Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.11 no.1 Rio de Janeiro abr. 2011
ARTIGOS
Marcuse e Jameson: da cultura afirmativa ao Pós-modernismo
Marcuse and Jameson: From the affirmative culture to Postmodernism
Mauricio Miranda dos Santos Oliveira*
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
A passagem da modernidade à pós-modernidade ainda precisa ser melhor compreendida e avaliada, principalmente por aqueles que reivindicam a necessidade de uma radical transformação de nossas sociedades, isto é, a substituição do modo de produção capitalista. Acreditamos que é possível apreender este novo contexto histórico, ou seja, o pós-modernismo, examinando, na obra de Marcuse, o chamado caráter afirmativo da cultura e, depois disso, a situação da cultura na pós-modernidade, a partir do ponto de vista da seminal contribuição de Fredric Jameson. A pergunta que orienta nossa reflexão tem um duplo sentido: o pós-modernismo representa, a um só tempo, a eliminação do caráter afirmativo da cultura e a dissolução da antiga dicotomia entre cultura e civilização?
Palabras claves: Cultura, Herbert Marcuse, Fredric Jameson, Pós-modernismo.
ABSTRACT
The passage from modernity to post-modernity still needs to be better understood and evaluated, especially for those who claim the need of a radical transformation of our societies, that is, the substitution of the capitalist mode of production. We believe it is possible to grasp this new historic context , namely, postmodernism, examining, in the work of Marcuse, the so called affirmative character of the culture and, after that, the situation of culture in post-modernity, from the point of view of the seminal contribution of Fredric Jameson. The question the guides our reflection has a double significance: does postmodernism represents, at the same time, the elimination of the affirmative character of the culture and the dissolution of the old dichotomy between culture and civilization?
Keywords: Culture, Herbert Marcuse, Fredric Jameson, Postmodernism.
Agora, o que eu quero são Fatos. Não ensinem a
esses meninos e meninas nada além de Fatos. A
vida quer apenas Fatos. Não plantem mais nada,
e arranquem todas as coisas. Somente sobre
fatos pode-se formar as mentes de animais
racionais: nada mais será de alguma serventia
para eles.
Hard Times (1854), Charles Dickens.
Qualquer tentativa de compreensão ou conceituação do pós-modernismo será, sempre e em primeiro lugar, um julgamento sobre a cultura e, mais ou menos explicitamente, sobre as sociedades capitalistas contemporâneas. No campo do marxismo, seguramente estamos longe de qualquer consenso ou palavra final sobre a crise da modernidade; contudo, entre os pensadores que mais contribuíram para melhor entendermos as relações entre o pós-moderno e as recentes transformações do capitalismo, parece haver pelo menos uma certeza: uma mudança de largas proporções aconteceu àquilo que chamamos de cultura. Fredric Jameson - a quem devemos a teorização mais sistemática e audaciosa a respeito do tema - justifica o uso do termo "pós-modernismo", enquanto lógica cultural dominante, como marco de uma genuína ruptura histórica no interior do modo de produção capitalista. É nossa intenção, aqui, esclarecer alguns pontos fundamentais deste processo, ou seja, da passagem da modernidade à pós-modernidade, à luz de uma questão que - sugerida pela teorização jamesoniana do pós-modernismo - nos remete a Marcuse, a saber: o advento do pós-moderno teria anulado o caráter afirmativo da cultura, assim como a tradicional tensão ou dicotomia entre civilização e cultura?
Creio que uma resposta razoável a esta questão nos permitirá compreender porque, do ponto de vista da dialética materialista, a mera recusa moral e ideológica do pós-modernismo por parte de uma certa esquerda, que insiste em vincular mecanicamente o pensamento de Marx ao Iluminismo, esquecendo-se de que ele foi, na verdade, o mais formidável e radical crítico da modernidade, é na melhor das hipóteses contraproducente. O pós-moderno constitui uma nova situação no interior do capitalismo e o reconhecimento da natureza histórica desta complexa mutação será um ganho para a compreensão do nosso presente, um passo fundamental para a teoria que, depois da derrota histórica, precisa descobrir novos caminhos para a transformação do mundo.
1. O chamado caráter afirmativo da cultura não é um traço específico da era burguesa, como lembra Marcuse, longe disso, toda a cultura produzida até aqui tem conservado esta marca, deste ou daquele modo, como elemento indispensável da dominação social. Entretanto, não custa mencionar o óbvio, isto é, que a cultura afirmativa sob a ordem do capital tem características muito peculiares, próprias de uma sociedade em que a lógica da produção e da troca de mercadorias tende a dominar todos os níveis da vida social.
As idéias de Marcuse sobre a cultura devem ser entendidas fundamentalmente a partir da constatação de uma distinção ou dicotomia produzida pela própria dinâmica das sociedades capitalistas. Segundo o filósofo alemão, vivemos num mundo que se apresenta dividido em duas dimensões: na primeira delas, que corresponde ao que podemos chamar de civilização1, predominam a necessidade, o trabalho, a produção material e o útil, em suma, esse é o domínio da não-liberdade, da mais-repressão. A segunda dimensão das sociedades burguesas é justamente a da cultura, para a qual reservamos a beleza, a verdade, a moral, a filosofia e os valores da "alma", quer dizer, essa é esfera em que devemos realizar, em alguma medida, nossos desejos de felicidade e liberdade, desenvolvendo ao máximo as capacidades propriamente humanas.
Não é difícil perceber que este conceito de cultura está em permanente contradição com os princípios da ordem do capital, ou seja, a sociedade industrial se desenvolve e progride em oposição aos valores espirituais e culturais que ela mesma professa. Essa separação idealista entre o "mundo espiritual" e a esfera da produção material está na base da cultura afirmativa, como nos explica Marcuse (2006, p. 95-96):
Cultura afirmativa é aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual-anímico, nos termos de uma esfera de valores autônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si "a partir do interior", sem transformar aquela realidade de fato. Somente nessa cultura as atividades e os objetos culturais adquirem sua solenidade elevada tanto acima do cotidiano: sua recepção se converte em ato de celebração e exaltação.
Nas sociedades capitalistas, portanto, a felicidade e as possibilidades de realização das capacidades humanas configuram-se necessariamente como ilusões ou frustrações, pois invariavelmente permanecem limitadas ao efêmero, ao privado. Em outras palavras, alguns poucos indivíduos privilegiados, enquanto mônadas isoladas, podem, em função de sua posição de classe, dedicar seu tempo livre à fruição estética, ao conhecimento teórico e à religião, por exemplo, deixando de lado, temporariamente, a brutalidade e a repressão da vida cotidiana. Foi assim, portanto, que, ao longo de seu confronto com o antigo regime (e posteriormente), a burguesia pôde postular valores universais como igualdade, fraternidade e liberdade sem, entretanto, realizá-los concretamente; em causa própria, a ordem do capital congelou suas exigências históricas num plano superior, onde não há lugar para a miséria, a dominação e o trabalho alienado.
Segundo a ideologia burguesa do progresso, o desenvolvimento da civilização fornece os meios para a realização da cultura, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas (da economia) deve criar as condições materiais para que, num dado momento da história, os valores culturais da modernidade deixem o mundo ideal e convertam-se em realidade para todos. Contra essa projeção idealista, Marcuse defende enfaticamente que o fim primordial da cultura deve ser a realização efetiva da felicidade universal, que, por sua vez, depende de uma transformação social radical. A força desse postulado aparentemente inocente não pode ser menosprezada. Segundo Marcuse: (2006, p. 100):
Numa sociedade que se reproduz por meio da concorrência econômica, a simples exigência de uma existência feliz do todo já representa uma rebelião: remeter os homens à fruição da felicidade terrena significa certamente não remetê-los ao trabalho na produção, ao lucro, à autoridade daquelas forças econômicas que preservam a vida desse todo. A exigência de felicidade contém um tom perigoso em uma ordem que resulta em opressão, carência e sacrifício para a maioria. As contradições de uma ordem como esta impelem à idealização dessa exigência. Mas a verdadeira satisfação dos indivíduos não pode ser enquadrada em uma dinâmica idealista que reiteradamente adia a satisfação ou desvia a mesma para aspirar ao nunca alcançado. Ela pode se impor somente contra a cultura idealista; somente contra essa cultura ela consegue se manifestar como exigência universal.
A cultura afirmativa é a resposta sistemática e contraditória da burguesia às críticas que recebe, ou seja, ela é o consolo em face da miséria do corpo e do espírito2 que o capitalismo produz e reproduz diariamente. A cultura da era moderna é contraditória porque seus conteúdos ajudam a legitimar o existente e ao mesmo tempo denunciam a dominação, a injustiça generalizada e a alienação produzidas pelas relações sociais burguesas. Por mais que a classe dominante insista na pureza da alma, na autonomia do belo e no conhecimento desinteressado, a chamada grande arte modernista declara, em menor ou maior medida, seu descontentamento com a lógica da produção de mercadorias e denuncia as falácias do conservadorismo. Independente da posição política dos artistas enquanto indivíduos, a verdadeira arte, sustenta Marcuse, protesta contra a lei do valor, revelando que, na ordem do capital, a felicidade, a liberdade e a paz aparecerão sempre como realizações idealizadas e abstratas, fruto de uma trajetória individual de heroísmo e sofrimento, ou coisa que o valha. Já na cultura de massa, os desejos humanos de felicidade, amor e liberdade freqüentemente se realizam, é verdade, mas sempre dentro dos limites do estético. O final feliz, característico dos produtos da indústria cultural, é o exemplo emblemático dessa lógica compensatória. De forma sucinta: a grande arte tende a demonstrar que as promessas de felicidade e realização humana da burguesia nunca se realizam histórica e concretamente. Neste ponto encontra-se, de acordo com o filósofo alemão, o potencial cognitivo e libertário da arte (MARCUSE, 1999, p. 31):
A separação da arte do processo da produção material deu-lhe a possibilidade de desmistificar a realidade reproduzida neste processo. A arte desafia o monopólio da realidade que o existente possui e fá-lo criando um mundo fictício que, no entanto, é mais "real do que a própria realidade.
A desvalorização da sensibilidade como algo inferior a razão, que nos afasta da verdade, enfim, como um fator potencialmente danoso a vida humana em sociedade, não é originária da sociedade burguesa (basta lembrarmos que Platão expulsou os artistas de sua República).
