Estudos e Pesquisas em Psicologia
ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.11 no.3 Rio de Janeiro dez. 2011
COMUNICAÇÃO DE PESQUISA
Imagética musical: aspectos cognitivos da prática musical
Musical imagery: cognitive aspects of musical practice
Renan Paiva Chaves*
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil
A habilidade de produzir e manipular entidades mentais é mandatória para as mais sofisticadas atividades humanas, tais como antecipação de eventos, raciocínio e criatividade (MELLET, et al., 1998). Entre as faculdades centrais do processamento mental, figura a Imagética Mental1, que é definida usualmente, na ciência cognitiva2, como atos mentais não-literais de encenação e representação da experiência perceptiva quando da ausência de seu estímulo sensório exterior apropriado (HALPERN; ZATORRE, 1999; THOMAS, 2008), estando ligados às noções auditivas, visuais, tácteis, gustativas, olfativas, cinestésicas e orgânicas do Homem (DICKSTEIN; DEUTSCH, 2007).
A temática da Imagética Mental tornou-se foco de discussão para um relevante número de pesquisadores da cognição, da psicologia e da neuropsicologia na década de 1970 (FARAH, 1995), o que resultou em uma explosão de publicação de artigos científicos de cunho empírico, experimental e teórico entre finados da década de 1970 e da década de 1980. Todavia, essas pesquisas tiveram como centralidade, quase que exclusivamente, as formas visuais da Imagética, ou seja, imaginação e representação espacial, estrutural e estética de cenários e objetos na mente humana (MELLET, et al., 1998), a exemplo: Farah (1988), Finke (1985), Kosslyn (1978), Pylyshyn (1973), Roland e Skinhøj (1981), Goldenberg (1989), Zimler e Keenan (1983).
A Imagética Mental, com o reflexo dessas publicações, enveredou-se a quase sinônimo de Imagética Visual3 até os fins da década de 1980 (HALPERN, 1988; 2003): poucos estudos, até então, deram atenção à natureza funcional e estrutural de tipos não-visuais de imagética (HUBBARD; STOECKIG, 1988). Entretanto, a partir dessa data, o número de artigos em torno da Imagética Auditiva, experiência de escutar sons na ausência de estímulo auditivo (KRAEMER, et al., 2005), e Imagética Motora4, execução ou representação mental do movimento em ausência de movimento corpóreo (DICKSTEIN; DEUTSCH, 2007), cresceu significativamente: em 1992 uma coleção de artigos a respeito de Imagética Auditiva já havia sido reunida por Reisberg no livro Auditory Imagery e várias produções relevantes a respeito de Imagética Motora, como Crammond (1997), Decety e Jaennerod (1995), Jaennerod (1995), Rao, et al. (1993), foram publicadas em importantes periódicos.
Com o aprofundamento do conhecimento consequente das pesquisas produzidas nessas três ramificações da Imagética Mental (Auditiva, Motora e Visual), novas perspectivas e abordagens5 começaram, de maneira consistente, a integrar um corpo de estudo hábil a viabilizar a utilização desse conhecimento como ferramenta de compreensão e de facilitação dos processos de reabilitação, aperfeiçoamento e aquisição de habilidades, a exemplo:
- Dickstein e Deutsch (2007), em uma importante revisão, selecionaram e sintetizaram os estudos mais relevantes acerca da Imagética Motora (que envolve também a Imagética Visual condicionada à motricidade), de maneira a integrá-los à prática da terapia física, evidenciando resultados experimentais que dão subsídios às práticas mentais aplicadas à terapia física de reabilitação de diversos problemas motores advindos de derrames cerebrais, mal de Parkinson, danos na coluna vertebral e paralisia;
- Resultados de uma série de pesquisas sustentam a ideia de que a prática da Imagética Motora, além de compartilhar com a execução motora semelhantes atividades nas estruturas cerebrais do sistema de controle motor humano (CRAMMOND, 1997; ROTH, et al. 1996), pode ter efeitos complementares (em relação à prática efetiva) e positivos em aquisição de habilidades e em performances (DICKSTEIN; DEUTSCH, 2007). Pesquisas como essas dão suporte, por exemplo, à constatação de que no atletismo a prática mental dos movimentos por meio da Imagética Motora, que compreende a prática mental da percepção cinestésica e da visualização hipotética do movimento, tem se mostrado uma ferramenta relevante (CUMMING; HALL, 2002) e positiva nos treinamentos de atletas de alto padrão (HALE, 1994).
