublimação repressiva, no que tange à integração da cultura na esfera da civilização, que equivale à transformação da cultura em mercadoria, Marcuse comunga da teoria dos seus colegas frankfurteanos. Já Flusser, em Pós-história, no capítulo “Nosso divertimento”, aproxima-se bastante da teoria da indústria cultural ao referir-se à indústria da diversão como uma busca pelas sensações, pela suspensão da consciência da infelicidade, e, principalmente, ao dizer que o divertimento é “relaxamento da tensão dialética que caracteriza a consciência humana” (1983, p. 114) e também que a sociedade de massa se caracteriza pela “incapacidade de digerir o devorado” (1983, p. 115).
Como sabemos, para Adorno e Horkheimer a indústria cultural está comprometida com a diversão e debilita a reflexão, uma vez que seus produtos impõem um ritmo de associações automáticas, que exigem pouco esforço na apreensão e garantem uma recepção instantânea e prazerosa.
Para Marcuse, a linguagem unidimensional tem as características da linguagem publicitária. Isto quer dizer que é fechada, simplificada, e autoritária, ao efetuar comandos que não são percebidos como tal. Rainer Guldin apresenta termos bastante próximos do sentido marcuseano, ao qualificar o código da estrutura anfiteatral da comunicação apresentado por Flusser, como “um código uniforme, uniformizante e universalizante” (2008, p. 93). Para este último, o clichê e a repetição não passam de conversa fiada que se opõe à conversação, o dialogar que acrescenta o novo no tecido da língua.
Enquanto Marcuse sonha com o que poderia ocorrer diante de uma falência de todos os meios informativos, ou seja, com um vazio que possibilitaria a reflexão, Flusser, em “Du dialogue familial au téléphone”, fantasia um autêntico diálogo filosófico exatamente em um desses meios, em um vídeo (2008, p. 4).
Marcuse não tem em mente uma revolução como meio para se chegar a uma sociedade não totalitária; no entanto, ele acredita em uma mudança política, tanto em nível social, quanto individual. A revolução, para Flusser, corresponde à transformação tecnológica efetuada pela transcodificação do código linear alfabético em código tecno-imaginário e na construção de uma rede de comunicação autêntica.
Apesar de considerar a classe proletária como fundamental no enfrentamento ao sistema capitalista, Marcuse inclui novos revolucionários nessa tarefa. São eles os excluídos, os marginalizados, os grupos minoritários e grupos divergentes, como os estudantes politizados. Por sua vez, Flusser também aponta novos revolucionários, apesar de apresentar uma visão bem diferente da marcuseana. São eles os programadores, os que utilizam os aparelhos de maneira imprevista e criativa, os envolvidos com as imagens técnicas, como os roteiristas e fotógrafos.
Para ambos, a liberdade futura se apoia na tecnologia. Marcuse acredita ser a tecnologia a base da liberdade, desde que seja reorientada para finalidades que não perpetuem a dominação; desde, portanto, que os critérios de uma vida melhor não sejam definidos em termos de objetos dispensáveis, e mesmo de automóveis e aviões. A completa automação conduzirá à diminuição do tempo dedicado ao trabalho, liberando energia física e libido para atividades livres e criativas. O desenvolvimento tecnológico, em Flusser, é o núcleo de sua visão da liberdade, já que uma sociedade livre seria uma sociedade informática, só que ao invés de centros irradiadores de informação, os homens trocariam informações livremente, em colaboração mútua.
Interessante comentar uma brevíssima observação de Flusser a respeito de o diálogo autêntico não ser somente uma troca de mensagens, mas se constituir também por uma reciprocidade erótica, que estaria na base da criatividade dialógica. O diálogo seria a síntese entre polemos, uma luta entre contrários, e eros, a pulsão erótica. Nesse sentido, o diálogo através do telefone ou de cartas, por exemplo, não seria erótico, apenas polêmico (FLUSSER, 2008, p. 4). Nessa menção rápida, ele se aproxima de Marcuse, pois, como sabemos, na utopia concreta marcuseana o que uniria a coletividade seria um vínculo erótico.
Para finalizar, esclarecemos que este trabalho é um início de diálogo entre o pensamento dos dois filósofos. Como sabemos, o diálogo é parte constitutiva das suas vidas e das suas obras. Marcuse dialogou com os estudantes nas universidades, no efervescente movimento político dos anos de 1960, e também o fez genialmente, ao dialogar com Freud em Eros e civilização. E Flusser, além de compreender o diálogo como vitalidade comunicativa, se comprazia em provocá-lo, tanto nos seus textos, quanto pessoalmente. Seu estilo era exatamente este.
Referencias Bibliograficas
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Endereço para correspondência
Maria Teresa Cardoso de Campos
Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH, Rua Diamantina, 567, Lagoinha,
CEP 31110-320,Belo Horizonte – MG, Brasil
Endereço eletrônico: teresa_campos@hotmail.com
Recebido em:18/03/2010
Aceito para publicação em: 15/04/2010
Acompanhamento do processo editorial: Jorge Coelho Soares e Ariane P. Ewald
Notas
*Mestre em Filosofia pela UFMG; professora no Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH, Belo Horizonte, MG, Brasil
1”Mais il y a toujours l’espoir pour ceux qui pensent que l’homme est un être créatif et ouvert aux autres. Il y a toujours la possibilité pour des vrais dialogues
2versão do que apresentamos sobre a comunicação em Herbert Marcuse foi publicada com o título “A comunicação de massa na sociedade unidimensional”, nos Anais do Congresso Internacional Dimensão estética: homenagem aos 50 anos de Eros e civilização, editado pela Associação Brasileira de Estética – ABRE, em 2006.
3“Le plus solitaire des animaux est capable de la communication la plus riche.”
4Conversa fiada é um conceito criado por Flusser, na primeira fase de seu pensamento, e aparece na obra Língua e realidade, de 1963. É conversa inautêntica em oposição à conversação, conversa autêntica.