A estética, que até o século XVIII dizia respeito à relação dos sentidos com o mundo, ou seja, ao conhecimento a partir do corpo e à experiência em sua acepção mais ampla, adquire, em Baumgarten, um significado muito diferente. Em suas Meditações Filosóficas sobre a Obra Poética (1735), o pensador alemão fez da estética uma disciplina filosófica especializada, fundada na suposta dicotomia entre as sensações e as idéias, entre espírito e natureza. Neste quadro, a sensibilidade aparece como a instância do engano, ou seja, as paixões e os afetos escapam aos limites da razão e neutralizam os princípios do pensamento conceitual3. Na tradição filosófica, autores de primeira grandeza como Schiller, Marx e Nietzsche rebelaram-se, de diferentes maneiras, contra esta separação e a desqualificação dos sentidos. Recusando radicalmente o deslocamento da sensibilidade para os porões da filosofia, Marcuse demonstra que, na ordem burguesa, esta redução do estético produziu uma verdadeira mutilação da experiência humana. Na exata medida em que a arte e o pensamento teórico são enaltecidos como os pontos mais altos da práxis humana, a sociedade do trabalho e da produtividade - que nega o tempo livre às classes subalternas - relega a imaginação e o prazer à esfera do supérfluo, desprezando quase que completamente o valor cognitivo da sensibilidade. O paradoxo, portanto, é que, ao mesmo tempo em que rebaixa a sensibilidade, a cultura afirmativa projeta num plano superior tudo aquilo que o cotidiano do capitalismo necessariamente precisa excluir (MARCUSE, 2006, p. 93):
Por trás da separação, em termos ontológicos e da teoria do conhecimento, entre o mundo dos sentidos e o mundo das idéias, entre a sensibilidade (Sinnlichkeit) e a razão (Vernunft), entre o necessário e o belo, se encontra além da rejeição simultaneamente também o alívio de uma má forma histórica da existência. O mundo material (aqui significando as diversas figuras do membro desta relação que em cada caso é "inferior") em si é apenas simples matéria, simples possibilidade, muito mais próxima do não ser do que do ser e se converte em realidade unicamente quando participa do mundo "superior". Em todas as suas configurações o mundo material permanece sendo matéria, material (Stoff) para algo distinto e que lhe confere valor. Toda verdade, bondade e beleza só pode lhe advir "do alto": por graça da idéia. E toda atividade da provisão material da vida permanece em sua essência não-verdadeira, má e feia.
Não é por acaso, portanto, que Marcuse recorre às elaborações do Schiller das Cartas para a Educação Estética do Homem (1794). Segundo o autor de Eros e Civilização, Schiller foi capaz de identificar o conflito fundamental da civilização, que é a luta incessante entre os dois impulsos básicos do ser humano, a saber: o impulso lúdico e o formal4. Não obstante, o que de fato ocorre aqui não é uma batalha, pois a razão exerce sobre a sensibilidade um verdadeiro despotismo. Para Marcuse, esse é um dos pontos chave da revolução social, quer dizer, a liberdade nascerá da emancipação dos sentidos e da imaginação, da construção de uma nova e harmônica relação entre razão e sensibilidade. A ligação orgânica entre o estético e o político, que Marcuse tanto valoriza em Schiller, ensina que as condições objetivas para a liberdade podem perfeitamente ser criadas em vão se, subjetivamente, não formos educados e formados para ela. Na ótica de Schiller, a relevância da beleza "consiste na possibilidade de um aprendizado prático para a verdadeira liberdade política e social do futuro, aprendizado este propiciado pela experiência estética" (JAMESON, 1985, p. 75). A reabilitação da sensibilidade, isto é, a supressão dos mecanismos de repressão que a civilização impôs sobre ela, corresponde, na perspectiva marcuseana, à vitória de Eros sobre as tendências destrutivas da sociedade do capital, numa palavra: ao advento de uma cultura não-repressiva.
Em seu mecanismo de projeção de um mundo superior, elevado, a cultura se deixa compreender como um longo processo coletivo de humanização, que, de certa forma, antecipa as metas que cada grupo de homens e mulheres deseja alcançar enquanto sociedade. Como já dissemos, à civilização - reino da necessidade, do trabalho, do princípio de desempenho - cabe a tarefa de criar as condições materiais para uma vida social feliz, livre e pacífica, da qual a miséria e a violência excessiva sejam banidas e em que todas as pessoas tenham a possibilidade de desenvolver suas capacidades e talentos singulares. A princípio, parece inegável que o desenvolvimento da tecnologia é, em si mesmo, favorável a humanidade. A racionalização e a automação cada vez mais tornam desnecessária a participação direta do homem na produção material, quer dizer, a quantidade de tempo e energia que precisamos despender no trabalho para satisfazer as necessidades de todos foi drasticamente reduzida. No contexto das sociedades industrializadas, sustenta Marcuse, já não se trata de combater a alienação do trabalho com o intuito de tornar agradável ou edificante o que é e será sempre penoso, em outras palavras, a automação geral está entre os pressupostos essenciais da liberdade e seu aprofundamento, enquanto processo, conclui a alienação do trabalho precisamente na medida em que o próprio avanço tecnológico nos dispensa da labuta5. Este desenvolvimento objetivamente põe fim à escassez, ou seja, a emancipação dos indivíduos e da humanidade tornou-se, pela primeira vez na história, uma possibilidade concreta, real. Há muito deixou de ser utopia a substituição de boa parte das atividades que arbitrariamente reunimos sob o nome de trabalho pelo jogo (atividade lúdica). Com a crise do desemprego estrutural, que se agrava sem parar desde os primeiros anos da década de 1970, torna-se ainda mais atual a posição de Marcuse em relação ao trabalho. Ao contrário do marxismo oficial, - que, respaldado por uma certa linha do pensamento de Marx, critica violentamente a alienação e ao mesmo tempo exalta as virtudes do trabalho, sublinhando sua eterna necessidade - Marcuse, seguindo um outro caminho que a própria obra de Marx nos propicia, insiste que a liberdade está fora do trabalho e que a vida social na sociedade sem classes terá o tempo livre como fundamento, ao contrário do que ocorre no mundo burguês (e do que aconteceu no "socialismo real")6. Nos Grundrisse, Marx explica, numa passagem riquíssima, que com o desenvolvimento da técnica e da grande indústria, (Citado em ROSDOLSKY, 2001, p. 354-355)
O trabalho já não aparece tanto confinado ao processo de produção, pois o homem se comporta como supervisor e regulador em relação a este processo [...]. O trabalhador já não introduz a coisa natural modificada, como elo intermediário, entre o objeto e ele mesmo, mas insere o processo natural, transformado em processo industrial, como meio entre si mesmo e a natureza inorgânica, à qual domina. Apresenta-se ao lado do processo de produção, em vez de ser seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como pilar fundamental da produção e da riqueza não são nem o trabalho imediato executado pelo homem nem o tempo que este trabalha, mas sim sua força produtiva geral, sua compreensão da natureza e seu domínio sobre ela graças à sua existência como corpo social; em uma palavra: o desenvolvimento do indivíduo social. [...] O mais-trabalho da massa deixa de ser condição para o desenvolvimento da riqueza social, assim como o não-trabalho de uns poucos deixa de sê-lo para o desenvolvimento da potência geral do intelecto humano. Com isso desmorona a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção material imediato se despoja da forma de carecimento e antagonismo. Trata-se agora de desenvolver livremente as individualidades, e não de reduzir o tempo de trabalho necessário, tendo em vista criar mais-trabalho; a redução do trabalho necessário da sociedade a um mínimo passa a corresponder à formação artística, científica etc., dos indivíduos graças ao tempo que se tornou livre e aos meios criados por todos.
Nos marcos do capitalismo, entretanto, a produtividade, que em outro contexto poderia diminuir a repressão e propiciar tempo livre, é, ela mesma, serva da dominação. Ao invés de libertar, o aparato tecnológico transfigura-se em meio de dominação e controle. O progresso técnico, portanto, pode aprofundar a dicotomia civilização/cultura na medida em que, por conta própria, suas realizações espantosas se mostram incapazes de eliminar as guerras, as desigualdades sociais e a mais-repressão da vida cotidiana7. Ao mesmo tempo, afirma Marcuse, a cultura parece cada vez mais estar integrada ao mundo do trabalho e a esse cotidiano de pobreza espiritual e angústia, o que, definitivamente, põe em cheque a distinção entre o mundo superior da cultura e a civilização. Lançadas ao domínio da necessidade, as pulsões de Eros perdem sua vigor, abrindo, assim, espaço para o florescimento das mais violentas tendências destrutivas, como o provam o nazismo, o stalinismo e todas as guerras do século XX. Segundo Marcuse (1998, p. 157):
a civilização tecnológica tende a eliminar os objetivos transcendentes da cultura (transcendentes em referência aos objetivos socialmente estabelecidos) e elimina ou reduz com isso aqueles fatores e elementos da cultura que, frente às formas dadas da civilização, eram antagônicos e alheios. A conhecida tese segundo a qual a fácil assimilação de trabalho e descanso, de renúncia (Versagung) e divertimento, de arte e serviço doméstico, de psicologia e gerencia mudou a função tradicional desses elementos culturais não precisa ser repetida aqui: (esses elementos) tornam-se afirmativos, isto é, servem para consolidar a violência do existente sobre o espírito (Geist) - aquele existente que tornou acessível os bens culturais aos homens -, e levou a reforçar o grau daquilo que é frente ao que pode ser e ao que deve ser - deveria ser, se os valores culturais contivessem verdade.
Aprisionada nas estruturas da dominação capitalista, a maturidade da civilização não se traduz na realização dos valores da cultura, em liberdade, paz e prazer. Assim sendo, como um protesto inconsciente, as pulsões de morte (Thanatos) acabam oferecendo sua resposta a esta enorme frustração coletiva, em outras palavras, diante da perpetuação da labuta, da mais-repressão e do princípio de desempenho - em meio ao monumental avanço material - só nos resta uma certeza: o fracasso de Eros implica na produção das mais terríveis formas de regressão social. Se por um lado a sociedade industrial criou as condições materiais para a liberdade e o fim da vida como trabalho, de outro ela desenvolveu, como nunca antes na história, meios técnicos e militares que tornaram possível o extermínio da humanidade e a destruição total do planeta. Desta forma, a vitória da civilização sobre a cultura é também a derrota da natureza, quer dizer, a destruição avassaladora do meio ambiente significa a eliminação progressiva do outro do espírito. Assim, a antiga oposição se desmancha em um todo homogêneo e degradado.
Diferente dos ecologistas do Greenpeace, Marcuse sublinha que a devastação da natureza não pode ser entendida e contida como um fato isolado, ou seja, esta tragédia é o resultado necessário de um amplo processo social e psíquico de auto-destruição. Para o filósofo alemão, a luta efetiva em defesa do meio ambiente é a luta política em favor de Eros (MARCUSE, 1999, p. 152):
O próprio movimento ecológico revela-se em última análise como um movimento político e psicológico de libertação. É político porque confronta o poder combinado do grande capital, cujos interesses vitais são ameaçados por esse movimento. É psicológico porque (e isto é um ponto muito importante) a pacificação da natureza exterior, a proteção do meio ambiente, também pacificará a natureza interior dos homens e das mulheres. Um ambientalismo bem sucedido subordinará, dentro dos indivíduos, a energia destrutiva à energia erótica.