Concomitante à expansão do número de publicações sobre Imagética Mental, houve uma cristalização dos estudos da música sob o enfoque da neurociência cognitiva, que permeou, sobretudo a partir da década de 1990, a consolidação da complexa temática da Imagética Musical6.
Encarada diversas vezes de maneira simplista, a prática da Imagética Musical não se restringe apenas ao escutar do som e da música com os "ouvidos da mente", ou seja, não se limita a fazer o som e a música estarem presentes em representação e execução na mente em ausência de estímulo auditivo exterior, proveniente do ambiente. A prática musical (principalmente a dos músicos profissionais) envolve, além do imediatismo aural, relações profundas de interação com a motricidade e com a visão, tanto na aprendizagem como na performance, implicando em absorção, compreensão e execução de informações de diferentes modalidades. A Imagética Musical, por consequência, não se encerra em habilidades de práticas mentais auditivas, não se caracterizando exclusivamente como produto da Imagética Auditiva, mas sim como produto desta e de outras áreas da Imagética Mental, em especial a Motora e a Visual.
Relevante, também, observar que o fluxo de informação de seu processamento não segue sentido único, as imagens musicais não são necessariamente o fim e o único retorno "sensitivo" da prática da Imagética Musical. O próprio som pode desencadear ativações não-auditivas, mas que estão diretamente ligadas ao contexto musical. Nesse sentido, por exemplo, Bangert, Haeusler e Altenmüller (2001), em busca de relações entre audição e motricidade, concluíram, de maneira parecida a outros estudos – Zatorre, et al. (1996) Halpern e Zatorre (1999), por exemplo –, que após um período de prática instrumental ao piano, as áreas do córtex auditivo e as áreas sensório-motoras referentes às mãos dos sujeitos submetidos a testes eram ativadas conjuntamente mesmo com atividades puramente auditivas ou puramente motoras, ou seja, apertar (ou imaginar apertar) uma tecla do piano, sem feedback auditivo, poderia ativar a lembrança do som referido àquela tecla específica, e vice-versa, escutar (ou imaginar) um som poderia ativar as vias motoras responsáveis por apertar a tecla relacionada, como se um mapa crossmodal7 fosse criado com a prática. Correspondendo, como nos grifos de Oliver Sacks em respeito ao artigo de Zatorre e Halpern (2005) contidos no capítulo dedicado a imagens mentais no livro Alucinações Musicais, às afirmações de que músicos são capazes de "ouvir" seu instrumento durante a prática mental.
A importância da Prática Mental, sob esse conceito de Imagética Musical, enquanto imiscuída à arte musical, é bastante saliente levando-se em consideração que seu entendimento pode prover informações substanciais para os processos nos quais músicos profissionais se inserem (ZATORRE; HALPERN, 2005): apesar da prática mental já estar imersa e indissolúvel ao meio musical8, sua mensuração em termos de eficácia e aplicabilidade poderia fornecer subsídios positivos e complementares ao contexto atual.
Pascual-Leone (2003), nesse sentido, em estudo referencial, concluiu, a partir de experimentos e testes, que a prática mental (imaginar o tocar) pode resultar em acentuada melhora na performance, pode facilitar a aprendizagem de habilidades com menos prática física e que a combinação da prática física com a mental leva a um aperfeiçoamento das habilidades mais acentuado do que a prática física isolada. Hubbard e Stoeckig (1988), em outro exemplo, encontraram resultados consistentes com a ideia de que o ato de imaginar tons e acordes facilita a percepção desses mesmos sons em momento subseqüente: de maneira geral, quem praticou mentalmente obteve melhor acuidade, mais velocidade de resposta e menor taxa de erro nos testes de percepção.