Atento ao desenvolvimento da chamada indústria cultural e ao próprio movimento de expansão do capital, Marcuse, percebe, já no pós-guerra, que os impulsos transcendentes da arte foram profundamente enfraquecidos. A cultura superior continua existindo, afirma ele, mas, difundida aleatoriamente, comprada e vendida como uma mercadoria qualquer, ela se converte num meio de alívio social, relaxamento e entretenimento, isto é: o potencial crítico da arte se dissolve num processo de acomodação à civilização. Longe de apontar para uma superação crítica da forma estética (que se daria no contexto de uma revolução social), o andamento deste processo representa, para Marcuse, a desintegração da arte. Vemos, assim, que o avanço da modernidade parece ter atenuado significativamente (ou suprimido?) a dicotomia civilização/cultura exatamente no sentido contrário ao da emancipação, ou seja, a civilização arrastou a cultura para o seu "campo minado", para o reino da necessidade, do trabalho e da produtividade. Marcuse nos ensina que a emancipação humana universal requer justamente o movimento oposto, quer dizer, a revolução socialista postula a conversão da civilização em cultura, algo distinto e muito mais ambicioso do que a mera distribuição justa da riqueza material e o incessante desenvolvimento das forças produtivas.
Separada da luta diária pela existência e do princípio da utilidade, a cultura pôde criar um espaço de fundamental importância para a vida social, uma espécie de refúgio fora do mundo da produção de mercadorias, no qual era possível o desenvolvimento do pensamento crítico, a preservação, ainda que precária, das capacidades humanas e a oposição radical à sociedade do capital. Impulsionada pelo progresso da civilização, a cultura desceu a Terra, por assim dizer, democratizou-se e tornou-se mais acessível do que nunca, mas a capacidade que ela tinha de resguardar as necessidades humanas que transcendem a reprodução material da vida e divulgar aquelas verdades que a realidade precisa ocultar lamentavelmente foi perdida. Numa passagem em que parece antecipar o pós-modernismo, Marcuse descreve um quadro de esgotamento (1998, p. 161):
A decomposição da substância transcendente da cultura superior desvaloriza o meio no qual encontrou expressão e comunicação adequada, efetuando a decadência das tradicionais formas literárias e artísticas, a nova determinação operacional da filosofia e a transposição da religião num símbolo de status. A cultura é redefinida pela ordem existente: as palavras, os tons, as cores e as formas das obras sobreviventes permanecem as mesmas, porém aquilo que expressam perde sua verdade, sua validade; as obras que antes se destacavam escandalosamente da sociedade existente e estavam contra ela foram neutralizadas como clássicas; com isso já não conservam sua alienação da sociedade alienada. Em filosofia, psicologia e sociologia predomina o pseudo-empirismo que relaciona seus conceitos e métodos com as experiências limitadas e reprimidas dos homens no mundo administrado e reduz conceitos não orientados para o comportamento a confusões metafísicas.
A cultura afirmativa da era burguesa foi, em seus momentos mais significativos, produzida no período da transição das sociedades feudais para o capitalismo, sustenta Marcuse, por isso devemos entendê-la como uma cultura pré-tecnológica e bidimensional. Essa tese nos permite compreender o enfraquecimento ou a supressão dos impulsos transcendentes da cultura moderna em bases muito mais sólidas. O desenvolvimento material, desde os tempos das revoluções burguesas até o chamado capitalismo tardio, alterou radicalmente as condições objetivas e subjetivas da produção e da recepção da cultura. A grande arte e a cultura superior perdem seu poder negativo justamente no embate com a realidade tecnológica e unidimensional do capitalismo maduro, ou seja, a cultura produzida quando o capitalismo ainda coexistia com formas sociais arcaicas ou pré-capitalistas deixou de ser subversiva e foi literalmente acomodada à civilização do trabalho como peça de museu. Veremos mais adiante, com Jameson, que a percepção destes desajustes e contradições entre a temporalidade histórica e o movimento do capital é fundamental para a compreensão do pós-modernismo e da crise da modernidade.
Diante das incríveis obras da tecnologia, as realizações dos heróis dos grandes romances burgueses se apequenam, a racionalidade da negação se rende à racionalidade do irracional e, finalmente, de bom grado, abrimos mão da liberdade em favor do conforto. Nas sociedades afluentes (Estados Unidos, Canadá e países centrais da Europa), a felicidade do homem unidimensional, habituado à existência deserotizada, não sofre grandes revezes: ele não exige mais do que lhe é oferecido pelo mercado e pelo Estado, participa de eleições livres, democráticas, identifica-se plenamente com a lógica consumista, com os valores pregados por seus governantes e contenta-se com seus raros momentos de suspensão estética do cotidiano. Quanto mais o indivíduo civilizado se crê livre para escolher, desde a marca de seu automóvel até seu presidente, mais ele se encerra no imediato; quanto mais o indivíduo se dedica à luta pela existência, mais ele se entrega à positividade do capital e mais ele se torna incapaz de reconhecer que, sob o capuz da liberdade, está a opressão. De acordo com Marcuse, a "racionalização progressiva do irracional"8(MARCUSE, [1966], 1979, p. 216) conserva a norma histórica da dominação, dando a ela novos contornos (1979, p. 142):
Na realidade social, a dominação do homem pelo homem ainda é, a despeito de toda transformação, o contínuo histórico que une Razão pré-tecnológica e Razão- tecnológica. Contudo, a sociedade que projeta e empreende a transformação tecnológica da natureza altera a base da dominação pela substituição gradativa da dependência pessoal (os escravos, do senhor; o servo, do senhor da herdade; o senhor, do doador do feudo etc.) pela dependência da "ordem objetiva das coisas" (das leis econômicas, do mercado etc.) [...] Os limites dessa racionalidade e sua força sinistra aparecem na escravização progressiva do homem por um aparato produtor que perpetua a luta pela existência, estendendo-o a uma luta total internacional que arruína a vida dos que constroem e usam esse aparato.
A cultura afirmativa, essa cultura que ganha vida apenas e tão somente na esfera individual, na alma, denuncia a reificação, a dominação e a não-liberdade, mas o faz, fora de dúvida, dentro dos limites que lhe são impostos pelo capital e sua lógica repressiva. Sendo assim, a superação do caráter afirmativo da cultura deverá modificar radicalmente a própria cultura, o que, para o burguês bem intencionado e esclarecido, provavelmente corresponderá à supressão da cultura enquanto tal. Para o bom liberal, a chamada grande arte deve mesmo permanecer confinada aos museus, guardada para os dias especiais, e bem protegida das dores produzidas pelo mundo que ela recusa. Afinal de contas, os reacionários e os defensores acríticos da cultura afirmativa também reconhecem a degeneração que a transformação em mercadoria produziu no domínio das belas artes e do conhecimento, principalmente a partir da segunda metade do século XX. Diferente das queixas resignadas, Marcuse afirma que a redefinição da cultura significa um novo começo, ou seja, a possibilidade de se pensar, aprender e conhecer de uma forma inteiramente distinta, instigante, para além da verdade "instransponível" dos fatos e das práticas repressivas. Nos termos de Marcuse, a reconstrução da cultura se deixa compreender como o pilar de um novo saber sobre do homem (1969, p. 17):
O que conta é a idéia de uma nova antropologia concebida não apenas como teoria, mas também como modo de vida; é o surgimento e o desenvolvimento de necessidades vitais de liberdade, das necessidades vitais de uma liberdade não mais fundada sobre a (e limitada pela) escassez dos meios e sobre a necessidade do trabalho alienado, mas capaz de expressar o desenvolvimento de necessidades humanas qualitativamente novas e, conseqüentemente, as exigências do fator biológico (pois se trata de necessidades consideradas em termos estritamente biológicos).
O confronto com a civilização e a ciência - cada vez mais desigual - levou Marcuse a uma defesa incondicional da cultura não-científica, como o último refúgio da negatividade e dos valores propriamente humanos. A grande dificuldade é que a cultura que recusa a quantificação e o cálculo parece já não contar com os aliados de que necessita, como reconhece o próprio Marcuse. O proletariado, a classe que deveria se rebelar contra a exploração e a repressão, mais e mais se mostra acomodado, mais do que isso, os trabalhadores tornaram-se verdadeiros parceiros da burguesia no processo universal de destruição, ou seja, querem usufruir da tecnologia a qualquer preço, desistiram das lutas políticas radicais e vêem na realização dos ideais de seus patrões o melhor dos mundos possíveis. Por outro lado, sem nunca deixar de sublinhar que estávamos longe de uma situação revolucionária, nosso autor acompanhou o florescimento do movimento de libertação das mulheres, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e a grande revolta dos estudantes franceses em maio de 1968. A novidade representada por esses movimentos, ainda que envolta em muitas dúvidas sobre seu real potencial de mudança, está na base de uma das teses fundamentais de Marcuse acerca da revolução socialista. Segundo o filósofo alemão, nas sociedades industriais, o desenvolvimento de uma razão pós-tecnológica só é possível através da luta daqueles que não fazem parte do grande pacto de perpetuação da dominação, isto é, a revolução precisa de um novo sujeito histórico. Por mais que, para manter-se fiel a si mesma, a teoria crítica não possa oferecer um quadro otimista do presente, o autor de Eros e Civilização nos lembra que, nas sombras da gigantesca muralha do conformismo (MARCUSE, 1979, p. 235),
...está o substrato dos párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e de outras cores, os desempregados e os não empregáveis. Eles existem fora do processo democrático; sua existência é a mais imediata e a mais real necessidade de pôr fim às condições e instituições intoleráveis. Assim, sua oposição é revolucionária ainda que sua consciência não o seja. Sua oposição atinge o sistema de fora para dentro, não sendo, portanto, desviada pelo sistema, é uma força elementar que viola as regras do jogo e, ao fazê-lo, revela-o como um jogo trapaceado. Quando eles se reúnem e saem às ruas, sem armas, sem proteção, para reivindicar os mais primitivos direitos civis, sabem que enfrentam cães, pedras, bombas, cadeia, campos de concentração e até morte. Sua força está por trás de toda manifestação política para as vítimas da lei e da ordem. O fato de eles começarem a recusar a jogar o jogo pode ser o fato que marca o começo do fim de um período.
Passados trinta anos da morte de Marcuse, suas idéias permanecem incrivelmente atuais e sua radicalidade, inspiradora. No entanto, sabemos que a dialética materialista não pode cristalizar-se no tempo, que ela deve acompanhar incessantemente as mudanças de seu objeto primordial, qual seja: a ordem do capital. No começo da década de 1970, o capitalismo entrou no período de sua crise estrutural, e, para tentar conter a queda das taxas de lucro, seus representantes impuseram ao mundo as reformas neoliberais e a chamada reestruturação produtiva. Em meio a isso, fracassaram os projetos de modernização do terceiro mundo e a derrocada do "socialismo realmente existente" (modelo de sociedade que Marcuse sempre rejeitou9) fez o marxismo oficial voar pelos ares. Parece mesmo o fim da linha, o fim da história. Dito isto, ainda podemos pensar em revolução socialista? A modernidade é mesmo um projeto inacabado, como sustenta Habermas? Lembremos, portanto, as questões colocadas no começo desta reflexão: o pós-modernismo representa a eliminação do caráter afirmativo da cultura? A dicotomia civilização/cultura foi resolvida no capitalismo tardio, globalizado? Por mais valiosa que seja a contribuição de Marcuse, ela é, sem dúvida, insuficiente para respondermos a tais questões. Entretanto, para a esquerda que se opõe à caracterização do pós-modernismo como uma nova realidade histórica e ao próprio uso do termo pelo o marxismo, vale ressaltar que, para o pensador da Grande Recusa, a modernidade já se apresentava claramente como um projeto pouco promissor, como um ambiente sócio-cultural cego e hostil à emancipação. Passemos, agora, a Fredric Jameson, que, a meu ver, produziu a teorização mais radical e convincente sobre a crise da modernidade e o pós-modernismo - ampliando significativamente o aparato crítico do marxismo ocidental.
2. Para bem começarmos, é preciso ter claro que, na ótica de Jameson, se é verdade que a pós-modernidade designa uma ruptura histórica, inteiramente falsas são as afirmações de que vivemos, hoje, em sociedades pós-industriais ou pós-capitalistas. Muito pelo contrário, estamos agora inseridos no estágio mais puro e pleno da ordem burguesa, isto é, o chamado capitalismo tardio. Para Jameson, o pós-modernismo não é um estilo artístico entre outros ou uma simples ideologia, tampouco o conjunto de princípios filosóficos que define o pós-estruturalismo e nos permite reconhecer os inimigos da razão moderna. O pós-modernismo é a lógica cultural dominante do capitalismo tardio. Em sua elaboração, o grande objetivo do pensador norte-americano é oferecer uma interpretação rigorosamente histórica do pós-moderno, ou seja, demonstrar que este conjunto de teorias e práticas que, em seu obsessivo desejo de romper com a herança "opressora" da modernidade (especialmente as ditas metanarrativas), resiste à totalização, apresentando-se como fragmento e diferença absoluta, pode ser apreendido e teorizado como um sistema dotado de uma lógica específica e orientado por regras mais ou menos rígidas. Somente assim, sustenta Jameson, poderemos conceber o nosso presente como história, como uma realidade que pode ser conhecida e transformada coletivamente, e não como uma coleção de textos e eventos que precisam tão-somente de consumidores (ou espectadores, como diria Debord10). Não menos importante: uma teorização genuinamente histórica deve excluir, de saída, a falsa necessidade de se absolver ou condenar o pós-modernismo em bloco. Neste aspecto, a postura de Jameson é exatamente aquela mesma de Marx em O Capital, ou seja, a de evitar a recusa moralista e preconceituosa da nova realidade. Nada ganharemos dizendo que isto é bom ou ruim para os trabalhadores, que aquilo é justo ou injusto, devemos, sim, apreender a lógica interna do fenômeno e oferecê-la a crítica radical, ainda que este movimento nos obrigue a descartar parte de nossa herança teórica e a reformular aquilo que concebemos como práxis revolucionária.
São dois os pontos da teorização de Jameson que nos parecem centrais para justificarmos um possível fim da dicotomia civilização/cultura e do caráter afirmativo da cultura, a saber: a extraordinária dilatação do cultural no capitalismo tardio e a caracterização do pós-modernismo como uma cultura sem profundidade, dotada de um radical sentido anti-transcendente. Estes dois aspectos do pós-moderno põem em relevo, entre outras coisas, a questão fundamental que hoje se coloca para a crítica dialética: a supressão da historicidade. Todavia, antes de explorarmos essas idéias, precisamos compreender minimamente o próprio conceito de modernidade.
Ao contrário das sociedades feudais, a modernidade compreendeu a si mesma como um tempo aberto ao futuro, como uma época de progresso inquestionável, que, a partir do presente e de seu incessante movimento interno, deveria buscar sempre o novo, o mais recente, confirmando, assim, a todo momento, sua ruptura com o velho mundo11. Em meio à aceleração do tempo, a modernidade capitalista gerou um contexto altamente problemático e um enorme horizonte de expectativas, cujas evidentes contradições só poderiam ser enfrentadas com seus próprios recursos, em outras palavras: a modernidade não podia recorrer ao passado para resolver seus dilemas e se consolidar12. Em conseqüência disso, a dialética do Esclarecimento já nasceu com a premente necessidade de uma reflexão crítica sobre a nova sociedade, decorrente, em grande medida, de suas promessas de emancipação universal. Os mais sofisticados intérpretes dialéticos da modernidade e dos primeiros estágios do capitalismo, inclusive Marx, puderam manter, compreensivelmente, uma atitude mais ou menos otimista durante todo esse período, quer dizer: o futuro permanecia em aberto e o progresso, ainda que aos tropeços, nos conduziria à superação da sociedade de classes.
A modernidade pode ser vista, segundo Jameson, como aquele período histórico no qual a ordem burguesa ainda convivia com formas sociais tradicionais (pré-capitalistas) e comportava temporalidades distintas, e em que o moderno, enquanto tal, podia ser claramente diferenciado do arcaico (a metrópole em oposição ao mundo rural). Neste estágio, o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo13 manifesta-se de forma veemente (JAMESON, 2006, p. 315):
Na Paris de Apollinaire coexistiam tanto monumentos medievais e cortiços apertados da época da Renascença quanto carros, aviões, telefones, eletricidade, a última moda em roupas e na cultura. Conhecem-se e experimentam-se estes últimos como novos e modernos porque o velho e o tradicional ainda estão presentes. Uma maneira de se narrar a história da transição do moderno para o pós-moderno é mostrar como, a longo prazo, o moderno triunfa sobre e aniquila completamente o velho: a natureza é eliminada juntamente com o velho campo da agricultura tradicional; até os monumentos históricos sobreviventes, agora limpos, tornam-se simulacros brilhantes do passado, e não sua sobrevivência. Agora tudo é novo, mas, pela mesma via, a própria categoria do novo perde seu sentido e torna-se agora algo como um remanescente modernista.
De acordo com Fredric Jameson, este quadro representa a etapa em que o processo de modernização encontra-se em pleno desenvolvimento. Na modernidade, cultura e civilização conservam contradições e tensões concretas, motivadas por desejos e esperanças que separam os valores superiores do reino da necessidade. Deste modo, é correto argumentar que a tese de Marcuse segundo a qual a cultura superior do mundo burguês era essencialmente pré-tecnológica e bidimensional é ratificada, ainda que com outros termos, por Jameson. Por conta de sua hostilidade fundamental ao mercado, as relações entre os diferentes modernismos e a modernização sempre foram altamente tensas, como bem explica o crítico norte-americano (JAMESON, 2006, p. 309):
Os vários modernismos tanto representaram violentas reações contra a modernização como, outras vezes, replicaram seus valores e tendências através de sua insistência formal na novidade, de sua inovação, da transformação de formas mais antigas, dos iconoclasmos terapêuticos e do processamento (estético) de novas maravilhas tecnológicas. Se, por exemplo, a modernização tiver algo a ver com o progresso industrial, com a racionalização, a reorganização da produção e da administração de forma mais eficiente, a eletricidade, as linhas de montagem, a democracia parlamentar e o barateamento dos jornais ? então vamos concluir que pelo menos uma parte do modernismo artístico é antimoderna e surge como um violento e abafado protesto contra a modernização, entendida agora como o progresso tecnológico em seu sentido mais amplo.
Mais do que tolerar, em seu próprio tempo histórico, a permanência de zonas residuais e até mesmo de velhas alteridades sistêmicas que resistem à lógica onívora do capitalismo em expansão (é no chamado terceiro mundo que estas áreas estranhas ao capital se deixam ver mais nitidamente), o moderno concede à cultura uma relativa autonomia. Se, enquanto dominante cultural, o pós-modernismo é a expressão do capitalismo diante de seus limites lógicos e históricos, ? o pós-modernismo é mais moderno que o modernismo, afirma Jameson ? não é difícil imaginar que, no pós-moderno, a precária autonomia de que gozava a cultura na modernidade desaparece sem deixar rastros. Mas como entender a afirmação de que o pós-modernismo é a dominante cultural do nosso tempo? A despeito de sua radicalidade e extensão, o processo de homogeneização que estamos assistindo não produziu uma uniformidade cultural absoluta e impermeável, um sistema hermeticamente fechado, quer dizer, o pós-modernismo convive com formas de cultura oposicionistas ? residuais e emergentes ? que, todavia, apesar da resistência oferecida, tendem a ser incorporadas e contidas pela lógica cultural dominante. Por mais frágeis que sejam, os impulsos utópicos estão presentes no espaço social do pós-moderno, em sua nostalgia, em suas contradições e desejos reprimidos. Segundo Jameson, a tarefa primordial da esquerda revolucionária é justamente detectar e fortalecer esses impulsos, que, em alguma medida, nos permitem imaginar as alteridades e diferenças sistêmicas que o capitalismo globalizado não admite. Isto posto, precisamos agora dizer alguma coisa a respeito da atual situação do capitalismo.
Em seu terceiro estágio, que sucede o período concorrencial e a fase dos monopólios, o capitalismo globalizado não se depara com qualquer tipo de alteridade sistêmica. Quer dizer, já não é possível nos colocarmos fora do mercado, a lei do valor pesa igualmente sobre todos e, nos quatro cantos do mundo, o consumo compulsivo de mercadorias mascara o conformismo, a dominação, a miséria espiritual e a infelicidade generalizada. Apesar da arrogância de seus defensores, a chegada do capitalismo ao seu verdadeiro auge, ao estágio em que ele aparece plenamente consciente de si, por assim dizer, aponta para o esgotamento dos modelos culturais, políticos e econômicos que, até aqui, sustentaram e impulsionaram o seu desenvolvimento. A ordem do capital já não projeta caminho algum a ser seguido, a noção de progresso descolou-se inteiramente das exigências humanas de emancipação e o tão desejado crescimento econômico já não produz nada além de destruição, ou seja, para o bem e para o mal, o capitalismo já cumpriu seu papel histórico. Isto explica porque, justamente em seu apogeu, o mundo burguês gerou a crise estrutural que, em suas dramáticas manifestações, indica o fim de seu período de ascensão. Segundo Meszárós (2004, p. 16-17):
A característica definidora fundamental de nossa época, em contraste com as fases anteriores dos desenvolvimentos capitalistas, é vivermos nas perigosas condições da crise estrutural do sistema do capital como um todo. Noutras palavras, a crise sistêmica com que sofremos é particularmente grave. Não pode ser medida pelos padrões de crises passadas, pois o significado do sistema capitalista em si (isto é, quando se estende até seus limites estruturais) abrange não somente as formas historicamente conhecidas , identificáveis no passado, desde seus primórdios até o século XX, mas também suas variáveis possíveis no futuro, se as houver. (...) A erupção da crise estrutural do capital localiza-se aproximadamente no fim da década de 1960 ou no início da seguinte. De fato, os levantes de 1968 na França e em muitos outros países, até mesmo nos Estados Unidos, depois de um longo período de expansão no pós-guerra e de acomodação keynesiana em todo o mundo capitalista podem ser vistos como um marco memorável. (...) Mas, talvez mais importante, por volta de 1970 estávamos submetidos a um desenvolvimento perigoso no mundo do trabalho que pouco depois teve de ser caracterizado, mesmo pelos apologistas da ordem estabelecida, como "desemprego estrutural".