Algumas outras abordagens que caminham na mesma direção podem também ser encontradas em capítulos de livros como Musical Imagery, editado por Godøy e Jørgensen (2001), em teses como a de Hoffman (2002) e em artigos como os de Aleman, et al. (2000), Bangert, Haeusler e Altenmüller (2001), Brodsky, et al. (2003), Crowder (1989), Halpern (1988), Halpern e Zatorre (1999), Janata (2001), Kraemer, et al. (2005), Langheim, et al. (2002), Rauschecker (2001), Repp (2001), Wheeler, Petersen e Buckner (2000) e Zatorre, et al. (1996).
Embora haja razoável número de publicações permeando os aspectos aqui debatidos do tema da Imagética Musical, não existe artigo científico, material organizado ou revisão da literatura em português9 indexado nas bases de dados mais recorrentes no meio acadêmico brasileiro, como, Directory of Open Access Journals (DOAJ), JSTOR, Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), MEDLINE, Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), PsycINFO, Scientifc Eletronic Library On-line (SciELO), Scopus e Web of Science. Quando existentes em outras línguas, não são direcionados aos músicos acadêmicos e profissionais, como é o caso da relevante revisão de Zatorre e Halpern (2005) e da importante coletânea de textos editada por Godøy e Jørgensen (2001), que apesar de conterem informações valiosas ao contexto musical, estão imersas em discussões de interesse neurocientífico. Como consequência, dada a dificuldade de acesso aos materiais10, a academia e a comunidade dos músicos permanecem alheias a essa área do conhecimento, que tem se mostrado de potencial valia.
Referências
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Endereço para correspondência
Renan Paiva Chaves
Rua Olyntho de Barros, 104, CEP 13084-320, Campinas-SP, Brasil
Endereço eletrônico: piratarix@gmail.com; chaves@iar.unicamp.br
Recebido em: 24/02/2011
Reformulado em: 03/03/2011
Aceito para publicação em: 03/03/2011
Acompanhamento do processo editorial: Adriana Benevides Soares
Notas
* Graduado em Música Popular pelo Departamento de Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.
1 Tradução para o português da expressão, da língua inglesa, Mental Imagery.
2 A definição de Imagética Mental teve, em diferentes períodos da história, diferentes conotações. Teve como referência primeira as teorias filosóficas de Platão (BIRD, 1977), e até hoje a definição é debate entre filósofos idealistas, materialistas e empiristas, e entre profissionais da filosofia, da psicologia e das ciências cognitivas (THOMAS, 2008). A definição que se procura nesse texto, apesar de ainda aberta, é a mais próxima da ciência cognitiva pós-década de 1950, período no qual cientistas recomeçaram a dar atenção à Imagética (HOLT, 1964).
3 Tradução para o português da expressão, da língua inglesa, Visual Imagery.
4 Tradução para o português das expressões, da língua inglesa, Auditory Imagery e Motor Imagery.
5 Entre elas, a integração e coexistência da metodologia behaviorista e cognitivista em uma mesma pesquisa, tanto na aplicação de testes quanto na discussão dos experimentos, que é de grande relevância, uma vez que a temática da Imagética Mental é ainda um tanto quanto subjetiva, e que essas duas metodologias têm-se mostrado complementares nesse seguimento (ZATORRE; HALPERN, 2005).
6 Tradução para o português da expressão, da língua inglesa, Musical Imagery.
7 Do inglês crossmodal. Adjetivo atribuído à habilidade de integrar informações advindas de diferentes receptores sensitivos ou de diferentes codificações.
8 É comum, por exemplo, regentes e arranjadores que estudam partituras em silêncio imaginarem as notas, os timbres, o ritmo e outros atributos musicais. Assim como é comum também instrumentistas de sopro e cantores que imaginam tocar ou cantar uma nota específicaantes de tocarem-na efetivamente, de maneira a facilitar a afinação (ZATORRE; HALPERN, 2005).
9 Com exceção dos breves relatos contidos no capítulo Música no cérebro: imagens mentais e imaginação do livro traduzido Alucinações Musicais: relatos sobre a música e o cérebro do médico neurologista e psiquiatra Oliver Sacks (2007).
10 Dificuldade evidenciada pelo fato das publicações serem estrangeiras, serem de acesso pago e estarem inseridas em contexto neurocientífico.