O pós-modernismo nasce precisamente neste período histórico de crise, nos meios acadêmicos, como conseqüência não antecipada da derrota política das rebeliões estudantis, expressando, primordialmente, sua rejeição do elitizado establishment modernista, um profundo descrédito em relação às práticas do marxismo tradicional e à própria noção de ação política coletiva. Do ponto de vista da emancipação socialista, decorridos quarenta anos desde o início da crise estrutural do capitalismo, o que ainda podemos esperar da cultura? A dominante cultural de hoje, ou seja, o pós-modernismo, reserva, de fato, como sustenta Jameson, algum espaço para a negatividade, para a utopia?
Se a modernidade é a expressão histórica da situação em que a modernização ainda está incompleta, e na qual a cultura, em maior ou menor grau, tende a transcender a lógica do capital, o pós-modernismo é que nos sobrou após a conclusão do processo de modernização. As distintas formas de modernismo estão agora esgotadas, assim como a síntese entre esta cultura e a modernização econômica, isto é, a própria modernidade. O fechamento do capital em seu ápice aniquilou a antiga distinção entre base e superestrutura, isto é, cultura e economia constituem, agora, uma única esfera, como afirma Jameson (2006, p. 25):
Dizer que meus dois termos, o cultural e o econômico, se fundem desse modo um no outro e significam a mesma coisa, eclipsando a distinção entre base e superestrutura, o que em si mesmo sempre pareceu a muitos ser uma característica significativa do pós-moderno, é o mesmo que sugerir que a base, no terceiro estágio do capitalismo, gera sua superestrutura através de um novo tipo de dinâmica. E isso pode ser bem o que preocupa (e com razão) os que ainda não aderiram ao termo; este parece nos obrigar, de antemão, a tratar os fenômenos culturais no mínimo em termos de business, se não nos termos da economia política.
A mudança estrutural do status da cultura, ou seja, a verdadeira dissolução do cultural na economia e do econômico na cultura, está no centro da ruptura do pós-moderno com o período anterior. Se isto de fato aconteceu, como acreditamos, já podemos sugerir que a antiga dicotomia entre cultura e civilização foi de fato anulada, sem que aqueles valores propriamente humanos, por tanto tempo acalentados, tenham sido realizados concretamente. No lugar da tradicional oposição entre os valores da "alma" e a economia aparece agora um todo social manchado de barbárie14, inteiramente ordenado conforme as leis da produção de mercadorias, e cujo grande emblema é a homogeneização ? apesar do multiculturalismo e da exaltação quase planetária das diferenças.
A percepção desta profunda transformação e a virtual conclusão do processo de modernização revelam, note-se bem, que a modernidade não chegou ao fim por ter desaparecido ou por ter fracassado, como pensam os críticos superficiais, mas por ter se realizado enquanto processo. Àqueles que ainda acreditam que o "projeto da modernidade" é um caminho aberto e que os princípios do pós-moderno já estavam claramente presentes na modernidade, escapa, além do elo indissolúvel entre as formas culturais e o movimento real do capital, o reconhecimento de que mutações de grandes proporções podem ocorrer no interior de um modo de produção, sem que este deixe de existir e conservar seus pilares fundamentais. O termo pós-modernismo nos parece ser o único capaz de expressar este tipo de mudança, ao contrário de conceitos como modernidade tardia e hipermodernidade, por exemplo, que somente fazem sentido quando se considera que a modernidade (e o capitalismo, seu sinônimo), enquanto tal, ainda é um caminho a ser seguido. O horizonte aberto da modernidade deixou de existir, sustenta Jameson, e qualquer tentativa de recuperação ou reformulação deste "projeto" está fadada ao fracasso, ou seja, precisamos enfrentar o presente sem ilusões e detectar, no ambiente mesmo do pós-moderno ? até mesmo nos espaços e formas mais degradadas desta cultura ?, a presença do utópico. Podemos, agora, explorar a questão da notável dilatação da cultura no pós-moderno, o primeiro dos dois temas da obra de Jameson que mais nos interessam aqui.
A análise de Fredric Jameson mostra que a integração da produção estética à produção de mercadorias neutralizou o conteúdo crítico e outrora escandaloso do modernismo. O fato das grandes obras deste período serem hoje reverenciadas, em todos os círculos oficiais e instituições do sistema capitalista, evidencia uma mudança estrutural na ordem burguesa, mais precisamente, um deslocamento da própria cultura, que o crítico norte-americano descreve da seguinte forma (JAMESON, 2006, p. 14):
Assim, na cultura pós-moderna, a própria "cultura" se tornou um produto, o mercado tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender. O pós-modernismo é o consumo da própria produção como processo.
Na passagem dos anos 60 para a década de 1970, quando o aprofundamento deste processo ainda se colocava como uma possibilidade, Marcuse argumentou que o cancelamento da separação entre arte e economia sob o capitalismo significaria sem dúvida alguma a desintegração da cultura. É muito interessante perceber que, com o avanço deste processo, o que ocorreu não foi o desaparecimento ou a simples dissolução da cultura na esfera da produção material, isto é, o que temos testemunhado nos últimos 30 ou 40 anos, segundo Jameson, é, ao contrário, uma espantosa dilatação do cultural. Esta afirmação, surpreendente à primeira vista, precisa ser explicada à luz de um dos traços fundamentais da lógica cultural do capitalismo tardio, qual seja: o apagamento da fronteira entre a alta cultura e assim chamada cultura de massa (que não deve ser confundida com a cultura popular). O trabalho da Escola de Frankfurt é, sem dúvida, o grande referencial teórico de Jameson; entretanto, já em 1979, ano da morte de Marcuse, o crítico norte-americano publica o ensaio Reificação e Utopia na Cultura de Massa, no qual aponta os limites da crítica frankfurtiana no tocante à avaliação da arte e da cultura (JAMESON, 1995, p. 14):
O que é insatisfatório na posição da Escola de Frankfurt não é o seu aparato negativo e crítico, e sim o valor positivo do qual depende, notadamente, a valorização da alta arte modernista tradicional como o locus de uma produção estética "autônoma", genuinamente crítica e subversiva. Aqui, a obra mais recente de Adorno (tal como The Aesthetic Dimension de Marcuse) marca um recuo em face de sua posição anterior dialeticamente ambivalente, em A Filosofia da Nova Música, sobre as realizações de Arnold Schoemberg: o que foi omitido dos juízos recentes é precisamente a fundamental descoberta de adorniana da historicidade e, em particular, do irreversível envelhecimento das maiores formas modernistas.
O que Jameson rejeita é a possibilidade de postularmos padrões fixos e eternos, derivados das leis internas da chamada grande arte, acreditando que é válido julgar a cultura de massa segundo estes mesmos critérios. Deste modo, prossegue Jameson (1995, p. 14):
Por todas essas razões, parece-me que devemos repensar a oposição alta cultura/cultura de massa, de modo que a ênfase valorativa a que ela tradicionalmente deu origem ? e que, entretanto, o sistema binário de valores utiliza (a cultura de massa é popular e portanto mais autêntica que a alta cultura; a alta cultura é autônoma e daí totalmente incomparável a uma cultura de massa degradada), tendendo a funcionar em algum domínio intemporal do juízo estético absoluto ? seja substituída por uma abordagem genuinamente histórica e dialética desses fenômenos. Tal aproximação exige que se leia a alta cultura e a cultura de massa como fenômenos objetivamente relacionados e dialeticamente interdependentes, como formas gêmeas e inseparáveis da fissão da produção estética sob o capitalismo.
No terceiro estágio do capitalismo, sustenta Jameson, mesmo que ainda se possa falar em um duplo padrão, ? um da alta cultura e outro da cultura de massa, e assim repetirmos mil vezes que a cultura pós-moderna é muito pobre (ainda que isto em geral seja verdade) ? não se trata mais de reformular ou atualizar nossos padrões subjetivos de julgamento, mas, sim, de compreender os dilemas e o potencial negativo da produção artística e cultural em suas contradições objetivas, ou seja, na relação da cultura e da arte com seus alicerces sócio-econômicos. A questão central aqui é entendermos que só é possível enfrentar esta cultura degrada com os próprios meios dela, isto é, precisamos entrar nos domínios do pós-moderno, deixando de lado nossos modelos modernistas e encarar essa realidade como um novo campo a ser explorado pela crítica dialética.
No pós-modernismo, a cultura não se faz presente apenas no tempo livre, nos espetáculos e nos museus, como alívio existencial e antítese do trabalho, agora ela é substância mesma da vida social. Os produtos da alta cultura, assim como os artefatos da cultura de massa, foram equalizados no agora generalizado reino das mercadorias, o que significa dizer, em outros termos, que as formas culturais estão postas em todos os poros da vida cotidiana e que, hoje, os limites da estética e da cultura são os limites do próprio mercado. Para esta nova situação, os padrões e exigências da alta cultura e das chamadas belas artes ? incluindo-se aí a própria categoria do belo ? se mostram totalmente inadequados, quer dizer, os tradicionais modelos de crítica e avaliação da cultura, da ideologia e da arte precisam ser substituídos por outras formas de abordagem crítica, que levem em conta, sobretudo, a virtual fusão do econômico com o cultural. Vemos, assim, que, no capitalismo tardio, a função social da cultura se altera profundamente, pois a existência utópica que, nos estágios anteriores do modo de produção burguês, a colocava acima das práticas mercantis, da repressão e do mundo do trabalho, conferindo ao domínio do cultural uma relativa autonomia, foi literalmente dissolvida na pós-modernidade. Conseqüentemente, por conta do cancelamento da fronteira que separava a cultura superior da cultura de massa, não podemos mais pensar, com Marcuse, nos termos de uma destruição da arte e da cultura. Isto somente era possível na medida em que se considerava que a arte possuía uma legalidade própria, inviolável, cuja especificidade nos autorizava a dizer que isto é arte verdadeira ou que aquilo é somente mais um produto da indústria cultural. Sendo assim, longe de expressar o seu desaparecimento, a supressão da autonomia da cultura, que é, ao mesmo tempo, a expansão da forma mercadoria (JAMESON, 2006, p. 74),
...deve ser pensada em termos de uma explosão: uma prodigiosa expansão da cultura por todo o domínio do social, até o ponto em que tudo em nossa vida social ? do valor econômico e do poder do Estado às práticas e à própria estrutura da psique ? pode ser considerado como cultural, em um sentido original que não foi, até agora, teorizado.
O cinema norte-americano padrão Hollywood é um ótimo exemplo desta nova realidade, ou seja, da fusão do cultural com o econômico. Na produção de um filme, cujo orçamento alcança 100 ou 200 milhões de dólares, boa parte dos gastos é direcionada às campanhas promocionais e, muito antes de sua chegada ao público, já se sabe exatamente quanto o filme deve faturar para gerar lucro (nas bilheterias e com a venda de dvds, cds, brinquedos, camisas, games etc). Lembrando que, apesar das queixas do outrora exigente público europeu e de uns poucos chiados nacionalistas, o padrão hollywoodiano se espraiou pelo mundo, alguém poderia perguntar: qual é o lugar da chamada sétima arte neste caso? O cinema pertence ao plano da superestrutura (cultura, ideologia, religião etc.) ou à base econômica? A única resposta possível é: a ambas as esferas.
Mais do que nunca as mercadorias nos aparecem agora como entidades poderosas, capazes de despertar admiração e desejo até mesmo nos mais ferrenhos adversários do capital. Com a mediação da propaganda e a cooperação de celebridades que se fazem passar por grandes entendedores de tudo o que é vendável, as mercadorias podem facilmente conquistar consumidores com belas imagens vazias, embalagens coloridas e tecnologias mirabolantes. Percebemos, desta maneira, que o consumismo ofuscou o tradicional papel da ideologia, tornando-se, ele próprio, o meio fundamental de adesão à ordem do capital, quer dizer, a burguesia já não precisa (e nem é capaz de) oferecer qualquer programa ou projeto político mais elaborado para justificar sua dominação, pois, antes mesmo das disputas políticas, o existente já foi devidamente sancionado. No ambiente do capitalismo tardio, vale sublinhar, a própria moral burguesa precisou ser atualizada ou flexibilizada, para usarmos o termo da moda, uma vez que o puritanismo dos velhos tempos, que condenava o prazer e a liberdade sexual, nos alertando contra os perigos de se deixar levar pelos sentidos, foi abandonado diante da percepção de que os lucros podem ser bem maiores quando consumo e prazer se tornam sinônimos e a realização dos desejos se dá, sobretudo, no próprio ato da compra15. Na pós-modernidade, o consumismo requer, a um só tempo, a agressividade liberada pelas pulsões e a passividade gerada pela mais enraizada repressão.
Reforçando a idéia de uma mega dilatação da cultura, temos também os chamados novos movimentos sociais e os marginalizados, que, desde os anos 60, fora da esfera oficial da política, vem desenvolvendo suas lutas em termos de identidade cultural, salientando trajetórias de perseguição e exclusão, percorridas por indivíduos que, agora organizados em grupos, finalmente podem deixar as margens da vida social e reivindicar seus direitos. Toda essa movimentação da sociedade civil, na qual o multiculturalismo e as diferenças são festivamente exaltados, une, sob o capitalismo globalizado, os países centrais do norte e a periferia, que se vêem agora muito próximos, com problemas parecidos, evidenciando, em sua paradoxal comunhão, o fracasso universal da civilização burguesa. Com o encontro do "norte pós-histórico" e do sul "pós-colonial", as antigas formas da política e suas tradicionais questões ? Estado, nacionalismo, revolução, parlamento, partido ? foram varridas do horizonte social pela cultura, que impetuosamente se torna a "própria gramática da luta política"16. Analisando os diferentes sentidos da cultura na pós-modernidade, Terry Eagleton afirma (2003, p. 106):
As próprias operações de mercado livre pelas quais o Ocidente impõe sua autoridade sobre o resto do mundo contribuem para criar, em sua casa, uma cultura crescentemente cética e relativista; e isso então ajuda a corroer a autoridade espiritual ("Cultura") que é necessária para conferir a essas operações globais um véu de legitimidade. A alta cultura pode achar a cultura pós-moderna repugnante, mas toma parte na sustentação da própria ordem social que permite que tal cultura circule. Enquanto isso, aqueles que são as vítimas dessa cultura de mercado voltam-se cada vez mais para formas de particularismo militante. Numa interação em três frentes, a cultura como espiritualidade é corroída pela cultura como mercadoria, para dar origem à cultura como identidade.
Desta forma, a cultura que, para o bem e para o mal, era antes a expressão de uma possível e desejável união de um povo ou de uma sociedade em torno de certos valores e de objetivos a serem alcançados, aparece agora como o elemento central das várias formas de particularismo e da fragmentação das lutas sociais. Numa palavra: no pós-moderno a cultura não está mais vinculada a qualquer projeto coletivo (a não ser que se considere que o mercado é um projeto!), ela somente separa e marca diferenças (tanto as fictícias quanto as reais). O capitalismo tardio não conquista seus adeptos apelando para discursos ideológicos universalistas ou pregando a eternidade de suas formas, isto é, na ausência de qualquer alteridade sistêmica, o capital glorifica o multiculturalismo, atraindo para seu campo, através do consumismo e da grande mídia, a maioria dos grupos sociais que compõe as chamadas minorias (ainda que estes grupos se considerem de oposição e defendam suas diferentes culturas). Ora, o resultado desta postura democrática e da vitória da tolerância liberal é o virtual desaparecimento do capitalismo enquanto adversário político. Protesta-se contra a destruição da natureza, estrelas da música pop se unem para ajudar as vítimas do terremoto do Haiti, as guerras preventivas dos EUA são alvo de duras críticas e no Rio de Janeiro, por exemplo, não raro assistimos protestos contra a violência. Desnecessário frisar o retumbante fracasso dessas bem intencionadas mobilizações. As velhas estruturas da dominação permanecem de pé alimentadas pela celebração das diferenças culturais, pelo atordoante movimento das novidades tecnológicas, eventos espetaculares e imagens que torturam nossos obsoletos sentidos. Legitimada pela democracia liberal, a realidade parece excepcionalmente maleável e receptível às escolhas, aos sonhos, às mudanças; tudo é possível aqui e agora, inclusive o fim do mundo, exceto o fim e a substituição do modo de produção capitalista.
Em sua incansável cruzada contra a totalidade, a metafísica e as noções universalistas, o pós-modernismo atém-se aos fatos, ao empírico; ao desprezar qualquer coisa que tenha algum sentido transcendente ou utópico, a lógica cultural do capitalismo tardio descarta impiedosamente as mediações, revelando, assim, por trás da máscara sorridente, sua verdadeira face: uma cultura degradada, produto de uma ordem social decadente, que contempla a falta de profundidade e se deixa compreender, no final das contas, como um positivismo aprofundado. A diferenciação dialética entre essência e aparência, a distinção entre o latente e o manifesto (da psicanálise), entre significado e significante (da semiótica), tudo isso se dissipa no pós-moderno, em nome do empírico e na glorificação passiva de um presente cristalizado. A maior vítima deste processo é justamente a história, ou seja, a mediação crítica através da qual podemos compreender e avaliar o presente, o passado, a cultura, elaborar nossos projetos coletivos e nossas trajetórias individuais enquanto processos sociais, e não como resultados de um desenvolvimento necessário da natureza. A historicidade é, acima de tudo, aquela instância que nos permite ver o presente como história e, conseqüentemente, projetar um futuro que não seja a mera repetição ou o simples aprimoramento do que já existe.
A supressão das mediações no pós-moderno, que hoje faz da dialética algo essencialmente anacrônico, é a característica básica de uma forma de sociedade que, ao atingir seus limites lógicos e históricos, gerou profundas mudanças nas relações espaço-temporais a que estávamos habituados desde o período modernista. É por esta razão que, enquanto dominante cultural, o pós-modernismo deve ser entendido como um amplo processo de espacialização do tempo. Subjugado pelo espaço, o tempo pode ser escrito, lido e registrado, mas não mais experimentado. Ao analisar o livro Voices of Time, de J. G. Ballard, no qual o inevitável fim do cosmos se dá enquanto a humanidade dorme, Jameson explica de forma brilhante o sentido maior deste processo (2006, p. 173):
A abordagem inicial dessa "grande transformação" - o deslocamento do tempo, a espacialização do temporal ? no mais das vezes registra essas novidades através de uma sensação de perda. De fato, até parece possível que o páthos da entropia em Ballard seja apenas isso: o afeto que se depreende da exploração minuciosa, mas não desprovida de entusiasmo, de todo esse mundo novo da espacialidade, e a grande angústia da morte do moderno que a acompanha. De qualquer maneira, dessa perspectiva nostálgica e regressiva a do moderno e de suas temporalidades -, o que se lamenta é a memória da memória profunda; o que se encena é a nostalgia da nostalgia, das grandes questões extintas do télos e da origem, do tempo profundo e do Inconsciente freudiano (despachado por Foucault de um só golpe na História da Sexualidade), e também da dialética, assim como de todas as formas monumentais que permaneceram intatas após o refluxo do momento do moderno, formas cujos Absolutos não mais podemos ouvir, hieróglifos ilegíveis do demiúrgico no interior de um mundo tecnocrático.
A dominação do tempo pelo espaço engendra uma cultura que se propaga especialmente através de imagens, ou seja, por meio de objetos reificados, desprovidos de qualquer conteúdo ou verdade. Esses objetos são textos ou simulacros produzidos em série, meras cópias idênticas umas as outras, cujos originais simplesmente não existem. Os artefatos pós-modernos não nos remetem a um contexto mais amplo, tampouco comunicam qualquer experiência profunda; anti-utópicos, esgotam-se em si mesmos, em sua impessoalidade, tão rapidamente quanto qualquer mercadoria descartável. Dizer que os objetos produzidos no pós-moderno carecem de originalidade significa dizer que já não temos o que costumávamos chamar de estilo - o toque único e inconfundível dos grandes autores - e que tampouco estamos falando de obras de arte no sentido tradicional: a produção artística e cultural predominante em nossos dias é o pastiche, isto é, a imitação de estilos mortos ou desaparecidos, a paródia despida de senso de humor e corrompida pelo valor de troca. Assim compreendida, a cultura do simulacro e do pastiche nos leva inevitavelmente ao tema da "morte do sujeito". O esquema dualista de Kant (o eu empírico e o eu transcendental) e o Ego da psicanálise já não são capazes de explicar a trama de nossas atuais experiências sócio-existenciais. O pós-modernismo põe em cena o sujeito cindido, esquizofrênico, incapaz de produzir uma obra, de reter seu passado e de situar suas experiências biográficas no tempo e no espaço. Para Jameson, estamos passando por um intenso processo que ele chama de esmaecimento dos afetos, que, em seu desenvolvimento, fez desaparecer as psicopatologias ligadas à existência do eu centrado, ou seja, as neuroses, a alienação e a anomia. Os sentimentos são agora profundamente impessoais e se sustentam por si mesmos, sem qualquer ligação com algum tipo de experiência coletiva (esse era o caso da alienação nas grandes fábricas dos estágios anteriores do capitalismo). O sujeito fragmentado age e reage tão-somente impulsionado por diversas formas de euforia (o consumismo e o uso de drogas, por exemplo). Jameson reconhece, sem receios, os méritos da crítica pós-estruturalista ao sujeito auto-centrado, afirmando que esta, particularmente na versão elaborada por Deleuze e Guatarri em O Anti-Édipo, antecipou uma mudança de grandes proporções na ordem capitalista. A crítica deleuziana deseja a ruptura com o passado (encarnado pela opressão familiar) e com o futuro (identificado com a perpetuação da rotina e da opressão do trabalho). Esta esquizofrenia libertária produziria assim um presente absoluto, livre da repressão e da dominação ? um ponto de fuga! No entanto, a instigante percepção de Deleuze fracassa ao aderir inconscientemente às tendências afirmativas e anti-utópicas que ele inicialmente condena, como explica Jameson (Citado em OLIVEIRA, 2008, p. 52):
Na medida em que a libertação do tempo é somente aquela redução ao presente que temos examinado, o que parece ser uma crítica da nossa ordem social e a conceituação de uma alternativa a ela se revela, na realidade, como a reprodução de uma de suas tendências mais fundamentais. A noção deleuziana de esquizofrenia é, portanto, certamente profética, mas ela é profética em relação à tendências latentes no interior do capitalismo e não a um entusiasmo quanto a uma ordem social radicalmente diferente, capaz de substituí-la. De fato, é questionável se Deleuze esteve em algum momento interessado em teorizar a respeito de qualquer ordem social alternativa enquanto tal.
O mais incrível em relação ao pós-modernismo é que mesmo depois do fim da história, do fim da arte e do fim das ideologias, no ambiente da mais estandardizada sociedade que já existiu - só nos resta o presente, só nos resta comprar -, a busca pelo novo, por rupturas e eventos nunca vistos se faz mais presente do que nunca, encobrindo, em seu êxito destrutivo, a permanência da dominação e um imobilismo sem precedentes. Na impossibilidade de mudanças sociais substantivas, o retorno triunfal de incontáveis velharias - especialmente o próprio mercado, que, depois de ter a falência de sua sabedoria reconhecida até mesmo pelos liberais, reaparece sob os mais cínicos discursos de admiração - constitui o tipo de inovação recorrente do pós-moderno. Nessa verdadeira profusão de pastiches e simulacros, adverte Jameson, retornam também os discursos e debates acerca da cidadania, da sociedade civil, da ética e dos contratos, ou seja, as velhas questões daquele campo que chamávamos de filosofia política e os grandes autores dos séculos XVII e XVIII, como Hobbes, Locke, Rousseau e Montesquieu. As obras desses pensadores, que no momento da transição do antigo regime para o capitalismo, fizeram o que lhes permitiam seus limites históricos, isto é, ofereceram soluções políticas para problemas econômicos, são agora revisitadas com grande entusiasmo, como se ainda houvesse a real possibilidade de intervirmos na economia através das antigas formas da política - seus meios e conceitos. Marx, o crítico da economia política, evidentemente não tem lugar nestes fecundos debates, pois, afinal, ele foi essencialmente um pensador do século XIX (determinista e economicista!?). Bem sabemos, entretanto, que o neoliberalismo não necessitou de teoria política alguma para se impor globalmente. Neste aspecto, o marxismo, que desde o tempo de seus fundadores sempre foi acusado de não ter elaborado um pensamento político ou uma doutrina sobre o funcionamento das instituições, se junta ao neoliberalismo. Este fato, no momento histórico em que devemos mais do que nunca ser economicistas, aparece agora como um ganho teórico e político da maior importância. A ausência de um programa político, de uma ética ou de uma moral cívica no pensamento de Marx, é precisamente o lugar do utópico, o núcleo idealista do materialismo histórico, como disse Marcuse certa vez. É graças a esse espaço vazio que o marxismo - pelo menos aquele que sempre reconheceu na imaginação e na criatividade elementos fundamentais para revolução social - não se deixa confundir com o positivismo.
No ritmo frenético da produção de mercadorias high-tech, o pós-modernismo despacha as mediações, os fundamentos e o imprescindível momento da abstração, pondo em seus lugares um conjunto aleatório de textos, imagens reluzentes e corpos desejantes, reduzindo, assim, toda a nossa percepção da vida social a um presente perpétuo. Jameson sugere inclusive que nossos aparelhos sensoriais, formados no alto modernismo, se tornaram inteiramente obsoletos diante desta nova realidade, o que torna essencial um mapeamento cognitivo do novo espaço global. A lógica cultural dominante produziu um espaço social ainda desconhecido, irrepresentável e achatado - o hiperespaço do pós-moderno ?, um ambiente avesso ao utópico, de onde a consciência histórica parece ter sido banida sem deixar vestígios. Como argumenta Jameson (2006, p. 45-46):
O próprio passado é, assim, modificado: o que antes era, no romance histórico, segundo a definição de Lukács, a genealogia orgânica de um projeto burguês coletivo - ou, para a historiografia de resgate de um E. P. Thompson, ou, ainda, para a "história oral" norte-americana, que visam a ressurreição dos mortos de uma geração anônima e silenciada, a dimensão retrospectiva indispensável para qualquer reorientação vital de nosso futuro - transformou-se, nesse meio tempo, em uma vasta coleção de imagens, um enorme simulacro fotográfico. O slogan de Guy Debord é ainda mais apropriado para a pré-história de uma sociedade privada de toda historicidade, uma sociedade cujo próprio passado putativo é pouco mais do que um conjunto de espetáculos empoeirados.
O pós-modernismo assinala a conquista pelo capital dos últimos refúgios que a modernidade conseguiu, em alguma medida, manter resguardados da mercantilização, quais sejam: o inconsciente e a natureza. Este passo, dado ao longo dos últimos trinta ou quarenta anos, é crucial para entendermos porque a cultura dominante nos dias atuais reduz violentamente nossos horizontes e, ao contrário da cultura afirmativa dos estágios anteriores do capitalismo, se mostra incapaz de projetar num plano superior a realização da felicidade, da paz e da liberdade.
Entre os séculos XVI e XX, como sabemos, a ordem burguesa não foi o único modo de produção existente sobre o planeta Terra. Contudo, apesar do ritmo desigual, a modernização (desenvolvimento das forças produtivas) caminhou de modo cada vez mais acelerado, obrigando, como já previra O Manifesto Comunista, todas as nações a se tornarem capitalistas. Ainda assim, áreas importantes, principalmente no chamado terceiro mundo, conservavam modos de vida, costumes e práticas completamente distintas, ou mesmo antagônicas, do mundo industrializado. As formas de vida tradicional, a agricultura de subsistência e a temporalidade típica do campo, por exemplo, estavam em franca oposição à lógica do capital. Neste sentido, o arcaico preservava a natureza, o não-humano. Esse desnivelamento entre a metrópole e o campo produzia a alteridade que nos permitia constatar a existência de temporalidades bem diferentes. Essa distância outorgava, aos modernos, a arrogante certeza de sua superioridade em relação aos atrasados provincianos. O pós-moderno exprime, no entanto, a mercantilização quase completa do campo e a vitória do agrobusiness, que, ao lado da revolução da informática e das comunicações, permitem que os antigos provincianos agora tenham acesso às mesmas modas, aos vídeo-clipes, à internet, às músicas de sucesso, aos filmes mais recentes e ao noticiário em tempo real - ou seja, tudo o que os habitantes das grandes cidades tem em suas casas ou encontram na esquina mais próxima. Essa mudança projeta uma temporalidade única - comprimida pelo espaço, vale ressaltar - e os bens consumidos são basicamente os mesmos, quer dizer, o urbano e o rural estão igualmente modernizados. A radicalização deste brutal processo de homogeneização do mundo elimina a natureza, o outro do espírito e da sociedade industrial. O virtual desaparecimento da natureza representa, portanto, a tendencial e inevitável dissolução de todas as formas de vida tradicional. Assim, explica Jameson (1991, p. 61):
... esse capitalismo mais puro de nosso tempo elimina os enclaves de organização pré-capitalista que ele até agora tinha tolerado e explorado de modo tributário. Nesse aspecto, sentimo-nos tentados a falar de algo novo e historicamente original: a penetração e colonização do Inconsciente e da Natureza, ou seja, a destruição da agricultura pré-capitalista do Terceiro Mundo pela Revolução Verde e a ascensão das mídias e da indústria da propaganda.
Nesse mundo homogeneizado e completamente humano, o pós-modernismo gera inconscientes flexíveis, maleáveis e tremendamente receptivos às demandas do capital. Arrastados pelo consumo compulsivo, oferecemos pouca ou nenhuma resistência às determinações do mercado, aos sacrifícios e às mudanças mais absurdas promovidas pelo Estado em nome da estabilidade e do saneamento das contas públicas. Por conta do declínio da idéia utópica e da imaginação, a cultura dominante já não projeta nada superior ou elevado, o único plano válido e real é o próprio presente, em outras palavras, o unidimensional e congestionado hiperespaço do capitalismo tardio. Em sua nostalgia pela natureza perdida e pela história que nos falta, o pós-moderno ressuscita e intensifica o passado, deixando claro que, finalmente, depois de tantos erros e ilusões, temos um mundo à nossa imagem e semelhança. O mercado, afirmam especialistas, é a natureza humana pronta e realizada.
Dissolvido o caráter afirmativo da cultura e todo o conjunto de grandes esperanças que a modernidade alimentou, as imagens de felicidade, fraternidade, amor e liberdade sobrevivem tão-somente nos rótulos das mercadorias, na vida das celebridades e no grande alívio de não se ter tempo livre - esse privilégio infernal de que gozam os milhões de rejeitados pelo desemprego estrutural. Nosso ponto de chegada, até segunda ordem, é a superação da antiga oposição entre civilização e cultura num todo social altamente padronizado, sem tempo e sem história, no qual a fronteira que separava o econômico do cultural pode ser declarada morta. O estado em que vivemos no capitalismo tardio é o de um verdadeiro confinamento ideológico e cultural, uma situação de desespero letárgico, em que a política se vê destituída de qualquer relevância ou sentido. Nossas degradadas metrópoles - inteiramente privatizadas e transformadas em gigantescos shopping-centers - já não têm para onde crescer, a não ser destruindo e construindo sobre si mesmas. Para além da especulação imobiliária, a febre da revitalização e do "enobrecimento urbano" (gentrificação) nada faz além de atenuar o mau cheiro e o mal estar de nossos espaços-lixo, como diria Rem Koolhaas. Situações sem saída ou esperança como a nossa - é disso mesmo que se trata - constituem, no entanto, o momento propício para a utopia.
Segundo Jameson, a importância da revitalização dos impulsos utópicos cresce na exata medida em que a política tradicional fracassa e a revolução socialista perde sua atualidade. O enclausuramento ideológico produzido pela chegada do capitalismo a seus limites últimos é o resultado da supressão do tempo por um novo tipo de espaço, o hiperespaço do mercado globalizado, uma totalidade não representável, saturada e ao mesmo tempo desconhecida. Na ótica do pensador norte-americano, o declínio da utopia no pós-moderno é um sintoma dos mais importantes. Diz ele (JAMESON, 2006, p. 160):
De um lado, esse enfraquecimento do senso histórico e da imaginação da diferença histórica que caracteriza a pós-modernidade está paradoxalmente entrelaçado com a perda daquele lugar além de toda história (ou depois do seu final) que chamamos de utopia. De outro, hoje é bastante difícil imaginar algum programa político radical sem o conceito de alteridade sistêmica, de uma sociedade alternativa, que apenas a idéia de utopia parece manter vivo, ainda que de modo débil. É claro que isso não significa que, ainda que consigamos reviver a própria utopia, os contornos de uma política prática nova e eficaz para a época da globalização vão se tornar visíveis de imediato; mas apenas que jamais chegaremos a ela sem isso.
Longe de ser um programa político, a utopia é uma forma sem qualquer conteúdo definido a priori, ou seja, seu movimento não concretiza coisa alguma, tampouco aponta soluções. Sua força é precisamente seu saudável distanciamento do mundo real. A alteridade sistêmica que nos falta na realidade contemporânea pode ser introduzida, como um corpo estranho, pelo livre jogo da imaginação utópica. A não liberdade generalizada e o imobilismo social do capitalismo pós-moderno são as precondições de uma liberdade típica dos períodos de impotência e desespero: uma liberdade puramente intelectual e construtivista, não tenhamos dúvida. A função política da utopia é essencialmente negativa, quer dizer, na ausência de alteridades radicais e projetos políticos transformadores, os jogos da imaginação servem exatamente para que possamos enxergar o quanto estamos presos, o quanto de vida estamos perdendo a cada dia, a cada tentativa fracassada de superação da crise estrutural do capitalismo (não reconhecida tal, é claro). A utopia bem sucedida é aquela que revela a nosso fracasso enquanto sociedade, aquela que nos permite compreender que somos pessoas cuja produtividade (nossas capacidades humanas), em seu sentido mais rico e amplo, se encontra radicalmente bloqueada (JAMESON, 1997, p. 85):
Historicamente, portanto, esse é o sentido em que a vocação da Utopia é o fracasso; o seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno de nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite detectar, por mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção, a lama da época presente que se gruda nos sapatos da Utopia alada, imaginando que isso é a própria força da gravidade.
De acordo com Jameson, as idéias utópicas surgem de uma dialética entre identidade e diferença, isto é, através de uma experiência do pensamento, que impulsionada pela imaginação, produz uma mediação representacional entre a alteridade radical gerada pela utopia e o mundo estandardizado (identidade). Desta maneira, devemos conceber a utopia como um enclave imaginário no reino do sempre-igual, para usarmos a expressão de Adorno, como uma forma de liberdade ilimitada e absolutamente necessária que, em contraposição a lógica da mercadoria, coloca frente a frente o real e o impossível. Tão importante quanto detectar e fortificar os impulsos utópicos - principalmente onde eles são frontalmente negados - é o enfrentamento do medo e das ansiedades que envolvem o utópico, ou seja, o temor que, presente até mesmo na esquerda radical, antecipa as possíveis perdas e as enormes dificuldades de se passar por período revolucionário que certamente exigiria de nós de uma total mudança de hábitos, valores e práticas. Mais ainda: a obsessiva advertência dos contra-revolucionários de que a utopia conduz sempre e inevitavelmente a alguma forma de totalitarismo. Essa idéia se baseia, evidentemente, na suposta perversidade da natureza humana.
Como já dissemos, a utopia tem um enorme potencial cognitivo, cuja força nos permite acreditar que, ainda que tenhamos falado em inconscientes maleáveis, na surdez histórica do pós-modernismo e na integração da classe trabalhadora, o próprio consumismo precisa operar com os sonhos, com os desejos e esperanças que a ordem do capital destrói a cada minuto. No que faz isso, o sistema produtor de mercadorias cria, contra seus próprios interesses, dúvidas e insatisfações, esperanças e desejos que não cabem no reino da necessidade e tampouco podem ser contemplados numa ida ao shopping-center. Para além disso, devemos lembrar, com Jameson, que o predomínio das categorias espaciais sobre o tempo abriu um enorme campo para a investigarmos a presença do utópico Certos desenvolvimentos da arquitetura pós-moderna (o já citado Koolhaas, por exemplo), a chamada arte conceitual e até mesmo as instalações nos põe diante de novidades reais, de experiências ainda pouco compreendidas e não teorizadas. São possíveis novos espaços para o reflorescimento e para a representação do utópico, sugere o pensador norte-americano. Assim sendo, a questão urgente é (JAMESON, 2008, p. 573)
[...] como localizar a diferença radical, como impulsionar o sentido histórico de modo que ele novamente comece a transmitir frágeis sinais de tempo, de alteridade, de mudança e de utopia. O problema a ser resolvido é este: escapar do presente "sem vento" do pós-moderno e retornar ao tempo histórico real e uma história feita por seres humanos.
A utopia deixa de fazer sentido apenas naqueles raros momentos em que uma ordem social se vê questionada radicalmente e a prática política revolucionária reivindica o controle da vida social. Nestas horas, o jogo anárquico e livre da imaginação cede lugar às escolhas concretas, à organização, à tática e às respostas urgentes.
3. Não podemos nos alongar em determinadas direções, que certamente nos levariam para muito longe da proposta inicial desta reflexão, mas sem dúvida não faremos mal algum colocando algumas questões que podem ser levantadas a partir do que foi dito aqui. Se realmente foi a direita quem primeiro denunciou os horrores e a pobreza da cultura de massas, será possível pensar que o capitalismo pós-moderno criou, de modo irreversível, algo indesejado pelos conservadores, isto é, as condições para um acesso geral e irrestrito aos bens culturais produzidos pela humanidade, premissa básica de uma sociedade emancipada? Será que, na medida em que reconhecemos que qualquer projeto socialista radical também precisa produzir sua própria cultura de massa - ainda que ela evidentemente seja muito distinta da cultura degradada do presente - não teríamos algo a aprender com a dinâmica e os mecanismos de difusão da cultura no pós-modernismo? Outro ponto: a queda do caráter afirmativo da cultura representa, sem dúvida, uma perda para as tradições que, como o marxismo, postulam uma elevação do nível cultural das classes subalternas. Mas e o capitalismo, ele sai ileso dessa mudança? Talvez seja possível argumentar que a dinâmica de sua reprodução, enquanto sistema, e sua capacidade de auto-legitimação venham a ser sensivelmente prejudicadas por este atual processo, de formas que ainda não conseguimos antecipar? Em outras palavras: a ausência do alívio e das compensações da alma oferecidas pela cultura em seu momento afirmativo pode ser inteiramente suprida pelo consumismo? E não menos importante: enquanto, para nossa tranqüilidade, a alta cultura conservou sua precária autonomia, a teoria e a prática revolucionária, tanto no ocidente quanto nos países do chamado "socialismo real", quase sempre trataram muito mal a questão cultural, relegando-a ao plano da doutrinação e da propaganda, construindo, assim e por fim, um novo tipo de cultura repressiva (os frankfurtianos constituem a mais notável exceção, sem dúvida!). Com isso, o trabalho e a produtividade continuaram sendo os valores supremos, a base inquestionável para a construção da sociedade sem classes, do novo homem. Entretanto, com a fusão do econômico e do cultural no pós-moderno, a cultura não estaria agora, bem ou mal, numa posição em que qualquer projeto radical de esquerda deverá necessariamente colocá-la em primeiro lugar, tendo o mesmo grau de importância da crítica da economia política? Dito isto, terminemos com Jameson que, lembrando Marcuse, reafirma, uma vez mais, o ponto crucial de toda e qualquer luta pela emancipação socialista da humanidade nos dias de hoje (1985, p. 93):
Certamente, há sempre a possibilidade de que tal sociedade seja precisamente impossível. E essa alternativa final, que o modelo apriorístico deixa em aberto para nós, é a fonte do realismo de Marcuse, de sua lembrança insistente de que a salvação não é de modo algum historicamente inevitável, de que nem mesmo nos encontramos numa situação pré-revolucionária, quanto mais revolucionária, e que o sistema total pode ainda ser bem sucedido em apagar da face da Terra a própria memória do negativo, e com ela a memória da liberdade.
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Endereço para correspondência
Mauricio Miranda dos Santos Oliveira
Rua Carlos Vasconcelos 44/ 804, Tijuca, CEP 20521-050,
Rio de Janeiro-RJ, Brasil
Endereço eletrônico: aumyranda@terra.com.br
Recebido em:20/05/2010
Aceito para publicação em: 10/07/2010
Acompanhamento do processo editorial: Jorge Coelho Soares e Ariane P. Ewald
Notas
*Doutorando da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1É importante destacar o sentido que aqui se confere aos termos civilização e cultura. Sobre isso ver MARCUSE, H. [1937], 2006, p. 96.
2A caracterização da cultura afirmativa como cultura da alma é muito interessante e esclarecedora. Ver MARCUSE, H. [1937], 2006, p. 124-125.
3Ver EAGLETON, T. A Ideologia da Estética: Rio de Janeiro, Jorge Zahar: [1990], 1993, p. 17.
4Para uma instigante análise da relação Marcuse/Schiller ver JAMESON, F. Marxismo e Forma, São Paulo: Hucitec, [1971], 1985, p. 70-94.
5Ver MARCUSE, H. Eros e Civilização, [1955], 1999, p. 141-144.
6Sobre essa tensão existente na obra de Marx, entre a exaltação do trabalho e sua crítica radical, ver Kurz, R. O Colapso da Modernização [1991], São Paulo: Paz e Terra, 2004.
7O impressionante progresso da técnica e da ciência a partir da Segunda Guerra Mundial está diretamente ligado a objetivos destrutivos. Ver MANDEL, E. [1972], 1985. p. 177.
8Para Marcuse, em que pese a propaganda ideológica dos dois lados, as sociedades industriais do ocidente e o comunismo soviético eram sistemas de dominação, igualmente contrários à liberdade e à revolução socialista. Ver, por exemplo, MARCUSE, H. [1947], 1998, p. 297.
9Ver DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo [1967]. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.
10Em O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, Marx assinala enfaticamente a necessidade de uma ruptura completa com as tradições do passado. Ver MARX, K. 2006, p. 18.
11Ver HABERMAS, J. 2002, cap. I.
12Sobre esta teoria, ver a clássica formulação de TROTSKY, L. em A História da Revolução Russa, v. 1.
13Para uma fecunda discussão deste conceito, normalmente utilizado com muito pouco rigor, ver MENEGAT, M. Depois do Fim do Mundo: A crise da Modernidade e a Barbárie. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
14Ver EAGLETON, T. Depois da Teoria, p. 18-19.
15EAGLETON, T. A Idéia de Cultura, p. 178.